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Teologia Sistematica (Hodge) II Antropologia Soteriologia

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TEOLOGIA SISTEMÁTICA
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VOLUME II
CHARLES HODGE, D.D.
Tradutor e digitador:
Carlos Biagini
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
ÍNDICE
PARTE II: ANTROPOLOGIA
CAPÍTULO I
A ORIGEM DO HOMEM
§1. A doutrina escriturística
§2. Teorias antiescriturísticas
A doutrina pagã da geração espontânea
A moderna doutrina da geração espontânea
Teorias do desenvolvimento
Lamarck
Vestígios da Criação
Darwin
Observações sobre a teoria darwinista
O caráter ateu desta teoria
É uma mera hipótese
Teorias do Universo
Darwin
J. J. Murphy
Owen
O reino da teoria da lei
Dificuldades admitidas para a teoria darwinista
A Esterilidade dos híbridos
Distribuição geográfica
Pangênese
§3. A antiguidade do homem
Habitações lacustres
Restos fósseis humanos
2
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
3
Ossos humanos achados profundamente sepultados
Implementos de pederneira
Argumento com base nas raças de homens e monumentos
antigos
CAPÍTULO II
A NATUREZA DO HOMEM
§1. A doutrina escriturística
Verdades a respeito deste tema assumidas nas Escrituras
Relação da alma com o corpo
Dualismo realista
§2. Tricotomia
A Tricotomia é antiescriturística
Explicação de passagens duvidosas
§3. Realismo
Seu caráter geral
Humanidade genérica
Objeções ao Realismo
O Realismo não é apoiado pela consciência
O Realismo é contrário aos ensinos da Escritura
O Realismo é inconsistente com a doutrina da Trindade
O Realismo é inconsistente com o que a Bíblia ensina
sobre a pessoa e a obra de Cristo
§4. Outra forma da teoria realista
CAPÍTULO III
A ORIGEM DA ALMA
§1. Teoria da Preexistência
A doutrina de Orígenes
§2. Traducianismo
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
§3. Criacionismo
Argumentos com base na natureza da alma
§4. Observações finais
4
CAPÍTULO IV
A UNIDADE DA RAÇA HUMANA
§1. Conceito de Espécie
Características gerais das espécies
Definições de espécie
§2. Evidências da identidade das Espécies
Estrutura orgânica
O argumento fisiológico
O argumento psicológico
§3. Aplicação destes critérios ao homem
A evidência da raça acumulativa
§4. O argumento filológico e moral
A relação espiritual dos homens
CAPÍTULO V
O ESTADO ORIGINAL DO HOMEM
§1. A doutrina escriturística
§2. O homem criado à imagem de Deus
§3. A justiça original
Efésios 4:24
§4. O domínio sobre as criaturas
§5. A doutrina da Igreja Romana
Objeções à doutrina romana
§6. A doutrina Pelagiana e Racionalista
A consciência demonstra que as disposições, diferente dos atos,
podem ter caráter moral
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
5
O argumento do juízo geral dos homens
O caráter moral dos atos são determinados pelos
princípios de onde fluem
O argumento da Escritura
A Fé da Igreja sobre este tema
O caráter moral das Disposições depende de sua natureza
moral e não de sua origem
Esta é a Regra Comum de Juízo
O testemunho da Escritura
A fé da Igreja
Objeções consideradas
Os Pelagianos ensinam que o homem foi criado mortal
Resposta aos argumentos de Pelágio
CAPÍTULO VI
A ALIANÇA DAS OBRAS
§1. Deus fez uma aliança com Adão
§2. A promessa
§3. A condição
§4. A penalidade
§5. As partes da aliança das obras
§6. A perpetuidade da aliança das obras
CAPÍTULO VII
A QUEDA
O relato escriturístico
A árvore da vida
A árvore do conhecimento
A serpente
A natureza da tentação
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
Os efeitos do primeiro pecado
CAPÍTULO VIII
O PECADO
§1. A natureza da questão a ser considerada
§2. Teorias filosóficas da natureza do pecado
O pecado considerado como uma mera limitação do ser
A teoria de Leibnitz sobre a privação
O pecado é antagonismo necessário
A teoria de Schleiermacher sobre o pecado
A teoria sensorial
A teoria de que todo pecado consiste em egoísmo
§3. A doutrina da Igreja Primitiva
§4. A teoria Pelagiana
Argumentos contra a doutrina Pelagiana
§5. A doutrina de Agostinho
O elemento filosófico da doutrina de Agostinho
As razões de Agostinho para fazer do pecado uma negação
O elemento moral de sua doutrina
§6. A doutrina da Igreja de Roma
Diversidade de doutrina na Igreja Latina
Os Semipelagianos
A doutrina de Anselmo
A doutrina de Abelardo
A doutrina de Tomás de Aquino
A doutrina dos Escotistas
A doutrina Tridentina a respeito do Pecado Original
A verdadeira doutrina da Igreja de Roma
§7. A doutrina Protestante a respeito do pecado
O pecado é um mal específico
O pecado tem relação com a lei
6
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
7
O pecado está relacionado com a lei de Deus
Alcance das demandas da Lei
O pecado não se limita a atos da vontade
Consiste na ausência de conformidade com a Lei de Deus
O pecado inclui culpa e contaminação
§8. Os efeitos do pecado de Adão sobre sua posteridade
§9. Imputação imediata
Enunciado da doutrina de imputação imediata
A base da imputação do pecado de Adão
Adão, a Cabeça Federal de sua raça
O princípio representativo nas Escrituras
O mesmo princípio envolto em outras doutrinas
Argumento com base em Romanos 5:12-21
Argumento com base no consentimento geral
Objeções à doutrina
§10. Imputação mediata
A imputação mediata fora da Igreja Francesa
Objeções à doutrina da imputação mediata
A imputação mediata aumenta as dificuldades que devem
ser explicadas
Inconsistente com o argumento do apóstolo em Rm 5:12-21
A doutrina está baseada sobre um princípio falso
A teoria da propagação
§11. A preexistência
§12. A Teoria Realista
A teoria da identidade, do Reitor Edwards
Objeções à teoria de Edwards
A própria teoria Realista
Recapitulação das Objeções à teoria realista
O Realismo não é solução para o problema do pecado
§13 O pecado original
A natureza do pecado original
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
8
Enunciado da doutrina Protestante
Prova da doutrina da doutrina do pecado original
Primeiro argumento com base na universalidade do pecado
Segundo argumento com base na total pecaminosidade
dos homens
A pecaminosidade dos homens é incorrigível
Argumento com base na experiência do povo de Deus
Terceiro argumento com base na manifestação inicial
do pecado
Evasões dos argumentos que antecedem
As Escrituras ensinam esta doutrina de maneira expressa
A Bíblia descreve os homens como espiritualmente mortos
Argumento com base na necessidade da Redenção
Argumento com base na necessidade da Regeneração
Argumento com base na universalidade da morte
Argumento com base no consentimento comum dos cristãos
Objeções
A objeção de que os homens são responsáveis apenas
por seus atos voluntários.
Objeção baseada na justiça de Deus
A doutrina representa a Deus como autor do pecado
Diz-se que destrói o livre-arbítrio dos homens
§14. O Assento do Pecado Original
Toda a alma é o Assento do Pecado Original
§15. Incapacidade
A doutrina tal como é indicada nos Símbolos Protestantes
A natureza da incapacidade do pecador
A incapacidade não surge da perda de nenhuma faculdade
da alma
Nem da perda do livre-arbítrio
A incapacidade não é mera ausência de inclinação
Surge da carência de discernimento escriturístico
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
9
A incapacidade, declarada só com referência às «Coisas do
Espírito»
Num sentido, sua capacidade é natural
Em outro sentido é moral
Objeções à distinção popular entre capacidade moral e natural
Prova da doutrina
Declarações expressas das Escrituras
Envolto na doutrina do Pecado Original
A necessidade da influência do Espírito
O argumento com base na experiência
A convicção do pecado
Objeções
Não debilita os motivos para o esforço
A doutrina não incentiva a demora
CAPÍTULO IX
LIVRE-ARBÍTRIO
§1. Diferentes teorias da vontade
Necessidade
Contingência
Certeza
§2. Definição de termos
Vontade
Motivo
Causa
Liberdade
Liberdade e capacidade
Autodeterminação e autodeterminação da vontade
§3. A certeza é consistente com a liberdade
Pontos de concordância
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
O argumentos de que a certeza é idônea para todos os
agentes livres
Argumentos derivados da Escritura
O argumento baseado na consciência
Argumentos com base no caráter moral das volições
Argumento com base na natureza racional do homem
Argumento com base na doutrina de uma causa suficiente
10
PARTE III: SOTERIOLOGIA
CAPÍTULO I
O PLANO DA SALVAÇÃO
§1. Deus tem este plano.
A importância do conhecimento deste Plano
Como se pode conhecer o plano de Deus
§2. O Supralapsarianismo
Objeções ao Supralapsarianismo
§3. Infralapsarianismo
Diferentes significados que se atribuem à palavra predestinação
§4. Redenção hipotética
Argumentos contra este esquema
§5. A doutrina luterana quanto ao plano da salvação
§6. A doutrina Remonstrante
§7. O Arminianismo Wesleyano
§8. O esquema Agostiniano
Observações preliminares
Exposição da doutrina
Prova da doutrina
Argumento com base nos fatos da Providência
A soberania de Deus nas dispensações de Sua providência
Argumento com base nos fatos da Escritura
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
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Pela obra do Espírito
A Eleição é para a Santidade
Pela natureza gratuita da salvação
O argumento do Apóstolo em Romanos 9
O argumento da experiência
As declarações expressas da Escritura
As palavras de Jesus
§9. Objeções ao esquema Agostiniano.
As mesmas objeções militam contra da Providência de Deus
Baseadas em nossa ignorância
Estas objeções foram levantadas contra os ensinos do
Apóstolo Paulo
CAPÍTULO II
A ALIANÇA DA GRAÇA
§1. O plano da salvação é uma Aliança
§2. Diferentes pontos de vista da natureza desta aliança
§3. As partes da Aliança
Duas Alianças que se devem distinguir
§4. A Aliança da Redenção
A obra atribuída ao Redentor
As promessas feitas ao Redentor
§5. A Aliança da graça
Cristo como Mediador da Aliança
A condição da Aliança
As promessas da Aliança
§6. Identidade da Aliança da graça sob todas as Dispensações.
A promessa da vida eterna dada antes do Advento
Cristo, o Redentor, sob ambas as dispensações
Desde o princípio a fé é a condição da salvação
§7. Diferentes Dispensações.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
A primeira, de Adão a Abraão
A segunda dispensação
A terceira dispensação
A dispensação do Evangelho
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CAPÍTULO III
A PESSOA DE CRISTO
§1. Considerações preliminares
§2. Os fatos escriturísticos a respeito da Pessoa de Cristo
Prova da doutrina
Primeiro argumento: Todos os elementos da doutrina são
ensinados separadamente
Cristo tinha um verdadeiro corpo
Cristo tinha uma alma racional
Cristo é verdadeiramente Deus
Cristo é uma Pessoa
Segundo argumento, com base nas exposições próprias da
Escritura
Terceiro argumento, com base em passagens particulares
da Escritura.
§3. A união hipostática
Duas naturezas em Cristo
As duas naturezas estão unidas, mas não misturadas nem
confundidas
Não há transferência de atributos de uma natureza para a outra
A união é uma união pessoal
§4. Consequências da União Hipostática.
Comunhão de atributos
Os atos de Cristo
O Homem Cristo Jesus é o objeto da adoração
Cristo pode simpatizar com o Seu povo
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
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O Logos encarnado é a fonte da vida
A exaltação da Natureza Humana de Cristo.
§5. Doutrinas errôneas e heréticas a respeito da Pessoa de Cristo
Os Ebionitas
Os Gnósticos
A doutrina Apolinária
Nestorianismo
Eutiquianismo
§6. A doutrina das Igrejas Reformadas
§7. A doutrina Luterana
Diferentes posturas entre os Luteranos
Observações a respeito da doutrina luterana
§8. Formas posteriores da doutrina.
Socinianismo
A preexistência da Humanidade de Cristo
Swedenborg
Isaac Watts
Objeções
§9. Formas modernas da doutrina.
Cristologia panteísta
Cristologia teísta
Ebrard
Gess
Observações
Schleiermacher
A Cristologia de Schleiermacher
Objeções a esta teoria
Baseado em princípios panteístas
Envolve a rejeição da doutrina da Trindade
A antropologia de Schleiermacher
A teoria de Schleiermacher perverte o plano de salvação
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
CAPÍTULO IV
A OBRA MEDIADORA DE CRISTO
§1. Cristo o único Mediador
§2. Qualificações para a obra
§3. O tríplice ofício de Cristo
CAPÍTULO V
O OFÍCIO PROFÉTICO
§1. A natureza do ofício profético
§2. Como Cristo executa o ofício de Profeta
CAPÍTULO VI
O OFÍCIO SACERDOTAL
§1. Cristo é verdadeiramente Sacerdote, não em sentido figurado
§2. Cristo nosso único Sacerdote
§3. Definição de termos
A palavra expiação
Satisfação
Penalidade
Vicário
Culpa
Redenção
Expiação e Propiciação
CAPÍTULO VII
A SATISFAÇÃO DE CRISTO
§1. Enunciado da doutrina
§2. O valor intrínseco da satisfação de Cristo
14
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
15
A doutrina Romanista da Satisfação
§3. A doutrina dos Escotistas e dos Remonstrantes
§4. A satisfação dada à justiça
§5. A obra de Cristo satisfaz as demandas da Lei
Prova da imutabilidade da Lei
§6. Prova da doutrina
Cristo nos salva como nosso Sacerdote
Cristo nos salva como un Sacrificio
Prova da doutrina comum a respeito dos sacrifícios pelo pecado
Os sacrifícios expiatórios do Antigo Testamento
O capítulo 53 de Isaías
Passagens do Novo Testamento em que a obra de Cristo é
exposta como Sacrifício
Cristo nosso Redentor
Redenção da pena da Lei
Redenção da Lei
Redenção do poder do pecado.
Redenção do poder de Satanás
Redenção Final de todo o mal
Argumento com base em doutrinas relacionadas
Argumento com base na experiência religiosa dos crentes.
§7. Objeções.
Objeções morais
Objeções populares
Não há justiça vindicatória em Deus
Não pode haver antagonismo em Deus
É impossível a transferência de culpa ou de justiça
A expiação é um conceito pagão
A satisfação da justiça é desnecessária
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
CAPÍTULO VIII
POR QUEM CRISTO MORREU?
16
§1. Estado da questão
§2. Prova da doutrina Agostiniana.
Argumento com base na doutrina da Eleição
As declarações expressas da Escritura
Argumento com base no especial amor de Deus
Argumento com base na união do crente com Cristo
Argumento com base na intercessão de Cristo
A doutrina da Igreja inclui todos os fatos do caso
Se a expiação é limitada no desígnio, deve ser limitada na oferta
Certas passagens da Escritura consideradas
CAPÍTILO IX
TEORIAS SOBRE A EXPIAÇÃO
§1. A postura ortodoxa
§2. A doutrina de alguns dos Pais
§3. A teoria moral
Objeções a esta teoria
§4. A teoria governamental
Remonstrantes
Os sobrenaturalistas
Teólogos americanos
Objeções à teoria
§5. A teoria mística.
Teoria mística ao tempo da Reforma
Osiander
Schwenkfeld
Oetinger
As posturas modernas
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
§6. Observações finais
CAPÍTULO X
A INTERCESSÃO DE CRISTO
§1. Cristo nosso Intercessor
§2. Sua natureza
§3. Seus objetos
§4. A intercessão dos santos
CAPÍTULO XI
O OFÍCIO RÉGIO DE CRISTO
§1. A Igreja, o Reino de Deus
§2. Cristo é o único Rei
§3. A natureza do Reino de Cristo
O domínio de Cristo sobre o universo
O reino espiritual de Cristo
O reino visível de Cristo
A natureza deste reino
§4. O Reino da glória
CAPÍTULO XII
A HUMILHAÇÃO DE CRISTO
§1. Inclui Sua Encarnação
Cristo nasceu numa condição humilde
§2. Ele foi feito sujeito à Lei
§3. Seus sofrimentos e morte
§4. Ele suportou a ira de Deus
§5. Sua morte e sepultura
A doutrina romana do “Descensus ad Inferos”
17
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
As posturas dos Luteranos e de Teólogos Modernos
a respeito da Humilhação de Cristo
CAPÍTULO XIII
A EXALTAÇÃO DE CRISTO
§1. A Ressurreição de Cristo
A natureza do corpo da Ressurreição de Cristo
O Agente eficiente da Ressurreição de Cristo
§2. A Ascensão de Cristo
§3. Sentado à direita de Deus
§4. A vinda de Cristo para julgar o mundo
CAPÍTULO XIV
A VOCAÇÃO
§1. Uso escriturístico do termo
§2. A chamada externa
Não é inconsistente com a doutrina da Predestinação
É consistente com a sinceridade de Deus
A doutrina luterana
A chamada à salvação é só por meio do Evangelho
Por que o Evangelho dirige-se a todos os homens?
§3. A graça comum
A doutrina Luterana da graça comum
A postura racionalista
Há uma influência do Espírito distinta da Verdade
A influência do Espírito pode ser sem a Palavra
A obra do Espírito é diferente da eficiência providencial
As influências do Espírito, concedidas a todos os homens
O argumento da experiência
Os efeitos da graça comum
18
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
§4. A graça eficaz
Por que é chamada eficaz
Congruidade
A doutrina Agostiniana da graça eficaz
O principal princípio envolvido
A graça eficaz é misteriosa e peculiar
Não é persuasão moral
A graça eficaz age imediatamente
O uso da palavra física
A graça eficaz é irresistível
A alma é passiva na regeneração
A regeneração é instantânea
Um ato da graça soberana
§5. Prova da doutrina
O consentimento comum
Argumento da analogia
Argumento com base em Efésios 1:17-19
Argumento com base no ensino da Escritura
Argumento com base na natureza da regeneração
Argumento com base nas doutrinas relacionadas
Argumento com base na experiência
§6. Objeções
§7. História da doutrina da graça
A doutrina pelagiana
O Semipelagianismo
Período Escolástico
A doutrina tridentina
A controvérsia dos sinérgicos
A Igreja Reformada
Universalismo Hipotético
O Sobrenaturalismo e o Racionalismo
19
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
20
PARTE II
ANTROPOLOGIA
TENDO considerado as doutrinas que tratam da natureza de Deus e
sua relação com o mundo, passamos agora às que tratam do homem: de
sua origem, natureza, estado primitivo, prova, e apostasia; tema este
último que inclui a questão a respeito da natureza do pecado; e os efeitos
do primeiro pecado de Adão sobre si mesmo e sobre sua posteridade.
Estes temas constituem a seção de Antropologia.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
CAPÍTULO I
21
A ORIGEM DO HOMEM
§ 1. A doutrina escriturística
O relato escriturístico da origem do homem está contido em
Gênesis 1:26,27: «Também disse Deus: Façamos o homem à nossa
imagem, conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio sobre os
peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos,
sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra. Criou
Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem
e mulher os criou». E Gênesis 2:7: «Então, formou o SENHOR Deus ao
homem do pó da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o
homem passou a ser alma vivente».
Incluem-se duas coisas neste relato; primeiro, que o corpo do
homem foi formado pela imediata intervenção de Deus. Não cresceu;
não foi produzido por nenhum processo de desenvolvimento. Segundo, a
alma foi derivada de Deus. Ele soprou no homem «fôlego de vida», isto
é, aquela vida que lhe constituía em homem, uma criatura vivente,
portadora da imagem de Deus.
Muitos inferiram com base nesta linguagem que a alma é uma
emanação da essência divina, uma partícula spiritus divini in corpore
inclusa. Esta ideia foi intensamente resistida pelos pais cristãos e
rejeitada pela Igreja como inconsistente com a natureza de Deus.
Pressupõe que a essência divina é suscetível de ser dividida; que sua
essência pode ser comunicada sem seus atributos, e que pode ser
degradada tal como estão degradadas as almas dos homens caídos.
(See Delitzsch’s “Biblical Psychology” in T. and T. Clark’s
“Foreign Library,” and Auberlen in Herzog’s “Encyclopädie,” article
“Geist der Menschen.”)
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
§ 2. Teorias antiescriturísticas.
22
A doutrina pagã da geração espontânea.
A doutrina escriturística opõe-se à doutrina sustentada por muitos
dos antigos, de que o homem é uma produção espontânea da terra.
Muitos deles afirmavam ser gegeneis, autochthones, terrigena. Supunhase que a terra estava fertilizada com os germes de todos os organismos
vivos, que eram trazidos à vida sob circunstâncias favoráveis; ou eram
considerados como o instinto de uma vida produtiva a que se refere a
origem de todas as plantas e animais que vivem em sua superfície. A esta
primitiva doutrina da antiguidade tornaram a filosofia e a ciência
modernas em algumas de suas formas. Os que negam a existência de um
Deus pessoal, distinto do mundo, têm naturalmente que negar a doutrina
de uma criação ex-nihilo e, por conseguinte, a criação do homem. A
perspectiva teológica quanto à origem do homem, diz Strauss, «rechaça a
perspectiva da filosofia natural e da ciência em geral. Estas não admitem
a intervenção imediata da causação divina. Deus criou o homem, não
como tal, ou, ‘quatenus infinitus est, sed quatenus per elementa nascentis
telluris explicatur.’ Esta é a postura que apresentaram os filósofos gregos
e romanos, certamente de uma maneira muito rudimentar, e contra a qual
os pais da Igreja Cristã lutaram intensamente, mas que é agora o juízo
unânime da ciência natural assim como da filosofia». 1 À objeção de que
a terra já não mais produz de forma espontânea homens e animais
irracionais, responde-se que passaram muitas coisas antes que não
ocorrem no estado atual do mundo. À objeção ainda mais evidente que
um homem infantil deve ter morrido sem o cuidado de uma mãe,
responde-se que o menino flutuava no oceano de seu nascimento,
envolto numa coberta, até que chegou o desenvolvimento de um menino
de dois anos de idade; ou se diz que a filosofia só pode estabelecer o fato
1
Dogmatik. vol. I, pág. 680.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
23
geral quanto à forma em que a raça humana se originou, mas não pode
ser obrigada a explicar todos os detalhes.
A moderna doutrina da geração espontânea.
Embora Strauss exagere muito quando diz que os homens de
ciência de nossos dias são unânimes em dar seu apoio à doutrina da
geração espontânea, é indubitavelmente certo que uma numerosa classe
de naturalistas, especialmente do continente da Europa, estão a favor
desta doutrina. O Professor Huxley, em seu discurso a respeito da «Base
Física da Vida», dá-lhe todo o peso de sua autoridade. Certamente, não
ensina de uma maneira expressa que a matéria inerte se torne ativa sem
ficar sujeita à ação de uma matéria anteriormente viva, mas todo o seu
artigo tem o propósito de mostrar que a vida é o resultado da peculiar
disposição das moléculas da matéria. Sua doutrina é que «a matéria da
vida está composta de matéria comum, diferindo dela só na forma em
que seus átomos estão dispostos». 2 Diz ele: «Se as propriedades da água
podem-se considerar de maneira apropriada como o resultado da
natureza e disposição de suas moléculas componentes, não posso achar
nenhuma base inteligível para recusar dizer que as propriedades do
protoplasma resultam da natureza e disposição de suas moléculas». 3 Em
seu discurso perante a Associação Britânica diz que se pudéssemos olhar
o suficientemente longe retrospectivamente, ele esperaria poder ver «a
evolução do protoplasma vivo procedente de matéria não viva». E
embora aquele discurso estava dedicado a expor que a geração
2
Lay Sermons and Addresses, Londres, 1870, pág. 144.
Ibid., pág. 151. Mas aqui se envolve uma enorme falácia. A questão real não é a que se devam as
propriedades do protoplasma. É certo o que diz Huxley que se devem à natureza e disposição de suas
moléculas componentes. A pergunta crucial é como chegaram a dispor as moléculas do «protoplasma»
(isto é, da matéria viva) da maneira em que estão dispostas. Por acaso, ou por desígnio? O estudo da
complexidade da disposição das moléculas nos distintos mecanismos da célula leva a toda pessoa com
uma mente sensata e reflexiva à conclusão racional de que esta disposição das moléculas não pode ser
devida absolutamente às propriedades da matéria, mas sim a um desígnio imposto sobre a matéria. (N.
do T.).
3
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
24
espontânea, ou abiogênese, como também a chama, nunca foi provada,
diz ele que «devo me guardar cuidadosamente contra a disposição de que
tento sugerir que nunca tenha tido lugar abiogênese no passado, ou que
não possa ter lugar no futuro. Com a química orgânica, física molecular
e a fisiologia ainda em sua infância, creio que seria uma grande
presunção da parte de qualquer um dizer que as condições sob as quais a
matéria assume as propriedades que chamamos “vitais” não possam ser
um dia produzidas artificialmente». 4 Tudo isto supõe que a vida é
produto de causas físicas; que tudo o que se precisa para sua produção é
«reunir» as condições necessárias.
Sir Mivart, enquanto se opunha à teoria de Darwin, não só sustenta
que a doutrina da evolução é “longe de qualquer oposição necessária
para a teologia mais ortodoxa”, mas acrescenta que “o mesmo pode
dizer-se da geração espontânea.” 5 Como os químicos tiveram êxito em
produzir uréia, que é um produto de origem animal, ele pensa que não é
irrazoável que estes possam produzir um peixe.
Mas enquanto há uma classe de naturalistas que sustentam a
doutrina da geração espontânea, a grande massa inclusive daqueles que
são os mais avançados em admitir que omne vivum ex vivo, pelo que a
ciência sabe ainda, é uma lei estabelecida da natureza. Demonstrar isto é
o objetivo do importante discurso do Professor Huxley, a que já se fez
referência, pronunciado perante a Associação Britânica em setembro de
1870. Faz duzentos anos, diz-nos ele, foi usualmente tomado por sentado
que os insetos que fizeram sua aparição na decomposição de substâncias
animais e vegetais produziram-se de forma espontânea. Redi, entretanto,
um naturalista italiano, nos meados do século XVII, demonstrou que se a
matéria em decomposição fosse protegida por um pedaço de gaze
4
Athenæum, September 17, 1870, p. 376. Esta é outra falácia de raciocínio de T. H. Huxley. Se se
produzem «artificialmente», porque naturalmente não o podem ser espontaneamente, só se demonstra
com isso a presença do desígnio inteligente alimentado por uma informação adquirida com base no
paciente estudo da criação de Deus. (N. do T.)
5
Genesis of Species, by St. George Mivart, F. R. S. p. 266.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
25
admitindo o ar, mas com exclusão das moscas, tais insetos não fariam
sua aparição. “Portanto, a hipótese de que a matéria viva sempre surge
pela agência da matéria viva preexistente, tomou forma definitiva, e de
agora em diante havia um direito a ser considerado e uma reivindicação
a ser refutada, em cada caso particular, antes da produção da matéria
viva que de qualquer outra maneira pode ser admitida pelos arrazoadores
cuidadosos.” 6 Esta conclusão foi cada vez mais definitivamente fixada
por todas as investigações e experimentos que foram processados desde
aquele dia até hoje. Demonstrou-se que ainda os animálculos infusórios,
que são necessários os microscópios mais potentes para detectar, nunca
fazem sua aparição quando todos os germes vivos preexistentes foram
cuidadosamente excluídos. Estes experimentos, julgados à beira da nãoexistência, tendo para suas coisas matéria de tema tão pequeno como
para que seja duvidoso que fossem qualquer coisa ou nada, e ainda mais
incerto se estavam vivos ou mortos, são revisados em ordem cronológica
pelo Professor Huxley, e a conclusão a que conduzem plenamente
estabelecido.7 Isto se vê confirmado pela experiência diária. Carne,
verduras e frutas se conservam na medida de centenas de toneladas cada
ano. “As matérias que se conservam estão bem cozidas num estojo,
provido de um orifício pequeno, e este buraco é soldado quando todo o
ar no caso se substituiu por vapor. Mediante este método pode-se
guardar-se durante anos, sem putrefação, a fermentação, ou fazer-se
mofado. Agora, isto não é porque o oxigênio é excluído, considerando
que hoje está demonstrado que o oxigênio livre não é necessário tanto
para a fermentação ou a putrefação. Não é porque se esgotaram as latas
de ar, por vibriões e bactérias vivas, como Pasteur demonstrou, sem ar
ou oxigênio livre. Não é porque as carnes cozidas ou verduras não são
putrefacientes ou fermentáveis, como as que tiveram a desgraça de
encontrar-se num casco de navio suprido com latas fechadas de modo
6
Athenæum, September 17, 1870, p. 374.
O que Charlton Bastian, quem rejeitou as conclusões do professor Huxley, tomou por organismos
vivos, resultou ser nada mais que os folículos diminutos de vidro.
7
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
26
inexperiente. O que é, pois, senão a exclusão dos germes? Creio que os
abiogenistas estão obrigados a responder a esta pergunta antes de que
nos peçam para considerar os novos experimentos, precisamente a
mesma ordem.” 8
Mas admitindo que a vida se deriva sempre da vida, a pergunta
continua sendo se um tipo de vida, não poderá dar lugar à vida de uma
espécie diferente? Faz tempo supunha-se que os parasitas derivassem
sua vida da planta ou do animal em que vivem. E o que é mais ao ponto,
é uma questão de experiência familiar “que a pressão na pele só dará
lugar a um calo”, que parece ter uma vida própria, e que os tumores se
desenvolvem com frequência no corpo que adquirem, como na facilidade
de câncer, o poder de multiplicação e reprodução. No caso da vacinação,
também, uma diminuta partícula de matéria se introduz sob a pele. O
resultado é uma vesícula distendida com a matéria de vacinas “na
quantidade de cem ou mil vezes o que se inseriu originalmente.” De
onde vem? O Professor Huxley nos diz que se demonstrou que “o
elemento ativo na linfa vacina é não difusível, e compõe-se de partículas
diminutas que não excedem de 1/20000 de uma polegada de diâmetro,
que se fazem visíveis na linfa pelo microscópio. Experimentos similares
demonstraram que dois dos mais destrutivos das epizootias, as ovelhas
da varíola e o mormo, também dependem para sua existência e sua
propagação em muito pequenas partículas sólidas de vida, a que se aplica
o título de microenzimas.” A questão que surge, diz ele, é se estas
partículas são o resultado de homogênese, ou de xenogênese, isto é: São
produzidas por partículas preexistentes que vivem da própria natureza?
ou: São uma modificação dos tecidos das entidades nas quais se
encontram?
A decisão desta questão resultou ser uma questão de grande
importância prática. Alguns anos visto que as doenças atacaram a videira
e o bicho-da-seda na França, que ameaçou destruindo dois dos ramos
8
Huxley’s Address, as reported in the London Athenæum, September 17, 1870, p. 376.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
27
mais produtivas da indústria nesse país. A perda direta da França pela
doença do bicho-da-seda apenas, no curso de dezessete anos, estima-se
em duzentos e cinquenta milhões de dólares. Descobriu-se que estas
doenças da videira e o verme, que eram doenças infecciosas e
contagiosas, deveram-se aos organismos vivos, pelos quais foram
reproduzidos e propagados. Transformou-se num assunto da maior
importância determinar se estas partículas vivas se propagaram, ou se
foram produzidas pela ação mórbida da planta ou animal.
M. Pasteur, o eminente naturalista, enviado pelo governo francês
para investigar o assunto, depois de uma laboriosa investigação decidiu
que eram organismos independentes, propagando-se e multiplicando-se
com rapidez assombrosa. “Guiado por essa teoria, ele ideou um método
de extirpação da doença, que demonstrou ser um completo êxito onde se
realizou corretamente” 9
O Professor Huxley fecha seu discurso dizendo que tinha convidado
a seu público a que o seguisse “num intento de traçar o caminho que foi
seguido por uma ideia científica, em seu lento avanço da posição de uma
provável hipótese à de uma lei estabelecida da natureza.” A Biogênese,
então, segundo Huxley, é uma lei estabelecida da natureza. 10
9
London Athenæum, September 17, 1870, p. 378. À vista dos fatos expostos no texto, o professor
Huxley pergunta: “Como podemos superestimar o valor de que o conhecimento da natureza da
epidemia e epizootias, e, em consequência, dos meios de controle ou a erradicação deles, o amanhecer
dos quais certamente começou? Olhando para trás não mais de dez anos, é possível selecionar três
(1863, 1864 e 1869) em que o número total de mortes pela febre escarlatina subiu a noventa mil. Essa
é a volta dos mortos, o mutilado e incapacitado deixado fora de vista. . . . . Os fatos que coloquei antes
de ter que deixar o menos otimista, sem dúvida, que a natureza e as causas deste flagelo um dia se
entende tão bem como os da pebrina (a doença do bicho-da-seda) e que o massacre pacientemente
sofrido de nossos inocentes chegará a seu fim.”
10
Ao citar o professor Huxley como autoridade em ambos os lados da questão da geração espontânea,
não há injustiça feita a esse distinto naturalista. Ele quer crer nessa doutrina. Seus princípios nos
levam a essa conclusão. Mas, como uma questão de fato científico, ele está obrigado a admitir que
todas as provas estão contra ele. Ele, portanto, não o crê, embora ele pensa que pode ser verdade.
Portanto Mc. Mivart diz que o professor Huxley e Tyndall, enquanto que dissentem das conclusões do
Dr. Bastian em favor da geração espontânea, não obstante, “concordam com ele, em princípio, apesar
de que limitam a evolução do mundo orgânico do inorgânico a um muito remoto período da história
do mundo” – Genesis of Species, p. 266, note.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
28
O Professor Tyndall trata este tema em sua conferência pronunciada
em setembro de 1870, sobre “Os Usos científicos da imaginação.” Ele
diz que a questão relativa à origem da vida é, se é devida a um plano
criativo: ‘Haja vida!’ ou a um processo de evolução. Estava
potencialmente na matéria desde o princípio? Ou: Foi inserida num
período posterior? Por mais que as convicções aqui ou ali podem ser
influenciadas, diz ele, “o processo deve ser lento, e elogia a hipótese da
evolução natural à mente do público. Porque que são o núcleo e a
essência desta hipótese? Dispa-se e você está parado frente a frente com
a noção de que não apenas as formas mais ignóbeis da vida animal, não
apenas as formas mais nobres do cavalo e do leão, não só o mecanismo
delicioso e maravilhoso do corpo humano, mas sim a mente humana em
si mesma — a emoção, o intelecto, a vontade e todos os seus fenômenos
— foram uma vez latentes numa nuvem de fogo. Sem dúvida, a mera
enunciação de tal noção é mais que uma refutação. Não creio que
qualquer possuidor da hipótese da evolução diria que eu o exagero ou o
esgoto em nenhuma maneira. Eu somente o corto de toda a incerteza, e
trago perante vocês, sem roupa e sem adornos, os conceitos pelos quais
deve sustentar-se ou cair. Sem dúvida estes conceitos representam um
absurdo muito monstruosos para ser entretidos por qualquer mente sã.” 11
O Professor Tyndall, entretanto, assim como o Professor Huxley,
está em ambos os lados desta questão. O materialismo, com sua doutrina
da geração espontânea, portanto é monstruosa e absurda, só no suposto
de que a matéria é matéria. Se você só espiritualizar a matéria até que se
transforma em mente, o absurdo desaparece. E também o fazem o
materialismo e a geração espontânea, e todo o conjunto de doutrinas
científicas. Se a matéria converte-se na mente, a mente é Deus, e Deus é
tudo. Assim, o panteísmo monstro traga a ciência e seus devotos. Não no
esquecemos de que o naturalista, depois de passar sua vida no estudo da
matéria, chega à conclusão de que “a matéria não é nada,” que a
11
Athenæum, September 24, 1870, p. 409.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
29
12
“Suprema Inteligência” é o universo. Assim é que aqueles que
excedem os limites do conhecimento humano, ou rejeitam o controle das
verdades primárias, caem no abismo das trevas de fora.
A forma em que o Professor Tyndall põe a questão é a seguinte: 13
“Estas noções da evolução são absurdas, monstruosas, e só servem para a
forca intelectual com relação às ideias relativas à matéria que foi
plantada em nós quando jovens. O espírito e a matéria jamais nos foram
apresentados no mais rude contraste, um como todo-nobre, o outro como
todo-mau.” Se em lugar destas ideias pervertidas da matéria e o espírito,
encontramo-nos “a considerá-los como igualmente digno e maravilhoso
em partes iguais, a considerá-los, de fato, como duas caras opostas do
mesmo grande mistério”, como elementos diferentes, de “que nosso mais
poderoso mestre espiritual chamaria o Fato Eterno do Universo,” então o
caso seria diferente. Já não seria absurdo, como o Professor Tyndall
parece pensar que, para a mente converter-se em matéria ou a mente a
matéria, ou os fenômenos de uma ser produzido pelas forças da outra. A
distinção real, de fato, entre eles se acabará. “Sem esta revolução total”,
diz ele, “das noções que prevalecem hoje, a hipótese da evolução tem
que ser condenada, mas em muitas mentes profundamente atentas tal
revolução já ocorreu.” Temos, pois, o juízo do Professor Tyndall, uma
das mais altas autoridades do mundo científico, de que se a matéria é o
que todo mundo crê que é, o materialismo, a geração espontânea, e a
12
Contributions to the Theory of Natural Selection, pp. 363-368. O Sr. Wallace pensa que “o maior
feito da ciência, a mais nobre verdade da filosofia,” pode-se encontrar expresso em suas seguintes
palavras de um poeta da América: —
“Deus do granito e a rosa!
Alma do pardal e a abelha!
A poderosa maré de Ser flui
Através de inumeráveis canais, o Senhor de ti
Salta à vida no pasto e nas flores,
Através de todos os graus de ser corre,
Enquanto que desde as torres radiantes da Criação
Sua glória flameja em Estrelas e Sóis”
13
Athenæum, September 24, 1870, p. 409.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
30
evolução ou desenvolvimento, são absurdos “muito monstruosos de ser
entretido por qualquer mente sã.”
Podemos citar sua grande autoridade quanto a outro ponto.
Suponhamos que renunciamos a tudo; admitir que não existe uma
distinção real entre matéria e espírito, que todos os fenômenos do
universo, vital e mental incluído, podem ser referidos a causas físicas,
que um ato livre e espontâneo é um absurdo, que não pode haver
intervenção de uma mente controladora ou vontade, nos assuntos dos
homens sem a existência pessoal do homem depois da morte, —
suponhamos que assim renunciamos à nossa moral e à religião, tudo o
que enobrece e dignifica ao homem sua existência, o que ganhamos?
Segundo o Professor Tyndall, nada. 14 “A hipótese da evolução”, diz-nos,
“não soluciona o problema — não professa resolver — o mistério último
deste universo. Deixa esse mistério intacto. No fundo, não faz nada mais
que “a transposição da concepção de origem da vida a um passado
longínquo indefinidamente. Mesmo a concessão da nebulosa e sua vida
em potencial, a pergunta: “De onde vieram?” seguiria ainda para nos
confundir e nos desconcertar.” Se tivermos que admitir a agência da
vontade, “capricho”, como o Professor Tyndall o chama, milhares de
milhões de anos no passado, por que seria antifilosófico admiti-lo agora?
É muito evidente, portanto, que a admissão das verdades primárias
da razão — verdades que, na realidade, todos os homens admitem —
verdades que se referem inclusive a nossas percepções sensoriais, e
implicam a existência objetiva do mundo material, exige a admissão da
mente, de Deus, da providência e da imortalidade. O Professor Tyndall, a
seu juízo, o materialismo, a geração espontânea, a evolução da vida,
pensamento, sentimento, e a consciência fora da matéria, são absurdos
“muito monstruosos para ser entretidos por uma mente sã, a menos que a
matéria se espiritualiza na mente, — e então tudo é Deus, e Deus é tudo.
14
The London Athenæum, September 24, 1870, pp. 407-409.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
Teorias do desenvolvimento.
31
Lamarck.
Lamarck, um naturalista francês distinto, foi o primeiro dos
modernos homens de ciência que adotaram a teoria de que todos os
vegetais e animais que vivem na terra, incluindo o homem, desenvolveuse a partir de certos germes originais e simples. Esta doutrina foi exposta
em sua “Zoologie Philosophique,” publicada em 1809. Lamarck admitiu
a existência de Deus, a quem ele referiu a existência da matéria de que se
compõe o universo. Mas Deus, tendo criado a matéria com suas
propriedades, não faz nada mais. A vida, os organismos, e a mente são
todos o produto da matéria não inteligente e suas forças. Toda a matéria
viva está composta de tecido celular, que consiste na agregação de
células minúsculas. Estas células não vivem em si mesmas, mas são
aceleradas na vida por um pouco de líquido etéreo que impregna o
espaço, tais como o calor e a eletricidade. A vida, portanto, segundo esta
teoria, origina-se na geração espontânea.
A vida, as células vivas ou os tecidos, tendo assim sua origem,
todas as formas diversificadas dos reinos vegetal e animal, foram
produzidos pelo funcionamento de causas naturais; o mais alto, ainda o
mais elevado, forma-se do mais baixo por um processo longo e
continuado de desenvolvimento.
Os princípios da teoria do Lamarck “estão envoltos nas três
proposições seguintes: —
“1. Que qualquer mudança considerável e permanente nas
circunstâncias em que se coloca uma raça de animais, induz neles uma
mudança real em seus desejos e necessidades.
“2. Que esta mudança em suas necessidades requer novas ações de
sua parte para satisfazer essas necessidades, e que finalmente novos
hábitos são assim gerados.
“3. Que estas novas ações e hábitos requerem um uso maior e mais
frequente de alguns órgãos já existentes, que assim se tornam
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
32
fortalecidos e melhorados; ou o desenvolvimento de novos órgãos,
quando novas necessidades os requerem, ou o descuido da utilização de
órgãos velhos, o que pode assim diminuir gradualmente até
desaparecer.” 15
Vestígios da Criação.
Uns trinta anos desde que uma obra apareceu de forma anônima,
intitulada “The Vestiges of Creation,” em que a teoria de Lamarck em
aspectos essenciais foram reproduzidos. O escritor esteve de acordo com
seu predecessor em admitir uma criação original da matéria, ao referir-se
à origem da vida a causas físicas; e em derivar todas as espécies em geral
e variedades de plantas e animais mediante um processo de
desenvolvimento natural de uma fonte comum. Estes escritores se
diferenciam na forma em que levam a cabo seus pontos de vista comuns
e quanto aos motivos que enfatizam em seu apoio.
O autor de “Vestiges of Creation” assume a verdade da hipótese
nebular, e argumenta por analogia que, como são complicados e
ordenados os sistemas dos corpos celestes são o resultado de leis físicas
que agem sobre a matéria original que impregna o espaço, é razoável
inferir que as diferentes ordens de plantas e animais surgiram da mesma
maneira. Ele se refere à gradação observada nos reinos vegetal e animal;
a mais simples, em todas as partes anteriores, precedendo a mais
complexa, e a unidade do plano que se conserva em todas as partes. Ele
faz muita insistência também no desenvolvimento fetal das ordens mais
elevadas dos animais. O feto humano, por exemplo, assumindo que na
sucessão das peculiaridades da estrutura do réptil, dos peixes, das aves e
do homem. Supõe-se que isto demonstra que o homem é só um réptil
melhor desenvolvido, e que as ordens dos animais diferem simplesmente
quanto à etapa que ocupam nesta série de desenvolvimento da vida. À
medida que a mesma larva da abelha pode chegar a transformar-se numa
15
William Hopkins, F. R. S. Fraser’s Magazine, June 1860, 151.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
33
rainha, um zangão, ou uma operária, assim a mesma célula viva pode
chegar a converter-se num réptil, num peixe, num pássaro, ou num
homem. No entanto há,, o autor admite, interrupções na escala, as
espécies que aparecem de repente sem a devida preparação. Isto ele
ilustra com uma referência à máquina de calcular, que por um milhão de
vezes produzirá os números em série regular, e então por uma vez,
produz uma quantidade de uma ordem diferente; assim a lei de espécies
que se gerarão possam ter êxito por um período indefinido, e de repente
uma nova espécie é gerada.
Estas teorias e seus autores têm caído no descrédito absoluto entre
os homens de ciência, e que não é outro senão um leve interesse
histórico.
Darwin.
A nova teoria sobre o tema proposta pelo Sr. Charles Darwin, tem,
de momento, uma retenção mais forte na mente do público. Ele fica na
primeira fila dos naturalistas, e está em todos lados respeitados não só
por seus conhecimentos e sua destreza na observação e descrição, mas
por sua franqueza e justiça. Sua teoria, entretanto, é substancialmente a
mesma com os já mencionados, na medida em que também explica a
origem de todas as variedades de plantas e animais pela operação gradual
de causas naturais. Em sua obra sobre a “Origem das Espécies”, diz:
“Creio que os animais são descendentes do máximo só quatro ou cinco
progenitores, e as plantas de um igual ou menor número.” Na mesma
página, 16 contudo, vai muito além, e diz: “A analogia me levaria um
passo além, isto é, a crença de que todos os animais e plantas descendem
de um protótipo”, e acrescenta que “todos os seres orgânicos que
viveram nesta terra, podem ter descendido de uma forma primordial.” 17
16
The Origin of Species by Means of Natural Selection, or the Preservation of Favoured Races in the
Struggle for Life, by Charles Darwin, M. A., F. R. S., etc., fifth edition (tenth thousand). London,
1869, p. 572.
17
Ibid. p. 573.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
34
O ponto de maior importância em que Darwin se diferencia de seus
predecessores é que começa com a vida, eles com a matéria morta. Eles
se comprometem a explicar a origem da vida por causas físicas,
enquanto que ele assume a existência de células vivas ou germes. Ele
não entra na questão de sua origem. Ele assume que existe; o que
pareceria a necessidade de envolver a pressuposição de um Criador.
O segundo ponto importante da diferença entre as teorias de que se
trata é que os antes mencionados representam a diversidade de espécies
pelo poder interno de desenvolvimento, um vis a tergo por assim dizer,
quer dizer, uma luta depois da melhora, enquanto que Darwin refere-se à
origem das espécies principalmente às leis naturais que operam ab extra,
matando os fracos ou menos perfeitos, e a preservação do mais forte ou
mais perfeito.
O terceiro ponto de diferença, quanto ao autor de “Vestiges of
Creation,” refere-se, é que este último supõe novas espécies que se
formaram de repente, enquanto que Darwin mantém que surgem por um
lento processo de mudanças muito minúsculas.
Todos estão de acordo, entretanto, no principal ponto que todas as
diversidades infinitas e maravilhosos organismos vegetais e animais, do
mais baixo ao mais alto, devem-se à operação de causas físicas não
inteligentes.
A teoria darwiniana, portanto, inclui os seguintes princípios:
Primeiro, que semelhante gera semelhante; ou a lei da herança,
segundo a qual através do mundo vegetal e animal a descendência é
semelhante aos progenitores.
Segundo, a lei da variação; isto é, que enquanto que em todo o
essencial a descendência é semelhante aos progenitores, sempre difere
em maior ou menor grau de seu progenitor. Estas variações são às vezes
deteriorações, às vezes neutras, e às vezes melhoras; isto é, tais que
capacitam à planta ou ao animal a exercer mais vantajosamente suas
funções.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
35
Terceiro, que como as plantas e os animais aumentam em
proporção geométrica, tendem a transbordar grandemente seus meios de
sustento, e isto, necessariamente, leva a uma contínua e universal luta
pela vida.
Quarto, nesta luta sobrevivem os mais aptos: isto é, aqueles
indivíduos que têm umas variações acidentais de estrutura que os fazem
superiores a seus semelhantes na luta pela existência, sobrevivem, e
transmitem aquela peculiaridade à sua descendência. Esta é a «seleção
natural», isto é, a natureza, sem inteligência nem propósito, seleciona aos
indivíduos melhor adaptados para prosseguir e melhorar a raça. É pela
operação destes poucos princípios que no curso de incontáveis foi se
produziram todas as formas diversificadas de vegetais e animais.
«É interessante», diz Darwin, «contemplar uma ribeira revestida de
muitas plantas de muitos tipos, com pássaros cantando nos matagais com
vários insetos revolteando ao redor, e com vermes arrastando-se pela
úmida terra, e meditar em que estas formas elaboradamente construídas,
tão diferentes entre si, e interdependentes entre si de uma maneira tão
complexa, foram todas produzidas por leis que agem em nosso redor.
Estas leis, tomadas no sentido mais amplo, são Crescimento com
Reprodução; a Herança que é quase implicada pela reprodução; a
Variabilidade com base na ação indireta e direta das condições de vida, e
pelo uso e falta de uso; uma Taxa de Aumento tão alta que leva à Luta
pela Existência, e como consequência a Seleção Natural envolvendo
Divergência de Caráter e a Extinção de formas menos melhoradas.
Assim, é base da guerra da natureza, pela fome e a morte, segue o objeto
mais exaltado que somos capazes de conceber, isto é a produção dos
animais superiores». 18
18
Darwin, C., The Origin of Species, quinta edição, Londres 1869, pág. 579.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
36
Observações sobre a teoria darwinista.
Em primeiro lugar, abala o senso comum dos homens não
sofisticados que se lhes diga que a baleia e o colibri, o homem e o
mosquito, derivam-se da mesma fonte. Não é que a baleia foi
desenvolvida a partir do colibri, ou o homem do mosquito, mas que
ambos são derivados por um lento processo das contínuas variações
através de incontáveis milhões de anos. Tal é a teoria científica com suas
penas arrancadas. Não é de estranhar que em sua primeira promulgação
foi recebida pelo mundo científico, não só com surpresa, mas também
com indignação. 19 A teoria tem, de fato, sobrevivido a este ataque. Sua
harmonia essencial com o espírito da época, a aprendizagem real de seu
autor e defensores, asseguraram uma influência que está generalizada e,
no momento, imponente.
Uma segunda observação é que a teoria em questão não pode ser
verdade, porque se baseia na hipótese de uma impossibilidade. Supõe-se
que a matéria faz o trabalho da mente. Esta é uma impossibilidade e um
absurdo no juízo de todos os homens, exceto dos materialistas; e são
materialistas, sempre foram, e devem ser sempre, um punhado entre os
homens, quer sejam cultos ou incultos.
19
See Proceedings of the Literary and Philosophical Society of Liverpool during the Fiftieth Session,
1860-61. Este volume contém um documento sobre a teoria de Darwin pelo presidente da sociedade, o
reverendo H. H. Higgins, em que diz que ele considerava o papel de M. Agassiz, inserido nos Annals
and Magazine of Natural History, contra Darwin, “ser absolutamente indigno de tão distinto
naturalista” (p. 42). Numa página posterior el dá uma seleção de comentários depreciativos de
Agassiz. O mesmo volume contém um documento do Dr. Collingwood em defesa de Agassiz e sua
crítica. Na revisão do argumento que diz que vai passar acima de Agassiz “comentários cáusticos
sobre a confusão das ideias implícitas nos termos gerais, a variabilidade das espécies,” e também
“suas contradições categóricas de muitas das declarações fundamentais de Darwin; mas nunca foi uma
teoria mais acossada que unicamente é a de Darwin pelos repetidos ataques de um gigante em
paleontologia como Agassiz. Declaração após declaração, pela que toda a teoria se atém junto, é
atacado e impugnado, — pedra a pedra da estrutura darwiniana treme perante o aríete do campeão das
espécies. Dos doze tais reiterados ataques, dos quais dez são puramente paleontológicos, e ficam
indiscutíveis só se chamou aos comentários, e que, possivelmente, o menos importante” (p.87).
Agassiz não é um teólogo; ele opõe-se à teoria como um homem de ciência e sobre bases científicas.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
37
A doutrina de Darwin é, que um germe primordial, sem inteligência
inerente, desenvolve, sob influências puramente naturais, em toda a
infinita variedade de vegetais e organismos animais, com todas as suas
complicadas relações entre si e o mundo que os rodeia. Ele não só afirma
que tudo isto se deve a causas naturais, e, além disso, que os impulsos
mais baixos da vida vegetal passam, por gradações insensíveis, ao
instinto dos animais e à inteligência superior do homem, mas ele se opõe
à intervenção da mente em qualquer parte do processo. Deus, diz
Lamarck, criou a matéria; Deus, diz Darwin, criou a célula viva não
inteligente; ambos dizem que, depois desse primeiro passo, tudo o mais
segue a lei natural, sem propósito e sem desígnio. Nenhum homem pode
crer nisto, que não pode crer que todas as obras de arte, da literatura e da
ciência no mundo são os produtos do ácido carbônico, água e amônia.
O caráter ateu desta teoria.
Em terceiro lugar, o sistema é completamente ateu e, portanto, não
é possível ficar de pé. Deus revelou Sua existência e Seu governo do
mundo tão claro e com autoridade, que qualquer especulação filosófica
ou científica em contradição com as verdades são como teias de aranha
na pista de um tornado. Não oferecem resistência sensível. O mero
naturalista, o homem dedicado de maneira exclusiva ao estudo da
natureza quanto a crer em nada mais que causas naturais, não é capaz de
compreender a força com a que as convicções morais e religiosas se
apoderam das mentes dos homens. Estas convicções, entretanto, são as
mais fortes, as nobres, e as mais perigosas para qualquer classe de
homens não ter em conta ou ignorar.
Ao dizer que este sistema é ateu, não se diz que o Sr. Darwin é um
ateu. Ele reconhece expressamente a existência de Deus, e parece sentir a
necessidade de Sua existência para explicar a origem da vida. Tampouco
se pretende que todo aquele que adota a teoria o faz num sentido ateu. Já
se assinalou que existe uma forma teísta e ateia da hipótese nebular sobre
a origem do universo; assim pode haver uma interpretação teísta da
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
38
teoria darwiniana. Os homens que, como o duque do Argyle, levam o
reino da lei em tudo, afirmando que inclusive a criação é por lei, pode
manter, como o faz, que Deus usa em todas as partes e constantemente as
leis físicas, para produzir não só as operações comuns da natureza, senão
para dar lugar a coisas concretamente novas, e portanto a novas espécies
no mundo vegetal e animal. Estas espécies, portanto, seriam devidas à
finalidade e ao poder de Deus como se tivessem sido criados por uma
palavra. As leis naturais, diz-se que são para Deus o que o cinzel e o
pincel são para o artista. Então Deus é tanto o autor das espécies assim
como o escultor ou pintor é o autor do produto de sua habilidade. Esta é
uma doutrina teísta. Essa, entretanto, não é a doutrina de Darwin. Sua
teoria é que centenas ou milhares de milhões de anos atrás, Deus chamou
um germe vivo, ou germes vivos, à existência, e que desde esse
momento Deus não tem mais que ver com o universo mais que se Ele
não existisse.
Este é o ateísmo para todos os efeitos, porque deixa a alma como
inteiramente sem Deus, sem um Pai, Auxiliador, ou Governador, como a
doutrina de Epicuro ou de Comte. Darwin, além disso, oblitera todas as
evidências da existência de Deus no mundo. Ele se refere às causas
físicas que todos os teístas creem que é devido às operações da mente
divina. não há forma mais eficaz de desfazer-se de uma verdade que por
rejeitar as provas em que se apoia. O Professor Huxley diz que quando
leu pela primeira vez o livro de Darwin, ele o considerava como o golpe
de morte da teleologia, quer dizer, da doutrina do desígnio e a finalidade
da natureza. 20
20
Criticisms on “The Origin of Species;” in his Lay Sermons and Addresses, p. 330. “O argumento
teleológico,” diz ele, “diz assim: Um órgão ou organismo é, precisamente, equipado para realizar uma
função ou propósito, pelo que foi construído especialmente para realizar esta função. Na famosa
ilustração do Paley, a adaptação de todas as partes do relógio para a função ou propósito de mostrar o
tempo, considera-se evidência de que o relógio foi especialmente ideado para tal fim; pelo fato de que
a única causa que sabemos, competente para produzir tal efeito como um relógio que mostrará a hora,
é uma adaptação da inteligência idear os meios diretamente a esse fim.” Suponhamos, entretanto, ele
continua dizendo, se pudesse demonstrar que o relógio foi o produto de uma estrutura que dava mal a
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
39
Büchner, a quem o caráter ateu de um livro é uma recomendação,
diz que “a teoria de Darwin é a mais completamente naturalista que se
possa imaginar, e muito mais ateu que a de seu desprezado (verrufenen)
predecessor Lamarck, quem admitiu ao menos uma lei geral do
progresso e desenvolvimento, enquanto que segundo Darwin, todo o
desenvolvimento deve-se à soma progressiva de inumeráveis operações
naturais minúsculas e acidentais.” 21
Darwin argumenta contra qualquer intervenção divina no curso da
natureza, e especialmente na produção das espécies. Diz ele que está
chegando o tempo em que a doutrina da criação específica, isto é, a
doutrina de que Deus fez as plantas e os animais, cada um segundo sua
natureza, será considerada como «uma curiosa ilustração da cegueira da
opinião preconcebida. Estes autores», acrescenta ele, «não parecem mais
surpreendidos diante do milagroso ato da criação que diante de um
nascimento comum. Mas, creem realmente que em inumeráveis períodos
da história da terra se ordenou a certos átomos elementares que se
constituíram de repente em tecidos vivos?» [Isto é precisamente o que
Darwin professa crer que sucedeu no princípio. Se sucedeu uma vez, não
é absurdo que sucedesse com frequência.] «Creem eles que em cada
suposto ato de criação produziu-se um ou muitos indivíduos? Foram
todas as imensamente numerosas classes de animais e plantas criadas
como ovos ou sementes, ou plenamente desenvolvidas? E no caso dos
mamíferos, acaso foram criados levando falsas marcas de alimentação no
ventre da mãe?» 22
hora, e que de uma estrutura que não era relógio absolutamente, e isso de um barril rotatório simples,
então “a força dos argumentos do Paley se teria ido”; e seria “demonstrado que um aparelho
completamente adaptado a um propósito em particular poderia ser o resultado de um método de ensaio
e erro operado pelos agentes inteligentes, assim como da aplicação direta dos meios adaptados a tal
fim, por um agente inteligente.” Isto é precisamente o que ele entende que Darwin obteve.
21
Sechs Vorlesungen über die Darwin’sche Theorie, etc., by Ludwig Büchner, Zweite Auflage,
Leipzig, 1868, p. 125.
22
Origin of Species, pág. 571.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
40
Wallace dedica o oitavo capítulo de sua obra sobre «Seleção
Natural» 23 a responder às objeções apresentadas pelo Duque de Argyle
contra a teoria darwinista. Diz ele: «A questão em que mais insiste o
Duque é que na natureza nos encontramos por todas as partes com
provas da mente, e que são mais especialmente manifestas quando
encontramos “inventos” ou “beleza”. Ele mantém que isto indica a
constante supervisão e a direta interferência do Criador, e que não pode
absolutamente ser explicado por alguma combinação de leis. Agora, a
obra do Sr. Darwin tem como o principal objetivo mostrar que todos os
fenômenos dos seres viventes — todos seus maravilhosos órgãos e
complexas estruturas; a infinita variedade de forma, tamanho e cor; suas
intrincadas e complexas relações mútuas, – podem ter sido produzidas
pela ação de umas poucas leis gerais da natureza mais simples, – leis que
na maior parte dos casos são meras declarações de fatos admitidos». 24
Em oposição à doutrina de que Deus «aplica leis gerais para
produzir efeitos que aquelas leis não são em si mesmas capazes de
produzir», diz ele, «eu creio, ao contrário, que o universo está
constituído de tal maneira que se regula a si mesmo; que enquanto que
contém vida, as formas sob as quais esta vida se manifesta têm um poder
inerente de ajustar-se entre si e com a natureza ao redor; e que este ajuste
conduz necessariamente a maior quantidade de variedade e de beleza e
23
Wallace on Natural Selection, p. 264.
Wallace on Natural Selection, p. 265. Quando alguém fala a respeito da «ação da lei», tem que
significar por lei uma força permanente e de ação regular. Mas as leis às quais se refere o Sr. Wallace
na passagem anterior não são forças, mas simplesmente regras com base nas quais age um agente, ou
uma sequência regular, estabelecida, de eventos. As leis mencionadas são a lei da multiplicação em
progressão geométrica, a lei da limitação da população, a lei da herança, a lei da variação, a lei da
mudança incessante das condições físicas sobre a superfície da terra, o equilíbrio ou harmonia da
natureza. Mas deve-se objetar intensamente contra o uso da palavra lei em diferentes sentidos no
mesmo argumento. Se por lei se significa aqui a regra pela qual um agente age (neste caso Deus), o
Duque de Argyle poderia estar de acordo com todas as palavras do Sr. Wallace. Se se tomam no
sentido que lhes dá o escritor, a passagem ensina exatamente o oposto, isto é, que tudo o que o mundo
é ou contém deve-se a forças físicas carentes de inteligência.
24
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
41
de prazer, porque depende de leis gerais, e não de uma supervisão
contínua e reajuste dos detalhes». 25
O Dr. Gray 26 esforça-se para vindicar a teoria de Darwin da
acusação de ateísmo. Seus argumentos, entretanto, só vão demonstrar
que a doutrina do desenvolvimento, ou da derivação das espécies, podem
ser mantidos numa forma consistente com o teísmo. Isto ninguém o
nega. Eles não provam que o senhor Darwin apresenta-se nessa forma. O
próprio Dr. Gray, admite tudo o que aqueles que consideram a teoria de
Darwin como ateia disputam. 27 Ele diz: “A proposta de que as coisas e
acontecimentos na natureza não foram designados para ser assim, se
logicamente levada a cabo, é sem dúvida, equivalente ao ateísmo.” Mais
uma vez, 28 ele diz: “Para nós, um Cosmos fortuito é simplesmente
inconcebível. A alternativa é um Cosmos designado. .... Se o Sr. Darwin
crê que os acontecimentos que ele supõe sucederam e os resultados que
contemplamos foram não dirigidos e sem desígnio, ou se o físico crê que
as forças naturais às quais atribui os fenômenos são processadas e sem
direção, não se precisa de nenhum argumento para mostrar que tal crença
é ateia”. Depois do que se disse mais acima, não se precisa de nenhum
argumento para nos mostrar que Darwin ensina certamente que as causas
naturais «carecem de direção», e que agem sem desígnio ou referência a
um fim. Isto não só é declarado de maneira explícita vez após vez, mas
também que se argumenta para estabelecê-lo, enquanto que o ponto de
vista oposto é ridicularizado e rejeitado. Seu livro foi aclamado como o
golpe de morte contra a teleologia. 29 Por isso, Darwin ensina
25
Ibid. p. 268. O Sr. Russel Wallace diz que ele crê que todas as maravilhas dos organismos animais e
vegetais e da vida podem ser explicados mediante leis físicas carentes de inteligência. A realidade é,
como já vimos, que não crê tal coisa. Não crê que haja tal coisa como matéria ou forças carentes de
inteligência; [para ele] toda força é força mental; e o único poder operando no universo é a vontade da
Suprema Inteligência.
No número de outubro do Atlantic Monthly de 1860, pág. 416.
27
Na página 409.
28
Na página 408.
29
Três artigos nos números de julho, agosto e outubro do Atlantic Monthly para o ano 1860 foram
reimpressos com o nome do doutor Asa Gray como seu autor.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
42
precisamente o que o Dr. Gray descreve como ateísmo. Pelo que parece,
pode-se crer em Deus, e entretanto ensinar ateísmo.
O caráter antiteísta e materialista desta teoria é ainda mais
evidenciado pelo que diz Darwin de nossas capacidades mentais. «No
distante futuro», diz ele, «vejo campos abertos para mais importantes
investigações. A psicologia se levantará sobre uma nova base, a da
necessária aquisição de cada poder e capacidade mental por gradação. Se
arrojará luz sobre a origem do homem e sua história». 30 Ele mesmo
tentou cumprir esta predição em sua recente obra a respeito «Da
linhagem do homem», na qual tenta demonstrar que o homem é um símio
desenvolvido. A Bíblia diz: o Homem foi criado à imagem de Deus.
É uma mera hipótese.
Uma quarta observação a respeito desta teoria é que é uma mera
hipótese, sendo por seu própria natureza incapaz de ser provada. Pode
tomar seu lugar junto à hipótese nebular como um engenhoso método de
explicar muitos dos fenômenos da natureza. Vemos ao nosso redor, no
caso dos animais domésticos, numerosas variedades produzidas pelas
operações de causas naturais. No mundo vegetal esta diversidade é ainda
maior. A teoria do Sr. Darwin justificaria todos estes fatos. Dá conta,
além disso, pela unidade de plano em que todos os animais da mesma
classe ou ordem se constroem, porque os órgãos subdesenvolvidos e
rudimentares em quase todas as classes de seres viventes, e pelas
diferentes formas através das quais o embrião passa antes de chegar à
maturidade. Estes e muitos outros fenômenos podem ser explicados na
hipótese da derivação das espécies. Admitindo tudo isto e muito mais,
isto não equivale a uma prova da hipótese. Estes fatos podem explicar-se
de outra maneira; enquanto que são, como o próprio Darwin admite,
muitos fatos para os quais sua teoria não dará conta. Que tenha em conta
o que a teoria é. Não é que todas as espécies de qualquer gênero
30
Origin of Species, p. 577.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
43
existente de plantas ou animais se derivaram de um tronco comum, que
todos os gêneros e classes de seres que agora vivem organizados foram
assim derivados, mas que todos os organismos, dos mais antigos
períodos geológicos, por um processo que requer uns quinhentos milhões
de anos, foram derivados de um germe primordial. 31 Isto não é tudo. Não
é só que esses organismos materiais foram obtidos por um processo de
gradação, mas também que os instintos, as faculdades mentais e morais,
foram derivadas e alcançadas pelo mesmo processo. Isto nem sequer é
tudo. Chama-nos a crer que tudo isto foi provocado pela ação de causas
físicas não inteligentes. Para nossa compreensão, não há nada na
mitologia e cosmologia hindu mais incrível que isto.
Não se arrisca muito dizer que esta hipótese não pode ser
demonstrada. Certamente, seus defensores não pretendem prover prova
alguma. O Sr. Wallace, como vimos, diz: «A obra do Sr. Darwin tem
como principal objetivo mostrar que todo os fenômenos dos seres vivos
– todos os seus maravilhosos órgãos e complexas estruturas; a infinita
variedade de forma, tamanho e cor; suas intrincadas e complexas
relações mútuas, – podem ter sido produzidas pela ação de umas poucas
leis gerais da natureza mais simples». Podem ter sido. Não se pretende
que este relato da origem das espécies possa ser demonstrado. Tudo o
que se afirma é que é uma possível solução. Os cristãos devem ser muito
pacatos para assustar-se por um mero «podem ter sido».
31
Sir William Thompson, da Inglaterra, tinha objetado a teoria de que, segundo seus cálculos, o sol
não pode ter existido num estado sólido de mais de quinhentos milhões de anos. A isso o Sr. Wallace
responde, que tal período, pensa ele, é tempo suficiente para satisfazer as demandas da hipótese. Sr.
J.J. Murphy, entretanto, é da opinião contrária. Ele diz que é provável que se requer pelo menos
quinhentos anos para produzir um galgo — o ideal de Mc. Darwin de simetria — de cães originais de
lobo, e que sem dúvida se requereria mais de um milhão de vezes mais tempo para produzir um
elefante de um protozoário, ou inclusive um girino. Além disso, Sir William Thompson tolera, de fato,
só um, e não quinhentos milhões de anos para a existência da terra. Nas Transactions of Geological
Society of Glasgow, Vol. III, ele diz: “Quando, por último, consideramos a temperatura do subsolo,
vemo-nos obrigados à conclusão de que o estado atual de coisas na terra, a vida na terra, toda a
história geológica que mostra a continuidade da vida, deve ser limitado dentro de um período de
tempo passado como até cem milhões de anos.” Veja-se Habit and Intelligence, by J. J. Murphy,
London, 1869, Vol. I. p. 349.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
44
O Sr. Hux1ey diz: «Depois de muita consideração, e certamente
sem preconceito contra os pontos de vista do Sr. Darwin, é nossa clara
convicção de que, tal como está a evidência, não está demonstrado
absolutamente que um grupo de animais, possuindo todos os caracteres
exibidos pelas espécies na Natureza, tenha-se jamais originado por
seleção, seja esta artificial ou natural». 32
Nos números de junho e julho de 1860 de Fraser's Magazine
aparecem dois artigos a respeito da teoria darwinista, escritos pelo
William Hopkins, F.R.S. No número de julho diz-se: «Se aceitamos
totalmente o peso de todos os argumentos de nosso autor em seu capítulo
a respeito de hibridismo, só chegamos à conclusão de que a seleção
natural talvez pudesse ter produzido mudanças de organização, que
podem ter induzido a esterilidade das espécies; e que portanto a
proposição anterior possa ser certa, embora não se possa aduzir nem um
só fato positivo como prova da mesma. E deve-se lembrar que esta não é
uma proposição de uma importância secundária – uma mera torre, por
assim dizer, na fábrica teórica de nosso autor, – mas sim a principal
pedra angular que a sustenta. Confessamos que todo o respeito que
sentimos para com o autor destas opiniões não nos inspirou um
sentimento semelhante para com esta filosofia do poderia ser, que se
contente pondo o meramente possível em lugar do provável, e que, ao
ignorar a responsabilidade de qualquer aproximação a uma
demonstração rigorosa no estabelecimento de suas próprias teorias, dá
por sentado de maneira complacente que são corretas até que sejam
rigorosamente demonstradas falsas. Quando Newton, em tempos
passados, propôs sua teoria da gravitação, não pediu aos filósofos que
32
Lay Sermons and Reviews, pág. 323. Admite-se que inumeráveis variedades foram produzidas por
causas naturais, mas o Professor Huxley diz que não se demonstrou que nenhuma espécie se formou
assim. Por isso, por mais forte razão, não se demonstrou que todos os gêneros e espécies, com todos
os seus atributos de instinto e inteligência, tenham sido formados desta maneira.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
45
cressem ou que lhe demonstrassem que era errônea, mas sentiu que cabia
a ele demonstrar que era correta». 33
A resenha do Sr. Hopkins foi escrita antes que Darwin se definiu de
maneira plena a respeito de suas opiniões quanto à origem do homem.
Diz ele que a grande dificuldade em qualquer teoria de desenvolvimento
é “a transição em passar ao homem dos animais mais próximos por
debaixo dele, não ao homem considerado meramente como um
organismo físico, mas sim ao homem como ser intelectual e moral.
Lamarck e o autor dos ‘Vestígios’ não duvidaram em expor-se a uma
acusação do mais áspero materialismo ao derivar a mente da matéria, e
ao atribuir todas as suas propriedades e operações à nossa organização
física. .... Cremos que o homem tem uma alma imortal, e que as bestas
do campo não a têm. Se alguém negar isto, não podemos então ter
nenhuma base comum para argumentar com ele. Agora quereríamos
perguntar: Em que momento de seu avanço progressivo adquiriu o
homem esta parte espiritual de seu ser, dotada com o esmagador atributo
da imortalidade? Foi uma “variedade acidental”, captada pelo poder da
“seleção natural”, e feita por ela permanente? Deve-se considerar a
passagem do finito ao infinito como um dos passos indefinidamente
pequenos no contínuo progresso no desenvolvimento do homem,
alcançado pela operação de causas naturais comuns?” 34
Mas o ponto de que tratamos agora é que a teoria do Sr. Darwin é
incapaz de demonstração. Pela própria natureza do caso, o que trata da
origem das coisas não pode ser conhecido mais que por revelação
sobrenatural. Tudo o mais deve ser especulação e conjetura. E ninguém
que seja guiado pela razão renunciará aos ensinos de uma revelação bem
autenticada, obedecendo a especulações humanas, por engenhosas que
sejam. A incerteza que acompanha todas as filosofias ou teorias
científicas a respeito da origem das coisas é suficientemente evidente
33
34
Frazer' s Magazine, julho de 1860, pág. 80.
Frazer' s Magazine, julho de 1860, pág. 88.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
46
com base na quantidade de incoerências que apresentam. A ciência, logo
que se separa do real e do existente, é a região da especulação, confundese com a filosofia, e fica sujeita a todas as suas alucinações.
Teorias do Universo
Assim, temos:
1. A teoria puramente ateia, que dá por sentado que a matéria
existiu sempre, e que tudo o que o universo contém e revela é devido a
forças materiais.
2. A teoria que admite a criação da matéria, mas nega qualquer
intervenção adicional de Deus no mundo, atribuindo a origem da vida a
causas físicas. Esta era a doutrina de Lamarck, e a do autor de «Vestígios
da Criação», e é a teoria à que parece inclinar-se o Professor Huxley,
apesar de sua negação da geração espontânea no estado atual de coisas,
parece fortemente inclinado em seu discurso como Presidente da
Associação Britânica para o Fomento da Ciência, emitido em setembro
de 1870, ele disse: “Olhando para trás através da vista prodigiosa do
passado, não encontro nenhum registro do início da vida, e portanto
estou destituído de meios para formar uma conclusão definitiva quanto
às condições de sua aparição. A crença, no sentido científico da palavra,
é um assunto sério e requer bases sólidas. Dizer, portanto, em falta das
provas admitidas, que tenho uma crença quanto ao modo em que as
formas atuais de vida têm sua origem, seria o uso de palavras num
sentido errado. Mas a expectativa é permissível, onde a crença não é, e
me foi dado olhar para além do abismo do tempo genealogicamente
registrado ao período mais remoto, quando a terra passava pelas
condições físicas e químicas que não podem ver-se outra vez mais que
um homem pode lembrar sua infância, eu devo esperar ser uma
testemunha da evolução do protoplasma vivo da matéria não viva. Devo
esperar vê-lo aparecer sob as formas de uma grande simplicidade,
dotado, como os cogumelos existentes, com o poder de determinar a
formação de novo protoplasma de tais matérias como carbonatos de
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
47
amônio, oxalatos e tartaratos, fosfatos alcalinos e terra, e água, sem a
ajuda da luz.” 35
Tinha sido também pela causa da verdade, e assim para os centenas
que foram pervertidos por seus escritos, se o senhor Darwin tivesse
reconhecido esta distinção entre “crença científica” que necessitam
“bases sólidas” e “expectativas,” fundadas, como o Professor Huxley diz
numa frase seguinte, “no raciocínio analógico.” No artigo já citado no
“Fraser’s Magazine,” o escritor diz com referência a Darwin: “Também
servirá lembrar que o naturalista filosófico não só deve treinar o olho
para observar com precisão, mas também a mente para pensar de
maneira lógica; e neste último com frequência encontra-se a tarefa mais
difícil dos dois. Com relação a todos, exceto as ciências exatas, pode-se
dizer que a mais alta faculdade mental que nos chamam a exercer é
aquela pela qual separamos e apreciamos justamente o possível, o
provável, e o demonstrável.” 36
Darwin.
3. A terceira ideia especulativa é a do Sr. Darwin e de seus
partidários, que admitem não só a criação da matéria, mas também da
matéria viva, em forma de um ou uns poucos germes primitivos dos
quais, sem nenhum propósito nem desígnio, pela lenta operação de
causas naturais não inteligentes e de variações acidentais, durante longas
foi, foram-se formando todas as ordens, classes, gêneros, espécies e
variedades de plantas e animais, desde os mais inferiores até os mais
superiores. Por isso, a teleologia, e por isso a mente, ou Deus, ficam
explicitamente excluídas do mundo. Ao argumentar contra a ideia do
controle de Deus com o desígnio da operação das segundas causas, o Sr.
Darwin pergunta: “Ordenou Ele que o cultivo e as penas da cola da
pomba deveria variar, a fim de que o entendido possa fazer seu bico
grotesco e raças de pombo-correio? Faz Ele que a estrutura e qualidades
35
36
Athenæum, London, September 17, 1870, p. 376.
July, 1860, p. 90.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
48
mentais do cão variam com o fim de que uma raça se possa formar de
ferocidade indomável, com mandíbulas adaptadas a obrigar o touro para
o esporte brutal do homem? Mas, se abandonamos o princípio num caso,
— se não se admitir que as variações dos cães primitivos foram
intencionalmente guiados, com o fim de que o galgo, por exemplo, que a
imagem perfeita da simetria e vigor, podem formar-se — nenhuma
sombra da razão pode ser atribuída à crença de que variações, tanto na
natureza e resultado das próprias leis gerais, que foram as bases da
seleção natural da formação ou os animais melhor adaptados no mundo,
incluído o homem, foram guiados intencionalmente e especialmente. Por
muito que desejemos, não podemos seguir o Professor Asa Gray em sua
crença de ‘que a variação foi conduzida ao longo de certas linhas
benéficas,’ como um arroio, ‘'por linhas definidas e úteis de
irrigação’.” 37 Neste ponto o homem se declara ser um produto não
desejado da natureza.
J. J. Murphy.
4. Outros, incapazes de crer que as causas ininteligentes possam
produzir efeitos indicando previsão e desígnio, insistem em que tem que
haver uma inteligência dedicada à produção de tais efeitos, mas situam
esta inteligência na natureza, e não em Deus. Isto, como se observou
interiormente, é um avivamento da velha ideia de um Demiurgo, ou
Anima mundi. O Sr. J. J. Murphy, em sua obra sobre “Habit and
Intelligence,” diz, eu creio “que há algo no progresso orgânico que a
mera seleção natural entre as variações espontâneas não dará conta. Por
último, creio que isto é algo que a organização de inteligência que guia a
ação das forças inorgânicas e as estruturas de formas que nem a seleção
natural nem nenhum outro organismo inteligente poderia formar.” 38 O
37
The Variation of Animals and Plants under Domestication, edit. New York, 1868, Vol. II. pp. 515,
516.
38
Habit and Intelligence, in their connection with the Laws of Matter and Force. A series of Scientific
Essays. By Joseph John Murphy. London, 1869, Vol. I. p. 348.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
49
que quer dizer com inteligência e onde reside podemos aprender do
prefácio do primeiro volume de seu livro. “A palavra inteligência,” diz
ele, “quase não necessita definição, tal como eu a uso em seu sentido
familiar. Não vai ser questionado por ninguém que a inteligência não se
encontra em nada senão nos seres vivos, mas isso não é tão evidente que
a inteligência é um atributo de todos os seres vivos, e coextensivo com a
própria vida. Quando falo da inteligência, entretanto, quero dizer não só
a inteligência consciente da mente, mas também a inteligência
organizadora que adapta o olho para ver, o ouvido para ouvir, e qualquer
outra parte de um organismo para seu trabalho. A crença habitual é que a
inteligência organizadora e a inteligência mental são duas inteligências
distintas. Declarei as razões de minha crença de que não são distintas,
mas são duas manifestações separadas da mesma inteligência, que é
coextensiva com a vida, embora seja em sua maior parte inconsciente, e
só se torna consciente de si mesmo no cérebro do homem.” 39
Owen.
5. O Professor Owen, o grande naturalista inglês, concorda com
Darwin em dois pontos: primeiro, na derivação ou gradual evolução das
espécies; e segundo, que esta derivação está determinada pela operação
de causas naturais. «Fui levado a reconhecer as espécies», diz ele, «como
exemplificando a operação contínua da lei natural, ou causa secundária;
e isso não só sucessiva, mas também progressivamente; desde a primeira
encarnação da ideia vertebrada sob sua velha vestimenta ictíica até que
se revestiu da gloriosa roupagem da forma humana». 40 Difere de Darwin
em que ele não atribui a origem das espécies à seleção natural, isto é, à
lei da sobrevivência das mais aptas das variações acidentais, mas sim a
tendências inerentes ou inatas. «Cada espécie muda, no tempo, em
virtude de tendências inerentes à mesma». 41 E em segundo lugar, não
39
Ibid. Vol. I. p. 6.
American Journal of Science, 1869, p. 43.
41
Ibid. p. 52.
40
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
50
considera estes mudanças como variações acidentais, mas sim como
desenhados e levados a cabo em virtude de um plano original. “As
espécies devem pouco,” diz ele 42 “da concorrência acidental de
circunstâncias como o cosmos circundante depende de uma concorrência
fortuita de átomos. Uma rota com propósito de desenvolvimento e
mudança, de correlação e interdependência, que manifesta vontade
inteligente, é determinável na sucessão de raças como no
desenvolvimento e organização do indivíduo. Gerações não variam por
acaso, em cada uma e todas as direções; mas em cursos preordenados,
definidos e relacionados.” 43
O reino da teoria da lei.
6. Outra opinião é a que demanda inteligência para dar conta das
maravilhas da vida orgânica, e acha esta inteligência em Deus, mas
repudiando a ideia do sobrenatural. Isto é, não admite que Deus opere
jamais exceto por meio de segundas causas ou pelas leis da natureza. Os
que adotam esta postura estão dispostos a admitir a derivação das
espécies; e a conceder que as espécies existentes foram formadas por
meio de modificações das que as precederam; mas mantêm que foram
formadas assim com base no propósito e pela contínua ação de Deus;
uma ação sempre operativa na guia da operação das leis naturais, de
maneira que cumpram os desígnios de Deus. A diferença entre esta
teoria e a do Professor Owen é que ele não parece admitir este contínuo
controle inteligente de Deus na natureza, mas atribui tudo ao propósito
preordenado ou plano original do Ser Divino.
7. Finalmente, e sem pretender ter esgotado as especulações a
respeito desta questão, temos o que se pode chamar a doutrina
usualmente recebida e escriturística. Esta doutrina ensina: (1) Que o
universo e tudo o que ele contém deve sua existência à vontade e ao
42
43
Ibid. p. 52.
Veja-se o trabalho do professor Owen na Anatomy of Vertebrates, o quadragésimo capítulo que foi
reproduzido na American Journal of Sciences de janeiro de 1869.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
51
poder de Deus; que a matéria não é eterna, nem a vida se origina a si
mesma. (2) Deus dotou a matéria, com propriedades ou forças, que Ele
sustenta, e conforme com as quais Ele opera em todas as operações
comuns de Sua providência. Isto é, Ele as emprega em todas as partes e
constantemente, assim como nós as empregamos em nossa restringida
esfera. (3) Que no princípio criou, ou deu a vida, a cada tipo distintivo de
planta e animal: «Disse Deus: Produza a terra erva verde, erva que dê
semente; árvore de fruto que dê fruto segundo seu gênero, que sua
semente esteja nele, sobre a terra. E foi assim». «Logo disse Deus:
Produza a terra seres viventes segundo sua espécie, bestas e serpentes e
animais da terra segundo a sua espécie. E foi assim». Este é o relato
escriturístico da origem das espécies. Segundo este relato, cada espécie
foi criada de maneira especial, não ex-nihilo, nem sem a intervenção de
causas secundárias, mas entretanto de maneira original, não derivadas,
evoluídas ou desenvolvidas de espécies preexistentes. Estas espécies
distintas ou classes de plantas e animais assim originadas separadamente
são permanentes. Nunca se transformam de uma a outra. Entretanto,
deve lembrar-se que as espécies são de duas classes, como os naturalistas
as distinguem, isto é, as naturais e as artificiais. As primeiras são as que
têm seu fundamento na natureza; que tiveram uma origem distinta e que
são capazes de propagar-se indefinidamente. As últimas são aquelas
distinções que os naturalistas têm feito para sua própria conveniência.
Naturalmente, não se afirma que cada uma das chamadas espécies de
plantas e animais seja original e permanente, quando a única distinção
entre uma e outra espécie possa ser a forma de uma folha ou a cor de
uma pena. É só daquelas espécies que têm seu fundamento na natureza
que se afirma sua originalidade e permanência. As espécies artificiais,
como são chamadas, são simplesmente variedades. A fertilidade da
descendência é o critério reconhecido da uniformidade da espécie. Se o
que se acabou de dizer é concedido, então, se em qualquer momento da
criação original, novas espécies apareceram na terra, devem sua
existência à intervenção imediata de Deus.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
52
Aqui, pois, temos ao menos sete opiniões diferentes quanto à
origem das espécies. Como pode a ciência decidir-se entre elas? A
ciência tem que ver com os fatos e as leis da natureza. Mas aqui a
questão trata da origem de tais fatos. «Aqui», diz o Dr. Gray, «não se
pode dispor de provas no sentido próprio do termo. Estamos para além
da região da demonstração, e temos só probabilidades a considerar». 44
Os cristãos têm direito a protestar contra o posicionamento de
probabilidades contra os claros ensinos da Escritura. Não é fácil estimar
o mal que se faz quando homens eminentes põem o peso de sua
autoridade do lado da incredulidade, influenciados por um mero peso de
probabilidades num departamento, descuidando as mais convincentes
provas de uma classe diferente. Por exemplo, tratam a questão da
unidade da raça humana de maneira exclusiva como uma questão
zoológica, ignorando o testemunho da história, da linguagem e das
Escrituras. Assim, com frequência se decidem contra a Bíblia com base
em uma evidência que não convenceria a um jurado inteligente num
pleito por uma pequena soma de dinheiro.
Dificuldades admitidas para a teoria darwinista.
Uma das excelentes qualidades do Sr. Darwin é sua sinceridade. Ele
reconhece que existem graves objeções contra a doutrina que está
tentando estabelecer. Admite que se uma espécie se derivar de outra por
lentas gradações, seria natural esperar que se vissem por todas as partes
os passos intermediários, ou elos de conexão. Mas reconhece que os tais
não se encontram; que ao longo de todo o período histórico as espécies
permaneceram sem mudanças. São agora precisamente o que eram faz
milhares de anos. não há a mais ligeira indicação de que uma se
transforme em outra; nem que uma inferior avanço para com outra
superior. Isto se admite. A única resposta à dificuldade que assim
apresenta-se é que a mudança de espécies é um processo tão lento que
44
Atlantic Monthly, August, 1860, p. 230.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
53
não se podem esperar razoavelmente nenhumas indicações nos poucos
milhares de anos compreendidos dentro dos limites da história. Quando
objeta-se além que a geologia nos apresenta a mesma dificuldade, que os
gêneros e as espécies de animais fósseis são tão distintos como os que
agora vivem; que as novas espécies aparecem em certas épocas
totalmente distintas das que as precederam; que os especímenes mais
perfeitos destas espécies aparecem frequentemente no começo de um
período geológico, e não para com seu fim, a resposta que se dá é que os
registros da geologia são muito imperfeitos para nos dar um pleno
conhecimento desta questão: que um grande número inumerável de
formas intermediárias e de transição podem ter desaparecido sem deixar
traçado alguma de sua existência. Tudo isto equivale a admitir que toda a
história e toda a geologia estão contra a teoria, e que não só não
contribuem com dados em favor da mesma, mas também contribuem
com dados que, pelo que respeita a nosso conhecimento, Contradizemna. Referindo-se a estas objeções com base na geologia, diz o Sr.
Darwin: «Só posso responder a estas questões e objeções com base na
hipótese de que o registro geológico é muito mais imperfeito que o que
creem muitos geólogos. O número de espécimes em todos nossos
museus não é absolutamente nada em comparação com as incontáveis
gerações de incontáveis espécies que certamente existiram». 45 Não
obstante, o registro, pelo que respeita à sua própria evidência, está contra
a teoria. *
45
*
Origin of Species, p. 550.
Isto foi escrito em 1872, A situação em 1991 não mudou. De fato, a evidência cumulativa nas investigações
paleontológicas e genéticas desde 1859, data da publicação da obra A origem das espécies, de Charles Darwin,
levou a adoção, da parte de certos evolucionistas, de teorias não gradualistas, e de um total rechaço do
darwinismo como mecanismo evolucionista, embora promulgando dogmaticamente o evolucionismo. O
geneticista evolucionista R. B. Goldschmidt propôs em 1940 descartar o gradualismo, devido à consciência de
que a genética evidenciava a estabilidade das espécies, e propôs que os mudanças de espécie a espécie seriam
bruscas, por «mutações sistêmicas», isto é, de todo o sistema orgânico do indivíduo. Em suas palavras, «um réptil
pôs um ovo, e saiu um pássaro». Embora a maior parte dos evolucionistas rejeitaram então esta ideia, a
verdadeira natureza do registro fóssil e da herança genética, com sua variabilidade circunscrita à natureza de cada
espécie natural, forçou a outros eminentes evolucionistas a apresentar alternativas, admitindo a bancarrota do
evolucionismo gradualista. Assim, o paleontólogo de Harvard, Dr. Gould, seguido por um bom número de outros
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
54
Com relação à objeção mais séria de que a teoria supõe que a
matéria faz o trabalho da mente, que o desenho é cumprido sem
desenhista algum, o Sr. Darwin é igualmente cândido: «A princípio nada
parece mais difícil de crer que os órgãos e instintos mais complexos
tenham sido aperfeiçoados não por meios superiores, embora análogos, à
razão humana, mas pela acumulação de inúmeras pequenas variações,
cada uma delas boa para o respectivo indivíduo. Não obstante, esta
dificuldade, embora para nossa imaginação parece insuperavelmente
grande, não pode ser considerada real, se admitimos as seguintes
proposições: isto é, que todas as partes da organização e dos instintos
oferecem ao menos diferenças individuais, — que há uma luta pela
existência que conduz à preservação de separações proveitosas da
estrutura ou do instinto, — e finalmente, que podem ter existido
gradações no estado da perfeição de cada órgão, cada uma delas boas em
sua classe». 46
Também diz: “Embora a crença de que um órgão tão perfeito como
o olho pudesse ter sido formado por seleção natural é mais que suficiente
para afligir a qualquer um, entretanto, no caso de qualquer órgão, se
sabemos de uma longa série de gradações em complexidade, cada uma
delas boa para seu possuidor, então, sob condições cambiantes de vida,
paleontólogos e geneticistas, propõe que a evolução de uma a outra espécie teve longo a grande velocidade em
lugares geograficamente limitados e num lapso dou tempo tão curto que não pôde deixar rastros no registro
geológico, enquanto que as durações da espécie original e a da espécie resultante desta relativamente rápida
passagem foram tão dilatadas que ambas ficaram registradas no registro fóssil. Vale dizer que com estas teorias
trata-se simplesmente de justificar a inexistência de evidência em favor do conceito evolucionista da origem das
espécies. Portanto, não se podem apresentar tais explicações como evidência de que o evolucionismo é certo.
Segue sucedendo como nos tempos de Darwin: O evolucionismo é a explicação necessária para aqueles que
buscam negar a Deus. Mas é uma explicação carente de evidências em seu favor. E como explicação, tem que
recorrer constantemente a explicações aparentemente plausíveis de por que todas as evidências cruciais estão
ausentes. Há autores, como Colin Patterson, diretor do Museu Britânico de História Natural, e Michael Denton,
diretor de um instituto de investigação bioquímica na Austrália, entre outros, que publicaram várias obras
denunciando a bancarrota total do evolucionismo como ferramenta explicativa, e rejeitando-o expressamente,
embora não de uma perspectiva crente, mas sim agnóstica, sem adotar o criacionismo. Patterson chega a afirmar
que o evolucionismo é «anticonhecimento», uma perspectiva que envenena a capacidade cognitiva dos que o
abraçam. (N. do T.)
46
Origin of Species, pág. 545.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
55
não há nenhuma impossibilidade lógica na aquisição de qualquer grau
concebível de perfeição por meio de seleção natural”. 47
O Sr. Darwin recusa sentir-se afligido por aquilo que ele diz ser
suficiente para afligir a qualquer um. Se for dado um número suficiente
de anos, algumas complicações fortuitas podem fazer o que for. Se se
encontra uma parte áspera de sílex, declara-se que é obra do homem,
porque indica desígnio, enquanto que um o órgão como o olho pode ser
formado por seleção natural, agindo às cegas. Isto, diz o Dr. Gray em sua
apologia, é, ou seria, uma estranha contradição.
A esterilidade dos híbridos
A imutabilidade das espécies está impressa na própria face da
natureza. O que seriam as letras de um livro se tudo ficasse imerso em
confusão, seriam os gêneros e as espécies das plantas e animais se
estivessem, como o supõe a teoria de Darwin, num estado de constante
variação, e isso em todas as direções possíveis. Todos os limites estariam
totalmente ausentes, e os pensamentos de Deus, como as espécies foram
chamadas, teriam sido apagadas de suas obras. Para impedir esta
confusão de «espécies», foi estabelecido como lei natural que os animais
de diferentes «espécies» não podem mesclar-se para produzir um pouco
diferente de ambos os pais, para misturar-se por sua vez e ficar
confundidos com outros animais de outra natureza. Em outras palavras, é
lei da natureza, e por isso uma lei de Deus, que os híbridos sejam
estéreis. Este fato não o nega o Sr. Darwin. Tampouco nega ele o peso
do argumento derivado com base nele contra sua teoria. A única coisa
que faz, como nos casos já mencionados, é tentar dar conta do fato. Os
elos de conexão entre as espécies estão ausentes; mas pode ser que se
perderam. Os híbridos são estéreis mas pode ser que isto se possa
explicar de outra maneira sem aceitar que foi feito por desígnio para
assegurar a permanência das espécies. Quando se descobre que um
47
Ibid., p. 251.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
56
grande fato da natureza assegura o cumprimento de um fim de suma
importância na natureza, é justo inferir que foi designado para o
cumprimento deste fim, e consequentemente este fim não deve ser
passado por alto nem negado.
Distribuição geográfica.
O Sr. Darwin é igualmente sincero com referência a outra objeção à
sua doutrina. “Quanto à distribuição geográfica,” diz ele, 48 “as
dificuldades encontradas na teoria da descendência com modificação são
bastante sérias. Todos os indivíduos da mesma espécie, e todas as
espécies do mesmo gênero, e até grupos superiores, devem ter
descendido de antepassados comuns, e portanto, em partes muito
distantes e isoladas do mundo que agora podem encontrar-se, devem no
curso das sucessivas gerações viajar de um ponto a todos os outros.”
Quando se leva em conta que este é o caso dos moluscos e crustáceos, os
animais cujo poder de locomoção é muito limitado, esta distribuição
quase universal de um centro parece ser uma impossibilidade. A resposta
de Darwin a isto é a mesma que às dificuldades já mencionadas. Ele se
lança sobre as possibilidades de duração ilimitada. Ninguém pode dizer o
que pôde ter sucedido durante as idades incontáveis do passado.
“Olhando à distribuição geográfica,” diz ele, “se for admitido que se
produziu através do longo curso das idades muita migração de uma parte
do mundo a outra, devido a antigas mudanças climatológicas e
geográficas e dos muitos meios ocasionais e desconhecidos de dispersão,
então podemos entender, na teoria da descendência com modificação, a
maior parte dos grandes fatos condutores da distribuição.” 49
Cada um deve ver quão inconclusivo é todo esse raciocínio. Se
admitirmos que muitas coisas desconhecidas podem ter sucedido no
passado infinito, então podemos, mas não totalmente, entender mais dos
48
49
Origin of Species, p. 547.
Origin of Species, p. 564.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
57
fatos que se opõem à teoria da derivação das espécies. A mesma
observação pode fazer-se com referência à constante apelação aos efeitos
desconhecidos de duração ilimitada.
“A causa principal,” diz o Sr. Darwin, “de nossa falta de vontade
natural em admitir que uma espécie deu à luz a outras espécies distintas,
é que estamos sempre lentos em admitir qualquer grande mudança de
que não vemos os passos. . . . . A mente não pode captar o sentido pleno
do termo de até dez milhões de anos; não pode somar e perceber os
efeitos completos de muitas pequenas variações acumuladas durante um
número quase ilimitado de gerações.” 50
Se dissermos que o macaco durante o período histórico se estende
por milhares de anos não tem feito a mais mínima aproximação para
converter-se num homem, é-nos dito: Ah! mas não sei o que vai fazer em
dez milhões de anos. Ao que é uma resposta suficiente para perguntar:
Quanto custa dez milhões vezes nada? Os homens comuns rejeitam esta
teoria darwiniana com indignação, assim como com decisão, não só
porque os exorta a aceitar o possível como uma verdade demonstrável,
mas sim porque atribui a causas cegas, não inteligentes as maravilhas de
propósito e desenho que o mundo exibe em todas as partes; e porque
efetivamente desterra a Deus de suas obras. Para tais homens é uma
satisfação saber que a teoria é rejeitada por razões científicas pela grande
maioria dos homens de ciência. O próprio Darwin diz:
“As várias dificuldades aqui discutidas, ou seja — que, embora se
encontre nas formações geológicas numerosos vínculos existentes entre
as espécies que agora existem e que antes existia, não encontramos
imensamente numerosas formas de transição que se reúnem com eles
todos juntos, a forma súbita em que vários grupos inteiros de espécies
aparecem pela primeira vez nas formações europeias; a ausência quase
completa, como se conhecem na atualidade, de formações ricas em
fósseis debaixo dos estratos cambrianos, — são, sem dúvida, da natureza
50
Ibid., p. 570.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
58
mais séria. Isto o vemos no fato de que os paleontologistas mais
destacados, ou seja, Cuvier, Agassiz, Barrande, Pictet, Falconer, E.
Forbes, etc., e todos os nossos maiores geólogos, como Lyell,
Murchison, Sedgwick, etc., têm unanimemente, com frequência com
veemência, mantido a imutabilidade das espécies.”51
Em 1830 houve uma prolongada discussão a respeito deste tema na
Académie des Sciences em Paris, Cuvier ficando do lado da permanência
das espécies, e da criação e da organização governada por um propósito
final, enquanto que Geoffrey St. Hilaire pôs-se do lado da derivação e da
mutabilidade das espécies, e «negou», como diz o Professor Owen, «a
evidência de desígnio, e protestou contra a dedução de um propósito». A
decisão foi quase unânime em favor de Cuvier; e desde 1830 até 1860
dificilmente uma voz levantou-se em oposição à doutrina proposta por
Cuvier. Isto, tal como pensa Büchner, foi o triunfo do empirismo,
apelando aos fatos, sobre a filosofia conduzida pelo «Apriorische
Speculationem». O Professor Agassiz, reconhecido como o maior dos
naturalistas vivos, conclui assim sua resenha do livro de Darwin: «Se a
teoria transformista fosse certa, o registro geológico deveria exibir uma
sucessão ininterrupta de tipos passando gradualmente da um ao outro. O
fato é que através de todos os tempos geológicos cada período fica
51
Origin of Species, p. 383. Numa edição anterior de seu trabalho ele incluiu o nome do Professor
Owen nesta lista, que ele agora omite, e ele também retira isso de Lyell; acrescentando que a
passagem anterior citou as palavras: “Mas o Sr. Charles Lyell agora dá o apoio de sua alta autoridade
ao lado oposto.” O professor Owen, como se mostra acima, embora agora admita a mutabilidade das
espécies, está muito longe da adoção da teoria de Darwin. O elemento essencial desta teoria é a
negação da teleologia; a afirmação de que as espécies devem sua origem à operação não inteligente de
causas naturais. Owen claramente nega isto. “Assumindo, então,” diz ele, “que o Palaeotherium
chegou a ser em última instância Equus, eu não obtenho nenhuma concepção da operação da força
efetiva da personificação como ‘natureza’ o conjunto dos seres que compõem o universo, ou as leis
que governam estes seres, dando à minha personificação um atributo que propriamente só pode
pregar-se da inteligência, e dizendo: ‘A natureza selecionou os cascos divididos e rejeitou outros’.”
American Journal of Science, second series, Vol. 47. p. 41. Quanto a Sir Charles Lyell, a menos que
se converteu num homem novo da publicação da nona edição de seus Principles of Geology en 1853,
é segundo o Professor Owen de adotar a teoria de Darwin, embora ele possa admitir, em certo sentido,
a derivação das espécies.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
59
caracterizado por tipos específicos definidos, que se podem referir a
ordens definidas, constituindo classes definidas e ramos definidos,
construídos com base em planos definidos. Até que se demonstre que os
que recolheram os dados da natureza erraram, e que têm um sentido
diferente do que agora geralmente lhes é atribuído, eu considerarei a
teoria transformista como um erro científico, falsa em seus fatos,
anticientífica em seu método, e de tendência prejudicial». 52 Assim, se as
espécies forem imutáveis, sua existência deve ser devido à ação de Deus
mediata ou imediata, e em qualquer caso exercida de tal maneira para
fazer com que estas se correspondam com um pensamento e propósito na
mente divina. E, de maneira mais especial, o homem não deve sua
origem ao gradual desenvolvimento de uma forma inferior de vida
irracional, mas à energia de seu Criador a cuja imagem foi ele criado.
Pangênese.
O Sr. Darwin em “Origin of Species,” 53 refere-se, à hipótese da
pangênese,” que, diz ele, tinha desenvolvido em outra obra. Como esta
hipótese é feita a serviço da que nos ocupa, serve para ilustrar sua
natureza e oferece uma visão da natureza da mente do escritor. O Sr.
Mivart afirma que a hipótese da pangênese pode enunciar-se como
segue: “Que cada organismo vivo é em última instância, composto por
um número quase infinito de minúsculas partículas ou átomos orgânicos,
denominados ‘gêmulas,’ cada um deles tem o poder de reproduzir seu
tipo. Por outro lado, que estas partículas circulam livremente pelo
organismo que se compõe delas, e se derivam de todas as partes de todos
os órgãos dos antepassados menos remotos de cada organismo, em todos
os estados e etapas de tal existência de vários antepassados, e portanto,
dos vários estados de cada um de tais órgãos antepassados. Que tal
coleção completa de gêmulas é acrescentada em cada óvulo e
52
53
American Journal, July, 1860, p. 154.
Página 196.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
60
espermatozóide na maioria dos animais, e cada parte pode reproduzir por
gemação (brotação) nos animais inferiores e plantas. Portanto em muitos
destes organismos inferiores como um amontoado de grammules
ancestrais deve existir em todas as partes de seus corpos, visto que neles
cada parte é suscetível de reprodução por gemação. O Sr. Darwin,
evidentemente, deve admitir isto, visto que diz: ‘Tem-se dito com
frequência pelos naturalistas que cada célula de uma planta tem a
capacidade real ou potencial de reproduzir toda a planta; mas tem esse
poder só em virtude de que contêm derivadas gêmulas de todas as
partes’.” 54
Estas gêmulas são átomos orgânicos; são quase infinitas em
número; derivam-se de todos os órgãos dos antepassados menos remotos
da planta ou animal; armazenam-se em cada óvulo ou espermatozóide;
são capazes de reproduzir-se. Mas a reprodução, como implicando o
controle de causas físicas para obter um propósito, é uma obra da
inteligência. Estas gêmulas inconcebivelmente numerosas e minúsculas,
portanto, os assentos da inteligência. Certamente isto não é ciência. Toda
teoria que necessita o apoio de tal hipótese deve ser abandonada
prontamente. Seria muito mais fácil crer nas fadas que formam cada
planta, que nestas gêmulas.
Finalmente, pode-se observar que o Sr. Wallace, embora advogue
pela doutrina da “Seleção Natural”, mantém que não é aplicável ao
homem; que não pode explicar seu estado original nem presente; e que é
impossível, com base na teoria do Sr. Darwin, dar conta da organização
física do homem, de suas capacidades mentais, nem de sua natureza
moral. A este tema dedica o décimo capítulo de sua obra.
54
Genesis of Species, by St. George Mivart, F. R. S. London, 1871, chap. X. p. 208.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
§ 3. A antiguidade do homem.
61
«Hoje em dia», é-nos dito, «os antropólogos concordam geralmente
em que o homem não é uma recente introdução na terra. Todos os que
estudaram a questão admitem agora que sua antiguidade é muito grande;
e que, embora até certo ponto tenhamos determinado o mínimo de tempo
durante o qual deve ter existido, não fizemos uma aproximação à
determinação do período muito maior durante o qual pode ser que tenha
existido. Podemos afirmar, com uma certeza possível, que o homem
deve ter habitado a terra há mil séculos, mas não podemos afirmar
positivamente que não tenha existido, nem que haja boa evidência de que
não tenha existido, por um período de dez mil séculos». 55
A respeito disso deve observar-se, primeiro, que é um fato histórico
que nada é menos confiável que estes cálculos a respeito do tempo.
Poderia encher-se um volume com exemplos de erros dos naturalistas a
respeito desta questão. O mundo não esqueceu o entusiasmo dos
inimigos da Bíblia quando se encontrou que o número de capas
sucessivas sobre as ladeiras do Monte Etna era tão grande que exigia,
segundo se dizia, de milhares e milhares de anos para sua condição atual.
Tudo isto se desvaneceu. O Sr. Lyell calculou que se precisava de
duzentos e vinte mil anos para dar conta das mudanças que estão tendo
lugar nas costas da Suécia. Geólogos posteriores reduzem este tempo a
uma décima parte da primeira estimativa. Encontrou-se um fragmento de
cerâmica sepultado profundamente sob os depósitos na boca do Nilo.
Falou-se com toda confiança que aquele depósito não se podia ter
formado durante o período histórico, até que se mostrou que o artigo em
questão era de fabricação romana. Por isso, os homens de ciência sóbrios
não têm confiança nestes cálculos que demandam milhares de séculos ou
inclusive milhões de anos, para a produção de efeitos posteriores às
grandes épocas geológicas. A segunda observação com referência a esta
55
Wallace on Natural Selection, p. 303.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
62
grande antiguidade que se afirma da raça humana é que as razões que lhe
são atribuídas são, na opinião dos mais eminentes homens de ciência,
insatisfatórias. Os dados que se apresentam para demonstrar que o
homem viveu durante um número indeterminável de eras sobre a terra
são: (1) A existência de populações edificadas sobre pilares, agora
submersas em lagos na Suíça e em outros lugares, que, supõe-se, são de
grande antiguidade. (2) A descoberta de restos humanos em estado fóssil
em depósitos aos quais os geólogos atribuem uma idade contada por
dezenas, ou centenas, de milhares de anos. (3) A descoberta de utensílios
de diferentes classes, feitos de sílex, na companhia de restos de animais
extintos. (4) A antiga separação de homens nas distintas raças nas quais
agora subsistem. A respeito desta questão diz Sir Charles Lyell: «Os
naturalistas durante muito tempo sentiram que, para tornar provável a
opinião recebida de que todas as variedades da família humana surgiram
originalmente de um só casal (uma doutrina contra a qual, na minha
opinião, não se pode opor nenhuma sã objeção), precisa-se de um lapso
de tempo muito maior para a lenta e gradual formação de raças (como a
caucásica, a mongólica e a negra) que aquele abrangido em qualquer dos
sistemas cronológicos populares». Os caucásicos e os negros aparecem
distintivamente marcados em monumentos egípcios aos quais se atribui
uma antiguidade de três mil anos. Por isso, argui ele, temos que admitir
«uma imensa série de eras anteriores» para dar conta da formação
gradual destas distintas raças. 56 Além de todos estes argumentos, afirmase que os monumentos e registros que existem demonstram a existência
do homem sobre a terra muito antes do período atribuído à sua criação na
Bíblia.
56
Principles of Geology, por Sir Charles Lyell. F.R.S., novena edição, Boston, 1853, pág. 660. Vejase também The Geological Evidences of the Antiquity of Man pelo mesmo autor, Filadélfia, 1863,
pág. 385.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
63
Habitações lacustres.
Em muitos dos lagos da Suíça foram descobertos pilares
erosionados até a superfície do barro, ou projetando-se ligeiramente
acima dele, que no passado tinham sustentado habitações humanas. São
tão numerosos que fazem evidente que povos inteiros ficavam assim
sustentados sobre a superfície da água. Estes povoados, «quase todos
eles», são «de data desconhecida, mas os mais antigos» dos mesmos
«pertenciam certamente à idade da pedra; porque se extraíram centenas
de artigos da lama em que estavam cravados os pilares, artigos parecidos
com os dos montículos conchíferos e musgos de turfa da Dinamarca».
Uma grande quantidade de ossos de não menos de cinquenta e quatro
espécies animais foram extraídos nestas localidades, todos os quais, com
uma só exceção, seguem vivendo na Europa. Neste número se incluem
os restos de vários animais domesticados, como o boi, a ovelha, a cabra e
o cão. 57
Evidentemente, tudo isto não constitui prova de uma grande
antiguidade. Inclusive a fins do século passado, * podiam-se ver moradias
similares, sustentadas sobre pilares. Todos os restos de animais que se
encontram são de espécies existentes. Não há nada que dê evidência de
que estas habitações lacustres fossem sequer da época dos humanos. Os
raciocínios são feitos com base na ausência de metal e a presença de
artigos de pedra. Por isso, infere-se que estes povoados pertenciam à
«Idade da Pedra». Esta foi sucedida pela «Idade do Bronze», e esta pela
Idade do Ferro. Sir Charles Lyell nos informa de que os geólogos suíços,
representados por M. Monet, atribuem «à idade do bronze uma data
dentre três mil e quatro mil anos, e ao período da pedra uma idade de
cinco a sete mil anos». 58
Entretanto, é uma especulação totalmente arbitrária que houvesse
jamais uma idade da pedra. Baseia-se na pressuposição de que a
57
Antiquity of Man, cap. II, pág. 17.
Isto é, do século XVIII – N. do T.
58
Ibid. pág. 28.
*
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
64
condição original do homem foi de barbárie, da qual se elevou através de
uma lenta progressão; durante o primeiro período de seu progresso
empregou só artigos de pedra. Logo, de bronze, e logo, de ferro; e que
milhares de anos transcorreram antes que a raça passasse de uma destas
etapas de progresso a outra. Por isso, se são encontrados restos humanos
em algum lugar com relação a artigos de pedra, são atribuídos à idade da
pedra. Com base nesta maneira de raciocinar, se são encontradas pontas
de flecha e machados de pedra num povoado índio, a inferência deveria
ser que todo mundo estava em estado de barbárie neste tempo, quando se
empregavam estes artigos. Admitindo que na época de ocupação destes
povoados lacustres as pessoas da Suíça, e inclusive todos os habitantes
da Europa, fossem desconhecedores do uso do metal, isto não
demonstraria que a civilização não estivesse em todo o seu esplendor no
Egito ou na Índia. Além disso, a pressuposição de que o estado original
fosse de barbárie não é só contrária à Bíblia e às convicções da maioria
dos eruditos, mas sim, segundo se crê, aos dados históricos mais claros.
Restos fósseis humanos.
Muito mais peso neste debate anexa-se à descoberta de restos
humanos nos mesmos lugares e nas mesmas circunstâncias com aqueles
animais agora extintos. Disto se infere que o homem deve ter vivido
quando os animais ainda habitavam a Terra. Estes restos humanos não se
encontram em nenhuma das rochas fossilíferas antigas. O fato das
Escrituras de que o homem foi o último dos seres vivos que saía da mão
de Deus, encontra-se inatacável por qualquer fato cientista.
Um esqueleto humano quase perfeito se encontrou encravado numa
rocha calcária na ilha de Guadalupe. Essa rocha, entretanto, é de origem
moderna, e ainda está em processo de formação. A idade atribuída a este
fóssil trata-se só de duzentos anos.
Um fragmento de rocha conglomerado se obteve a uma
profundidade de dez pés por debaixo do leito do rio Dove, na Inglaterra,
que contém moedas de prata do reinado do Eduardo I. Isto demonstra
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
65
que não requer muitos anos para formar rochas, e para enterrá-las
profundamente sob a superfície. Os restos aos quais se faz insistência só
se encontram em cavernas e enterrados sob depósitos de turfa ou de
matérias terrosas. Os geólogos parecem estar de acordo quanto ao fato de
que os ossos humanos se encontraram em certas covas na França, na
Bélgica e na Inglaterra intimamente associados com os restos de animais
que agora vivem, e com as poucas de algumas das raças extintas.
Sendo o fato admitido, a pergunta é: Como se deve levar em conta?
Esta justaposição não é prova certa da contemporaneidade. Estas
cavernas, uma vez que o complexo das feras, chegou a ser esconderijos
de homens, de defesa, de culto, ou de sepultura, e, portanto, como Sir
Charles Lyell admite: “Não é nas evidências de tais misturas que
devemos admitir facilmente a antiguidade alta da raça humana, ou a data
recente de certa espécie perdida de quadrúpedes.” 59
Em conexão imediata com a passagem que acabamos de nos referir,
Lyell sugere outro método pelo qual os restos de animais pertencentes a
idades muito diferentes do mundo poderia chegar a ser misturados entre
si. Quer dizer, “abrir fissuras” que “servem como armadilhas naturais.”
Ele cita a seguinte conta do Professor Sedgwick de um abismo de
enorme profundidade, mas desconhecida, que “está rodeada de bancos de
estantes cobertos de erva, e muitos animais, tentados na direção do seu
bordo, caíram e pereceram nele. O acesso de gado está agora impedido
por uma forte muralha elevada, mas não pode haver dúvida de que,
durante os últimos dois ou três mil anos, grandes massas de brechas
ósseas deve ter acumulado nas partes baixas da grande fissura, que
provavelmente desce toda a espessura do precipício de pedra calcária à
profundidade de talvez cinco ou seiscentos pés.” A isto Lyell acrescenta:
“Quando alguma destas armadilhas naturais ocorrem para comunicar-se
com as linhas de cavernas subterrâneas, os ossos, a terra, e a brecha
59
Principles of Geology, nona edição, p. 740.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
66
podem afundar-se por seu próprio peso, ou ser arrastados às galerias de
baixo.” 60
Há uma terceira forma em que se pode contar este entrelaçamento
de ossos de animais de diferentes idades. Quanto às cavernas notáveis na
província de Lieja, Sir Charles Lyell, diz que o Dr. Schmerling, o
naturalista, pelo qual tinham sido cuidadosa e laboriosamente
examinados, não pensavam que eram “guaridas de bestas selvagens, mas
que seus conteúdos orgânicos e inorgânicos tinham sido varridos pelas
correntes comunicando-se com a superfície do país. Os ossos, sugeriu
ele, pode com frequência ter sido rodados nos leitos de tais arroios antes
de chegar a seu destino no subsolo.” 61 É evidente, portanto, que nenhum
argumento conclusivo para demonstrar que o homem foi contemporâneo
com certos animais extintos podem extrair-se do fato de que seus restos
foram em alguns casos raros encontrados nas mesmas localidades.
Ossos humanos achados profundamente sepultados.
Menos peso ainda se deve dar ao fato de que se tenham achado
ossos humanos profundamente sepultados na terra. Todos sabem que
tiveram lugar enormes mudanças na superfície da terra dentro do período
histórico. Tais mudanças são produzidas em algumas ocasiões pela lenta
operação das causas que sepultaram os alicerces de tais cidades antigas
como Jerusalém e Roma muito abaixo do atual nível da superfície da
terra. Em outras ocasiões foram causados por cataclismos repentinos.
Não é surpreendente que se descubram restos humanos em turfeiras, se,
como nos diz Sir Charles Lyell: “Todas as moedas, machados, armas e
outros utensílios descobertos em turfeiras britânicas e francesas são
romanas; pelo que uma proporção considerável da turba nas turfeiras
europeias, evidentemente, não tem uma maior antiguidade que a época
de Júlio César”. 62
60
Ibid. pp. 740, 741.
Antiquity of Man, p. 64.
62
Principles of Geology, p. 721.
61
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
67
Os dados com os quais se determina a velocidade de deposição de
sedimentos são tão incertos que não se pode confiar neles. Sir Charles
Lyell diz: «A estimativa mínima de tempo exigida» para a formação do
atual delta do Mississipi é de mais de cem mil anos. 63 Segundo a
cuidadosa exploração efetuada por membros da Exploração Costeira e
outros técnicos dos Estados Unidos, o tempo durante o qual o delta
esteve em formação é de quatro mil e quatrocentos anos. 64 Em toda a
memória do homem, ou desde que se edificaram choças de pescadores
nas costas da Suécia, houve tal afundamento da costa que se encontrou
uma choça de pescador, com um tosco lar para fogo em seu interior, ao
cavar um canal a uma profundidade de sessenta pés [vinte metros]”. 65
«Durante o terremoto de 1819 perto do Delta do Indo uma área de duas
mil milhas quadradas (cinco mil e duzentos quilômetros quadrados)
transformou-se num mar interior, e o forte e a população de Sindree
afundou até que os telhados das casas estavam bem em cima das águas.
A cinco milhas e meia [oito quilômetros e meio] de Sindree, em paralelo
com esta área afundada, uma região foi elevada a dez pés (três metros)
acima do delta, numa extensão de cinquenta milhas [oitenta quilômetros]
de longitude, e em algumas partes de dez milhas [dezesseis quilômetros]
de largura». 66 O fato de que os monumentos da arte humana não pode
pretender uma antiguidade superior a uns poucos milhares de anos, fá-la
totalmente incrível que o homem existiu na terra centenas de milhares
ou, como Darwin supõe, milhões de anos.
Implementos de pederneira.
Tanto estresse tem sido posto na descoberta de certos implementos
de pederneira nos depósitos que, discute-se, são de tal idade para
63
Antiquity of Man, p. 43.
Veja-se Report upon de Physics and Hydraulics of the Mississippi River, pelo Capitão A. A.
Humphreys e o Tenente H. L. Abbott, Corpo de Engenheiros Topográficos Exército dos os EUA,
1861, pág. 435.
65
Dana, Manual of Geology, p. 586.
66
Ibid., p. 588.
64
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
68
demonstrar que o homem deve ter estado presente na terra durante
séculos antes do tempo atribuído na Bíblia para sua criação. A este
argumento a mesma resposta deve ser dada. Em primeiro lugar, que a
presença das obras de arte humana nesses depósitos não há provas de
que os homens foram contemporâneos com tais depósitos; à vista das
elevações da superfície da Terra e deslocamentos que todos os geólogos
admitem são de ocorrência frequente na história de nosso planeta. E em
segundo lugar, os próprios Fatos estão em disputa, ou interpretados de
maneira diversa pelos homens de ciência de igual autoridade. Isto é
especialmente certo de flechas de pederneira, fileira de pérolas, e
machados encontram-se no vale de Somme, na França. 67 Lyell confia em
que o argumento deles é conclusivo. Mais tarde os exames, entretanto,
levaram outros a uma conclusão diferente. Esta é uma pergunta para que
os homens de ciência decidam entre eles, e que só eles são competentes
para decidir. Não obstante, enquanto que os homens da mais alta posição
como os naturalistas afirmam que a ciência não conhece nenhum fato
inconsistente com o relato bíblico da origem do homem, os amigos da
Bíblia não estão obrigados a afastar-se da interpretação geralmente
recebida das Escrituras sobre este assunto.
O Professor Guyot, como bem sabem todos os que o conhecem ou
ouviram suas conferências públicas, ensina que há fatos que não se
conhecem, que não poderá ter-se em conta no suposto de que o homem
existiu sete ou oito mil anos nesta terra. É bem sabido também que esta
doutrina, muito recentemente, era universal entre os homens de ciência.
Cuvier estava tão convencido sobre este ponto que quase não podia
pôr-se a olhar o que pretendia ser os restos fósseis do homem. Esta
convicção de sua parte, não era um prejuízo, nem era devida a uma
reverência pela Bíblia. Era uma convicção científica fundada na
evidência científica. As provas de todas as fontes da origem recente do
homem foram consideradas como tais que se evite a possibilidade de seu
67
To these Lyell devotes the seventh and eight chapters of his work on the Antiquity of Man.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
69
ser contemporâneo com qualquer das raças de animais extintos. E
inclusive aqueles que foram levados a admitir esse ponto, estavam em
muitos casos dispostos ao que se refere o fato como uma prova não da
antiguidade do homem, mas à existência de um período muito mais tarde
que geralmente se supõe, de animais agora extintos. A presença das
relíquias humanas com os ossos de animais extintos, “não me parece”,
diz Prestwich, “necessitar a realização do homem no tempo passado,
tanto como o adiantamento que traz dos animais extintos para com nosso
próprio tempo.” 68 O fato de que os monumentos da arte humana não
podem pretender uma antiguidade superior a uns poucos milhares de
anos, faz totalmente incrível que o homem existiu na terra centenas de
milhares ou, como Darwin supõe, milhões de anos.
Argumento com base nas raças dos homens e de
monumentos antigos.
Outro argumento se baseia na hipótese de que a diferença entre as
raças caucásica, mongólica e negra, que se sabe que estava já marcada de
uma maneira igualmente precisa dois ou três mil anos antes de Cristo,
como é agora, deve ter demandado incontáveis eras para desenvolver-se
e estabelecer-se. A isto é evidente a seguinte resposta: Primeiro, que
diferenças igualmente grandes se estabeleceram dentro do período
histórico em animais domésticos. Segundo, que não é incomum que as
variedades marcadas se produzam repentinamente, e, por assim dizer,
acidentalmente. Em terceiro lugar, que estas variedades de raça não são
efeito da operação cega de causas físicas, mas antes, são por aquelas
causas que são inteligentemente guiadas por Deus para o cumprimento
de algum sábio propósito. Os animais que vivem nas regiões árticas não
são apenas vestidos de peles para a sua proteção contra o frio, mas a cor
de sua roupa muda com a estação. E assim Deus dispõe as diferentes
raças humanas em suas peculiaridades para que sejam apropriadas para
68
Quoted by Professor Dana, Manual of Geology, p. 582.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
70
as regiões em que habitam. O doutor Livingstone, o grande explorador
africano, informa-nos que o tipo negro, tal como se concebe
popularmente, aparece muito raramente na África, e só em distritos em
que prevalece um grande calor em conexão com uma grande umidade.
As tribos no interior daquele continente diferem muito, diz ele, tanto em
tom como em forma.
A ideia de que devem ter passado incontáveis eras para que o
homem surgisse da mais profunda barbárie ao estado de civilização
indicado pelos monumentos do Egito não repousa sobre nenhuma
hipótese melhor. O estado mais antigo do homem, em lugar de ser o
inferior, foi em muitos aspectos seu estado superior. E nossa própria
experiência como nação demonstra que não se necessitam milênios para
que um povo chegue a produzir maiores obras das quais possam jactar-se
o Egito ou a Índia. Faz duzentos anos este país era um ermo do Atlântico
até o Pacífico. E o que é agora? Segundo Bunsen, seriam necessários
cem mil anos para levantar todas estas cidades e para edificar todos estas
ferrovias e canais.
Insiste-se ainda como uma prova da grande antiguidade do homem
que os monumentos e registros monumentais do Egito demonstram que
existiu uma nação no mais elevado estado de civilização na época do
dilúvio, ou imediatamente posterior ao mesmo. Argui-se que a
cronologia da Bíblia e a cronologia do Egito são irreconciliáveis.
Com referência a esta dificuldade pode-se observar que os cálculos
dos egiptólogos são tão precários, e em muitos casos tão extravagantes,
como os dos geólogos. Isto se demonstra com suas discrepâncias. Pode
dizer-se, entretanto, que mesmo os estudantes mais moderados das
antiguidades egípcias atribuem uma data ao reinado de Manes e a
construção das pirâmides incompatível com a cronologia da Bíblia. A
isto se pode replicar que a cronologia da Bíblia é muito incerta. Os dados
correspondem em sua maior parte aos fatos casualmente estabelecidos;
quer dizer, não estabelecidos para os propósitos da cronologia. Os pontos
de vista mais geralmente adotados descansa principalmente na
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
71
autoridade do arcebispo Usher, que adotou o texto hebraico como seu
guia, e assumiu que nas tábuas genealógicas cada nome marcava uma
geração.
Entretanto, uma grande parte, dos estudiosos da Bíblia adotaram a
cronologia da Septuaginta com preferência aos hebreus; de modo que em
vez de quatro mil anos da criação até o nascimento de Cristo, temos
perto de seis mil anos. Além disso se admite que o método habitual de
cálculo baseado nas tábuas genealógicas é muito incerto. O desígnio
destas tábuas não é dar a sucessão regular dos nascimentos numa linha
determinada, mas simplesmente marcar a descendência. Isto é assim bem
feito se for omitido três, quatro ou mais gerações, como se toda a lista
fosse completa. Que este é o plano em que estas tábuas genealógicas se
constroem é um fato admitido.
“Assim, em Gênesis 46:18, depois de registrar aos filhos da Zilpa,
seus netos e seus bisnetos, o escritor acrescenta: ‘São estes os filhos de
Zilpa . . . . deu ela à luz a Jacó, a saber, dezesseis pessoas.’ A mesma
coisa se repete no caso de Bila, versículo 25, ‘deu ela à luz a Jacó, ao
todo sete pessoas.’ Comparar versículos 15, 22. Ninguém pode pretender
que o autor deste registro não usou o termo compreensivelmente dos
descendentes além da primeira geração. Da mesma maneira, segundo
Mateus 1:11, Josias gerou a Jeconias seu neto, e o versículo 8, Jeorão
gerou a Uzias seu tataraneto. E em Gênesis 10:15-18, Canaã, o neto de
Noé, diz-se que gerou várias nações inteiras, o jebuseu, o amorreu, o
girgaseu, o heveu, etc., etc. Nada pode ser mais claro, portanto, mais que
no uso da Bíblia, para parir e ‘gerar’ utilizam-se num sentido amplo para
indicar a ascendência, sem limitar esta à descendência imediata.” 69
A extrema incerteza que assiste a todas as tentativas para
determinar a cronologia da Bíblia é suficientemente demonstrada no fato
de que cento e oitenta diferentes cálculos foram realizados por autores
69
The Pentateuch Vindicated from the Aspersions of Bishop Colenso, by William Henry Green,
Professor in the Theological Seminary, Princeton, N. J., New York, 1863, p. 132.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
72
judeus e cristãos, da duração do período entre Adão e Cristo. O mais
longo destes o faz seis mil novecentos e oitenta e quatro, e a mais curta
três mil quatrocentos e oitenta e três anos. Sob estas circunstâncias, é
muito claro que os amigos da Bíblia não têm nenhum motivo para
inquietação. Se os fatos da ciência ou da história ultimamente, deve fazer
necessário admitir que oito ou dez mil anos transcorreram desde a
criação do homem, não há nada na Bíblia no caminho da concessão. As
Escrituras não nos ensinam quanto tempo os homens tinham existido
sobre a terra. Suas tábuas da genealogia pretendem demonstrar que
Cristo era o filho de Davi e da semente de Abraão, e não quantos anos
tinham transcorrido entre a criação e o advento. 70
70
Herzog’s, Encyklopädie, article “Zeitrechnung,” que cita a obra beneditina L’Art de vérifior les
Dates. Vol. I., pp. 27.-36.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
CAPÍTULO II
73
A NATUREZA DO HOMEM
§ 1. A doutrina escriturística.
AS ESCRITURAS nos ensinam que Deus formou o corpo humano
do pó da terra, e soprou nele o fôlego de vida, e veio a ser uma alma
vivente (‫)נֶפֶשׁ חַי‬. Com base neste relato, o homem compõe-se de dois
princípios distintivos: corpo e alma: um, material, o outro imaterial; um
corpóreo, o outro espiritual. Nesta declaração está envolvido, primeiro,
que a alma humana é uma substância; e, segundo, que é uma substância
distinta do corpo. De modo que na constituição do homem se incluem
duas substâncias distintas.
A ideia de substância, como se observou antes, é uma das verdades
primárias da razão. Dá-se na consciência de cada homem, e por isso
forma parte da fé universal dos homens. Estamos conscientes de nossos
pensamentos, sentimentos e volições. Sabemos que estes exercícios ou
fenômenos são constantemente mutáveis, mas que há algo do qual eles
são os exercícios e manifestação. Este algo é o eu, que permanece sem
mudanças, que é o mesmo e idêntico algo, ontem, hoje e amanhã. Por
isso, a alma não é uma mera série de atos; tampouco é uma forma da
vida de Deus, nem uma mera força insubstancial, mas sim uma
verdadeira subsistência. Tudo aquilo que age é, e o que é é uma entidade.
Uma não entidade é nada, e nada não pode ter poder nem produzir
efeitos. Por isso, a alma do homem é uma essência ou entidade ou
substância, o sujeito permanente de seus vários estados e exercícios. O
segundo ponto mencionado não está menos claro. Assim como nada
podemos saber de uma substância exceto por seus fenômenos, e
porquanto estamos obrigados por uma lei de nossa natureza a crer na
existência de uma substância da qual os fenômenos são sua
manifestação, assim por uma necessidade igualmente intensa nos vemos
obrigados a crer que quando dois fenômenos são não só diferentes, mas
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
74
também incompatíveis, ali as substâncias são deste modo diferentes.
Portanto, como os fenômenos ou propriedades da matéria são
essencialmente diferentes dos da mente, vemo-nos forçados a concluir
que a matéria e a mente são duas substâncias distintas; que a alma não é
material, nem o corpo espiritual. “Para identificar a matéria com a
mente», diz Cousin, numa passagem antes citada “ou mente com
matéria; é necessário pretender que a sensação, o pensamento, a volição,
são reduzíveis, em última análise; a solidez, extensão, figura,
divisibilidade, etc.; ou que a solidez, extensão, figura, etc., são reduzíveis
a sensação, pensamento, vontade”. 71 Por isso, pode-se dizer, apesar dos
materialistas e idealistas, que é intuitivamente certo que a matéria e a
mente são duas substâncias distintas; e esta foi a fé da grande massa da
humanidade. Esta visão da natureza do homem que se apresenta no
relato original de sua criação é sustentada pelas constantes descrições da
Bíblia.
Verdades a respeito deste tema assumidas nas Escrituras.
As Escrituras não ensinam de maneira formal nenhum sistema de
psicologia, mas há certas verdades relacionadas tanto com nossa
constituição física como mental que dão de contínuo por supostas.
Supõem, como já vimos, que a alma é uma substância; que é uma
substância distinta da do corpo; e que há dois, e não mais que dois,
elementos essenciais na constituição do homem. Isto é evidente:
(1) Pela, distinção que se faz em todas as partes entre alma e corpo.
Assim, no relato original da criação faz-se uma clara distinção entre o
corpo como formado do pó da terra, e a alma ou princípio de vida que foi
soprado nele por Deus. E em Gn 3:19 diz-se: «És pó, e ao pó voltarás».
Porquanto foi só o corpo o que foi formado do pó, é só o corpo o que
deve voltar para o pó. Em Ec 12:7 afirma-se: «E o pó volte à terra de
onde procede, e o espírito volte a Deus, que o deu». Is 10:18, «Também
71
Elements of Psychology, Traducción de Henry, N.Y., 1856, pág. 370.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
75
consumirá a glória da sua floresta e do seu campo fértil, desde a alma até
ao corpo». Daniel (Dn 7:15, RC) diz: «Quanto a mim, Daniel, o meu
espírito foi abatido dentro do corpo». Nosso Senhor (Mt 6:25) manda a
seus discípulos que não se preocupem com seu corpo; e, outra vez mais
(Mt 10:28), «não temais os que matam o corpo e não podem matar a
alma; temei, antes, aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma
como o corpo corpo». Esta é a constante descrição das Escrituras: O
corpo e a alma são apresentadas como substâncias distintas, e as duas
juntas como constitutivas do homem inteiro.
(2) Há uma segunda classe de passagens igualmente decisivas a
respeito deste ponto. Consiste daquelas em que o corpo é descrito como
uma vestimenta que deve ser lançada de lado; um tabernáculo ou casa
em que mora a alma, que pode deixar e ao qual voltar. Paulo, numa
determinada ocasião, não sabia se estava no corpo, ou fora do corpo.
Pedro disse que considerava oportuno, enquanto estava neste
tabernáculo, lembrar a seus irmãos a verdade, «sabendo», diz ele, «que é
iminente o abandono de meu tabernáculo» (2Pe 1:14, gr.). Paulo diz, em
2Co 5:1 - «Sabemos que, se a nossa casa terrestre deste tabernáculo se
desfizer, temos da parte de Deus um edifício, casa não feita por mãos,
eterna, nos céus». Neste mesmo contexto fala de ser despidos e
revestidos com nossa casa que é do céu, e de estar ausentes do corpo e
presentes com o Senhor, sabendo que enquanto estamos no corpo
estamos ausentes do Senhor. Aos Filipenses (Fp 1:23, 24) diz ele: «Ora,
e um e outro lado, estou constrangido, tendo o desejo de partir e estar
com Cristo, o que é incomparavelmente melhor. Mas, por vossa causa, é
mais necessário permanecer na carne».
(3) É a crença comum da humanidade, tal como está claramente
revelada na Bíblia, e é parte constitutiva da fé da Igreja universal, que a
alma pode existir e existe, e que age depois da morte. Se é assim, então o
corpo e a alma são duas substâncias distintas. O primeiro pode ficar
desorganizado, reduzido ao pó, disperso ou inclusive aniquilado, e a
segunda manter sua vida e atividade conscientes. Esta doutrina foi
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
76
ensinada no Antigo Testamento, onde os mortos são descritos como
habitando no Sheol, de onde apareciam ocasionalmente, como Samuel a
Saul. Nosso Senhor diz que Deus não é Deus dos mortos, mas dos vivos;
e ao declarar-se como Deus de Abraão, Isaque e Jacó demonstra que
Abraão, Isaque e Jacó estão agora vivos. Moisés e Elias conversaram
com Cristo no Monte. Nosso Senhor disse ao ladrão moribundo: «Hoje
estará» (de uma maneira consciente) «comigo no Paraíso». Paulo, como
acabamos de ver, desejava estar ausente do corpo e presente com o
Senhor. Ele sabia que sua existência pessoal consciente devia ser
continuada depois da dissolução de seu corpo. É desnecessário insistir
neste ponto, porquanto a existência da alma em plena consciência e
atividade fora do corpo e no intervalo entre a morte e a ressurreição não
é negada por nenhuma Igreja Cristã. Mas se isto é assim, demonstra-se
com isso claramente que a alma e o corpo são duas substâncias distintas,
de maneira que a primeira pode existir independentemente da segunda.
Relação da alma com o corpo.
Assim, o homem, segundo as Escrituras, é um espírito criado em
união vital com um corpo material organizado. Reconhece-se que a
relação entre estes dois constituintes de nossa natureza é um mistério.
Isto é, trata-se de algo incompreensível. Não sabemos como o corpo age
sobre a mente, nem como a mente age sobre o corpo. Mas os seguintes
fatos são claros:
(1) Que a relação entre os duas é uma união vital, no sentido de que
a alma é a fonte de vida para o corpo. Quando a alma deixa o corpo, este
deixa de viver. Perde sua sensibilidade e atividade, e se torna ao mesmo
tempo sujeito às leis químicas que governam a matéria desorganizada, e
por sua operação das mesmas logo fica reduzido a pó, indistinguível da
terra da qual foi originalmente tomado.
(2) É um fato da consciência de que certos estados do corpo
produzem estados correspondentes da mente. A mente toma
conhecimento de, ou é consciente de, as impressões produzidas por
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
77
objetos externos sobre os órgãos dos sentidos pertencentes ao corpo. A
mente vê, a mente ouve, a mente sente, não de maneira direta nem
imediata ao menos em nosso estado presente normal, senão por meio
dos apropriados órgãos do corpo. É também assunto de experiência
diária que uma condição sadia do corpo é necessária para uma condição
sadia da mente; que certas doenças ou certas desordens do primeiro
produzem perturbações nas operações da segunda. As emoções da mente
afetam o corpo; a vergonha provoca rubor nas bochechas; a alegria faz
com que o coração palpite e que os olhos resplandeçam. Um golpe na
cabeça faz inconsciente a mente: isto é, faz com que o cérebro fique
incapacitado como instrumento de sua atividade; e uma condição doente
do cérebro pode causar uma ação irregular na mental como a insânia.
Tudo isto é incompreensível, mas é inegável.
(3) Também é um fato da consciência que enquanto que certas
operações do corpo são independentes da ação voluntária e consciente da
mente, como os processos de respiração, digestão, secreção, assimilação.
etc., há certas ações que são dependentes da vontade. Podemos querer
mover-nos; podemos exercer a força muscular em maior ou menor grau.
É melhor admitir estas simples realidades da consciência e da
experiência, e confessar que enquanto que demonstram uma união íntima
e vital entre a mente e o corpo, não nos capacitam a compreender a
natureza desta união, antes que recorrer a teorias arbitrárias e
imaginativas que negam estes fatos porque não podem explicá-los. Isto o
fazem os que defendem a doutrina das causas ocasionais, que nega toda
ação da mente sobre o corpo ou do corpo sobre a mente, mas atribui tudo
à ação imediata de Deus. Um certo estado da mente é [com base nesta
teoria] a ocasião em que Deus produz uma certa impressão sobre a
mente. A doutrina de Leibnitz de uma harmonia preestabelecida é
igualmente insatisfatória. Ele negou que uma substância pudesse agir
sobre outra de uma classe diferente; que a matéria pudesse agir sobre a
mente, ou vice-versa; que a matéria pudesse agir sobre a mente ou a
mente sobre a matéria. Ele propôs explicar a correspondência admitida
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
78
entre os variados estados da uma e da outra sobre a hipótese de uma
disposição prévia. Deus ordenou antecipadamente que a mente tivesse a
percepção de uma árvore sempre que uma árvore se apresentasse diante
do olho, e que o braço se movesse sempre que a mente tivesse uma
volição para mover-se. Mas negou toda relação causal entre estas duas
séries de acontecimentos.
Dualismo realista
A doutrina escriturística da natureza do homem como um espírito
criado em união vital com um corpo organizado, que portanto consiste
de dois, e só dois, elementos ou substâncias distintivas, é de grande
importância. Está intimamente conectada com algumas das mais
importantes doutrinas da Bíblia; com a constituição da pessoa de Cristo
e, por conseguinte, com a natureza de Sua obra redentora e de Sua
relação com os filhos dos homens; com a doutrina da Queda, do pecado
original, e da regeneração; e com as doutrinas de um estado futuro e da
ressurreição. É devido a esta conexão, e não devido a seu interesse como
uma questão em psicologia, que a verdadeira ideia do homem demanda a
cuidada investigação do teólogo.
A doutrina anteriormente enunciada, como a doutrina das Escrituras
e da Igreja, recebe a designação apropriada de dualismo realista. Isto é,
declara a existência de duas distintas res, entidades ou substâncias; uma
com extensão, tangível e divisível, o objeto dos sentidos; e a outra não
estendida e indivisível, o sujeito pensante, o sentimento e pensamento do
homem. Esta doutrina se levanta em oposição ao materialismo e ao
idealismo, que embora sejam sistemas antagonistas em outros respeitos,
concordam na ligação de todo dualismo de substância. O primeiro faz da
mente uma função do corpo; o outro faz do corpo uma forma da mente.
Mas segundo as Escrituras e toda a mais sã filosofia, nem o corpo é,
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
79
72
como diz Delitzsch, um precipitado da mente, nem a mente é uma
sublimação da matéria.
A doutrina escriturística do homem é naturalmente oposta à velha
doutrina pagã que se representa como a forma em que a natureza, der
Naturgeist, el anima mundi, chega à consciência de si mesma; e também
à doutrina panteísta mais estendida segundo a qual os homens são as
mais elevadas manifestações do singular princípio universal de ser e
vida; e à doutrina que representa o homem como a união do impessoal,
da razão universal ou λόγος - logos, com uma organização corpórea viva.
Segundo esta visão recém-mencionada, o homem consiste do corpo
(σῶμα - soma), alma (ψυχή - psuche) e λόγος - logos, ou a razão
impessoal. Isto é algo muito semelhante à doutrina apolinária quanto à
constituição da pessoa de Cristo, aplicada a toda a humanidade.
§ 2. Tricotomia.
É de maior importância observar que a doutrina escriturística opõese à Tricotomia, ou doutrina de que o homem consiste de três substâncias
distintas, corpo, alma e espírito, σῶμα - soma, ψυχή - psuche, y πνεῦμα pneuma; corpus, anima, e animus. Esta visão da natureza do homem é da
maior importância para o teólogo porque não só foi sustentada em maior
ou menor grau na Igreja, mas também porque influenciou em sumo grau
a forma em que foram apresentadas outras doutrinas, e porque tem uma
certa aparência de ser sustentada pelas próprias Escrituras. Esta doutrina
foi mantida em diferentes formas. A mais simples e mais inteligível, e a
mais usualmente adotada, é que o corpo é a parte material de nossa
constituição; a alma, ou ψυχή - psuche, é o princípio da vida animal; e a
mente, ou πνεῦμα - pneuma, o princípio de nossa vida racional e imortal.
Quando uma planta morre, sua organização material fica dissolvida, e o
princípio de vida vegetativa que continha desaparece. Quando morre um
72
Biblische Psychologie, p. 64.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
80
bruto, seu corpo volta ao pó, e a ψυχή - psuche, ou princípio de vida
animal com que estava animada, desvanece-se. Quando um homem
morre, seu corpo volta para a terra, seu ψυχή - psuche deixa de existir, e
só fica seu πνεῦμα - pneuma até que fica reunido com seu corpo na
ressurreição. Ao πνεῦμα - pneuma, que é peculiar do homem, pertencemlhe a razão, a vontade e a consciência. A ψυχή - psuche que temos em
comum com os brutos pertencem o entendimento, os sentimentos e a
sensibilidade, ou capacidade de percepção sensorial. Ao σῶμα - soma
pertence o que é puramente material. 73 Segundo outra visão da questão, a
alma não é nem o corpo nem a mente; nem tampouco uma subsistência
distinta, mas é a resultante da união do πνεῦμα - pneuma e do σῶμα soma. 74 Ou, segundo Delitzsch, 75 há um dualismo de ser no homem, mas
uma tricotomia de substância. Ele distingue entre ser e substância, e
mantém (1) que espírito e alma (πνεῦμα - pneuma e ψυχή - psuche) não
são seres distintos, mas sim substâncias distintas. Diz que a alma vivente
(‫)נֶפֶשׁ חַי‬, mencionada na história da criação não é o compositum
resultante da união de espírito e corpo, de modo que os dois constituíram
ao homem, mas sim que se trata de um tertium quid, uma terceira
substância que pertence à constituição de sua natureza. (2) Mas, em
segundo lugar, este terceiro princípio não pertence ao corpo; não são os
mais elevados atributos ou funções do corpo, mas sim pertence ao
espírito, e é produzido por ele. Sustenta a mesma relação com ele que o
alento com o corpo, ou a efulgência com a luz. Diz que o ψυχή - psuche
(alma) é o ἀπαύγασμα - apaugasma do πνεῦμα - pneuma e o vínculo de
sua união com o corpo.
73
August Rahn, Lehrbuch des christlichen Glaubens, pág. 324.
Göschel in Herzog's Encyklopädie, Article “Seele.”
75
Biblische Psychologie, § 4, p. 128.
74
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
81
A Tricotomia é antiescriturística.
Em oposição a todas as formas de tricotomia, ou a doutrina de uma
tríplice substância na constituição do homem, deve-se observar: (1) Que
se opõe ao relato da criação do homem tal como aparece em Gn 2:7.
Segundo este relato, Deus formou o homem do pó da terra, e soprou nele
o fôlego de vida, e ele veio a ser alma vivente (‫)נֶפֶשׁ חַי‬, isto é, um ser
em quem há uma alma vivente. Neste relato não há indicação alguma
exceto que o corpo material formado da terra e o princípio vivente
derivado de Deus.
(2) Esta doutrina (tricotomia) está oposta ao uso uniforme da
Escritura. Bem longe de distinguir entre nephesh (ׁ‫)נֶפֶש‬, ψυχή - psuche,
anima, ou alma, de ruach (‫)רו ַּח‬, πνεῦμα - pneuma, animus, ou mente
como ou originalmente diferente, ou derivada dela, estas palavras
designam todas uma e a mesma coisa. São constantemente
intercambiáveis. Uma toma o lugar da outra, e tudo o que se pregue ou
que se possa pregar de uma, prega-se da outra. O hebraico nephesh
(ׁ‫)נֶפֶש‬, e o grego psuche significam alento, vida, o princípio de vida;
aquilo em que reside a vida, toda a vida do sujeito mencionado. O
mesmo sucede com ruach (‫ )רו ַּח‬e πνεῦμα - pneuma; também estes
significam alento, vida, e princípio vivente. Por isso, as Escrituras falam
do nephesh (ׁ‫ )נֶפֶש‬ou ψυχή - psuche não só como aquilo que vive ou que
é o princípio da vida do corpo, mas também como aquilo que pensa e
que sente, que pode salvar-se ou perder-se, que sobrevive ao corpo e é
imortal. A alma é o próprio homem, aquilo em que residem sua
identidade e personalidade. É o Ego. não há no homem nada mais
elevado que a alma. Por isso é que se emprega com tanta frequência
como sinônimo do eu. Todas as almas são todos os homens; minha alma
é meu eu; sua alma é ele. O que dará um homem em troca de sua alma?
É a alma a que peca (Lv 4:2). É a alma a que ama a Deus. Somos
ordenados a amar a Deus, ἐν ὅλῃ τῇ ψυχῇ - en holei tei psuchei. [Com
toda a alma]. Da esperança diz-se que é a âncora da alma, e a palavra de
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
82
Deus é poderosa para a salvação da alma. Afirma-se que o fim de nossa
fé é (1Pe 1:9) a salvação de nossas almas; e João (Ap 6:9; 20:4) viu no
céu as almas dos que tinham sido mortos pela palavra o Deus. Por tudo
isto é evidente que a palavra ψυχή - psuche, ou alma, não designa a mera
parte animal de nossa natureza, e não é uma substância diferente de
πνεῦμα - pneuma, ou espírito.
(3) Uma terceira observação a fazer a respeito desta questão é que
todas as palavras anteriormente mencionadas, nephesh (ׁ‫)נֶפֶש‬, ruach
(‫ )רו ַּח‬e neshamah no hebraico, ψυχή - psuche e πνεῦμα - pneuma em
grego, e alma e espírito em português, empregam-se nas Escrituras de
maneira indiscriminada para homens e animais irracionais. Se a Bíblia
atribuísse só um ψυχή - psuche aos brutos, e ambos ψυχή - psuche e
πνεῦμα - pneuma ao homem, haveria uma certa base para supor que os
dois são essencialmente distintos. Mas não é assim. O princípio que vive
no bruto chama-se tanto nephesh (ׁ‫ )נֶפֶש‬e ruach (‫)רו ַּח‬, ψυχή - psuche e
πνεῦμα - pneuma. Este principio da criação animal é irracional e mortal,
no homem é racional e imortal. “Quem sabe se o fôlego de vida dos
filhos dos homens se dirige para cima e o dos animais para baixo, para a
terra?” (Ec 3:21). A alma da besta é o princípio imaterial que constitui
sua vida, e que está dotado de sensibilidade, e com a medida da
inteligência que experimenta demonstra que os animais inferiores
possuem. A alma no homem é um espírito criado de uma ordem
superior, que não só tem os atributos de sensibilidade, memória e
instinto, mas também as autoridades superiores que pertencem à nossa
vida intelectual, moral e religiosa. Igualmente nos brutos não é uma
substância que sente e outra que lembra; pelo que não é uma substância
no homem que é objeto de sensações, e outra substância que tenha a
intuição de verdades necessárias, e que está dotado de consciência e com
o conhecimento de Deus. Os filósofos falam do mundo da consciência
ou do conhecimento imediato que temos do que está fora de nós; da
autoconsciência, ou o conhecimento do que está dentro de nós; e da
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
83
consciência de Deus ou nosso conhecimento e sentido de Deus. Todos
eles pertencem a uma e a mesma substância imaterial e racional.
(4.) É justo fazer uma chamada ao testemunho da consciência sobre
este tema. Somos conscientes de nosso corpo e somos conscientes de
nossas almas, quer dizer, dos exercícios e dos estados de cada um, mas
ninguém é consciente da ψυχή - psuche diferente do πνεῦμα - pneuma,
da alma como diferente do espírito. Em outras palavras a consciência
revela a existência de duas substâncias na constituição de nossa natureza;
mas não revela a existência de três substâncias, e portanto a existência de
mais de duas não pode racionalmente ser assumido.
Explicação de passagens duvidosas.
(5.) As passagens das Escrituras que se citam como favoráveis à
doutrina oposta podem-se explicar todas de forma consistente com as
atuais representações da Escritura sobre o tema. Quando Paulo diz aos
Tessalonicenses (1Ts 5:23, BJ): “O Deus da paz vos conceda santidade
perfeita; e que o vosso ser inteiro, o espírito, a alma e o corpo sejam
guardados de modo irrepreensível para o dia da Vinda de nosso Senhor
Jesus Cristo”, ele só utiliza uma perífrase para todo o homem. Como
quando em Lucas 1:46, 47, a virgem diz: “A minha alma engrandece ao
Senhor, e o meu espírito se alegrou em Deus, meu Salvador,” alma e
espírito nesta passagem não significam coisas diferentes. E quando
somos ordenados que “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu
coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu
entendimento” (Lc 10:27), porque não temos uma enumeração de tantas
substâncias distintas. Tampouco se distingue entre a mente e o coração
como entidades separadas, quando oramos para que ambas possam ser
iluminadas e santificadas; queremos dizer simplesmente a alma em todos
os seus aspectos ou faculdades. Outra vez em Hb. 4:12, o Apóstolo diz
que a palavra de Deus penetra até a divisão da alma e o espírito, das
juntas e as medulas. Não se supõe aí que a alma e o espírito sejam
substâncias diferentes. As juntas e as medulas não são diferentes
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
84
substâncias: Ambas as coisas são materiais; são formas diferentes da
mesma substância. Da mesma maneira alma e espírito são uma e a
mesma substância sob diferentes aspectos ou relações. Podemos dizer
que a palavra de Deus alcança não só os sentimentos, mas também a
consciência, sem assumir que o coração e a consciência sejam entidades
diferentes. Muito menos é tal distinção implícita em Fp. 1:27 [Versão
Jünemann]: “que vos afirmais num espírito (ἐν ἑνὶ πνεύματι), uma alma
(μιᾷ ψυχῇ).”
Há mais dificuldade para explicar 1Co 15:44. O Apóstolo não
distingue entre o σῶμα ψυχικόν e o σῶμα πνευματικόν; o primeiro é
aquele em que o ψυχή - psuche é o princípio vital, e este último que, em
que o πνεῦμα - pneuma é o princípio da vida. Um temos aqui, outros têm
de ter daí em diante. Isto parece implicar que o ψυχή - psuche existe
nesta vida, mas não é a existência do além, e portanto que os dois são
separáveis e distintos. Nesta explicação poderia aceitar-se se não
contradizem as representações gerais das Escrituras. Estamos obrigados,
portanto, a buscar outra explicação que harmonizará com outras porções
da Palavra de Deus. O significado geral do apóstolo é claro. Agora temos
órgãos brutos, perecíveis, e desonrosos, ou feios. Depois vamos ter
corpos gloriosos, adaptados a um estado superior de existência. A única
pergunta é: Por que ele chama um psíquico, e o outro pneumático?
Devido ao fato de que a palavra ψυχή - psuche, embora com frequência
usada para a alma como racional e imortal, é também usada para a forma
inferior de vida que pertence aos animais irracionais. Nossos corpos
futuros não devem adaptar-se aos princípios de nossa natureza que temos
em comum com os brutos, exceto aqueles que são próprios a nós como
homens, criados à imagem de Deus. A própria alma humana individual
tem certas suscetibilidades e faculdades que a adaptam ao estado
presente de existência, e a casa terrestre em que agora habita. Tem
apetites animais e necessidades. Tem fome e sede. Precisa dormir e
descansar. Mas a própria alma tem poderes mais elevados. O corpo
terrestre se ajusta à sua condição terrena; o corpo celeste a seu estado
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
85
celestial. Não há duas substâncias ψυχή - psuche e πνεῦμα - pneuma, há
antes, uma e a mesma substância com diferentes suscetibilidades e
faculdades. Neste mesmo sentido, Paulo diz: A carne e o sangue não
podem herdar o reino dos céus. Entretanto, nossos corpos hão de herdar
esse reino, e nossos corpos são de carne e osso. O mesmo princípio
material agora constituído como carne e sangue vai ser mudado quanto a
ser como o corpo glorioso de Cristo. Como esta representação não
demonstra uma diferença substancial entre o organismo que agora é e o
que há de ser depois, assim nem o que diz o Apóstolo do σῶμα ψυχικόν
e o σῶμα πνευματικόν prova que o ψυχή - psuche e πνεῦμα - pneuma
são substâncias distintas.
Esta doutrina de uma constituição tripartida do homem sendo
adotada por Platão, foi introduzida parcialmente na Igreja primitiva, mas
logo veio a ser considerado como perigosa, se não herética. Se os
gnósticos mantêm que o πνεῦμα - pneuma no homem era uma parte da
essência divina, e incapaz de pecado; e pelos apolinarianos que Cristo
tinha só um σῶμα e ψυχή humano, mas não um πνεῦμα humano, a Igreja
rejeita a doutrina de que ψυχή - psuche e πνεῦμα - pneuma eram
substâncias distintas, visto que nisso aquelas heresias foram fundadas.
Em épocas posteriores os semipelagianos ensinaram que a alma e o
corpo, mas não o espírito no homem foram as vítimas do pecado
original. Todos os protestantes, luteranos e reformados, eram, portanto,
os mais zelosos em manter que a alma e o espírito, ψυχή - psuche e
πνεῦμα - pneuma, são uma e a mesma substância e essência. E isto,
como antes se disse, foi a doutrina comum da Igreja. 76
76
See G. L. Hahn, Theologie des N. T. Olshausen, De Trichotomia Naturæ Humanæ, e Novi
Testamenti Scriptoribus recepta. Ackermann, Studien und Kritiken, 1839, p. 889. R. T. Beck. Umriss
d. biblischen Seelenlehre, 1843.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
§ 3. Realismo.
86
Seu caráter geral.
Ainda há outro ponto de vista da natureza do homem que, desde sua
ampla e prolongada influência, demanda consideração. De acordo com
este ponto de vista, o homem se define como a manifestação do princípio
geral da humanidade em união com uma organização corporal
determinada. Esta visão foi levada a cabo em diversas formas que aqui
não pode ser discutido separadamente. É só a teoria em seus aspectos
mais gerais, ou na forma em que se apresentou habitualmente que nossos
limites nos permitem examinar. Necessariamente se supõe que a
humanidade, a natureza humana como um princípio geral de uma forma
de vida, existe antecedentemente (quer seja cronologicamente ou
logicamente) aos homens individuais. “Na ordem da natureza,” diz o Dr.
Shedd, “a humanidade existe antes das gerações da humanidade; a
natureza é anterior aos indivíduos produzidos fora dela.” 77 Existe,
também, de maneira independente e fora deles. Como o magnetismo é
uma força na natureza existente anteriormente, de maneira independente,
e fora de qualquer e todos os ímãs individuais; e como a eletricidade,
existe com independência das garrafas de Leyden em que se poderão
obter ou através da qual se manifesta na atualidade; como o galvanismo
existe independentemente de qualquer e todas as pilhas galvânicas; assim
a humanidade existe anteriormente aos homens individuais e
independentemente deles. Como um ímã individual é uma dada peça de
ferro maleável em que a força magnética está presente e ativa, e como
uma garrafa de Leyden é simplesmente um frasco coberto em que a
eletricidade está presente, assim um homem individual é uma
organização corporal dada em que a humanidade como uma vida em
geral ou a força está presente.
77
History of Christian Doctrine, vol. II. p. 77.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
87
À pergunta qual é a natureza humana ou a humanidade
genericamente considerada, há diferentes respostas dadas. Diz-se que é
um res, uma essência, uma substância, uma existência objetiva real. É
algo que existe no tempo e no espaço. Este é o modo comum da
declaração. A polêmica entre realistas e nominalistas, em sua forma
original e autêntica, voltou-se sobre este ponto. A questão que para as
idades ocupou em tão grande medida a atenção de todos os filósofos, era:
Quais são as proposições universais? Quais são os gêneros e espécies?
Quais são os termos gerais? São só palavras? São ideias ou concepções
que existem na mente? São as coisas expressas por termos gerais
existências objetivas verdadeiras? Existem só os indivíduos, de modo
que as espécies e o gênero são só as classes de indivíduos da mesma
classe, ou os indivíduos são só revelações ou individualizações de uma
substância em geral que é a espécie ou gênero? De acordo com os
realistas anteriores e genuínos, e segundo os filósofos especulativos
modernos, a espécie ou gênero são primeiros, independentes e externos
ao indivíduo. O indivíduo é só “um modus existendi posterior; modo
primeiro e antecedente [no caso do homem] é a humanidade genérica da
qual este modo de série posterior é só outro aspecto ou manifestação.” 78
Precisamente, como acaba de dizer, como o magnetismo é anterior
ao ímã. O ímã é só uma peça individual de ferro em e através da qual o
magnetismo genérico se manifesta. Assim, o realista, diz, “Etsi
rationalitas non esset in aliquo, tamen in natura remaneret.” 79 Cousin cita
a queixa de Anselmo contra Roscelin e outros nominalistas, “de ne pas
comprendre comment plusieurs hommes ne sont qu’un seul et même
homme, — nondum intelliget quomodo plures homines in specie sint
unus homo.” 80 A doutrina de seu “Monologium” e “Proslogium” e
“Dialogus de veritate”, Cousin diz, é “que non-seulement il y a des
individus humains, mais qu’il y a en autre le genre humain, l’humanité,
78
Shedd's Essays Boston, 1867, p. 259, note, and his History of Christian Doctrine. vol. II. p. 77.
Cousin, Fragments Philosophiques, Paris 1840, p. 167.
80
Cousin's Fragments Philosophiques, Paris, 1840, p. 146.
79
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
88
qui est une, comme il admettait qu’il y a un temps absolu que les durées
particulières manifestent sans le constituer, une vérité une et subsistante
par elle-même, un type absolu du bien, que tous les biens particuliers
supposent et réfléchissent plus ou moins imparfaitement.” 81 Ele cita a
Abelardo como afirmando a doutrina a que ele se opôs, com as seguintes
palavras: “Homo quædam species est, res una essentialiter, cui adveniunt
formæ quædam et efficiunt Socratem: illam eamdem essentialiter eodem
modo informant formæ facientes Platonem et cætera individua hominis;
nec aliquid est in Socrate, præter illas formas informantes illam
materiam ad faciendum Socratem, quin illud idem eodem tempore in
Platone informatum sit formis Platonis. Et hoc intelligunt de singulis
speciebus ad individua et de generibus ad species.” 82 Segundo uma
teoria, “les individus seuls existent et constituent 1’essence des choses;”
according to the other, “1’essence des individus est dans le genre auquel
ils se rapportent; en tant qu’ individus ils ne sont que des accidents.” 83
Tudo isto está suficientemente claro. O que constitui a espécie ou
gênero é uma existência objetiva verdadeira, uma só substância e a
mesma numericamente, assim como em particular. Esta única substância
geral existe em cada indivíduo pertencente à espécie, e que constitui sua
essência. O que é peculiar à pessoa, e que o distingue de outros
indivíduos da mesma espécie, é puramente acidental. Esta substância
única da humanidade, que se revela ou se manifesta em todos os homens,
e que constitui os homens, “possui todos os atributos da pessoa humana;
porque o indivíduo é só uma parte e exemplar da natureza. Considerada
como uma essência, a natureza humana é uma essência inteligente,
racional e voluntária, e em consequência sua agência em Adão participa
das qualidades correspondentes.” 84 “Agência,” entretanto, supõe “um
agente, e como o pecado original não é o produto do agente individual,
81
Ibidem.
Ibid. p. 167.
83
Ibid. p. 171.
84
Shedd, History of Christian Doctrine, vol. II. p. 78.
82
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
89
porque aparece no nascimento, deve-se a que se refere ao agente
genérico, — quer dizer, à natureza humana diferente da pessoa humana
ou individual.” 85
Humanidade genérica.
O que Deus criou, portanto, não era um homem individual, mas sim
a espécie homo, ou a humanidade genérica, — uma essência inteligente,
racional e voluntária; os homens individuais são as manifestações desta
substância numérica e especificamente uma e a mesma, com relação a
suas várias organizações corporais. Suas almas não são essências
individuais, mas sim uma essência comum revelada e agindo em muitos
organismos diferentes.
Esta resposta à pergunta proposta acima – que a natureza humana
genericamente considerada, que a converte numa essência ou substância
comum a todos os indivíduos da raça – é a mais comum e a mais
inteligível. Os homens de ciência adotam uma fraseologia um pouco
diferente. Em lugar de substâncias, eles falam de forças. A natureza se
define como a soma das forças que operam no mundo exterior. O
oxigênio é uma força; magnetismo, eletricidade, etc., são forças. “Uma
espécie é. . . . sobre a base de uma quantidade específica ou condição da
força concentrada, definida no ato ou lei de criação.” 86 A humanidade,
ou a natureza humana, é a soma das forças que constituem o homem no
que é. A unidade da raça consiste no fato de que estas forças são
numericamente como especificamente a mesma em todos os indivíduos
que a compõem.
Os teólogos alemães, em particular os da escola de Schleiermacher,
utilizam os termos vida, lei e lei orgânica. A natureza humana é uma
vida genérica, quer dizer, uma forma de vida que se manifesta numa
multidão de indivíduos do mesmo tipo. No indivíduo não é distinto ou
85
86
Ibid. p. 80.
Professor James D. Dana, Bibliotheca Sacra, 1857, p. 861.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
90
diferente do que é no gênero. É a mesma lei orgânica. Um carvalho só
pode produzir outros dez mil carvalhos, mas o bosque inteiro é tanto uma
unidade interior orgânica como qualquer árvore.
Estas fórmulas podem ser convenientes para evitar a necessidade de
circunlóquios, e expressam uma classe de fatos, mas não dão uma ideia
definida além dos próprios fatos. Dizer que um bosque inteiro de
carvalhos têm a mesma vida genérica, que são tão verdadeiramente um
como qualquer árvore é uma, significa simplesmente que a natureza é a
mesma em todos, e que todos foram obtidos de uma fonte comum. E
dizer que a humanidade é uma unidade, porque tem a mesma vida
genérica, e são todos descendentes de um antepassado comum, quer seja
não significa nada mais que isso todos os homens são da mesma espécie,
quer dizer, que a humanidade é precisamente a mesma em todas as
espécies ou significa tudo o que é da parte daqueles que ensinam que os
gêneros e espécies, as substâncias das quais o indivíduo é o mero modus
existendi. Como agência implica um agente, assim a força, que é a
manifestação de poder, supõe algo, um sujeito ou uma substância em que
o poder reside. Nada, uma não-existência, não pode ter poder e não
manifestam a força. Força, necessariamente, supõe uma substância da
que é a manifestação. Portanto, se as forças forem numericamente a
mesma, a substância deve ser numericamente a mesma. E, em
consequência, se a humanidade for uma determinada quantidade e tipo
de força concentrados, numericamente e não só especificamente os
mesmos em todos os homens, então são os homens ὁμοούσιοι, partícipes
de uma e a mesma essência e idêntica. As mesmas observações se
aplicam ao termo vida. A vida é um predicado, não uma essência. Supõe
um sujeito do qual é previsível. Não pode haver vida a menos que algo
vive. Não é uma coisa em si. Se, portanto, a vida genérica do homem
significa algo mais que o mesmo tipo de vida, deve significar que o que
vive em todos os homens é identicamente a mesma substância numérica.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
91
Objeções ao Realismo.
De acordo com a doutrina comum, a alma de cada homem é um
subsistência individual, da própria natureza, mas não da mesma
substância numérica como as almas de seus semelhantes, pelo que os
homens são ὁμοι-, mas não ὁμοούσιοι. Em apoio desta opinião, e em
oposição à doutrina de que “todos os homens são um só homem”, ou que
a natureza humana é numericamente uma e a mesma essência da qual os
homens individuais são os modos de manifestação, pode-se notar, —
1. Que a doutrina última é uma mera hipótese filosófica. É uma
simples hipótese baseada no que é possível. É possível que a doutrina em
questão possa ser verdadeira. Assim que em si mesmo é possível que
haja uma anima mundi, um princípio imanente da vida no mundo, dos
quais todos os organismos vivos são as diferentes manifestações; de
maneira que todos os vegetais, todos os animais, e o próprio homem, não
são senão formas diferentes de uma e a mesma substância numérica viva,
assim como as ondas numerosas do mar em toda sua infinita diversidade
de tamanho, forma e matiz, não são senão as balizas de um só e o mesmo
vasto oceano. Da mesma maneira é possível que todas as formas de vida
devem ser só as diversas manifestações da vida de Deus. Isto não só é
possível, mas também é uma ideia tão simples e grandiosa que fascinou a
mente dos homens em todas as idades, de modo que a hipótese que
prevalece dos filósofos quanto à constituição do universo foi, e continua
sendo, panteísta. Entretanto, o panteísmo é demonstravelmente falso,
porque contradiz as convicções intuitivas de nossa natureza moral e
religiosa. Não basta, portanto, que uma teoria seja possível ou
imaginável. Deve contar com o apoio da prova positiva.
2. Tal prova da doutrina que se examina não se encontra na Bíblia.
É simplesmente uma hipótese em que certos fatos das Escrituras podem
ser explicados. Todos os homens são iguais, têm as mesmas faculdades,
os mesmos instintos e paixões, e todos eles são nascidos em pecado.
Estes e outros fatos similares admitem uma explicação fácil no suposto
de que a humanidade é numericamente uma e a mesma substância da
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
92
qual os indivíduos são tão somente manifestações diferentes; assim como
milhares de ímãs diferentes revelam a força magnética que é a mesma
em todos, e portanto todos os ímãs são iguais. Mas à medida que os fatos
mencionados podem ser explicados por outras diferentes suposições,
quando não podem oferecer nenhuma prova desta teoria em particular.
Não se pretende que a Bíblia ensina diretamente a doutrina em questão.
Tampouco ensina sobre tudo o que requer sua adoção. Pelo contrário,
ensina muitas coisas que são irreconciliáveis com isso.
O Realismo não é apoiado pela consciência.
3. A hipótese sob consideração não recebe nenhum apoio da
consciência. Somos conscientes de nossa própria existência. Estamos
(num sentido) conscientes da existência de outros homens. Mas não
somos conscientes de uma comunidade de essência de nós mesmos e
todos os outros homens. Até o momento de que isto seja a interpretação
comum que os homens põem em sua consciência, é diametralmente
oposto à mesma. Cada homem crê que sua alma é uma substância
distinta, individual, tanto como ele crê que seu corpo é distinto e
separado de todo corpo humano. Tal é a opinião comum dos homens. E
nada menos que a afirmação direta da Bíblia, ou os argumentos que
sobem à demonstração, podem racionalmente ser admitidos para
invalidar tal juízo. É inconcebível que todo o concernente à constituição
de nossa natureza tão transcendental em suas consequências, deve ser
verdade, que de algum modo não se revela na consciência comum dos
homens. Não há nada mais característico das Escrituras, e há poucas
coisas que mais claramente demonstram sua origem divina, que ela dá
por sentado e autentica todos os atos da consciência. Declara que somos
o que se revela a nós mesmos como na própria constituição e o estado
atual de nossa natureza. Reconhece a alma como racional, livre e
responsável. Assume que é distinta do corpo. Tudo isto o sabemos pelo
conhecimento. Mas não sabemos que a essência ou substância de nossa
alma é numericamente a mesma que a substância das almas de todos os
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
93
homens. Se a Bíblia ensina tal doutrina ela ensina algo que está fora dos
ensinos da consciência, e algo ao que esses ensinos, na opinião da grande
maioria dos homens, inclusive os mais ilustrados, opõem-se diretamente.
O Realismo é contrário aos ensinos da Escritura.
4. As Escrituras não só não ensinam a doutrina em questão, mas
também ensinam o que é incompatível com ela. Já vimos que é uma
doutrina claramente revelada da Bíblia, e parte da fé da Igreja universal,
que a alma continua existindo depois da morte como uma pessoa
autoconsciente, individual. Este fato é incompatível com a teoria em
questão. Uma dada planta é uma organização material, animada pelo
princípio geral da vida vegetal. Se à planta se destrói o princípio da vida
vegetal já não existe como planta. Pode existir em outras plantas, mas
essa planta particular deixou de existir quando a organização material se
dissolveu. O magnetismo segue existindo como uma força na natureza,
mas qualquer ímã em particular deixa de ser quando é fundido, ou
volatilizado. Da mesma maneira, se um homem é a manifestação de uma
vida genérica, ou da humanidade como uma essência comum a todos os
homens, então quando o corpo morre, o homem deixa de existir. A
humanidade continua sendo, mas o homem individual já não existe. Esta
é uma dificuldade que alguns dos defensores da teoria deste esforço para
evitar o renunciar ao essencial de sua própria doutrina. Isso seus
defensores genuínos e coerentes admitem em toda sua força. A porção
anticristã deles reconhecem que sua doutrina é inconsistente com a
imortalidade pessoal do homem. A raça, dizem, é imortal, mas os
homens individuais não são. A mesma conclusão é admitida por aqueles
que mantêm as doutrinas panteístas análogas, ou naturalistas. Se um
homem é só o modus existendi, uma forma em que uma substância
comum ou vida se revela, não importa se essa substância é a
humanidade, a natureza, ou Deus, quando a forma, o organismo material,
é destruído, o homem como homem deixa de existir. Os defensores da
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
94
doutrina que se agarram ao cristianismo, embora admitam a dificuldade,
esforçam-se para acabar com ela de maneiras diferentes.
Schleiermacher reconhece que toda a filosofia está contra a doutrina
da existência pessoal do homem num estado futuro. Seu sistema inteiro
leva à negação da mesma. Mas diz que o cristão deve reconhecer a
autoridade de Cristo. Olshausen, em seu comentário sobre o Novo
Testamento, diz, ao explicar 1 Cor. 15:19, 20, e os versículos 42-44, que
a Bíblia não sabe nada da imortalidade da alma. Ele pronuncia isso como
uma ideia pagã.
Uma alma sem corpo perde sua individualidade. Deixa de ser uma
pessoa, e é óbvio, perde a consciência de si e tudo o que está conectado
com ela. Como, entretanto, as Escrituras ensinam que os homens hão de
existir além-túmulo, ele diz que seus corpos também devem seguir
existindo, e a única existência da alma durante o intervalo entre a morte
e a ressurreição, a qual ele admite, está em conexão (quer dizer, união
vital) com as partículas desintegradas do corpo na tumba ou dispersas até
os limites da terra. Esta é uma conclusão a que legitimamente leva sua
doutrina, e que ele é o suficientemente sincero para admiti-lo.
Dr. Nevin, um discípulo de Schleiermacher, tem que lutar com a
mesma dificuldade. Seu livro intitulado “The Mystical Presence,” é a
exposição mais clara e mais capaz da teologia de Schleiermacher, que
apareceu em nossa língua, a menos que a “Philosophy of Religion” de
Morell seja seu igual. Ele nega 87 todo dualismo entre a alma e o corpo.
Eles são “uma vida”. Uma não pode existir sem o outro. Ele admite que
o que a Bíblia ensina da existência separada da alma entre a morte e a
ressurreição, é uma dificuldade “que não é fácil, na atualidade, de
resolver.” Ele não tenta resolvê-lo. Ele só diz que a dificuldade não é
“conciliar a Escritura com uma teoria psicológica, mas sim pô-la em
harmonia consigo mesma.” Isto não é nenhuma solução. Trata-se de uma
admissão virtual que não pode conciliar a Bíblia com sua teoria
87
Página 171.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
95
psicológica. A doutrina de que o homem é um modus existendi de uma
humanidade genérica, ou a manifestação do princípio geral da
humanidade, com relação a uma organização corporal determinada, é
incompatível com a doutrina bíblica da existência separada da alma, e
portanto deve ser falsa.
O Realismo é inconsistente com a doutrina da Trindade.
5. Esta teoria é incompatível com a doutrina bíblica da Trindade.
Requer-se a conclusão de que o Pai, o Filho e o Espírito não são mais um
Deus como Pedro, Tiago e João são um só homem. As pessoas da
Trindade são um só Deus, porque a divindade é uma essência; mas se a
humanidade é uma essência numericamente a mesma em todos os
homens, então todos os homens são um só homem no mesmo sentido
que o Pai, Filho e Espírito Santo são um só Deus. Esta é uma reductio ad
absurdum. É claramente ensinado nas Escrituras e universalmente crido
na Igreja que as pessoas da Trindade são um só Deus num sentido
imensamente mais elevado que aquele em que todos os homens são um
só homem. A diferença precisa é que a essência comum às pessoas da
Trindade é numericamente a mesma, enquanto que a essência comum a
todos os homens é só especificamente a mesma, quer dizer, da própria
natureza, embora numericamente diferentes. A teoria que leva a
conclusão oposta, portanto, deve ser falsa. Não pode ser verdade que
toda a humanidade é uma só essência, substância, ou vida orgânica,
existentes ou que se manifesta numa multidão de pessoas individuais.
Esta é uma dificuldade tão óbvia e fatal de modo que não podia deixar de
atrair a atenção dos realistas em todas as épocas e de todas as classes.
O grande ponto de controvérsia no Concílio de Niceia entre os
arianos e ortodoxos era se as pessoas da Trindade são ὁμοι ou ὁμοούσιοι,
de um semelhante ou da mesma essência. Se ὁμοούσιοι, foi admitido em
ambos os lados que são um só Deus, porque se o mesmo em substância
são iguais em poder e glória. Agora está expressamente afirmado que
nem todos os homens são ὁμοι, e sim ὁμοούσιοι, e portanto, pela
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
96
paridade de raciocínio, eles não constituem um homem no mesmo
sentido que há um só Deus, e todos são iguais em todos os atributos de
sua natureza. 88 É óbvio, admite-se que há um legítimo sentido da palavra
em que todos os homens pode-se dizer que são ὁμοούσιοι, quando por
ὁμός (mesmo) significa-se similar, ou de natureza similar. Neste sentido,
os gregos disseram que os corpos de homens e de outros animais eram
consubstanciais, visto que todos eram de carne; e que anjos, demônios e
as almas humanas, como seres espirituais, são também ὁμοούσιοι. Mas
este não é o sentido em que a palavra é utilizada pelos realistas, quando
se fala quer seja das pessoas da Trindade ou dos homens. Em ambos os
casos a mesma palavra significa a unidade numérica; os homens são da
mesma essência numérica no mesmo sentido em que o Pai e o Filho e o
Espírito são o mesmo em essência. A diferença, segundo se diz, entre os
dois casos não se refere à identidade de essência, que é a mesmo em
ambos, mas antes, encontra-se nisto, que “toda a natureza ou essência
está na pessoa divina, mas a pessoa humana é só uma parte da natureza
humana comum. Geração na Divindade não admite abscisão ou divisão
da substância, mas a geração no caso da criatura implica a separação ou
divisão da essência. Uma pessoa humana é uma porção individualizada
da humanidade.” 89 Entretanto, deve lembrar-se que a humanidade se
declara como uma substância espiritual. O mesmo sucede na natureza
com a alma, que se chama uma porção individualizada da natureza
humana, que possui consciência, razão e vontade. Mas, se é espiritual, é
indivisível. Divisibilidade é uma das principais propriedades da matéria.
Tudo o que é divisível é material. Portanto, se a humanidade, como uma
substância genérica, admite “a abscisão e a divisão,” deve ser material.
Uma parte da razão, um pedaço da consciência, ou um fragmento da
vontade, são contraditórias, ou formas de expressão ininteligíveis. Se a
humanidade é da mesma essência da alma, já não mais admite a divisão
88
89
1
2
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
97
que a alma. Uma parte de uma alma não pode ser santa e outra profana;
uma parte salva e a outra perdida. A objeção à teoria em questão, que faz
com que a relação entre os homens individuais seja idêntica a que existe
entre as pessoas da Trindade, continua sendo, portanto, com toda sua
força. Não se encontraram pela resposta que se acaba de referir, que a
resposta supõe que a mente deva ser estendida e divisível.
O Realismo é inconsistente com o que a Bíblia ensina sobre
a pessoa e a obra de Cristo.
6. É difícil, se não impossível, conciliar a doutrina em questão, com
o que as Escrituras ensinam da pessoa e obra de Cristo. Segundo a
Bíblia, o Filho de Deus fez-se homem, tomando para Si um corpo e uma
alma razoável. De acordo com a doutrina realista, Ele não assumiu uma
alma razoável, mas sim a humanidade genérica. O que é isto, senão toda
a humanidade, da qual, segundo os defensores desta doutrina, os homens
individuais são as porções. A natureza humana como vida genérica, a
humanidade como uma substância, e uma substância inteira, foi tomada
na união pessoal com o Filho de Deus. O Logos Se encarnou na raça.
Esta não é a doutrina da Escritura.
O Filho de Deus fez-se um homem; não todos os homens. Ele
assumiu uma alma racional, não pelo princípio geral da humanidade.
Além disto, é a doutrina daqueles que adotam esta teoria de que a
humanidade pecou e caiu em Adão. A substância racional, moral,
voluntária chamado a natureza humana, é, ou ao menos era um agente. O
pecado de Adão não foi o pecado de um indivíduo, mas sim desta
substância genérica, que por que o pecado converteu-se no tema tanto de
culpa e de depravação. Em razão deste pecado da natureza humana, a
teoria é que todos os homens individuais, em suas sucessivas gerações,
naqueles que se revela a natureza, ou naqueles que, como eles o
expressam, é individualizada, manancial no mundo num estado de culpa
e contaminação. Não nos referimos agora às numerosas e graves
dificuldades relacionados com esta teoria como um método de
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
98
contabilização pelo pecado original. Falamos dela só em sua relação com
a pessoa de Cristo. Se a natureza humana, como uma vida genérica, uma
substância da qual participam todos os homens, converteu-se em culpada
e contaminada pela apostasia; e que a humanidade genérica, diferente de
uma recém-criado e a alma racional santa, foi assumida pelo Filho de
Deus, como podemos evitar a conclusão de que Cristo foi, em Sua
natureza humana, pessoalmente culpado e pecador?
Isto é uma consequência legítima desta teoria. E esta consequência
não só é falsa, mas também uma blasfêmia, a própria teoria deve ser
falsa. Pelo fato de que o princípio de que a humanidade é uma
substância, e todos os homens são ὁμοούσιοι no sentido de tomar parte
da mesma essência numérica, implica consequências destrutivas das
doutrinas bíblicas da Trindade e da pessoa de Cristo, assim poderia
facilmente ser demonstrado que derroca a fé comum das igrejas
protestantes nas doutrinas da justificação, da regeneração, dos
sacramentos, e da Igreja. É suficiente para nosso propósito assinalar que,
como um fato histórico, os defensores consistentes e profundos desta
doutrina ensinam um método de salvação completamente diferente.
Muitos homens adotam um princípio, e não o levam a cabo até suas
últimas consequências legítimas. Mas outros, mais lógicos, ou mais
irresponsáveis, não hesitam em abraçar todos os seus resultados. Nas
obras de Morell e do Dr. Nevin, antes mencionadas, o estudante de
teologia pode encontrar uma pressão implacável de realismo, à derrocada
total da fé protestante, e, pode ser agregado, da fé cristã.
7. Outras objeções a esta teoria pode ser mais apropriadamente
consideradas quando viermos a falar das várias doutrinas às quais se
aplica. Basta à conclusão da presente discussão dizer que o que se diz
que é verdade do gênero homo, supõe-se que é certo de todos os gêneros
e espécies dos mundos animal e vegetal. O indivíduo em todos os casos
supõe-se que é só a manifestação ou modus existendi da substância
genérica. Assim há uma substância bovina, uma eqüina, e uma felina,
havendo uma existência objetiva de que todos os bois, todos os cavalos,
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
99
e todos os animais da raça de gato, são as manifestações. E assim, de
todas as espécies, quer seja de plantas ou animais. Isto é quase
inconcebível. Comparado a esta teoria, a hipótese de um naturgeist, ou
anima mundi, ou de uma substância universal, é a própria simplicidade.
Que tal teoria deve ser estabelecida e feita o fundamento, ou antes, o
princípio controlador de toda a doutrina cristã, é o mais irracional e
perigoso. Esta doutrina realista, até há pouco, foi tão explorada como as
ideias eternas de Platão ou as formas de Aristóteles.
§ 4. Outra forma da teoria realista.
Há, entretanto, outra fase desta doutrina, que é necessário
mencionar. A doutrina de que os gêneros e espécies são substâncias reais
existentes com antecedência às pessoas, e independente deles, é a forma
antiga, autêntica, e mais inteligível de realismo. Expressa-se nas escolas,
dizendo que Universalia são ante rem. A outra forma da doutrina afirma
que Universalia são in re. Quer dizer que os universais existem só nos
indivíduos, e que os indivíduos são só reais. “L’identité des individus,”
diz Cousin 90 en su interpretación de esta forma de la doctrina, “d’un
meme genre ne vient pas de leur essence même, car cette essence est
différente en chacun d’eux, mais de certains éléments qui se retrouvent
dans tous ces individus sans aucune différence, indifferenter. Cette
nouvelle théorie diffère de la première en ce que les universaux ne sont
plus 1’essence de 1’être, la substance m—me des choses; mais elle s’en
rapproche en ce que les universaux existent réellement, et qu’existant
dans plusieurs individus sans différence, ils forment leur identité et par là
leur genre.” Outra vez, 91 diz ele: “Le principe de la nouvelle théorie est
que 1’essence de chaque chose est leur individualité, que les individus
seuls existent, et qu’il n’y a point en dehors des individus d’essence
90
91
Fragments Philosophiques, p. 162.
Ibid., p. 168.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
100
appelèes les universaux, les espèces et les genres; mais que l’individu
lui-même contient tout cela, selon les divers points de vue sous lequels
on le considére.” 92 Portanto, Sócrates como um homem individual tem
sua própria essência, que, com suas peculiaridades, o faz Sócrates.
Negligencia as peculiaridades e o consideram como racional e mortal,
então se tem a ideia das espécies; negligência a racionalidade e a
mortalidade, e o consideram como um animal, então se tem a ideia do
gênero; negligencia todas estas formas (“relictis omnibus formis”), e se
só tem a ideia de substância.
Segundo esta opinião “les espèces et les genres, les plus élevés
comme les plus inférieurs, sont les individus eux-mêmes, considérés
sous divers point de vue.” 93 Isto, segundo o sentido claro dos termos,
equivale à doutrina comum. As pessoas apenas existem. Certos
indivíduos têm algumas propriedades distintivas ou atributos em comum.
Constituem uma espécie em particular. Estes e outros indivíduos de
diferentes espécies têm outras propriedades comuns a todos eles, e
constituem um gênero, e assim as ordens, as classes, até chegar à
máxima categoria do ser, que inclui tudo. Mas se for assumido que todos
os seres sejam uma substância, cuja substância com certas qualidades
acrescentados ou acidente constituem uma classe, com algumas outras
adições, uma ordem, com ainda mais modificações, um gênero, uma
espécie, um indivíduo, então temos novamente a velha teoria, só
estendidas de modo a ter um aspecto panteísta.
Alguns homens de ciência, em lugar de definir as espécies como um
gênero de indivíduos que têm características determinadas em comum,
dizem com o professor Dana, que “corresponde à quantidade específica
ou condição da força concentrados, que se define no ato ou lei de
criação;” ou com o Dr. Morton, que é “uma forma orgânica primordial,”
ou com Agassiz, que é um princípio original imaterial que determina a
92
93
Veja-se a exposição por Abelardo citada na página 170 de Cousin.
Cousin, Fragments Philosophiques, p. 183.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
101
forma ou as características dos indivíduos que constituem um grupo
distinto.
Estes são só os diferentes modos de explicar o fato de que todos os
indivíduos de uma espécie dada possuem certas características ou
qualidades fundamentais em comum. Para tais declarações não há
nenhuma objeção.
Mas quando se supõe que estes termos primitivos originais, como
no caso da humanidade, por exemplo, segundo a lei de propagação se
transmite de geração em geração, a fim de constituir todos os indivíduos
da espécie essencialmente uma, quer dizer, um em essência ou
substância, de modo que o ato do primeiro indivíduo da espécie (de
Adão, por exemplo) é o ato da substância numericamente a mesma em
todos os membros dessa espécie, é o ato de cada membro individual,
então algo essencialmente novo adiciona-se à anterior definição
científica dada das espécies, e voltamos à forma original e autêntica do
Realismo em suas características mais ofensivas. Seria fácil demonstrar,
(1º.) Que a geração ou a lei de propagação, tanto em plantas como em
animais é absolutamente inescrutável, tanto como a natureza da matéria,
da mente ou da vida, em si mesmos considerados. Não podemos não
mais dizer qual geração é, que o que importa é: que mente é. (2º.) Que é
portanto, irrazoável e perigoso fazer uma dada teoria quanto à natureza
da geração ou da lei de propagação a base para a explicação das
doutrinas cristãs. (3º.) Que qualquer que seja o processo secreto e
inescrutável de propagação, que não implica a transmissão da própria
essência numérica, de modo que um progenitor e seus descendentes são
uma e a mesma substância. Esta suposição está sujeita a todas as
objeções já levantadas contra a forma original da doutrina realista. A
teoria é, além disso, desprovida de toda evidência quer seja por
experiência ou analogia. Não tem nenhum sentido concebível que todos
os carvalhos agora na terra sejam idênticos quanto à sua substância com
os carvalhos criados originalmente. E não há sentido concebível em fazer
estar confuso. Nós e todos os homens somos identicamente a mesma
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
102
substância com Adão. Se um milhar de velas são sucessivamente acesas
de uma vela nem por isso se convertem numa vela. Não é uma
comunicação da substância da primeira à segunda, e a da segunda às
demais em sua ordem, a fim de triunfar no verdadeiro sentido de que a
substância da primeira é numericamente a mesma que a de todos os
outros.
O simples fato é que pelas leis da matéria ordenada por Deus, o
estado em que uma vela acesa é, produz certas mudanças ou movimentos
nos elementos constitutivos da mecha de outra vela quando as duas
ficam em contato, que os movimentos induzem a outros movimentos nas
partículas constituintes da atmosfera circundante, que estão conectados à
evolução da luz e do calor. Mas não há nenhuma comunicação da
substância envolvida no processo. Uma bolota que cai de um carvalho
hoje em dia, está composta não das mesmas partículas de matéria da qual
se formou a bolota original, mas da matéria da mesma classe, e dispostas
na mesma forma. Pode dizer-se que é impregnado de químicos e forças
vivas da mesma classe que o mesmo tipo da bolota original, mas não
com as mesmas forças numericamente. Assim de todas as plantas e
animais. Somos da mesma natureza que Adão no mesmo sentido que
todos os animais de uma espécie são os mesmos. A igualdade não
consiste na identidade numérica de essência ou das forças vitais, ou da
razão ou vontade, mas na uniformidade de tipo e da comunidade de
origem.
Além do origem e natureza do homem, há outras duas questões, que
são mais ou menos envolvidas no que as Escrituras ensinam a respeito da
humanidade, e que merecem a atenção antes de voltar à condição moral e
religiosa da raça. A primeira delas refere-se à Origem da alma, e a
segundo à Unidade da Raça.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
CAPÍTULO III
103
A ORIGEM DA ALMA
§ 1. Teoria da Preexistência
TRÊS são as teorias que se têm apresentado a respeito da origem da
alma. Primeiro, a da Preexistência da alma; segundo, a do
Traducianismo, ou a doutrina de que a alma da criança se deriva da alma
dos pais; terceiro, a de Criação imediata, ou a doutrina de que a alma não
se deriva, como o corpo, mas deve sua existência ao poder criador de
Deus.
A doutrina da preexistência da alma foi apresentada de duas
maneiras. Platão mantinha que as ideias são eternas na mente divina; que
estas ideias não são meros pensamentos, mas sim entidades viventes; que
constituem a essência e a vida de todas as coisas externas; o universo e
tudo o que contém essas idéias são realizados, revestidas de matéria, e
desenvolvidas na história. Assim, havia um mundo ideal, ou inteligível,
interior ao mundo como realmente existente no tempo. O que Platão
chamava ideias, Aristóteles o chamou formas. Ele negou que o ideal
fosse anterior ao real. A matéria é eterna, e todas as coisas consistem de
matéria e forma – significando-se por forma aquilo que dá caráter, ou
que determina a natureza das coisas individuais. Como em outros
respeitos, também neste teve muita influência a filosofia platônica, ou
aristo-platônica, sobre a teologia cristã. E alguns dos pais e dos
escolásticos aproximaram-se mais ou menos desta doutrina da
preexistência, não só da alma, mas também de todas as coisas neste
mundo ideal. São Bernardo, em sua implacável oposição ao
nominalismo, adotou a doutrina platônica das ideias, que ele identificou
com os gêneros e as espécies. Estas ideias, ensinava ele, eram eternas,
embora posteriores a Deus, como um efeito é posterior à sua causa na
ordem da natureza. A Providência aplica a ideia à matéria, que se faz
animada e assume forma, e assim, «ex mundo intelligibili mundus
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
104
sensibilis perfectus natus est ex perfecto» [do mundo inteligível surgiu o
mundo sensível.] 94 Entre os autores modernos, Delitzsch é aquele que
mais se aproxima desta doutrina platônica. Diz ele: “Es giebt nach der
Schrift eine Präexistenz des Menschen und zwar eine ideale; . . . . eine
Präexistenz . . . . vermöge welcher Mensch und Menschheit nicht blos
ein fernzukünftiges Object göttlicher Voraussicht, sondern ein
gegenwärtiges Object göttlicher Anschauung sind im Spiegel der
Weisheit. . . . . Nicht bloss Philosophie und falchberühmte Gnosis,
sondern auch die Schrift weiss und spricht von einer göttlichen
Idealwelt, zu welcher sich die Zeitwelt wie die geschichtliche
Verwirklichung eines ewigen Grundrisses verhält”. 95
Quer dizer: «Há, segundo as Escrituras, uma preexistência ideal do
homem; uma preexistência em virtude da qual o homem e a humanidade
são contemplados pela onisciência divina não meramente como objetos
que se encontram longínquos no futuro, mas sim como presentes no
espelho de sua sabedoria. Não só a filosofia e a pretendida Gnosis, mas
também as Escrituras reconhecem e certificam um mundo divino ideal
com aquele que o mundo real tem uma relação como desenvolvimento
histórico de um conceito eterno». Mas deve-se duvidar se Delitzsch
significava com isto nada mais que o fato de que a onisciência de Deus
abrange desde a eternidade o conhecimento de todas as coisas possíveis,
e que Seu propósito determinou desde a eternidade a futuridade de todos
os acontecimentos reais, de maneira que seu decreto ou plano, como
existente na mente divina, é levado a cabo no mundo externo e sua
história. O engenheiro tem em sua mente um claro conceito da máquina
que vai produzir. Mas é só mediante uma figura de linguagem que se
pode dizer que a máquina preexiste na mente do artífice. Isto é muito
distinto da ideia platônica e realista da preexistência.
94
95
Cousin, Fragments Philosophiques, pp. 172 176.
Biblische Psychologie, p. 23.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
105
A doutrina de Orígenes.
A preexistência, ensinada por Orígenes, e adotada aqui e ali por
alguns filósofos e teólogos, não é a doutrina platônica de um mundo
ideal. Supõe que as almas dos homens tinham uma existência separada,
consciente e pessoal num estado anterior; que tendo pecado naquele
estado preexistente, são condenados a nascer no mundo em estado de
pecado e a conexão com um corpo material. Esta doutrina foi
relacionada por Orígenes com sua teoria de uma criação eterna. O atual
estado de ser é só uma época na existência da alma humana. Passou
através de outras inumeráveis épocas e formas de existência no passado,
e deve passar através de outras tais épocas inumeráveis no futuro. Ele
sustentava uma metempsicose muito similar à ensinada pelos orientais,
tanto antigos como modernos. Mas inclusive sem a carga acrescentada
da transmutação inacabável da alma, a própria doutrina jamais foi
adotada na Igreja. Pode-se dizer que começou e terminou com Orígenes,
porquanto foi rejeitada tanto pelos gregos como pelos latinos, e desde
então só escritores individuais a defenderam. Não pretende ser uma
doutrina escriturística, e portanto não pode ser objeto de fé. A Bíblia
nunca fala de uma criação de homens antes de Adão, nem de nenhuma
apostasia anterior à sua queda, e nunca atribui à pecaminosidade de
nossa atual condição a alguma fonte mais alta que ao pecado de nosso
primeiro pai. A hipótese de que todas as almas humanas foram criadas ao
mesmo tempo que a alma de Adão, e que permaneceram num estado
adormecido, inconsciente, até que se uniram aos corpos para os quais
foram designados, foi adotada por tão poucos que dificilmente merece
um lugar na história da opinião teológica.
Mas é muito mais importante a questão quanto a se a alma de cada
homem é criada imediatamente, ou se é gerada pelos pais. O primeiro é
conhecido, em teologia, como «Criacionismo», e o segundo como
«Traducianismo». Já desde o princípio, a igreja grega adotou a postura
criacionista como a única consistente com a verdadeira natureza da alma.
Tertuliano, na Igreja Latina, era quase um materialista, ou ao menos
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
106
empregou a linguagem do materialismo, mantendo que a alma era gerada
de maneira muito semelhante ao corpo. Jerônimo se opôs a esta doutrina.
Agostinho era muito adversa à mesma, mas em sua controvérsia com
Pelágio a respeito da propagação do pecado se sentiu tentado a favorecer
a teoria traducianista como proporcionando uma explicação mais fácil do
fato de que derivamos uma natureza corrompida de Adão. Entretanto,
nunca pôde adotá-la de uma maneira plena. O Criacionismo chegou a ser
posteriormente a doutrina recebida quase universalmente da Igreja
Latina, como o tinha sido sempre da Igreja Grega. Na época da Reforma,
os Protestantes, como um todo, aderiram-se ao mesmo ponto de vista.
Inclusive a Fórmula de Concórdia, o símbolo autoritativo da Igreja
Luterana, favorece o criacionismo. Entretanto, a maioria dos teólogos
luteranos do século dezessete adotaram a teoria traducianista. Entre os
Reformados, sucedeu à inversa. Calvino, Beza, Turretino e a grande
maioria dos teólogos Reformados foram criacionistas, e só aqui e ali
alguém adotou a teoria ex traduce. Muitos dos atuais teólogos alemães, e
aqueles que estão inclinados ao realismo em qualquer forma, tornaramse mais ou menos zelosos na defesa do traducianismo. Entretanto, está
longe de ser a opinião universal dos alemães. Talvez a maioria de
filósofos alemães concorda com Günther: 96 «O Traducianismo tem suas
funções com relação à vida animal do homem; por outro lado, o âmbito
do Criacionismo é o da alma; sairia de seu âmbito se estendesse a ação
criadora imediata de Deus à vida animal, que é o princípio da existência
de seu corpo».
96
Vorschule der speculativen Theologie, 2 edición, Viena, 1846,1848,2 parte, p. 181.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
§ 2. Traducianismo.
107
O que se significa pelo termo traducianismo é em geral bem claro
pelo sentido da palavra. Por um lado, os traducianistas negam que a alma
seja criada; por outro lado, afirmam que é produzida pela lei da geração,
sendo tão verdadeiramente derivada dos pais como o corpo. É o homem
íntegro, alma e corpo, aquele que é gerado. O homem é derivado de
maneira íntegra da substância de seus progenitores. Alguns vão além de
outros em suas afirmações a respeito desta questão. Há aqueles que
afirmam que a alma é suscetível de «abscisão e divisão», de maneira que
uma porção da alma dos pais é comunicada ao menino. Outros se
retraem de tais expressões, mas mantêm que há uma verdadeira
derivação da uma procedente da outra. Entretanto, ambas as classes
insistem na identidade numérica de essência em Adão e toda sua
posteridade tanto na alma como no corpo. Os mais ilustrados e cândidos
proponentes do traducianismo admitem que as Escrituras guardam
silêncio a este respeito. Agostinho tinha dito a mesma coisa há mil anos
atrás. “De re obscurissima disputatur, non adjuvantibus divinarum
scripturarum certis clarisque documentis.” As passagens citadas em
apoio da doutrina não ensinam nada decisivo a respeito desta questão.
Que Adão gerasse um filho à sua semelhança, e conforme a sua imagem,
e que chamasse seu nome Sete, só afirma que Sete era como seu pai. Não
arroja luz alguma sobre o misterioso processo da geração, e não ensina
como se alcança a semelhança de filho com o pai por causas físicas.
Quando Jó se pergunta: “Quem pode tirar do impuro o limpo?” E quando
o Senhor diz: “O que é nascido da carne é carne,” o fato afirma-se que o
procriado é semelhante, que uma natureza corrupta se transmite de pais a
filhos. Mas que isto só pode ser feito pela transmissão da mesma
substância numericamente é uma hipótese gratuita. Insiste-se mais em
certos fatos da Escritura que se supõem favoráveis a esta teoria. Diz-se
que o fato de que na criação da mulher não se faça menção de que Deus
soprasse nela fôlego de vida implica que sua alma, assim como seu
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
108
corpo, derivou-se do de Adão. Entretanto, o silêncio não demonstra
nada.
Em Gênesis 1:27, diz-se simplesmente: “criou Deus, pois, o homem
à sua imagem,” como é dito que Ele criou “todo animal que se arrasta
sobre a terra.” Não há nada dito de seu insuflar no homem o fôlego da
vida, ou seja, um princípio de vida racional. Entretanto, sabemos que se
fez. Não se menciona expressamente no caso de Eva, portanto, não é
prova de que não lhe ocorreu. Mais uma vez, diz-se que o descanso de
Deus no sábado, implica que a criação de sua energia não se exerceu
depois. Entende-se por traçar a linha entre a criação imediata e a
produção de efeitos na natureza pelas segundas causas sob o controle
providencial de Deus. A doutrina do criacionismo, pelo contrário,
assume que Deus constantemente, agora como no princípio, exercita sua
agência imediatamente na produção de algo do nada. Mas, em primeiro
lugar, não sabemos como a agência de Deus está relacionada com a
operação das segundas causas, até que ponto essa agência é mediata, e
em que medida o é imediata, e em segundo lugar, sabemos que Deus não
se ligou à direção providencial simples, que Seu poder onipresente está
sempre operando através dos meios e sem recursos em todo o âmbito da
história e da natureza. De todos os argumentos em favor do
Traducianismo, o mais eficaz é aquele que se deriva da transmissão de
uma natureza pecaminosa de Adão à sua posteridade. Insiste-se em que
não se pode explicar nem justificar a não ser que suponhamos que o
pecado de Adão foi nosso pecado e nossa culpa, e que a idêntica
substância ativa inteligente e voluntária que transgrediu nele, foi-nos
transmitida. Este é um argumento que só pode ser considerado de
maneira plena quando chegarmos a tratar do pecado original. Por agora é
suficiente repetir a observação recém-feita, de que o fato é uma coisa, e a
explicação do fato é outra. Admite-se o fato de que o pecado de Adão é,
num sentido verdadeiro e importante, nosso pecado, e que derivamos
dele uma natureza corrompida; mas que isto precise da adoção da
doutrina ex traduce quanto à origem da alma não está tão clara. [Esta
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
109
explicação] foi negada pela imensa maioria dos mais ativos defensores
da doutrina do pecado original, em todas as idades da Igreja. Dizer que o
criacionismo é um princípio Pelagiano é só uma evidência de ignorância.
Mais uma vez, insiste-se se que a doutrina da encarnação implica
necessariamente a verdade da teoria ex traduce. Cristo nasceu de uma
mulher. Ele foi a semente da mulher. A menos que tanto como a alma e o
corpo deriva de sua mãe humana, diz-se, Ele não pode ser realmente da
mesma raça conosco. Os teólogos luteranos, portanto, dizem: “Si
Christus non assumpsisset animam ab anima Mariæ, animam humanam
non redemisset.” Isto, entretanto, é um simples non sequitur. Tudo o que
é necessário é que Cristo deve ser um homem, um filho de Davi, no
mesmo sentido que qualquer outro da descendência de Davi, exceto só
em sua concepção milagrosa. Ele foi formado ex substantia matris suæ
no mesmo sentido em que cada menino nascido de uma mulher nasce de
sua substância, mas o que é esse sentido, seu nascimento não determina.
O argumento mais plausível em favor do traducianismo é o inegável
fato da transmissão das peculiaridades étnicas, nacionais, familiares e
inclusive paternas da mente e do temperamento. Isto parece dar
evidência de que há não só derivação do corpo, mas também da alma em
que estas peculiaridades são inerentes. Mas inclusive este argumento não
é concludente, porque nos é impossível determinar a que causa mediata
devem-se estas peculiaridades. Poderiam ser atribuídas, pelo que
possamos saber, a algo peculiar na constituição física. Não se pode negar
que a mente é extremamente influenciada pelo corpo. E um corpo que
tenha algumas peculiaridades físicas pertencentes a qualquer raça, nação
ou família pode determinar dentro de certos limites o caráter da alma.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
§ 3. Criacionismo.
110
A doutrina comum da Igreja, e especialmente dos teólogos
reformados, foi sempre a de que a alma da criança não é gerada nem
derivada de seus pais, mas antes, é criada pela ação imediata de Deus. Os
argumentos que se apresentam geralmente em favor desta postura são:
1. Que é mais consequente com as descrições prevalecentes das
Escrituras. No relato original da criação estabelece-se uma marcada
distinção entre o corpo e a alma. Um é da terra, a outra de Deus. Esta
distinção se mantém ao longo de toda a Bíblia. O corpo e a alma não
apenas são apresentados como substâncias diferentes, mas também como
possuidores de diferentes origens. O corpo voltará ao pó, diz o sábio
pregador, e o espírito a Deus que o deu. Aqui se apresenta a origem da
alma como diferente de e mais elevado que a do corpo. A alma é de
Deus num sentido que não é certo do corpo. De maneira similar, diz-se
de Deus que «forma o espírito do homem dentro dele» (Zac 12:1); que
dá «alento ao povo que habita» sobre a terra, «e espírito aos que por ela
andam» (Is 42:5). Esta linguagem quase concorda com a do relato da
criação original, no qual é dito que Deus soprou no homem fôlego de
vida, para indicar que a alma não é terrena nem material, mas que teve
sua origem de maneira imediata dEle. Portanto, Ele é chamado “Deus
dos espíritos de toda carne.” (Nm 16:22, RC). Não poderia ser dito que
Ele é Deus dos corpos de todos os homens. A relação em que a alma
encontra-se para com Deus como seu Deus e Criador é muito diferente
daquela em que o corpo encontra-se para com Ele. E portanto, é dito em
Hb. 12:9 [RC]: “tivemos nossos pais segundo a carne, para nos
corrigirem, e nós os reverenciamos; não nos sujeitaremos muito mais ao
Pai dos espíritos, para vivermos?” A antítese evidente que aqui se
apresenta é entre aqueles que são os pais de nossos corpos e aquele que é
o Pai de nossos espíritos. Nossos corpos derivam de nossos pais
terrestres, nossas almas derivam de Deus. Isto está de acordo com o uso
familiar da palavra carne, onde fica em contraste, quer seja explícita ou
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
111
implicitamente, com a alma. Paulo fala daqueles que não haviam “visto
seu rosto na carne,” da “vida que agora vivia na carne.” Diz aos
filipenses que era necessário para eles que devia permanecer “na carne,”
fala de sua “carne mortal.”
O salmista diz do Messias, “minha carne descansará em esperança,”
que o Apóstolo explica o sentido de que Sua carne não veria corrupção.
Em todos estes, e em multidão de passagens similares, a carne, o corpo, e
“pais de nossa carne” significa os pais de nossos corpos.
Até o momento, portanto, segundo as Escrituras revelam sobre o
tema, sua autoridade está contra o traducianismo e a favor do
criacionismo.
Argumentos com base na natureza da alma.
2. Esta última doutrina é também bem claramente consistente com a
natureza da alma. Entre os cristãos se admite que a alma é imaterial e
espiritual. É indivisível. A doutrina traducianista nega esta verdade
universalmente reconhecida. Afirma que a alma admite «separação ou
divisão de essência». 97 E sobre a mesma base pela qual a Igreja rejeitou
universalmente a doutrina gnóstica da emanação como inconsequente
com a natureza de Deus como espírito, rejeitou, com uma unanimidade
quase similar, a doutrina de que a alma admite divisão de substância.
Esta é uma dificuldade tão séria que alguns dos proponentes da doutrina
ex traduce tentam evitá-la negando que sua teoria pressuponha separação
ou divisão deste tipo da substância da alma. Mas pouco serve esta
negação. Eles mantêm que a mesma essência numérica que constituía a
alma de Adão é constitutiva de nossas almas. Se é assim, então ou a
humanidade é uma essência geral da qual os homens individuais são
modos de existência, ou o que estava inteiramente em Adão está
distributivamente, partitivamente e por separação, na multidão de seus
descendentes. Por isso, a derivação de essência implica, como
97
Shedd, History of Christian Doctrine, Vol. I., pág. 343, note.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
112
geralmente se admite que o faz, separação ou divisão de essência. E isto
deve ser assim se for pressuposto que a identidade numérica de essência
em toda a humanidade se obtém mediante geração ou propagação.
3. Um terceiro argumento a favor do criacionismo e contra o
traducianismo deriva-se da doutrina da Escritura sobre a pessoa de
Cristo. Ele era verdadeiro homem, tinha uma verdadeira natureza
humana, um corpo e uma alma racional. Nasceu de uma mulher. Era,
quanto à Sua carne, o Filho de Davi. Era descendente dos pais. Ele era
em todos os pontos feito semelhante a nós, mas sem pecado. Isto é
admitido por ambas as partes. Mas, como antes foi dito com referência
ao realismo, na teoria de traducianismo, isto faz necessária à conclusão
de que a natureza humana de Cristo era culpada e pecadora. Somos
partícipes do pecado de Adão, tanto a respeito da culpabilidade e da
contaminação, porque a mesma essência numérico que pecou nele nos
comunica. O pecado, segundo se diz, é um acidente, e que supõe uma
substância em que é inerente, ou ao que pertence. Comunidade supõe o
pecado, portanto, a comunidade da essência. Se não estivemos em Adão
quanto à essência, não pecamos nele, e não derivamos dele uma natureza
corrupta. Dizem que se seu corpo e a alma não procedentes do corpo e da
alma de sua mãe virgem não era um homem verdadeiro, e não pode ser o
redentor dos homens. Em consequência, o que é verdadeiro de outros
homens, é verdadeiro dEle. Portanto, Ele deve estar tão comprometido
na culpa e na corrupção da apostasia como outros homens. Isso não vai
afirmar e negar a mesma coisa. É uma contradição dizer que somos
culpados do pecado de Adão porque somos partícipes de sua essência, e
que Cristo não é culpado de seu pecado nem participa de sua
contaminação, embora Ele é partícipe de sua essência. Se a participação
da essência envolve à comunidade da culpa e a depravação num caso,
também deve ser no outro. Como isto parece uma conclusão legítima da
doutrina traducianista, e como esta conclusão é anticristã, e falsa, a
própria doutrina não pode ser verdade.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
§ 4. Observações finais.
113
Tais são os argumentos principais a ambos os lados desta questão.
Com referência a esta discussão pode-se observar:
1. Que enquanto que nos toca resistir vigorosamente qualquer
doutrina que pressuponha a divisibilidade e conseguinte materialidade da
alma humana, ou que conduza à conclusão de que a natureza humana de
nosso bendito Senhor estivesse contaminada com pecado, entretanto não
nos cabe ser mais sábios que o que está escrito. Podemos confessar que a
geração, a produção de um novo indivíduo da raça humana, é um
mistério inescrutável. Mas isto se deve dizer da transmissão da vida em
todas as suas formas. Se os teólogos e filósofos se contentassem com
simplesmente negar a criação da alma ex-nihilo sem insistir na divisão da
substância da alma nem na identidade de essência em todos os seres
humanos, o mal não seria tão grande. Alguns tentam esta moderação, e
diz, com Frohschammer: 98 “Generare ist nicht ein traducere, sondern
ein secundäres, ein creatürliches creare.” Eles fazem uso da analogia
com frequência referida a “cum flamma accendit flammam, neque tota
flamma accendens transit in accensam neque pars ejus in eam descendit:
ita anima parentum generat animam filii, ei nihil de cedat.” É preciso
confessar, entretanto, que neste ponto de vista da teoria perde todo o seu
valor como meio de explicar a propagação do pecado.
2. É evidentemente do mais irrazoável e presunçoso, além de
perigoso, fazer de uma teoria a respeito da origem da alma a base de uma
doutrina tão fundamental para o sistema cristão como o do pecado
original. Mas vemos teólogos, antigos e modernos, afirmando
ousadamente que se sua doutrina de derivação, e a identidade numérica
de substância em todos os homens, não se admite, então é impossível o
pecado original. Isto é, que nada pode ser certo, não importa o
claramente que seja ensinado na palavra de Deus, que eles não possam
98
Ueber den Ursprung der Seelen, Munich, 1854, p. 83, note 1.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
114
explicar. Isto o fazem inclusive aqueles que protestam contra a
introdução da filosofia na teologia, totalmente inconscientes de que eles
mesmos ocupam, até este ponto, o mesmo terreno que os racionalistas.
Não estão dispostos a crer na depravação hereditária a não ser que a alma
do filho seja da mesma substância numérica que a alma do pai. Isto é, as
claras declarações das Escrituras não podem ser certas a não ser que se
adote a mais obscura, ininteligível e incongruente e menos recebida
teoria filosófica quanto à constituição do homem e a propagação da raça.
Ninguém tem direito a pendurar a roda de moinho de sua filosofia ao
redor do pescoço da verdade de Deus.
3. Há uma terceira nota de advertência que não se deve omitir. Toda
a teoria do traducianismo se baseia na pressuposição de que Deus, desde
a criação original, opera só através de meios. Desde o «sexto dia, o
criador não exerceu, neste mundo, nenhuma energia estritamente
criativa. Ele descansou da obra da criação no sétimo dia, e segue
repousando». 99 A criação contínua das almas é declarada por
Delitzsch 100 como inconsistente com a relação de Deus com o mundo.
Ele agora só produz de maneira mediata, isto é, por meio da operação de
segundas causas. Isto é uma aproximação à teoria mecânica do universo,
que supõe que Deus, tendo criado o mundo, e tendo dotado a Suas
criaturas com certas faculdades e propriedades, deixa-o à operação
destas segundas causas. Pode-se admitir uma superintendência
continuada da Providência, mas se nega o exercício direto da eficiência
divina. O que sucede, então, com a doutrina da regeneração? O novo
nascimento não é efeito de segundas causas. Não é um efeito natural
produzido pela influência da verdade nem da energia da vontade
humana. Deve-se ao exercício imediato do poder onipotente de Deus. A
relação de Deus com o mundo não é a de um engenheiro com uma
máquina, nem de um tipo que lhe limite a operar só através de segundas
99
Shedd, History of Christian Doctrine, vol. II. pág. 13.
Delitzsch, Biblische Psychologie, pág. 79.
100
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
115
causas. Ele é imanente no mundo. Ele sustenta e conduz todas as causas.
Ele opera constantemente através das mesmas, com elas, e sem elas.
Como nas operações de escritura ou de comunicação oral, temos em nós
a união e ação combinada de forças mecânicas, químicas e vitais,
controlado tudo isso pelo poder diretor da mente; e assim como a mente,
enquanto conduz assim as operações do corpo, exercita constantemente
sua energia pensante criativa, assim Deus, como imanente no mundo,
conduz constantemente todas as operações das segundas causas, e ao
mesmo tempo exerce ininterruptamente Sua energia criativa. A vida não
é produto de causas físicas. Não sabemos que sua origem se deva em
nenhum caso a alguma outra causa diferente do poder imediato de Deus.
Se a vida é um atributo peculiar da substância imaterial, pode ser
produzida adequadamente com base em um plano fixo pela energia
criativa de Deus sempre que estejam presentes as condições mediante as
quais Ele se propôs que comece a ser. A organização de uma semente, ou
do embrião de um animal, até onde consiste de matéria, pode dever-se à
operação de causas materiais conduzidas pela atividade providencial de
Deus, enquanto que o princípio próprio vital deve-se a seu poder criador.
não há nada nisto que faça de menos ao caráter divino. Nada há nisso
que seja contrário às Escrituras. Nada há nisso fora de analogia com as
palavras e obras de Deus. É muito mais preferível à teoria que ou exclui
totalmente a Deus do mundo, ou restringe suas operações a um
concursus com segundas causas. A objeção ao criacionismo de que
elimina a doutrina dos milagres, ou que supõe que Deus sanciona cada
ato com o qual esteja conectado Seu poder criador, não parece sequer ter
plausibilidade alguma. Um milagre não é simplesmente um
acontecimento devido à ação imediata de Deus, porque então cada ato de
conversão seria um milagre. É um acontecimento que tem lugar no
mundo externo e que envolve a suspensão ou neutralização de alguma lei
natural, e que não se pode atribuir a nada mais que ao poder imediato de
Deus. Por isso, a origem da vida não é um milagre nem em sua natureza
nem em seu desígnio, no sentido próprio da palavra. Este exercício da
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
116
energia criadora de Deus, com relação à ação das segundas causas, não
implica mais aprovação que o fato de que Ele dá e sustenta a energia de
um assassino implica que Ele aprove o assassinato.
4. Por último, esta doutrina do traducianismo é mantida pelos que
disputam pela velha doutrina realista de que a humanidade é uma
substância ou vida genérica. As duas teorias, entretanto, não parecem
harmonizar-se, e sua combinação produz uma grande confusão e
escuridão. Segundo uma teoria a alma da criança se deriva da alma de
seus pais; de acordo com a outra teoria não há nenhuma derivação. Um
ímã não é, ou não precisa ser derivado de outro; uma garrafa de Leyden
não se deriva de outra, nem uma bateria galvânica de outra. Não há
nenhuma derivação no caso. As forças gerais de magnetismo,
eletricidade e galvanismo, manifestam-se com relação às combinações
de material. E se um homem é a manifestação do princípio geral da
humanidade com relação a um determinado corpo humano, sua natureza
humana não se deriva de seus progenitores imediatos.
O objetivo desta discussão não é chegar a uma certeza a respeito do
que não está claramente revelado nas Escrituras, nem explicar o que por
todos lados se admite como inescrutável, mas antes, advertir contra a
adoção de princípios que se opõem a claras e importantes doutrinas da
palavra de Deus. Se o traducianismo ensina que a alma admite abscisão
ou divisão; ou que a raça humana está constituída de uma mesma
substância numérica; ou que o Filho de Deus assumiu em união pessoal
consigo mesmo da mesma substância numérica que pecou e caiu em
Adão, então deve ser rejeitado como ao mesmo tempo falso e perigoso.
Mas se, sem tentar explicar tudo, afirma simplesmente que a raça
humana se propaga em seguimento da lei geral de que semelhante gera
semelhante; que o filho deriva sua natureza de seus pais pela operação de
leis físicas, assistidas e controladas pela ação de Deus, seja esta diretiva
ou criativa, como em todos os outros casos de propagação de criaturas
vivas, pode-se considerar como uma questão aberta, ou assunto
indiferente. O criacionismo não supõe necessariamente que há outro
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
117
exercício do poder imediato de Deus na produção da alma humana que
aquele que tem lugar na produção de vida em outros casos. Só nega que
a alma seja suscetível de divisão, que toda a humanidade esteja composta
numericamente da mesma essência, e que Cristo assumisse
numericamente a mesma essência que pecou em Adão.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
CAPÍTULO IV
118
A UNIDADE DA RAÇA HUMANA
HÁ ainda outra questão que a ciência expôs à teologia, com relação
ao homem, que não pode ser passada por alto. Tem toda a humanidade
uma origem comum? E tem toda ela uma natureza comum? Descendeu
toda ela de um casal, e constituem uma espécie? Estas questões são
respondidas afirmativamente na Bíblia e pela igreja universal. São
respondidas em sentido negativo por um grande e crescente número de
cientistas. Como a unidade da raça não é apenas declarada nas
Escrituras, mas também dada por suposta em tudo o que ensinam a
respeito da apostasia e redenção do homem, é um ponto a respeito do
qual a mente do teólogo deveria ficar convencido de maneira inteligente.
Como mero teólogo, pode estar autorizado a satisfazer-se com as
declarações da Bíblia; mas como defensor da fé deveria também dar uma
resposta aos que se opõem.
Há dois pontos envolvidos nesta questão: comunidade de origem e
unidade de espécie. Todas as plantas e animais derivados por propagação
do mesmo tronco original são da mesma espécie; mas os da mesma
espécie não precisam ter derivado de um tronco comum. Se Deus tivesse
considerado adequado no princípio, ou em qualquer tempo posterior,
criar plantas ou animais da mesma classe em grandes números e em
diferentes partes da terra, seriam da mesma espécie (ou natureza),
embora não da mesma origem. Os carvalhos da América e os da Europa
são idênticos quanto à espécie, embora não sejam derivados de um e o
mesmo carvalho primordial. Pode-se admitir que a grande maioria de
plantas e animais foram produzidos originalmente não a sós ou em
casais, mas em grupos, produzindo a terra uma multidão de animais da
mesma classe. Por isso, é em si mesmo possível que todos os homens
possam ser da mesma espécie, embora nem todos descendido de Adão. E
esta é a opinião de alguns distinguidos naturalistas. Entretanto, a
doutrina escriturística a respeito do homem é que a raça não é só a
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
119
mesma em classe, mas sim a mesma em origem. Todos são filhos de um
pai comum, e têm uma natureza comum.
§ 1. Conceito de Espécie.
Evidentemente, é essencial para qualquer resposta inteligente à
questão o saber se todas as variedades dos homens são de uma espécie,
que devemos ser capazes de dizer o que é uma espécie. Este é um ponto
de dificuldade muito grande. Os naturalistas não só diferem em suas
definições do termo, mas diferem em grande medida na classificação.
Alguns supõem um ponto na asa de uma mariposa, ou uma ligeira
diversidade de plumagem numa ave, como prova da diferença das
espécies. Por isso, alguns se dividem em seis ou oito espécies que outros
compreendem numa. Nada, portanto, pode ser feito até que os homens
cheguem a um entendimento comum sobre este tema, e a verdadeira
ideia das espécies seja determinada e autenticada.
Características gerais das espécies.
Antes de considerar as diversas definições do termo, é conveniente
assinalar que existem certas características das espécies que pelo menos,
até recentemente, foram geralmente reconhecidas e admitidas.
(1.) A originalidade, quer dizer, eles devem sua existência e o
caráter à criação imediata. Eles não são produzidos por causas físicas,
nem são sempre derivados de outros gêneros ou espécies. Eles são
formas originais. Isto é admitido pelos naturalistas de todas as classes.
Tal é a doutrina de Cuvier, Agassiz, Dr. Morton, e daqueles que
sustentam que as variedades da raça humana são tantas espécies
distintas. Eles querem dizer com isto que tiveram origens diferentes, e
não são todas derivadas de um tronco comum. Todas as espécies
portanto, pelo consenso geral, tiveram uma origem única.
(2.) A universalidade, quer dizer, todos os indivíduos e as
variedades pertencentes a uma mesma espécie têm todas as suas
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
120
características essenciais. Onde quer que se encontre os dentes de um
animal carnívoro, encontra-se um estômago capaz de digerir o alimento
dos animais, e as garras adaptadas para aproveitar e manter a presa.
Onde quer que se encontre barbatanas para efetuar movimento na água,
encontra-se uma equipamento de respiração adequado para o mesmo
elemento. A espécie se transmite toda e inteira. O mesmo sucede em
todos os indivíduos que a integram, e nesse sentido universal.
(3.) Imutabilidade, ou permanência. Por isso se entende uma parte,
que uma espécie nunca perde ou se fundiu em outra; em segundo lugar,
que nunca duas ou mais espécies se combinam para produzir uma
terceira. A rosa não se pode combinar na tulipa, nem tampouco a rosa e
o tulipa são feitas para produzir uma nova espécie, que é nenhum nem
outro. As únicas formas permanentes de transmissão de vida orgânica,
são tais que constituem espécies distintas. Imutabilidade, portanto, ou o
poder para perpetuar-se, é uma das características indispensáveis das
espécies. Isto, até há pouco, foi a doutrina universalmente admitida dos
naturalistas. E apesar dos esforços dos defensores das diferentes teorias
do desenvolvimento, continua sendo a fé geral do mundo científico. Os
argumentos principais em apoio desta doutrina já se resolveram, quando
se fala da teoria do Sr. Darwin sobre a origem das espécies. Estes
argumentos são brevemente as seguintes.
(1.) O fato histórico de que todas as espécies conhecidas de plantas
e animais são precisamente o que eram quanto alcança a história. A
Bíblia e os registros nos monumentos egípcios nos levará de novo a um
ponto de milhares de anos antes do nascimento de Cristo. Durante todo
este período de cinco ou seis mil anos as espécies seguem sendo as
mesmas.
(2.) Se termos que receber os fatos da geologia como autenticada, é
evidente que a mesma permanência existiu desde o próprio princípio da
vida em nosso planeta. Enquanto qualquer espécie que existe, existe sem
mudanças em tudo o que é essencial para ela.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
121
(3.) Há uma ausência completa e reconhecida de todas as evidências
da transmutação, mas nenhum dos pontos de transição ou enlaces de
conexão entre uma espécie e outra é em qualquer lugar detectável.
(4.) Se as espécies não fossem imutáveis assim o mundo animal e
vegetal em lugar de apresentar a ordem bela por todas as partes visíveis,
exibiriam um caos perfeito de toda a vida orgânica.
(5.) Apesar dos contínuos e longos esforços engenhosos para fazer
híbridos prolíficos, estas tentativas fracassaram de maneira uniforme. As
duas maiores autoridades vivas neste tema são o Dr. Bachman de
Charleston, Carolina do Sul, e M. Flourens do Jardin des Plantes de
Paris. “Qualquer dos híbridos,” diz este último, “nascido da união de
duas espécies distintas, unem-se e logo se convertem em estéreis, ou se
unem com uma das populações dos pais e logo retornam a este tipo —
que em nenhum caso dão que se pode chamar uma nova espécie, quer
dizer, uma espécie intermediária duradoura.” “Les espèces ne s’altèrent
point, ne changent point, ne passent point de l’une à l’autre; les espèces
sont FIXES.” 101 Não há lei natural melhor autenticada ou mais
geralmente admitida de que as espécies são imutáveis e capazes de
propagar-se por tempo indefinido.
Definições de espécie.
Nenhum grupo de animais pode ser considerado como uma espécie
distinta que não existiu como algo distinto desde o princípio, e que não é
imutável em suas características essenciais, e que não é capaz de
propagar-se indefinidamente. Estes são pontos de referência importantes,
mas não são suficientes para nos guiar em todos os casos a uma
conclusão satisfatória quanto a se determinados indivíduos ou variedades
são da mesma ou de diferentes espécies. (1.) Devido ao fato de que a
origem destas variedades não podem ser historicamente traçado. O
caucasiano e o negro existiram com suas características atuais distintivas
101
Principles of zoology, p. 9.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
122
por vários milhares de anos. Mas isto não prova que diferiam desde o
princípio. (2.) Devido ao fato de que certas variedades da mesma
espécie uma vez estabelecidas se tornam permanentes, e são capazes de
duração indefinida. Algumas variedades de cães representados nos
monumentos egípcios séculos antes de Cristo, são precisamente as que
agora existem. Os naturalistas, portanto, buscaram uma definição precisa
de espécie, embora estes intentos não foram em geral bem-sucedido.
Cuvier disse: “Estamos na necessidade de admitir a existência de
certas formas que se perpetuaram desde o princípio do mundo, sem
exceder os limites prescritos primeiro, todos os indivíduos pertencentes a
uma destas formas constituem o que se denomina uma espécie.” De
Candolle disse: “Nós escrevemos sob a denominação das espécies de
todos os indivíduos que se parecem entre si tão estreita entre si como
admite nossa hipótese que se tivesse originado do mesmo casal.”
Agassiz 102 diz: “As espécies se baseiam em menos importantes
distinções, como a cor, tamanho, proporções, escultura, etc.” As
objeções a estas definições são: (1.) Que não nos permitem distinguir
entre espécies e variedades. (2.) Referem-se quase exclusivamente ao
que é externo ou material, cor, tamanho, proporção, etc., como os
critérios, em detrimento dos componentes mais elevados do animal.
O doutor Prichard, diz que sob o termo espécie se incluem todos
aqueles animais que se supõe que surgiram na primeira instância de um
único casal. E no mesmo sentido o Dr. Carpenter diz: “Quando se pode
demonstrar que duas raças tiveram uma origem distinta, são
consideradas como de diferentes espécies; e, por falta da prova, o que se
infere quando nos encontramos com alguma peculiaridade da
característica de cada organização, pelo que constantemente transmitem
de pais à descendência, que uma coisa não se possa supor que perderam,
ou a outra a adquiriram, através de qualquer operação que se conhece das
causas físicas.”
102
Principles of zoology, p. XIV.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
123
A objeção a este ponto de vista da questão é que torna a
comunidade de origem, quer seja demonstrado ou deduzido, o critério de
igualdade das espécies. Mas, em primeiro lugar, esta comunidade de
origem não pode numa multidão de casos ser estabelecida; e no caso do
homem, é precisamente o que devem provar-se. A grande pergunta é, são
os mongóis, africanos e caucasianos todos eles obtidos a partir de um
antepassado comum? E em segundo lugar, embora a comunidade de
origem demonstra a identidade das espécies, a diversidade de origem não
provaria a diversidade de espécies. Todas as variedades do cavalo e do
cão constituiriam uma espécie por cada classe, apesar de que tinha sido
criada como são agora. Espécie significa tipo, e se dois animais são do
mesmo tipo são da mesma espécie, não importa qual pôde ter sido sua
origem. Se Deus tivesse criado um par de leões na Ásia, outro no norte
da África, outro no Senegal, todos eles pertenceriam a uma espécie. Sua
identidade de tipo seria precisamente a mesma como se todos fossem
descendentes de um casal. A definição do Dr. Morton de espécie como
“uma forma orgânica primordial,” obteve aceitação geral. É, entretanto,
suscetível de objeção no terreno da ambiguidade da palavra forma. Se
por “forma” se entende a estrutura externa, a definição é insatisfatória; se
entendemos a palavra em seu sentido escolástico de princípio essencial e
formativo, deve ser o mesmo que é mais claramente expresso em outros
termos. Agassiz dá outra ideia e muito mais satisfatória da natureza das
espécies, quando se refere a um princípio imaterial como seu elemento
essencial, e isso para que a igualdade dos indivíduos e as variedades
incorporem no que se refere. 103 Ele diz: “Além das distinções que se
derivam da estrutura variada de órgãos, há outros menos sujeitos a
análise rígida, mas não menos decisivo, que se elaborará do princípio
imaterial, com que está dotado todos os animais. Isto é o que determina a
constância das espécies de geração em geração, e que é a fonte de todas
103
Principles of zoology, p. 9.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
124
as variadas exposições do instinto e a inteligência que vemos em tela,
desde o simples impulso para receber a comida que se traz para seu
alcance, como se observa nos pólipos, através das manifestações mais
elevadas, na raposa ardilosa, no elefante sagaz, no cão fiel, e no intelecto
do homem exaltado, que é capaz de expansão indefinida.” Mais uma vez,
diz: 104 “A constância das espécies é um fenômeno vinculado à natureza
imaterial.” “Todos os animais,” diz ele, “pode remontar-se no embrião a
um mero ponto na gema de um ovo, não apresentando nenhuma
semelhança ao animal no futuro. Mas ainda neste caso um princípio
imaterial de que nenhuma influência externa pode prevenir ou modificar,
está presente, e determina sua forma futura, de modo que o ovo de uma
galinha só pode produzir um frango e o ovo de um bacalhau só um
bacalhau.”
O professor Dana diz: 105 “As unidades do mundo inorgânico são os
elementos pesados e seus compostos definidos ou suas moléculas. As
unidades dos organismos são espécies, que apresentam eles mesmos em
sua condição mais simples no estado de células germinais. Os reinos da
vida em todas as suas magníficas proporções são feitas destas unidades.”
Outra vez: 106 “Quando os indivíduos se multiplicam de geração em
geração, não é mais que uma repetição do tipo-ideia primordial, e a
verdadeira noção da espécie não está no grupo resultante, mas na ideia
ou elemento potencial que está na base de cada indivíduo do grupo.”
Aqui chegamos a terra firme. A unidade de espécies não consiste na
unidade ou identidade da estrutura orgânica, na uniformidade quanto ao
tamanho, cor, ou qualquer coisa meramente externa, mas na identidade
pessoal do princípio imaterial, ou “ideia potencial,” que constitui e
determina a identidade da natureza. No ponto inicial na gema do ovo,
não há diferença de forma, nenhuma diferença discernível pelo
microscópio, ou de detecção por análise química, entre um e outro
104
Ibid. p 43.
Bibliotheca Sacra, 1857. p. 863.
106
Bibliotheca Sacra, 1857, p. 861.
105
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
125
germe; entre a célula inicial da ave e a dos peixes. E entretanto, toda a
diferença está ali.
A diferença, portanto, não pode existir no que é externo (embora
dentro de certos limites e em posterior desenvolvimento se manifesta
externamente), mas no que é imaterial. Assim que, quando o princípio
imaterial de Agassiz, ou a ideia potencial de Dana, é a mesma, a espécie
é a mesma, onde o princípio imaterial é diferente, a espécie é diferente.
§ 2. Evidências da identidade das Espécies.
Sendo este o caso, a única questão é, como podemos determinar se
o princípio imaterial que constitui e determina a espécie, é igual ou
diferente. Além da revelação divina, isto se pode comprovar: (1.) Em
parte pela estrutura orgânica. (2.) Parte da φύσις - phusis, ou a natureza
física. (3.) Em parte pela ψυχή - psuche, ou a natureza psicológica. (4.)
Em parte pela persistência e a capacidade de propagação indefinida.
Estrutura orgânica.
A primeira evidência da identidade das espécies é preciso buscá-la
no σῶμα - soma, ou da estrutura orgânica. A evidência do desígnio está
impressa em todos os corpos organizados no universo, e em especial nos
órgãos de todos os animais. Os destinadas a viver na terra seca, os
destinados a viver na água, e os destinados a voar no ar, têm seu quadro
de animais adaptados a estes severos modos ou condições de existência.
Também há clara evidência da unidade deste desígnio. Quer dizer, levase a cabo em todas as partes da organização corporal. Os animais
destinados a viver na terra seca não têm nenhuma estrutura, ou órgãos ou
membros particularmente adaptados aos animais aquáticos. O leão, o
tigre, o boi, o cavalo, etc., não têm nem as guelras, as escamas, as
barbatanas, nem a cauda como leme dos peixes. Todas as partes do
animal harmonizam. Todos eles estão relacionados e se adaptam a um e
ao mesmo fim. O corpo do peixe é adaptado para romper a água com a
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
126
menor resistência; suas barbatanas são remos, sua cauda se adapta tanto
para a propulsão e a orientação; seu aparelho de respiração é adequado
para separar o ar da água, seus órgãos digestivos se adaptam à
assimilação da classe de alimento proporcionado pelo elemento em que
vive. O mesmo é certo, obviamente, de todos os animais terrestres.
Além desta adaptação geral dos animais para viver no ar, na água, e
sobre a terra seca, há inumeráveis adaptações mais específicas que
convêm à espécie de peixes, aves e animais da terra para os modos
particulares de vida para o qual são desenhados. Alguns estão destinados
a ser carnívoros, e seus corpos são construídos em harmonia com essa
finalidade. Outros estão destinados a viver nas ervas, e neles encontrará
tudo adaptado para tal propósito. Esta adaptação refere-se aos propósitos
múltiplos e variados. Portanto os gêneros e as espécies de animais
pertencentes aos distintos departamentos, classes, ordens, e famílias em
que se divide o reino animal, são muito numerosos, e cada um tem sua
organização corpórea distintiva indicativa do fim específico que se
pretende servir. Tão minúsculo, e assim fixado é o plano em que cada
espécie de animais se constrói, que um naturalista hábil, pelo exame de
um só osso, pode dizer não só a família, ou gênero, mas sim a própria
espécie a que pertence. Agassiz, de uma única escala de um peixe,
delimitou todo o seu corpo com a maior precisão, como se o animal vivo
tivesse sido fotografado. E a correção de seu traçado se verificou
posteriormente pela descoberta de um espécime perfeito da espécie
retratada.
Agora, o dedutível princípio importante destes fatos admitidos é
que há diversidade de cor, forma, proporção, estrutura, etc., não são
indicativos de desígnio, ou não proveem uma diferença no princípio
imaterial que determina a natureza do animal, pode por si só ser admitido
como prova da diversidade de espécies. O galgo italiano e o mastim
inglês diferem em todos os aspectos que acabamos de mencionar. O
pônei Shetland, o cavalo carro em Londres, e o Barb árabe exibe
diversidade similar. Mas quando devem ser anatomicamente
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
127
examinados, comprova-se que se constroem no mesmo plano. As
estruturas ósseas, a distribuição dos nervos, músculos e vasos
sanguíneos, são expressão da mesma intenção geral. Portanto, os
naturalistas referem estas variedades à mesma espécie. E a correção
desta conclusão vê-se confirmada por todos os outros critérios da
identidade das espécies. Embora se admita que existem tais diferenças
nas variedades pertencentes à mesma espécie dos animais inferiores, é
surpreendente que as diversidades muito menos da própria natureza entre
as variedades da família humana deve insistir-se, como prova da
diferença de espécie. O cão selvagem onde quer que for encontrado é
quase da mesma cor, e o mesmo tamanho, com as orelhas, as
extremidades e a cauda da mesma forma, e entretanto, como são as
infinitas variedades permanentes derivadas dessa população original. É
bem sabido que estas variedades podem ser produzidas artificialmente.
Mediante a criação hábil quase qualquer peculiaridade de forma,
cor ou estrutura dentro dos limites da ideia original da espécie, pode ser
produzida e perpetuada, como se vê nas diferentes raças de cavalos, gado
e ovelhas encontradas inclusive num tão restringido campo de ação,
como a Grã-Bretanha. É certo, portanto, que há diversidade de caráter
externo ou material, não indicativo da diversidade de desígnio, plano, e a
intenção bem pode assumir-se como indicativos da diversidade de
espécies. A presença de uma pele conectando os dedos do pé ou as
garras de um pássaro, é em si um assunto comparativamente pequeno. É
insignificante quanto à quantidade de material gasto, e quanto ao efeito
na aparência geral em comparação com os pontos de diferença entre o
galgo e o mastim, e entretanto, é indicativo de desígnio. Indica que o
animal está destinado a viver na água, e tudo o mais em sua estrutura e
natureza encontra-se em correspondência com essa intenção. Uma
pequena diferença de estrutura indicativa de desígnio demonstrará
diferença das espécies, quando muito maiores diferenças não indicativas
são perfeitamente compatíveis com a unidade da espécie.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
128
O argumento fisiológico.
O segundo método de determinar a identidade do princípio
imaterial em que a ideia das espécies reside, é o exame de seu φύσις phusis, ou de sua fisiologia.
Para este departamento pertence o que se refere à debilitação ou a
distribuição da força nervosa; à circulação do sangue; à respiração; a
calorificação ou a produção de calor animal; à distribuição dos músculos
voluntários e involuntários; aos processos da digestão, à assimilação,
propagação, etc., etc. Quanto a este ponto é objeto de observação: (1.)
Que o φύσις - phusis ou natureza animal, sempre de acordo com o σῶμα
- soma, ou a estrutura corporal. Nunca encontramos os órgãos de um dos
animais aquáticos com a φύσις - phusis de um animal terrestre. Tudo o
relacionado com a fisiologia do animal está em harmonia com sua
organização corpórea. (2.) Quando, em todos os aspectos da natureza
física das pessoas ou as variedades é a mesma, a espécie não é a mesma,
onde a φύσις - phusis é diferente, a espécie é diferente. (3.) Que a
fisiologia de um animal é, pois, como facilmente comprovado, e é tão
uniforme e fixo, visto que sua estrutura material, e de fato muito mais. A
estrutura material pode, e como vimos, diferem excessivamente nas
diferentes variedades incluídas na mesma espécie, mas a φύσις - phusis é
sempre a mesma. A fisiologia do galgo é idêntica a do mastim, e a do
pônei Shetland é a mesma que a do carro-cavalo de Londres.
O argumento psicológico.
O terceiro critério da identidade das espécies é preciso buscá-lo na
ψυχή - psuche, ou a natureza psicológica do animal. A ψυχή - psuche é o
princípio imaterial que pertence a todos os animais, e é o mesmo em tipo
em cada espécie distinta. É aquele em que reside a vida, que é a sede dos
instintos, e dessa medida da inteligência, quer seja maior ou menor, que
pertence ao animal. A ψυχή - psuche é a mesma em todos os indivíduos
da mesma espécie, e é permanente. Os instintos e hábitos da abelha, a da
vespa, da formiga e do castor, do leão, do tigre, do lobo, da raposa, do
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
129
cavalo, do cão, e do boi, e de todas as diversidades sem fim de animais,
aves, peixes e insetos, são os mesmos em todas as idades e em todas as
partes do mundo. Este princípio imaterial é de uma ordem superior em
alguns casos que em outros, e admite graus mais ou menos da cultura,
como se vê no elefante treinado ou numa raça de cães bem disciplinada.
Mas o principal é que cada espécie tem sua própria ψυχή - psuche, e que
este é um elemento mais elevado e maior evidência decisiva da
identidade da estrutura corporal ou inclusive a φύσις - phusis, ou a
natureza animal. Quando estes três critérios coincidem, quando a
organização corporal, em tudo indicativos de desígnio, é o mesmo, onde
a φύσις - phusis e a ψυχή - psuche, as naturezas física e psicológica, são
as mesmas, ali, para além de toda dúvida razoável, a espécie é a mesma.
O quarto critério da espécie encontra-se não só em sua
permanência, mas na capacidade de procriação e multiplicação
indefinida que pertence a todos os indivíduos e as variedades que se
inclui. Os animais da mesma espécie podem propagar sua espécie. Os
animais de espécies diferentes não podem combinar-se e perpetuar uma
nova espécie ou mestiços. Isto, como vimos é um fato admitido em todas
as classes dos naturalistas, excetuados uns poucos indivíduos. É um fato
patente a toda a humanidade e verificados pela experiência todas as
idades.
§ 3. Aplicação destes critérios ao homem.
Quando chegamos a aplicar estes critérios diversos à raça humana,
encontra-se fora de toda dúvida que todos eles coincidem em demonstrar
que toda a família humana são uma e a mesma espécie. Em primeiro
lugar, a moldura corpórea ou estrutura externa é a mesma em todas as
variedades da raça. Há o mesmo número de ossos no esqueleto; seu
arranjo e disposição são os mesmos. Há a mesma distribuição dos vasos
sanguíneos. O cérebro, a medula espinhal e o sistema nervoso são os
mesmos em todos. Todos eles têm os mesmos músculos que sobe a
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
130
muitos milhares em número. Os órgãos de respirar, a respiração, a
digestão, a secreção, e a assimilação, são os mesmos em todos.
De fato, existem diferenças de tamanho indefinido, compleição e
caráter, e a cor do cabelo, dentro da mesma variedade da raça, e entre as
próprias variedades. Algumas destas diferenças são variáveis, e algumas
são fixas. O caucasiano, o mongol, o africano, têm cada um suas
peculiaridades pelas quais uma se distingue facilmente das demais, e que
descendem de geração em geração sem alteração. Com relação a estas
peculiaridades, entretanto, é de notar-se, em primeiro lugar, que são
menos importantes e menos visíveis que os que distinguem as diferentes
variedades de animais domésticos pertencentes à mesma espécie. Não há
dois homens, ou não há homens de diferentes raças, diferentes entre si
tanto como o galgo italiano e o poderoso mastim de grande alcance ou o
buldogue. E em segundo lugar, nenhuma destas peculiaridades são
indicativas da diferença de desígnio, ou plano, e portanto não são
indicativas da diferença no princípio imaterial, que segundo os
naturalistas da mais alta classe, determina a identidade das espécies e
assegura sua permanência. E em terceiro lugar, estas peculiaridades são
referentes às diferenças de clima, dieta, e o modo de vida, e aos efeitos
de propagação no caso das peculiaridades adquiridas. A verdade desta
última afirmação quanto à influência destas diversas causas na
modificação e na perpetuação das variedades da mesma espécie, está
abundantemente ilustrado e confirmado no caso de todos os animais
inferiores. Tal é a igualdade de todas as variedades da humanidade
quanto à sua estrutura corporal, que um sistema da anatomia escrita na
Europa e se baseia no exame dos corpos dos europeus exclusivamente,
seria aplicável na Ásia, África, América e Austrália, como na própria
Europa.
O segundo critério de igualdade das espécies é preciso buscá-lo na
φύσις - phusis ou natureza física. A este respeito também toda a
humanidade encontra-se num acordo, de modo que a fisiologia do
caucasiano, do mongol e do africano é precisamente o mesmo. As leis
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
131
que regulam os processos vitais são as mesmas em todos; respiração,
digestão, secreção, e a propagação, são todos realizados na mesma forma
em todas as variedades da espécie.
O terceiro critério encontra-se na natureza psicológica ou ψυχή psuche. Isto, como vimos, é a máxima prova, para a ψυχή - psuche ou
princípio imaterial é o elemento mais importante na constituição de todo
ser vivente. Onde isso é a mesma, a espécie é a mesma. Não pode haver
nenhuma dúvida razoável de que as almas de todos os homens são
essencialmente as mesmas. Eles não só têm em comum todos os apetites,
os instintos e as paixões, que pertencem às almas dos animais inferiores,
mas todos compartilham dos atributos superiores que pertencem
exclusivamente ao homem. Todos eles estão dotados de razão,
consciência, e o livre-arbítrio. Todos eles têm os mesmos princípios e
afetos constitucionais. Todos eles estão na mesma relação com Deus
como espíritos que possuem uma natureza moral e religiosa.
O quarto critério é a permanência, e a capacidade de propagação
indefinida. Vimos que é uma lei natural, reconhecida por todos os
naturalistas (com algumas poucas exceções recentes), que os animais de
espécies diferentes não convivem, e não pode propagar-se. Se as
espécies forem quase aliadas, como o cavalo e o asno, podem produzir
descendência que combina as peculiaridades de ambos os pais. Mas o
processo detém-se. As mulas não podem seguir a carreira mestiça.
Entretanto, é um fato admitido que os homens de toda raça, caucasiano,
mongol, e africano, pode assim coabitar, e de seus filhos pode ser
indefinidamente reproduzidos e combinados. “Foram estas unidades
[espécies]”, diz o professor Dana, “capaz de mesclar entre si
indefinidamente 107 , que já não seriam unidades, e as espécies não podem
ser reconhecidas. O sistema de vida seria um labirinto de complexidades,
e qualquer que seja sua grandeza a um ser que podia compreender o
infinito, seria ininteligível caos para o homem. . . . Seria o homem o
107
Bibliotheca Sacra, 1857, p. 863.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
132
templo da natureza fundida sobre toda sua superfície, e através de sua
estrutura, sem uma linha a mente poderia medir ou compreender.”
Como, portanto, o universo é construído num plano definido; em
que suas leis são uniformes, e como os elementos constitutivos do
mundo material são permanentes, seria em estranha contradição com esta
analogia universal, se no mais alto departamento da natureza, no mundo
orgânico e vivo, tudo deve ser instável, de modo que as espécies
poderiam misturar-se com as espécies, e o caos ocupar o lugar da ordem
e uniformidade. Como, portanto, as diferentes variedades de homens se
unem livremente e produzem descendência permanente prolífica, todas
as variedades devem pertencer a uma mesma espécie, ou uma das mais
fixas das leis da natureza, é em seu caso inverso.
A evidência da identidade da raça acumulativa.
É preciso assinalar que a força deste argumento a favor da unidade
da raça humana não depende de nenhum dos dados aqui mencionados
separadamente. Antes, é em sua combinação que reside o poder do
argumento. Não é simplesmente porque a estrutura corporal é
essencialmente a mesma em todos os homens; nem simplesmente porque
têm todas as mesmas características físicas, psicológicas ou da própria
natureza; ou porque são capazes de produzir descendência prolífica
permanente, mas antes, porque todos estes dados são verdade com
relação a toda a família humana onde quer que se encontre através de
todo o curso de sua história. Converte-se numa mera questão de
logomaquia de controvérsia se os homens são da mesma espécie, se têm
o mesmo organismo material, a mesma φύσις - phusis e a mesma ψυχή psuche. Quer seja da mesma espécie ou não, se estas coisas são
admitidas que não pode ser racionalmente negado, eles são da mesma
natureza, eles são seres do mesmo grupo. Os naturalistas podem dar
sentido à palavra espécie como desejam. Isto não pode alterar os fatos do
caso. Todos os homens são do mesmo sangue, da mesma raça, da mesma
ordem da criação.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
133
“Que as raças dos homens,” diz Delitzsch, “não são espécies de um
gênero, mas sim as variedades de uma espécie, vê-se confirmado pelo
arranjo de que os fenômenos psicológicos e patológicos em todas elas,
pela similitude na estrutura anatômica, nos poderes fundamentais e nos
aspectos da mente, nos limites à duração da vida, na temperatura normal
do corpo e na taxa média de pulsações, na duração da gravidez, e na livre
fecundidade dos casamentos entre distintas raças.” 108
§ 4. O argumento filológico e moral.
Além dos argumentos antes mencionados, que são todos de caráter
zoológico, há outros, não menos conclusivos, de um tipo diferente. Uma
das realidades desafortunadas que acompanhou esta controvérsia é que
foi deixada muito nas mãos dos naturalistas, de homens treinados a
considerar quase exclusivamente o material, ou como muito o que entra
dentro da área da vida natural. Desta maneira, tornam-se unilaterais, e
deixam de levar em conta todos os aspectos do caso ou de estimar de
maneira devida todos os dados que entram na solução do problema.
Assim, Agassiz ignora todos os fatos relacionados com as linguagens,
com a história e com o caráter mental, moral e religioso e a condição do
homem. Por isso, chega a conclusões que uma devida consideração
destes dados teria feito impossíveis.
A ciência da filologia comparada está baseada em umas leis tão
certas e autorizadas como as da natureza. A linguagem não é um produto
do acaso. É essencialmente distinta de gritos instintivos ou de sons
inarticulados. É uma produção da mente, tremendamente complexa e
sutil. É impossível que raças inteiramente distintas tivessem a mesma
linguagem. É totalmente certo pelo caráter das línguas francesa,
espanhola e italiana, que estas nações são, em grande medida,
descendentes comuns da raça latina. Por isso, quando se pode mostrar
108
Commentary on Genesis.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
134
que as linguagem das diferentes raças ou variedades de homens são
radicalmente os mesmos, ou derivados de um tronco comum, é
impossível duvidar racionalmente que descendem de uma linhagem
comum. Por isso, a unidade de linguagem demonstra a unidade de
espécie porque demonstra unidade de origem. Por outro lado, a
diversidade de linguagem não demonstra diversidade nem de espécie
nem de origem, porquanto esta diversidade pode ser devido a outras
causas como por exemplo a confusão de línguas em Babel, ou pela
antiga e continuada separação de diferentes tribos. Entretanto, o ponto a
enfatizar agora é este: Há naturalistas que, como Agassiz, e sobre
princípios meramente zoológicos, decidiram que é mais provável (não
que seja necessariamente certo, mas simplesmente que é mais provável)
que as diferentes variedades de homens, inclusive até o nível de
diferentes nações, tenham tido origens diversas, e, tal como mantém
Agassiz em seus escritos mais recentes, que sejam espécies diferentes.
No entanto, pelo menos em muitos casos, é totalmente seguro, com base
no caráter das línguas que falam, que devem ter-se derivado de um
tronco comum. Agassiz e outros descrevem as raças europeias e asiáticas
como distintas em origem e espécie. Mas Alexander von Humboldt diz:
«O estudo comparativo das línguas nos mostra que raças hoje em dia
separadas por vastas extensões de terra, estão unidas, e emigraram
procedentes de um centro primordial comum. ... O maior campo para tais
investigações a respeito da antiga condição da linguagem, e por
conseguinte do período em que toda a família humana devia ser
considerada, no sentido estrito do termo, como um todo vivente,
apresenta-se na longa cadeia das linguagens indo-europeias, que se
estende desde o Ganges até o extremo da Europa ibérica, e desde a
Sicília até o Cabo Norte» 109
Max Müller diz: “A evidência da língua é incontestável, e é a única
prova que vale a pena escutar, com o que se refere aos períodos pré109
Cosmos, Tradução do Otte, edição de Londres, 1849, Vol. II, pp. 471, 472.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
135
históricos não há um jurado inglês hoje em dia, que, depois de examinar
os documentos centenários de idioma, rejeitaria a reivindicação de uma
descendência comum e uma relação legítima entre hindus, gregos e
teutões.” 110
O Chevalier Bunsen diz: “A língua egípcia testemunha uma
unidade de sangue com as grandes tribos aramaicas da Ásia, cujas
línguas se formaram sob a expressão geral semita, das línguas da família
de Sem. É igualmente unido pela identidade de origem com as tribos
ainda mais numerosas e ilustres que ocupam agora a maior parte da
Europa, e talvez, só ou com outras famílias, pode ter direito a ser
chamado a família de Jafé.” 111 Esta família, diz, inclui a nação alemã, os
gregos e os romanos, e os índios e os persas. Dois terços da raça humana
são assim identificados por estas duas classes de idiomas que tiveram
uma origem comum. Pela mesma prova infalível Bunsen mostra que a
origem asiática de todos os índios da América do Norte, “é tão
plenamente demonstrado como a unidade da família entre si.” 112
Cada dia é a adição de uma nova linguagem a esta lista de afiliados,
e apresenta provas adicionais da unidade da humanidade. O ponto em
particular que agora se considera é que as conclusões do mero zoólogo
como a diversidade de espécies e a diversidade de origem como
consequência das diferentes variedades de nossa raça, está demonstrado
que é falso o testemunho de alguns da origem comum das línguas que
eles falam.
A relação espiritual dos homens.
Além dos argumentos já mencionados em favor da unidade da
humanidade, depois da asserção direta da Bíblia, o que afinal de contas
tem a maior força se deriva da atual condição de nossa natureza moral e
espiritual. Sempre que nos encontramos com um homem, não importa de
110
Quoted in Cabell's Unity of Mankind, pp. 228, 229.
Ibid. p. 232.
112
The Philosophy of Universal History, edit. London, 1854, Vol. II. p. 112.
111
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
136
que nome ou nação, não só descobrimos que tem a mesma natureza nós,
que tem os mesmos órgãos, os mesmos sentidos, os mesmos instintos, os
mesmos sentimentos, as mesmas faculdades, o mesmo entendimento,
vontade e consciência, e a mesma capacidade de cultura religiosa, mas
também tem a mesma natureza culpada e contaminada, que necessita a
mesma redenção. Cristo morreu por todos, e nos mandou que preguemos
o evangelho a toda criatura debaixo do céu. Por isso, não se encontra em
nenhuma parte da terra a nenhum homem que não necessite o evangelho
ou que não seja capaz de chegar a ser partícipe das bênçãos que oferece.
A relação espiritual dos homens, sua comum apostasia, e o comum
interesse de todos na redenção operada por Cristo, demonstra sua comum
natureza e sua origem comum além da possibilidade de toda dúvida
razoável ou desculpável.
Nossa atenção esteve dirigida até aqui de maneira especial à
unidade da humanidade quanto à espécie. Pouco é necessário dizer em
conclusão quanto à sua unidade em origem. (1) Porquanto na opinião dos
mais distinguidos naturalistas, a unidade de espécie é em si mesma prova
decisiva da unidade de origem. (2) Porque inclusive se isto for negado, é
entretanto admitido universalmente que quando a espécie é a mesma a
origem pode ser a mesma. Se a humanidade difere quanto à espécie, não
podem todos descender de um progenitor comum, mas se é idêntica
quanto à espécie, não há dificuldade em admitir sua descendência
comum. * Na verdade, é principalmente pelo desejo de refutar a
declaração escriturística de que todos os homens são filhos de Adão, e
*
A respeito da origem comum da espécie humana, é de interesse citar algumas recentes investigações
levadas a cabo por uma equipe de biólogos da Universidade de Califórnia em Berkeley. Esta equipe,
composto pelo Allan Wilson, Rebecca Cann e Mark Stoneking, investigou o DNA da mitocôndria.
Este DNA tem uma peculiaridade, e é que é sempre e unicamente herdado da parte da mãe. A análise
do DNA mitocondrial de seres humanos de todo o globo deu uma evidência inequívoca de que todos
os seres humanos da terra o herdaram que uma só mulher. Estes são os fatos. Interpretações não
faltam a respeito de como pôde perder o DNA mitocondrial de outras supostas mães numa suposta
multiplicidade de origens. Mas os fatos em si seguem concordando com a Revelação que DEUS nos
dá na Escritura, de que houve uma «mãe de todos os viventes»: Eva (Gn 3:29). (N. do T.)
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
137
para romper a comum irmandade do homem, que se insiste numa
diversidade de espécies. Portanto, se for admitido o último, pode-se
facilmente conceder o primeiro. (3) A origem comum das linguagens da
imensa maioria dos homens demonstra, como já dissemos, sua
comunidade de origem, e como inferência, sua unidade quanto à espécie.
E porquanto esta comunidade de origem se demonstra quanto a raças, as
quais o mero zoólogo tem propensão a descrever com a maior confiança
como distintas, fica com isso demonstrada a insuficiência da base de sua
classificação. (4) Entretanto, é o testemunho direto das Escrituras a
respeito desta questão, com o que são consistentes todos os fatos
conhecidos, e a comum apostasia da raça, e sua comum necessidade de
redenção, o que faz certo para todos os que creem na Bíblia ou no
testemunho de sua própria consciência quanto à pecaminosidade
universal da humanidade, que todos os homens são descendentes de um
progenitor caído.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
CAPÍTULO V
138
O ESTADO ORIGINAL DO HOMEM
§ 1. A doutrina escriturística.
A doutrina escriturística a respeito desta questão inclui os seguintes
pontos: Primeiro, que o homem foi criado originalmente num estado de
maturidade e perfeição. Por isso, entretanto, não se entende que a
humanidade em Adão antes da Queda, existiu no estado mais elevado de
excelência da qual é suscetível. É totalmente provável que nossa
natureza, em virtude de sua união com a natureza divina na pessoa de
Cristo, e em virtude da união entre os redimidos com seu exaltado
Redentor, será depois elevado a uma dignidade e glória muito maior que
aquela em que Adão foi criado ou a que alguma vez poderia ter
alcançado. Pela maturidade do homem como primeiro criado se significa
que não foi criado num estado de infância. Uma pressuposição predileta
dos céticos é que o homem era brutal no princípio, quanto a corpo e
alma; que foi formando lentamente para si uma linguagem articulada,
despertando lentamente as capacidades morais. Isto, entretanto, é
inconsistente não só com o relato escriturístico de sua criação, mas
também com o papel para o qual foi designado para agir, e que de fato
agiu. Pela perfeição de seu estado original se significa que estava
perfeitamente adaptado para o fim para o qual tinha sido feito, e para a
esfera dentro da qual estava designado que se movesse. Esta perfeição
quanto a seu corpo não consistia só na integridade e proporção devida a
todas as suas partes, mas também na perfeita adaptação à natureza da
alma com a que tinha sido unido. Os teólogos estão acostumados a dizer
que o corpo foi criado imortal e impassível. Com relação à imortalidade,
é coisa certa que se o homem não tivesse pecado, não teria morrido. Mas
que a imortalidade que então teria sido o destino do corpo teria sido o
resultado de sua organização original, ou que depois de seu período de
prova tivesse passado por uma mudança para adaptá-lo à sua condição
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
139
eterna, é algo que se considerará mais adiante. Por impassibilidade não
se significa necessariamente uma isenção total da suscetibilidade à dor,
porque tal suscetibilidade em nosso atual estado terrestre, e talvez em
qualquer concebível estado terrestre, é uma condição necessária de
segurança. É um bem, e não um mal; uma perfeição, e não um defeito.
Tudo o que se deve significar com este termo é que o corpo de Adão
estava isento das sementes de doença e morte. Nada havia em sua
constituição que fosse inconsistente com a mais elevada felicidade e
bem-estar do homem no estado em que foi criado, e nas condições sob as
quais devia viver.
O fato de que o estado primitivo de nossa raça não fosse de uma
barbárie da qual os homens tenham ido saindo por si mesmos através de
um lento processo de melhora o sabemos, primeiro, pela autoridade das
Escritura, que como vimos descreve o homem como criado na plena
perfeição de sua natureza. Este fato é decisivo para todos os cristãos.
Segundo, as tradições de todas as nações se referem a uma era dourada
da qual os homens caíram. Estas estendidas tradições não podem ser
explicadas de maneira racional exceto com base na aceitação de que o
relato das Escrituras do estado primitivo do homem é correto. Terceiro, a
evidência da história está totalmente do lado da doutrina da Bíblia a
respeito desta questão. O Egito derivou sua civilização do Este; a Grécia
da Fenícia e Egito; a Itália da Fenícia e Grécia; o resto da Europa da
Itália. A Europa está agora estendendo rapidamente sua influência
civilizadora sobre a Nova Zelândia, Austrália e as ilhas do Oceano
Pacífico. A afinidade de línguas demonstra que a antiga civilização do
México e da América do Sul se originou na Ásia Oriental. Por outro
lado, não há nenhum relato autêntico de uma nação de selvagens
emergindo por seus próprios esforços de um estado de barbárie a uma
condição de civilização. O fato de que Sir John Lubbock e outros
proponentes da doutrina contrária vejam-se obrigados a apoiar-se em
fatos tão obscuros e realmente insignificantes como a cultura superior
dos índios modernos neste continente contribui para outra prova da
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
140
ausência de evidência histórica em apoio da teoria de uma barbárie
primitiva. Quarto, os mais antigos registros, escritos e monumentais, dão
evidência da existência de nações num alto estado de civilização, nos
mais antigos períodos da história humana. Este fato é facilmente
explicado sobre a base da verdade da doutrina das Escrituras a respeito
do estado primordial do homem, mas não se pode explicar com base na
hipótese oposta. Necessita a gratuita assunção da existência de homens
durante eras incontáveis antes destes anteriores períodos históricos.
Quinto, a filologia comparativa estabeleceu o fato da íntima relação entre
todas as grandes divisões da raça humana. Além disso, demonstrou-se
que todas tiveram sua origem de um centro comum, e que este centro foi
a sede da mais antiga civilização.
A teoria de que a raça humana passou através de uma idade da
pedra para uma de bronze, e para uma de ferro, como etapas de
progresso da barbárie à civilização, carece, como já dissemos, de base
científica. Não se pode demonstrar que a idade da pedra prevalecesse
contemporaneamente em todas as partes da terra. E se isto não se pode
demonstrar, de nada serve mostrar que houve um período em que os
moradores da Europa eram desconhecedores dos metais. O mesmo podese demonstrar a respeito dos patagônios e de algumas tribos africanas em
nossos dias.
Portanto, tem sido quase a crença universal de que o estado original
do homem foi, como ensina a Bíblia, seu estado mais elevado, do qual as
nações da terra têm mais ou menos deteriorado. Este estado primitivo,
entretanto, distinguiu-se pela superioridade intelectual, moral e religiosa
dos homens e não pela superioridade nas artes ou nas ciências naturais.
A doutrina da Escritura, portanto, é consistente com o fato admitido de
que as nações independentes, e a raça humana como um todo, fizeram
grandes avanços em todos os ramos do conhecimento e em todas as artes
da vida. Tampouco é inconsistente com a crença de que o mundo sob a
influência do cristianismo está melhorando constantemente, e alcançará
em última instância, sob o reinado de Cristo, a perfeição e a glória
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
141
milenária. Tudo o que se nega é que os homens eram originalmente
selvagens no estado mais baixo da barbárie, da qual têm emergido
gradualmente.
O já falecido arcebispo Whately, em sua obra sobre “Economia
Política,” confessou sua crença na doutrina comum sobre o estado
primitivo do homem. Ele diz: “Não temos nenhuma razão para crer que
qualquer comunidade feita jamais, nem nunca pode surgir sem ajuda de
ajudas externas, de um estado de barbárie a alguma coisa que possa
chamar-se civilização.” Em oposição a esta doutrina, Sir John Lubbock
tenta mostrar “que há indícios de progresso, inclusive entre os
selvagens,” e “que entre as nações mais civilizadas encontram-se rastros
da barbárie original” 113
Antes de aduzir a prova de qualquer dessas proposições, ele
argumenta contra a teoria de que uma tribo se afundou de uma condição
superior a uma inferior, devido ao fato de que existem certas artes que
são tão simples e tão úteis, que uma vez conhecidas, elas poderiam
nunca perder-se. Se os homens tinham sido pastores e agricultores,
nunca se converteriam em meros caçadores; se for familiarizado com o
uso dos metais, ou a arte de fazer cerâmica, estas aquisições não podiam
perder-se. Se uma vez em posse de conhecimento religioso, esse
conhecimento não poderia perecer. Como, entretanto, há tribos existentes
nesse momento que, como ele diz, não têm nenhuma religião, nem
conhecimento das artes ou da agricultura, ele argumenta que devem ter
sido bárbaros desde o princípio, e que a barbárie deve ter sido o estado
original do homem.
Para demonstrar que selvagens podem por seus próprios esforços
pertencer à civilização ele se refere a fatos como os seguintes: Os
australianos tinham anteriormente canoas de casca, que abandonaram por
outras, escavadas no tronco de uma árvore, “que eles compram dos
113
The Origin of Civilization and the Primitive Condition of Man. By Sir John Lubbock, Bart. M. P.,
F. R. S., London, 1870, p. 329.
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142
malaios.” Os peruanos tinham domesticado a chama, os polinésios
fizeram tecido de casca. “Outro caso muito forte,” diz, “é o bumerangue
dos australianos. Esta arma não é conhecida de nenhuma outra raça de
homens,” e portanto, argumenta ele, não pode ser uma relíquia de um
estado superior de civilização. Ele insiste muito no caso dos Cherokees
que se converteram em agricultores, tendo arados, cavalos, gado negro,
etc., ignorando o fato de que estavam rodeados pelos americanos
civilizados e tinham desfrutado durante anos o ensino fiel de
missionários cristãos que os instruíram em todas as artes úteis.
Ele encontra as indicações da barbárie original da raça no fato de
que implementos de pedra encontram-se não só na Europa, mas também
na Ásia, o berço da humanidade, e na melhora gradual da relação entre
os sexos. 114 Seu livro está desenhado para “descrever a condição social e
mental dos selvagens, sua arte, seus sistemas de casamento e de relação,
suas religiões, idioma, caráter moral e leis.”
Isto o faz por uma coleção muito abundante de dados nestes vários
chefes; e dali tira as seguintes conclusões. “Esses selvagens existentes
não são os descendentes dos antepassados civilizados. Que a condição
primitiva do homem foi uma barbárie absoluta. Que desta condição
várias raças se levantaram de forma independente.” 115 Como estas
conclusões se derivam dos fatos detalhados, é impossível ver,
especialmente no que se opõem não só à Bíblia, mas também a todos os
ensinos da história. Que as tribos mais selvagens têm baixas ideias de
Deus, é para nós prova de que nossos primeiros pais eram adoradores do
fetiche, quando toda a história demonstra que a religião primitiva de
nossa raça foi teísmo puro. Assim como os homens perderam o
conhecimento do verdadeiro Deus, eles se tornaram cada vez mais
114
Na página 66, diz ele: “Supondo que o sistema de casamento comunal é mostrado nas páginas
anteriores como prevalecente, ou prevaleceu tão amplamente entre as raças num estado inferior de
civilização, representa a condição social do homem primitiva e a mais anterior, nós agora viemos a
considerar as diversas formas em que podem ter sido dissolvidas e substituídas pelo casamento
individual.”
115
Ibid. p. 323.
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143
degradados em todos os outros aspectos. E os que foram expulsos dos
centros de civilização em regiões inóspitas, tórridas ou árticas,
afundando-se cada vez mais na escala do ser.
A verdade é que não há nada no livro de Sir John Lubbock que
possa abalar a fé de um menino cristão na doutrina da Bíblia quanto ao
estado primitivo do homem.
§ 2. O homem criado à imagem de Deus.
Além do homem, os outros animais foram criados amadurecidos e
perfeitos, cada um segundo sua natureza. A característica distintiva do
homem é que ele foi criado à imagem e semelhança de Deus. Muitos dos
antigos escritores deram por sentado que a palavra «imagem» se referia
ao corpo, que eles pensavam que por sua beleza, aspecto inteligente e
postura erguida, era uma sombra de Deus, e que a palavra «semelhança»
se referia à natureza intelectual e moral do homem. Segundo Agostinho,
a imagem se relaciona com a cognitio veritatis, e a semelhança com o
amor virtutis; a primeira com as faculdades intelectuais, e a segunda com
as morais.
Este foi o fundamento da doutrina escolástica de que a imagem de
Deus inclui os atributos naturais da alma; e a semelhança nossa
conformidade moral com o Ser divino. Esta distinção se introduziu na
teologia romana. Belarmino 116 diz: “Imaginem in natura, similitudinem
in probitate et justitia sitam esse.” Ele diz também: 117 “Ex his tot patrum
testimoniis cogimur admittere, non esse omnino idem imaginem et
similitudinem, sed imaginem ad naturam, similitudinem ad virtutes
pertinere; proinde Adamum peccando non imaginem Dei, sed
similitudinem perdidisse.” Outros modificaram um pouco esta
perspectiva fazendo com que a imagem do Deus consistisse o que era
116
117
De Gratia et Libero Arbitrio, I. 6. Disputationes, Paris, 1608, vol. iv. p. 402, a.
De Gratia Primi Hominis, 2. Ibid. p. 8, d.
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144
natural e criado, e a semelhança no adquirido. O homem foi criado à
imagem de Deus, e se amoldou à Sua semelhança. Isto é, empregou de
tal maneira seu dotes naturais que chegou a ser semelhante a Deus em
seu caráter. Mas todas estas distinções descansam numa falsa
interpretação de Gn 1:26. As palavras ‫צ ּלֶם‬
ֶ - tselem y ‫ ְּדמו ּת‬- d'muth
são simplesmente explicativas uma da outra. Imagem e semelhança
significa uma imagem que se assemelha. A simples declaração das
Escrituras é que na criação o homem era semelhante a Deus. A natureza
desta semelhança era uma questão debatida. Segundo os teólogos
Reformados e a maioria dos teólogos de outras divisões da Igreja, a
semelhança do homem com Deus incluía os seguintes pontos:
Sua natureza intelectual e moral. Deus é Espírito, a alma humana é
um espírito. Os atributos essenciais do espírito são a razão, a consciência
e a vontade. Um espírito é um agente racional, moral e, por isso também,
um agente livre. Por isso, ao fazer ao homem conforme a sua imagem,
Deus lhe dotou daqueles atributos que pertencem à sua própria natureza
como espírito. Assim, o homem fica distinto de todos os outros
moradores deste mundo, e é levantado incomparavelmente acima deles.
Pertence à mesma ordem de ser que o próprio Deus, e é por isso capaz de
ter comunhão com seu Criador. Esta conformidade de natureza entre o
homem e Deus não só é a prerrogativa distintiva da humanidade, pelo
que respeita às criaturas terrestres, mas também é a condição necessária
de nossa capacidade de conhecer a Deus, e por isso o fundamento de
nossa natureza religiosa. Se não fôssemos semelhantes a Deus, não
poderíamos conhecê-Lo. Seríamos como as bestas que perecem. As
Escrituras, ao declarar que Deus é o Pai dos espíritos, e que nós somos
Sua linhagem, ensinam-nos que somos partícipes de Sua natureza como
ser espiritual e que um elemento essencial daquela semelhança com
Deus em que o homem foi originalmente criado consiste em nossa
natureza racional ou espiritual.
Sobre este tema, entretanto, houve duas opiniões extremas. Os
teólogos gregos fizeram a imagem de Deus em que o homem foi criado
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
145
consistir exclusivamente em sua natureza racional. A maioria deles
ensinou que o εἰκών era ἐν λογικῇ ψυχῇ, ou como João de Damasco 118
expressa: τὸ κατ᾽ εἰκόνα, τὸ νοερὸν δηλοῖ καὶ αὐτεξούσιον. E Irineu 119
diz: “Homo vero rationabilis et secundum hoc similis Deo.” Os
remonstrantes e os socinianos estavam dispostos a limitar a imagem de
Deus em que o homem foi criado para seu domínio. Limborch 120 assim
diz: “Illa imago aliud nihil est, quam eximia, quædam qualitas et
excellentia, qua homo Deum speciatim refert: hæc autem est potestas et
dominium, quod Deus homini dedit in omnia a se creata. . . . . Hoc enim
dominio Deum proprie refert, estque quasi visibilis Deus in terra super
omnes Dei creaturas constitutus.” Este domínio, contudo, foi fundado na
natureza racional do homem e, portanto, Limborch acrescenta, que a
semelhança de Adão com Deus pertencia à sua alma, “quatenus ratione
instructa est, cujus ministerio, veluti sceptro quodam, omnia sibi
subjicere potest.” Estas opiniões estão de acordo em excluir a
conformidade moral do homem com Deus da ideia da imagem divina em
que foi criado.
Os teólogos luteranos eram, em geral, inclinados a ir ao extremo
oposto. A imagem de Deus, segundo eles, era o que se tinha perdido pela
Queda, e que é restaurada pela redenção. Assim, Lutero diz: “So ist nun
hier so viel gesagt, dass der Mensch am Anfang geschaffen ist ein Bild,
das Gott ähnlich war, voll Weisheit, Tugend, Liebe and kurzum gleich
wie Gott, also dass er voll Gottes war.” E: “Das ist Gottes Bild, das eben
also wie Gott gesinnet ist und sich immer nach ihm ahmet.” 121 Calovius
e outros teólogos luteranos dizem expressamente: “Anima ipsa rationalis
non est imago divina, aut imaginis pars, quia anima non est amissa, at
imago amissa est.” E de novo: “Unde patet, conformitatem, quæ in
substantia animæ reperitur aut corporis, ad imaginem Dei, stylo biblico
118
II. 12; Strauss, Dogmatik, vol. i. p. 690.
IV. iv. 3; Works, edit. Leipzig, 1853, Vol. I. p. 569.
120
Theologia Christiana, II. xxiv. 2, edit. Amsterdam, 1715, pp. 133, 134.
121
Sermons on Genesis, edit. Erlangen, 1843, vol. xxxiii. pp. 55, 67.
119
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146
descriptam, non pertinere, quia substantia animæ aut corporis per lapsum
non est perdita, nec per renovationem restauratur.”
Isto, entretanto, é antes, uma disputa sobre o uso da frase bíblica
“imagem de Deus,” que se aplica ao homem em seu estado original, que
pelo próprio fato, pois os luteranos não negam que a alma quanto à sua
natureza ou substância é como Deus. Hollazius admite que “Ipsa
substantia animæ humanæ quædam θεῖα seu divina exprimit, et exemplar
divinitatis refert. Nam Deus est spiritus immaterialis, intelligens,
voluntate libera agens, etc., etc. Quæ prædicata de anima humana certo
modo affirmari possunt.” 122
Os teólogos Reformados tomam o meio-termo entre os extremos de
fazer com que a imagem de Deus consista exclusivamente da natureza
racional do homem, ou exclusivamente de sua conformidade moral com
seu Criador. De maneira distintiva, incluem ambas as coisas.
Calvino 123 diz: Imago Dei est “integra naturæ humanæ præstantia,
quæ refulsit in Adam ante defectionem postea sic vitiata et prope deleta,
ut nihil ex ruina nisi confusum, mutilum, labeque infectum supersit.”
H. à Diest 124 é mais explícito: “Imago Dei fuit partim inamissibilis,
partim amissibilis; inamissibilis, quæ post lapsum integra permansit,
veluti animæ substantia spiritualis, immortalis, rationalis, cum potentiis
intelligendi et libere volendi; amissibilis, quæ partim plane periit, partim
corrupta est, manentibus tantum exiguis ejusdem reliquiis; veluti in
intellectu insignis sapientia, in voluntate et affectibus vera justitia et
sanctitas, in corpore immortalitas, sanitas, f'ortitudo, pulchritudo,
dominium in animalia, copia omnium bonorum et jus utendi creaturis.”
Maresius 125 diz: “Imago Dei spectavit, (1.) Animæ essentiam et
conditionem spiritualem, intelligentem et volentem, quod contra
Lutheranos pertendimus, quum post lapsum etiam rudera imaginis Dei
122
Examen, Leipzig, 1763, p. 463.
Institutio, lib. i. xv. 4, edit. Berlin, 1834, vol. i. p. 130.
124
Theologia Biblica, Daventriæ, 1644, pp. 73, 74.
125
Collegium Theologicum, loc. v. 52, 53, 54, edit. Gröningen, 1659, p. 60.
123
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147
adsint. (2.) Eluxit in accidentali animæ perfectione, mentis lumine,
voluntatis sanctitate, sensuum et affectuum harmonia atque ad bonum
promptitudine; (3.) conspicua fuit in dominio in omnia animalia.”
Assim, enquanto que as Escrituras fazem da original perfeição
moral do homem o elemento mais destacável desta semelhança com
Deus em que foi criado, não é menos certo que reconhecem o homem
como filho de Deus em virtude de sua natureza racional. Ele é a imagem
de Deus, e é portador e reflexo da semelhança divina entre os habitantes
da terra, porque é um espírito, um agente inteligente e voluntário, e como
tal está por direito investido com o domínio universal. Isto é o que os
teólogos Reformados estavam acostumados a chamar a imagem
essencial de Deus, em distinção da acidental. A primeira consistia na
própria natureza da alma, a segunda, em seus dotes acidentais, isto é,
aquelas que poderiam perder-se sem perder a própria condição humana.
§ 3. A justiça original.
Na imagem moral de Deus, ou justiça original, incluem-se:
1. A perfeita harmonia e devida subordinação de tudo o que
constituía o homem. Sua razão estava sujeita a Deus; sua vontade estava
sujeita à sua razão; seus afetos e apetites à sua vontade; o corpo era o
obediente órgão da alma. Não havia nem rebelião da parte sensível de
sua natureza contra a racional, nem havia desproporção alguma entre
elas que tivesse que ser controlada ou equilibrada mediante dons ou
influências ab extra [exteriores].
2. Mas além deste equilíbrio e harmonia na constituição original do
homem, sua perfeição moral em que se parecia com Deus, incluía o
conhecimento, a justiça e a santidade. As duas passagens do Novo
Testamento em que estes elementos da imagem divina na qual o homem
foi criado, são claramente mencionados, são Cl 3:10 e Ef 4:24.
No primeiro diz-se: “e vos revestistes do novo homem que se refaz
para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou:”
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148
ἐνδυσάμενοι τὸν νέον, τὸν ἀνακαινούμενον εἰς ἐπίγνωσιν κατ᾽ εἰκόνα
τοῦ κτίσαντος αὐτόν. O novo (νέον) homem, de acordo com a distinção
comum entre νέος e καινός, significa recente, recém feito, diferente de
velho (παλαιός). A qualidade moral ou excelência deste homem
recentemente formado-se expressa na palavra ἀνακαινούμενον, como no
uso das Escrituras que é καινός é puro. Esta renovação diz-se que é εἰς
ἐπίγνωσιν, não em os conhecimentos, e muito menos por o
conhecimento, senão para o conhecimento, de modo que ele conhece. O
conhecimento é o efeito da renovação de falar. A palavra ἐπίγνωσιν pode
estar relacionada com as palavras que seguem imediatamente (κατ᾽
εἰκόνα), conforme à imagem de Deus, quer dizer, do conhecimento como
aquele que Deus possui. Mais do que isso comum e natural tomar
ἐπίγνωσιν por si mesmo, e conectar κατ᾽ εἰκόνα com o particípio
anterior, “renovado à imagem de Deus.” O conhecimento aqui previsto
não é mero conhecimento. É conhecimento completo, preciso, vivo,
prático; tal conhecimento é a vida eterna, de modo que esta palavra aqui
inclui o que em Ef 4:24 se expressa pela justiça e santidade. Se a palavra
κτίσαντος refere-se a Deus como o autor da criação original, ou da nova
criação do que o apóstolo está falando aqui, é matéria de dúvida. No caso
mais firme, o significado seria, o crente é renovado à imagem de seu
Criador. Neste último caso, o sentido é que a renovação é posterior à
imagem do criador do novo homem. De acordo com o modo de
explicação a ideia é mais claramente expressa que o homem, como
originalmente criado, estava dotado de verdadeiro conhecimento.
Segundo a outra interpretação isto pode ser comprometido, mas não é
afirmado. Tudo o que o Apóstolo nesse caso afirma é que o homem
regenerado faz-se semelhante a Deus no conhecimento. Mas como o
homem original era também como Deus, e como o conhecimento está
incluído nessa semelhança, a passagem ainda demonstra que Adão foi
criado na posse do conhecimento de que o Apóstolo fala aqui.
Como a palavra κτίζειν no Novo Testamento sempre refere-se à
criação original, a menos que algum termo explanatório se acrescente,
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
149
como nova criação, ou, a menos que o contexto proíba sorte referência, e
como κτίσαντος não expressa o contínuo processo de transformação,
mas o ato momentâneo da criação como já passou, é mais natural
entender o Apóstolo como falando da semelhança original com Deus em
que o homem foi criado, a que o crente é restaurado. O novo, portanto,
não deve entender-se de τὸν γέον, mas de ἀνθρωπον, — conforme à
imagem dAquele que criou o homem. Esta é a velha interpretação dada
por Calovius e adotada por Wette, Rückert, e outros intérpretes
modernos. Calovius diz: “Per imaginem ejus, qui creavit ipsum, imago
Dei, quæ in prima creatione nobis concessa vel concreata est, intelligitur,
quæque in nobis reparatur per Spiritum Sanctum, quæ ratione intellectus
consistebat in cognitione Dei, ut ratione voluntatis in justitia et
sanctitate, Ef. 4:24. Per verbum itaque τοῦ κτίσαντος non nova creatio,
sed vetus illa et primæva intelligitur, quia in Adamo conditi omnes
sumus ad imaginem Dei in cognitione Dei.”
Efésios 4:24.
A outra passagem acima mencionada é Ef 4:24 [RC]: “e vos
revistais do novo homem, que, segundo Deus, é criado em verdadeira
justiça e santidade.” O novo homem, τὸν καινὸν ἄνθρωπον, diz-se que é
κατὰ θεὸν, quer dizer, à imagem de Deus, e essa imagem ou semelhança
com Deus diz-se que consiste em justiça e santidade. Estas palavras
quando se utilizam em combinação se pretende ser exaustivas, quer
dizer, para incluir toda excelência moral. Qualquer termo pode ser
utilizado neste sentido amplo, mas, quando distinguido, δικαιοσύνη
significa retidão, o ser e fazer o correto, o que exige a justiça; ὁσιότης, a
pureza, a santidade, o estado de ânimo produzido quando a alma está
cheia de Deus. Em lugar de verdadeira santidade, as palavras do
Apóstolo devem ser traduzidos “a justiça e santidade da verdade,” quer
dizer, a justiça e a santidade, que são os efeitos ou manifestações da
verdade. Na verdade aqui, em comparação com o engano (ἀπάτη)
mencionado no versículo 22, entende-se o que em Cl 3:10 chama-se
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
150
conhecimento. É a luz divina no entendimento, do qual o Espírito da
verdade é o autor, e de que, como sua causa próxima, todos os afetos e
atos santos continuam.
É clara destas passagens que o conhecimento, a justiça e a santidade
são elementos da imagem de Deus em que o homem foi criado
originalmente. Pelo conhecimento não se significa somente a faculdade
de conhecimento, a capacidade de adquirir conhecimentos, mas sim o
conteúdo dessa faculdade. Como o conhecimento pode ser inato, assim
pode ser concretizado. Adão, logo que começou a ser, teve conhecimento
de si mesmo; estava consciente de seu próprio ser, de suas faculdades e
de seu estado. Tinha também o conhecimento do que estava fora dele, ou
do que a moderna filosofia chama «consciência do mundo». Não só
percebia os vários objetos materiais que o rodeavam, mas também
compreendia bem a natureza dos mesmos. Não podemos determinar até
onde se estendia este conhecimento. Alguns supõem que nossos
primeiros pais tinham um conhecimento mais exaustivo do mundo
exterior, de suas leis, e da natureza de suas várias produções, que a
ciência humana nunca haja podido alcançar desde naquele tempo. É
coisa certa que pôde dar nomes apropriados a todas as classes de animais
que passaram diante dele para este fim, o que pressupõe uma devida
percepção de seus caracteres distintivos. A respeito deste ponto não
sabemos nada para além do que a Bíblia nos ensina. É mais importante
observar que Adão conhecia a Deus, cujo conhecimento é vida eterna. O
conhecimento, naturalmente, difere quanto a seus objetos. O
conhecimento de verdades meramente especulativas, o mesmo que o da
ciência e da história, é um mero ato do entendimento; o conhecimento do
belo envolve o exercício de nossa natureza estética; o das verdades
morais, o exercício de nossa natureza moral; e o conhecimento de Deus,
o exercício de nossa natureza moral e religiosa. O homem natural, diz o
Apóstolo, não recebe as coisas do Espírito, nem as pode conhecer. O que
se afirma de Adão é que, ao sair das mãos de seu Criador, sua mente
estava impregnada deste conhecimento espiritual ou divino.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
151
Tudo o que se disse a respeito do estado original do homem está
comprometido no relato da criação, que declara que foi feito semelhante
a Deus; e que foi pronunciado bom, muito bom. Que a bondade é o que
pertence ao homem como ser racional, imortal e religioso, e que é
necessário para adaptá-lo para a esfera em que ia transferir-se, e o
destino de que foi criado, aprendemos em parte das declarações
expressas das Escrituras, em parte pela natureza do caso, e em parte do
que está envolvido na humanidade restaurada por Cristo. De todas estas
fontes, é evidente que a doutrina protestante sobre a imagem de Deus e
justiça original em que e com que Adão foi criado não só inclui sua
natureza racional, mas também o conhecimento, a justiça e santidade.
§ 4. O domínio sobre as criaturas.
O terceiro ponto que entra na dignidade do estado original do
homem, e na imagem de Deus com a qual foi investido, era seu domínio
sobre as criaturas. Este surgiu dos poderes de que estava investido, e da
expressa designação de Deus. Deus o constituiu governante sobre a terra.
Pôs-lhe, como diz o Salmista, tudo debaixo de seus pés em 1 Coríntios
11:7 o Apóstolo diz que o homem é a imagem e glória de Deus, mas que
a mulher é a glória do homem. Isto o dá como razão pela qual o homem
não deveria fazer nada que implicasse a negação de seu direito a
governar. Por isso, era como governante que levava a imagem de Deus,
ou que O representava sobre a terra. Não é fácil determinar qual era a
extensão do domínio dado ao homem, ou a que estava destinada nossa
raça. A julgar pelo relato dado em Gênesis, ou inclusive pela linguagem
mais enérgica que se emprega no Salmo 8, deveríamos concluir que esta
autoridade devia estender-se só sobre os animais inferiores pertencentes
a esta terra. Mas o Apóstolo, em sua exposição das palavras do Salmista,
ensina-nos que era muito mais o que se expressava. Diz ele em 1Co
15:27: «E, quando diz que todas as coisas lhe estão sujeitas, certamente,
exclui aquele que tudo lhe subordinou». E em Hb 2:8, diz: «Todas as
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152
coisas sujeitaste debaixo dos seus pés. Ora, desde que lhe sujeitou todas
as coisas, nada deixou fora do seu domínio». Por isso, era um domínio
absolutamente universal, pelo que respeita às criaturas, com que devia
ser investido o homem. Este domínio universal, como aprendemos pelas
Escrituras, foi alcançado só pela encarnação e exaltação do Filho de
Deus. Mas porquanto Deus vê o fim desde o princípio, como Seu plano é
imutável e abrange tudo, esta suprema exaltação da humanidade estava
proposta desde o princípio, e incluída no domínio com que o homem foi
investido.
§ 5. A doutrina da Igreja Romana.
A doutrina dos romanistas quanto ao estado original do homem
coincide com a dos protestantes, exceto num importante particular. Eles
sustentam que o homem antes da Queda, estava num estado de perfeição
relativa, quer dizer, não só livre de qualquer defeito ou doença física,
mas dotado de todos os atributos de um espírito, e dotado com o
conhecimento, a justiça e santidade, e investido com domínio sobre as
criaturas. Os protestantes incluem tudo isto sob a imagem de Deus; os
romanistas entendem por imagem de Deus só o racional, e sobretudo o
caráter voluntário do homem, ou a liberdade da vontade. Distinguem,
portanto, entre a imagem de Deus e a justiça original. Esta último dizem
que se perdeu; a anterior foi retida. Os protestantes, pelo contrário,
sustentam que é a imagem divina em seus componentes mais
importantes, que o homem perdeu por sua apostasia. Isto, entretanto, só
pode considerar-se uma diferença quanto às palavras. O ponto
importante da diferença é, que os protestantes sustentam que a justiça
original, na medida em que consistiu na excelência moral de Adão, era
natural, enquanto que os romanistas sustentam que era sobrenatural.
Segundo sua teoria, Deus criou a alma e o corpo. Estes dois
componentes de sua natureza estão naturalmente em conflito. Para
conservar a harmonia entre eles e a devido submissão da carne ao
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
153
espírito, Deus deu ao homem o dom sobrenatural da justiça original. Foi
este dom que o homem perdeu por sua queda, de modo que, visto que a
apostasia encontra-se no estado em que Adão era antes de ser investido
com esta dotação sobrenatural.
Em oposição a esta doutrina, os protestantes sustentam que a justiça
original era concreta e natural. A justiça original, diz Lutero: 126 “Non
fuisse quoddam donum, quod ab extra accederet, separatum a natura
hominis. Sed fuisse vere naturalem, ita ut natura Adæ esset, diligere
Deum, credere Deo, agnoscere Deum, etc. Hæc tam naturalia fuere in
Adamo, quam naturale est, quod oculi lumen recipiunt.”
O Concílio de Trento não fala explicitamente sobre este ponto, mas
a linguagem do Catecismo Romano está claramente de acordo com os
ensinos mais diretos dos teólogos da Igreja de Roma, no sentido de que a
justiça original é um dom sobrenatural. Ao descrever o estado original
do homem esse Catecismo diz: 127 “Quod ad animam pertinet, eum ad
imaginem et similitudinem suam formavit, liberumque ei arbitrium
tribuit: omnes præterea motus animi atque appetitiones ita in eo
temperavit, ut rationis imperio nunquam non parerent. Tum originalis
justitiæ admirabile donum addidit, ac deinde cæteris animantibus
præesse voluit.”
Belarmino 128 afirma esta doutrina em termos mais claros:
“Integritas illa, cum qua primus homo conditus fuit et sine qua post ejus
lapsum homines omnes nascuntur, non fuit naturalis ejus conditio, sed
supernaturalis evectio. . . . . 129 Sciendum est primo, hominem naturaliter
constare ex carne, et spiritu, et ideo partim cum bestiis, partim cum
angelis communicare naturam, et quidem ratione carnis, et communionis
cum bestiis, habere propensionem quandam ad bonum corporale, et
sensibile, in quod fertur per sensum et appetitum: ratione spiritus et
126
In Genesis, cap. 3; Works, edit. Wittenberg, 1555 (Latin), vol. vi., leaf 42, page 2.
Streitwolf, Libri Symbolici Ecclesiæ Catholicæe, vol. i. p. 127.
128
De Gratia Primi Hominis 2. Disputationes, vol. iv. p. 7, c.
129
Ibid. 5 — p. 15, c. d.
127
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154
communionis cum angelis, habere propensionem ad bonum spirituale et
intelligibile, in quod fertur per intelligentiam, et voluntatem. Ex his
autem diversis, vel contrariis propensionibus existere in uno eodemque
homine pugnam quandam, et ex ea pugna ingentem bene agendi
difficultatem, dum una propensio alteram impedit. Sciendum secundo,
divinam providentiam initio creationis, ut remedium adhiberet huic
morbo seu languori naturæ humanæ, qui ex conditione materiæ
oriebatur, addidisse homini donum quoddam insigne, justitiam videlicet
originalem, qua veluti aureo quodam fræno pars inferior parti superiori,
et pars superior Deo facile subjecta contineretur.”
A questão quanto a se a justiça original era natural ou sobrenatural
não pode ser respondida até que o significado das palavras seja
determinado. A palavra natural utiliza-se com frequência para designar o
que constitui a natureza. A razão é num sentido tão natural ao homem
que, sem ela, deixa de ser um homem. Às vezes designa qual
necessidade deriva-se da constituição da natureza, como quando dizemos
que é natural para o homem o desejo de sua própria felicidade; às vezes
designa-se no concreto ou inata diferente do que é acidental, acessório,
ou adquirido; neste uso da palavra o sentido da justiça, a piedade, e os
afetos sociais, são naturais aos homens. Justiça original, afirmam os
protestantes, é natural, em primeiro lugar, com o fim de negar que a
natureza humana como a primeira vez que participam os princípios
conflitivos da carne e o espírito, representado por Belarmino, e que a
pura naturalia ou princípios simples da natureza, visto que existiram em
Adão, não tinham caráter moral; e, em segundo lugar, para afirmar que a
natureza do homem como criado era bom, que seu motivo era iluminado
e sua vontade e sentimentos eram conforme à imagem moral de Deus.
Era natural para Adão amar a Deus no mesmo sentido que era natural
para ele amar-se a si mesmo. Era tão natural para ele apreender a glória
de Deus como o foi para ele apreender as belezas da criação. Ele foi
assim constituído, assim criado, que em virtude da natureza que Deus lhe
deu, e sem nenhum acessório ab extra como don, foi adaptado a cumprir
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
155
o fim de seu ser, quer dizer, glorificar a Deus e deleitar-se nEle para
sempre.
Objeções à doutrina romana.
As objeções óbvias à doutrina romana de que a justiça original era
um dom sobrenatural, são: (1.) Que supõe uma visão degradante da
constituição original de nossa natureza. De acordo com esta doutrina as
sementes do mal se implantaram na natureza do homem, visto que saiu
das mãos de Deus. Foi desordenado ou doente, não era tudo o que
Belarmino chama morbus o languidez, que necessitava um remédio. Mas
isto é depreciativo da justiça e bondade de Deus, e as declarações
expressas da Escritura, que o homem, a humanidade, a natureza humana,
era boa. (2.) Esta doutrina é, evidentemente, fundada no princípio
maniqueu da maldade inerente à matéria. É porque o homem tem um
corpo material, que este conflito entre a carne e o espírito, entre o bem e
o mal, diz-se que é inevitável. Mas isto se opõe à palavra de Deus e a fé
da Igreja. A matéria não é má. E não há uma necessária tendência ao mal
da união da alma e do corpo que requer ser corrigida de maneira
sobrenatural. (3.) Esta doutrina sobre a justiça original surgiu do
semipelagianismo da Igreja de Roma, e foi designada a sustentá-lo. As
duas doutrinas são tão relacionadas que permanecem ou caem juntas. De
acordo com a teoria em questão, o pecado original é a simples perda da
justiça original. A humanidade desde a Queda é precisamente o que era
antes da Queda, e antes da adição do dom sobrenatural da justiça.
Belarmino 130 dice: “Non magis differt status hominis post lapsum
Adæ a statu ejusdem in puris naturalibus, quam differat spoliatus a nudo,
neque deterior est humana natura, si culpam originalem detrahas, neque
magis ignorantia et infirmitate laborat, quam esset et laboraret in puris
naturalibus condita. Proinde corruptio naturæ non ex alicujus doni
130
De Gratia Primi Hominis c. 5. Disputationes, vol. iv. p. 16, d. e.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
156
naturalis carentia, neque ex alicujus malæ qualitatis accessu, sed ex sola
doni supernaturalis ob Adæ peccatum amissione profluxit.”
O conflito entre a carne e o espírito é normal e original, e portanto
não pecaminoso. A concupiscência, o termo teológico desta rebelião do
inferior contra os elementos superiores de nossa natureza, não é da
natureza do pecado, Andradius 131 (o teólogo católico contra aquele que
Chemnitz dirigiu seu Exame do Concílio de Trento) estabelece o
princípio, “quod nihil rationem peccati habeat, fiat nisi un volente et
sciente,” que exclui, é óbvio, a concupiscência, quer seja no renovado ou
não renovado, da categoria de pecado. Portanto, diz Belarmino: 132
“Reatus est omnino inseparabilis ab eo, quod natura sua est dignum
æterna damnatione, qualem esse volunt concupiscentiam adversarii.”
Esta concupiscência permanece depois do batismo, ou a
regeneração, que os romanistas dizem, elimina todo pecado; e portanto,
não sendo maus por sua própria natureza, não lhe tira o mérito das boas
obras, nem presta obediência perfeita, e inclusive obras de
supererrogação da parte dos fiéis, impossível. Esta doutrina do caráter
sobrenatural da justiça original como mantidos pelos romanistas, está
portanto, intimamente relacionada com todo o seu sistema teológico; e é
inconsistente com as doutrinas das Escrituras não só do estado original
do homem, mas também do pecado e da redenção. Entretanto, aparecerá
na sequela, que nem as normas da Igreja de Roma, nem os teólogos
romanos são consistentes em seus pontos de vista do pecado original e
sua relação com a perda da justiça original.
131
132
Baur, Katholicismus und Protestantismus, Tübingen, 1836, p. 85, note.
De Amissione Gratiæ et Statu Peccati, v. 7; Disputationes, vol. iv. p. 287 a.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
§ 6. A doutrina Pelagiana e Racionalista.
157
Segundo os pelagianos e os racionalistas o homem foi criado um
agente livre racional, mas sem caráter moral. Ele não era nem justo nem
injusto, nem santo nem profano. Tinha simplesmente a capacidade de
converter-se em qualquer um. Estar dotados de razão e livre-arbítrio, seu
personagem dependia do uso que ele fez das dotações. Se agiu bem, ele
chegou a ser justo, se agiu mal, converteu-se em injusto. Não pode ser,
segundo seu sistema, não há tal coisa como o caráter moral concreto, e
portanto rejeitam a doutrina da justiça original como irracional. Esta
postura do estado original do homem é a consequência necessária da
hipótese de que o caráter moral só pode pregar-se dos atos da vontade ou
das consequências subjetivas destes atos.
Este princípio que se opõe à possibilidade da justiça original em
Adão, opõe-se também à possibilidade da depravação inata, hereditária,
usualmente chamada o pecado original, e também a possibilidade de
habitação do pecado, e dos hábitos da graça. Ela mesma é uma inferência
a partir da hipótese principal que limita a capacidade de obrigação; que
um homem não pode ser louvado, nem culpado, nem recompensado,
nem condenado, à exceção de seus próprios atos e o caráter autoadquirido, que os atos devem ser compreendidos no âmbito de sua
capacidade. O que é o bem concreto ou inato, inerente ou infuso, é
evidente que não no poder da vontade, e portanto não pode ter nenhum
caráter moral. Como este princípio é, pois, de longo alcance que deveria
ser resolvido definitivamente.
A consciência demonstra que as disposições, diferente dos
atos, podem ter caráter moral.
Pelo mero filósofo moral, e por teólogos cuja teologia é uma
filosofia, assume-se como um axioma, ou a verdade intuitiva, que o
homem é responsável só do que tem plenos poderes para fazer ou evitar.
Plausível como é este princípio, é, —
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
158
1. Oposto ao testemunho da consciência. É um fato de consciência
que atribuímos o caráter moral aos princípios que precedem a todas as
medidas voluntárias e que são totalmente independentes do poder da
vontade. E é um fato suscetível da mais clara demonstração de que não
apenas é o ditado de nossa consciência individual, mas também a
convicção de todos os homens.
Se examinarmos nossa própria consciência quanto à sentença que se
passa sobre nós mesmos, encontrar-nos-emos que nos responsabilizamos
não só pelos atos deliberados da vontade, quer dizer, por atos de
deliberada autodeterminação, que supõe tanto o conhecimento como
volição, mas também para atos emocionais, impulsivos, que precedem a
toda a deliberação; e não apenas por tais atos impulsivos, mas também
pelos princípios, disposições, ou estados imanentes da mente, por seus
atos impulsivos ou deliberados, são determinados. Quando um homem
está convencido de pecado, não é tanto por determinados atos de
transgressão que sua consciência o condena, como para os estados
permanentes de sua mente, seu egoísmo, seu mundanismo, e malícia; sua
ingratidão, incredulidade e dureza de coração; sua falta de afetos
corretos, do amor a Deus, de zelo pelo Redentor, e da benevolência para
com os homens. Estes não são atos. Não são estados de ânimo sob o
controle da vontade, e entretanto, no juízo da consciência, que não
podemos silenciar ou perverter, constituem nosso caráter e são motivo de
condenação. Da mesma maneira qualquer que seja se devidas
disposições ou os princípios que descobrimos dentro de nós mesmos, o
que há do amor a Deus, a Cristo, ou a Seu povo; a humildade, a
mansidão, a paciência, ou de qualquer outra virtude do testemunho da
consciência é, que estas disposições, que não são nem os atos nem os
produtos da vontade, na medida em que existe dentro de nós, constituem
nosso caráter aos olhos de Deus e do homem. Não só é o testemunho da
consciência com relação a nossos juízos sobre nós mesmos, mas também
quanto aos juízos de outros homens. Quando pronunciamos um homem
bom ou mau, a sentença não se baseia em seus atos, mas em seu caráter
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
159
conforme o revelado por seus atos. Os termos bom e mau, tal como se
aplica aos homens, não se utilizam para expressar o caráter dos atos
particulares que realizam, mas sim o caráter permanente dos princípios,
disposições, ou estados da mente que determinam seus atos, e dão
segurança do que será no futuro. Podemos olhar para um homem bom e
saber que há algo em que constitui o seu caráter, e que o faz seguro para
não blasfemar, mentir ou roubar, mas, pelo contrário, que ele se
esforçará em todas as coisas para servir a Deus e fazer o bem aos
homens. Da mesma maneira podemos contemplar um homem ímpio no
seio de sua família, quando cada paixão má é calada, e quando só os
sentimentos amáveis estão em exercício, e entretanto ele sabe que é mau.
Quer dizer, que não só se sabe que cometeu más ações, mas que é
intrinsecamente mau, que há nele um homem ímpio, ou um estado
permanente da mente, que constitui seu verdadeiro caráter e determina
seus atos.
Quando dizemos que um homem é avarento, não queremos dizer
simplesmente que acumula dinheiro, ou demole a cara do pobre, mas
queremos dizer que tem uma disposição que em outro tempo deu lugar a
tais atos e que seguirá a produzi-los sempre e quando isso governe o seu
coração. A doutrina de Pelágio, portanto, que o caráter moral só pode
pregar-se dos atos voluntários, é contrária ao testemunho da consciência.
O argumento do juízo geral dos homens.
2. Entretanto, pode-se dizer que nossa consciência ou juízos morais
estão influenciadas por nossa educação cristã. Portanto, é importante
observar, em segundo lugar, que este juízo de nossa consciência
individual vê-se confirmado pela sentença universal de nossos
semelhantes. Isto é evidente pelo fato de que em todos os idiomas
conhecidos há palavras para distinguir entre as disposições, princípios,
ou hábitos, como estados permanentes da mente, e os atos voluntários. E
estas disposições são universalmente reconhecidas como boas ou más. A
linguagem é o produto da consciência comum dos homens. Não pode
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
160
haver termos como benevolência, justiça, integridade e fidelidade, a
expressão dos princípios que determinam os atos, e que não são atos em
si mesmos, se os homens não reconhecerem intuitivamente o fato de que
os princípios assim como os atos podem ter caráter moral.
O caráter moral dos atos são determinados pelos
princípios de onde fluem.
3. Longe de que seja verdade que no juízo dos homens o ato
voluntário por si só constitui o caráter, justamente o contrário é verdade.
O caráter do ato se decide pela natureza do princípio pelo qual se
determina. Se um homem dá esmola, ou adora a Deus por um princípio
egoísta, sob o controle de uma disposição para garantir o aplauso dos
homens, esses atos em vez de serem bons são instintivamente
reconhecidos como maus. De fato, se este princípio pelagiano ou
racionalista fosse certo, não poderia haver tal coisa como caráter, não só
porque os atos individuais não têm qualidade moral, exceto como se
derivam do princípio de onde fluem, mas também porque o caráter
necessariamente supõe algo permanente e controlador. Um homem sem
caráter é um homem sem princípios, quer dizer, em quem não há nada
que lhe dá segurança quanto ao que serão suas obras.
O argumento da Escritura.
4. As Escrituras neste, como em todos os casos, reconhece a validez
dos juízos intuitivos e universais da mente. Distinguem-se em todas as
partes entre princípios e atos, e em todas as partes atribuem caráter moral
aos primeiros, e dos atos só a medida em que procedem de princípios.
Esta é a doutrina de nosso Senhor quando diz: “Ou fazei a árvore boa e o
seu fruto bom ou a árvore má e o seu fruto mau; porque pelo fruto se
conhece a árvore.” (Mt. 12:33). “Não pode a árvore boa produzir frutos
maus, nem a árvore má produzir frutos bons.” (Mt. 7:18). É o caráter
interior, a habitação da árvore que determina o caráter do fruto. O fruto
revela, mas não constitui, a natureza da árvore. Assim é, ele nos diz, com
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
161
o coração humano. “Como podeis falar coisas boas, sendo maus? Porque
a boca fala do que está cheio o coração. O homem bom tira do tesouro
bom coisas boas; mas o homem mau do mau tesouro tira coisas más”
(Mt. 12:34, 35).
Um bom homem, portanto, é aquele que está interiormente bem: ele
tem um bom coração, ou natureza, algo dentro dele que está bem em si
mesmo, produz bons atos. E o homem mau é um cujo coração, quer
dizer, o estado permanente, o controle da mente, sendo em si mesmo
mau, habitualmente faz o mal. É do coração que saem os maus
pensamentos, os homicídios, os adultérios, as fornicações, os furtos, os
falsos testemunhos, e as blasfêmias. Estes termos incluem todos os atos
voluntários, não só no sentido da livre autodeterminação, mas também
no sentido dos atos espontâneos. Incluem-se, além disso, todos os
estados conscientes da mente. É, portanto, expressamente afirmado por
nosso Senhor, que atribui caráter moral ao que é mais profundo que
qualquer ato da vontade, no mais amplo sentido dessas palavras, mas
também ao que está mais baixo que a consciência.
Como a maior parte de nosso conhecimento é entesourado até onde
a consciência não alcança, assim a maior parte do que constitui nosso
caráter como bom ou mau, está abaixo não só da vontade, mas também
inclusive da própria consciência. É entretanto, não só pela afirmação
direta de que esta doutrina se ensina na Bíblia. É constantemente
assumido, e envolvido em algumas das doutrinas mais importantes da
Palavra de Deus. Dá-se por sentado no que se ensina da condição moral
em que os homens nasceram neste mundo. Diz-se que são concebidos no
pecado. São por natureza filhos da ira. Aquele que é nascido da carne é
carne, quer dizer, carnal, moralmente corrupto. A Bíblia também fala do
pecado que habita; do pecado como um princípio que dá fruto para
morte. Representa regeneração não como um ato da alma, mas sim como
a produção de uma nova natureza, ou um princípio sagrado, no coração.
A negação, portanto, de que as disposições ou princípios diferente dos
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
162
atos, pode ter um caráter moral, subverte algumas das doutrinas das
Sagradas Escrituras mais claramente reveladas.
A Fé da Igreja sobre este tema.
5. É justo sobre este tema apelar à fé universal da Igreja. Inclusive a
Igreja grega, que tem a forma mais baixa da doutrina de qualquer das
grandes comunidades cristãs históricas, ensina que os homens
necessitam a regeneração logo que nascem, e que pela regeneração se
leva a cabo uma mudança da natureza, ou se infunde um novo princípio
de vida na alma. Assim também a Igreja latina, mesmo de forma
inconsistente, reconhece a verdade da doutrina em questão em todos os
seus ensinos. Os que morrem sem ser batizados, de acordo com os
romanistas, morrem; e pelo batismo, não só a culpabilidade, mas também
a contaminação do pecado é tirada, e os novos hábitos da graça se
infundem na alma. É desnecessário assinalar que as igrejas luteranas e
reformadas estão de acordo em manter esta importante doutrina, que o
caráter moral não pertence exclusivamente aos atos voluntários, mas sim
que se estende às disposições, princípios, ou os hábitos da mente. Isto se
envolve em todas as suas decisões autoritativas sobre a justiça original, o
pecado original, a regeneração e a santificação.
O caráter moral das Disposições depende de sua natureza
moral e não de sua origem.
O segundo princípio envolvido na grande doutrina da Escritura
sobre este tema é que o caráter moral de disposições ou hábitos depende
de sua natureza e não de sua origem. Há alguns que tentarão adotar uma
posição intermediária entre as doutrinas racionalistas e as evangélicas.
Admitem que se pode pregar o caráter moral das disposições como
diferentes dos atos voluntários, mas insistem em que isto só se pode
fazer quando tais disposições se adquiriram. Eles reconhecem que a
repetição frequente de determinados atos tem uma tendência a produzir
uma disposição permanente para realizá-las. Isto é reconhecido ser
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
163
verdade não só no que respeita à indulgência dos apetites sensuais, mas
também no que respeita aos atos puramente mentais. Não só o uso
frequente de bebidas alcoólicas produzem uma ansiedade excessiva para
eles, mas também confirma o exercício frequente de orgulho ou
indulgência da vaidade, confirma e fortalece o espírito orgulhoso e
vaidoso, ou estado de ânimo, cujo estado de ânimo, quando assim
produzido, admite-se, vai determinar ou constituir o caráter moral do
homem. Mas negam que um homem pode ser responsável por qualquer
disposição ou estado de ânimo, que não é o resultado de sua própria
agência voluntária. Em oposição a esta doutrina, e em favor da posição
de que o caráter moral das disposições ou princípios, não depende de sua
origem, que se concretos, inatos, infusos, ou auto-adquiridos que são
bons ou maus segundo sua natureza, os argumentos são os mesmos em
espécie como os apresentadas sob o título anterior.
1. A primeira se deriva de nossa consciência. Em nossos juízos de
nós mesmos a questão é o que somos, e não como nos convertemos no
que nós sabemos que somos. Se estamos consciente de que não amamos
a Deus como deveríamos, que somos mundanos, egoístas, orgulhosos, ou
suspeitosos, não é alívio para a consciência, que foi nosso personagem
desde o princípio. Podemos saber que nascemos com estas más
disposições, mas nem são por isso menos mau aos olhos da consciência.
Gememos sob o peso da herança, ou da habitação no pecado, tão
profunda e tão inteligentemente como sob a pressão de nossas próprias
disposições mal-adquiridas. Assim que também em nossos juízos
instintivos de outros homens. Se um homem for viciado nas buscas
frívolas, declará-lo-emos um homem frívolo, sem deter-se para averiguar
se sua disposição é inata, derivada por herança de seus antepassados, ou
se foi adquirida. Pelo contrário, se for manifesto desde sua juventude
uma disposição para a aquisição de conhecimentos, que é um objeto de
respeito, não importa de onde a disposição se deriva.
O mesmo é certo com relação às disposições amáveis ou não
amáveis. Não se pode negar que há uma grande diferença nos homens a
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
164
este respeito. Alguns são mal-humorados, irritáveis, e anti-sociais em
suas disposições, outros são diretamente o contrário. Uma classe é
atrativa, a outra repulsiva; uma é objeto do afeto, e a outra, de desagrado.
O juízo instintivo da mente é o mesmo no que respeita às disposições
com maior clareza moral em sua natureza. Um homem é egoísta, outro é
generoso; um é mal-intencionado, outro é benevolente; um é reto e
honorável, outro é enganoso e vil. Pode-se nascer com estes aspectos
distintivos de caráter, e tais características, sem lugar a dúvida, são em
muitos com frequência casos inatos e hereditários, e entretanto somos
conscientes de que nosso juízo sobre eles e aqueles aos quais formam
parte é totalmente independente da questão se tais disposições são
naturais ou adquiridas.
Admite-se que as nações, assim como as tribos e famílias, têm suas
características distintivas, e que estas características não são só físicas e
mentais, mas também sociais e morais. Algumas tribos são traiçoeiras e
cruéis. Algumas são leves e confiantes. Algumas são viciadas em ganhar,
outras à guerra. Alguns são sensuais, alguns são intelectuais. Nós de
maneira instintiva julgamos cada um segundo seu caráter, gostamos ou
não, aprovamos ou desaprovamos, sem nos fazer qualquer pergunta
sobre a origem dessas características distintivas.
E se o fazemos expor essa questão, embora nos vemos obrigados a
responder ao admitir que estas disposições são inatas e hereditárias, e
que não são auto-adquiridas pela pessoa cujo caráter eles constituem,
nós, entretanto, e nenhum pelo menos, aprova ou os condena segundo
sua natureza. Isto é o instintivo e necessário, e portanto a sentença
correta, da mente.
Esta é a Regra Comum de Juízo.
2. Como na água o rosto responde ao rosto, assim o coração do
homem ao homem. O que encontramos revelado em nossa própria
consciência encontramos manifestado como a consciência de nossos
semelhantes. É o juízo instintivo ou intuitivo de todos os homens que as
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
165
disposições morais derivam seu caráter de sua natureza, e não de sua
origem. Na linguagem comum dos homens, dizer que um homem é
naturalmente orgulhoso ou malicioso não é um atenuante, mas sim um
agravamento. Quanto mais profundamente estes princípios são sentados
em sua natureza, menos eles dependem das circunstâncias ou da ação
voluntária, mais profundo é nosso espanto e mais severa é nossa
condenação. O povo irlandês foi sempre notável por sua fidelidade, a
honestidade do inglês; os alemães pela verdade. Estes aspectos
nacionais, como se revela nas pessoas, não são o efeito da autodisciplina.
Elas são disposições inatas, hereditárias, como evidentemente, tanto as
peculiaridades físicas, mentais ou emocionais pelas quais um povo
distingue-se de outro. E, entretanto, pelo juízo comum dos homens este
fato em nenhum grau é contrário à moral destas disposições.
O testemunho da Escritura.
3. Isto também é a clara doutrina da Bíblia. As Escrituras ensinam
que Deus fez o homem reto; que os anjos foram criados santos, porque
os anjos maus são aqueles que não guardaram seu primeiro estado; que
desde a Queda os homens nasceram em pecado; que pelo poder de Deus,
e não pelo poder da vontade, o coração é mudado, e novas disposições
são implantadas em nossa natureza; e entretanto, a Bíblia sempre fala
dos pecadores como pecaminosos e dignos de condenação, se, como no
caso de Adão, essa pecaminosidade era auto-adquirida, ou, como no caso
de sua posteridade, é um mal hereditário. Sempre fala dos santos como
santos, se desta maneira criados assim como anjos, ou feito pelo poder
sobrenatural do Espírito na regeneração e na santificação. E, ao fazê-lo, a
Bíblia, como vimos, não contradiz o juízo intuitivo da mente humana,
mas sanciona e confirma tal sentença.
A fé da Igreja.
4. Não faz falta acrescentar que tal é também a fé da Igreja
universal. Todas as igrejas cristãs recebem as doutrinas do pecado
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
166
original e da regeneração numa forma que implica não só o princípio de
que as disposições, diferente dos atos, podem ter um caráter moral, mas
também que tal caráter lhes pertence quer sejam inatos, adquiridos ou
infundidos. Portanto, é mais razoável supor o fato de que um homem
pode ser responsável só por seus atos voluntários, ou por seus efeitos
subjetivos, quando nossa própria consciência, o juízo universal dos
homens, a palavra de Deus e a Igreja universal, tão claramente afirmam
o contrário. É uma questão de surpresa quão sutil é o veneno do
princípio que agora se considerou. É não só o princípio fundamental do
pelagianismo, mas também é afirmado com frequência pelos teólogos
ortodoxos que não o levam a seus resultados legítimos, mas que, não
obstante, permite-o modificar injuriosamente seus pontos de vista de
algumas das doutrinas mais importantes da Bíblia. No suposto de que
ninguém pode ser julgado, pode ser justificado ou condenado salvo na
base de seu caráter pessoal auto-adquirido, eles ensinam que não pode
haver uma imputação imediata do pecado de Adão ou da justiça de
Cristo; que o único fundamento da condenação deve ser nossa própria
pecaminosidade adquirida, e o único fundamento da justificação nossa
justiça subjetiva, pelo que subverte dois dos principais pilares da verdade
evangélica.
Objeções Consideradas.
A dificuldade neste tema surge em grande medida de confundir
duas coisas distintas. Uma coisa é que uma criatura deve estar sujeita a
seu caráter, e outra muito distinta é ele dar conta de ter esse caráter. Se
uma criatura for santa ela será considerada e tratada como santa. Se for
pecadora, será considerada e tratada como algo pecaminoso. Se Deus
criou a Adão santo Ele não podia tratá-lo como profano. Se Ele criou a
Satanás pecador, Ele o consideraria como pecador; e se os homens
nascem em pecado não podem ser considerados como livres de pecado.
A dificuldade não está em seu tratamento das criaturas de Deus de
acordo com seu verdadeiro caráter, mas na reconciliação com Sua
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
167
santidade e justiça, que um caráter pecaminoso deva ser adquirido sem
agência pessoal da criatura. Se Deus tivesse criado a Satanás pecador ele
teria sido pecador, mas não saberíamos como reconciliar com o caráter
de Deus porque devia ser criado. E se os homens tivessem nascido em
pecado, a dificuldade não está em seu ser considerado e tratado como
pecaminoso, mas em seu ser assim nascido. A Bíblia nos ensina a
solução desta dificuldade. Isto nos revela o princípio de representação,
em razão de que a pena do pecado de Adão, que veio sobre sua
posteridade como a recompensa da justiça de Cristo vem a seu povo. No
primeiro caso a pena do pecado traz pecaminosidade subjetiva, e no
outro traz santidade subjetiva.
Trata-se de uma objeção comum à doutrina de que a santidade pode
ser criada e o pecaminosidade é hereditária, que faz o pecado e a
santidade substâncias. Não há nada na alma, diz-se, a não ser sua
substância e seus atos. Se o pecado ou a santidade se prega de outra coisa
que não os atos da alma deve ser predicado de sua substância; e assim
temos a doutrina da santidade física e a depravação física. A hipótese em
que esta objeção se baseia não só é arbitrária, mas também é obviamente
errônea. Há na alma: (1.) Sua substância. (2.) Suas propriedades ou
atributos essenciais, como a razão, a sensibilidade e a vontade, sem as
quais deixa de ser uma alma humana. (3.) Suas disposições
constitucionais, ou tendências naturais para exercer certos sentimentos e
volições, como o amor próprio, o sentido de justiça, o princípio social, o
afeto paterno e filial. Estes, embora não essenciais para o homem, são
entretanto encontrados em todos os homens, antes e depois da Queda.
(4.) As disposições particulares dos indivíduos, que são acidentais, quer
dizer, não pertencem à humanidade como tal. Podem estar presentes ou
ausentes; podem ser inatas ou adquiridas. Tais são o gosto pela música,
pela pintura ou pela poesia; e a habilidade do artista ou do mecânico,
como também são a cobiça, o orgulho, a vaidade, e coisas similares; e
tais, também, são as graças do Espírito, a humildade, a mansidão,
cortesia, fé, amor, etc.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
168
À medida que o gosto pela música não é nem um ato nem uma
substância, assim o orgulho não é nem um nem outro. Tampouco é o
instinto maternal de um ato, nem é a benevolência ou a cobiça. Estes são
imanentes, estados permanentes da mente. Eles pertencem ao homem, se
estiverem ativos ou inativos, se estiverem acordados ou adormecidos. Há
algo no artista que o faz dormir seguro de que ele desfrutará e executará
o que outros homens não podem nem perceber nem fazer. E esse algo
não é nem a essência de sua alma, nem um ato. É um gosto natural ou
adquirido e habilidade. Assim que há algo no santo para dormir que não
é nem essência nem ato, o que faz patente que ele ama e serve a Deus.
Portanto, como há nas disposições alma, princípios, hábitos e gostos que
não podem ser considerados como simples atos, e entretanto, não
pertencem à essência da alma, é evidente que a doutrina da justiça
original ou criada não é responsável à objeção de fazer caráter moral
uma substância.
Os Pelagianos ensinam que o homem foi criado mortal.
O segundo aspecto distintivo da doutrina pelagiana ou racionalista
quanto ao estado original do homem, é que o homem foi criado mortal.
Disto se pretende negar que a morte é a consequência ou castigo da
transgressão; e para afirmar que Adão era responsável pela morte, e sem
dúvida teria morrido em virtude da constituição original de sua natureza.
Os argumentos enfatizados em apoio desta doutrina são: (1.) Que a
organização corporal de Adão não estava adaptada para durar para
sempre. Estava em sua própria natureza perecível. Requer-se estar
constantemente atualizado pelo sonho e renovado pelo alimento, e que
por um processo natural e inevitável de ter envelhecido e decaído. (2.)
Que todos os outros animais que vivem na terra evidenciam em sua
constituição e estrutura que não estavam destinados por seu Criador a
viver de forma indefinida. Foram criados homem e mulher, designados
para propagar sua raça. Isto demonstra que foi o plano do Criador uma
sucessão de indivíduos, e não a existência continuada dos mesmos
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
169
indivíduos. Como isto é verdade do homem, assim como de outros
animais, é evidente, dizem eles, que o homem também era desde o
princípio, e com independência do pecado, destinado a morrer. (3.) Um
argumento extrai-se do que ensina o Apóstolo em 1 Cor. 14:42-50. Ali
disse que o primeiro homem da terra é terreno; que havia um corpo
natural (um σῶμα ψυχικόν), diante de um corpo espiritual (o σῶμα
πνευματικόν); que o primeiro não se adapta à imortalidade, que a carne e
o sangue, quer dizer, o σῶμα ψυχικόν, como Adão tinha quando criado,
não podem herdar o reino dos céus. Deste relato se deduz que Adão não
foi criado para a imortalidade, antes, foi originalmente investido com um
órgão de sua natureza destinados a decair.
Resposta aos argumentos de Pelágio.
Restam dois pontos a considerar: Primeiro, se Adão teria morrido se
não tivesse pecado; e segundo, se seu corpo, tal como estava formado
originalmente, estava adaptado a um estado de existência imortal.
Quanto ao primeiro não pode haver dúvidas de nenhum tipo. Na
Escritura afirma-se de maneira expressa que a morte é o pagamento do
pecado. Na ameaçadora advertência: «No dia que dele comeres,
certamente morrerá», implica-se sinceramente que, se não comesse, não
morreria. Por isso, fica claro com base nas Escrituras que a morte é a
consequência penal do pecado, e que não teria sido infligida se nossos
primeiros pais não tivessem transgredido. O segundo ponto está muito
menos claro, e tem menos importância. Segundo a postura adotada por
muitos dos pais, Adão devia passar por sua prova no paraíso terrestre, e
se fosse mostrado obediente, devia ser trasladado ao paraíso celestial, do
qual o terrestre era o tipo. Segundo Lutero, o efeito do fruto da árvore da
vida, que nossos pais teriam sido autorizados a comer se não tivessem
pecado, teria sido o de preservar seus corpos em perpétua juventude.
Segundo outros, o corpo de Adão e os corpos de sua posteridade, se ele
tivesse mantido sua integridade, teriam passado por uma mudança
análoga ao que, conforme nos ensina o apóstolo, espera os que estarão
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
170
vivos na segunda vinda de Cristo. Não morrerão, mas todos serão
transformados; o corruptível se revestirá de incorrupção, e o mortal se
revestirá da imortalidade. Há duas coisas certas, primeiro, que se Adão
não tivesse pecado não teria morrido; e segundo, que se o Apóstolo,
quando diz que levamos a imagem do terrestre, refere-se a que nossos
corpos atuais são como o corpo de Adão tal como foi originalmente
constituído, então seu corpo, não menos que o nosso, precisava ser
transformado para ficar idôneo para a imortalidade.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
CAPÍTULO VI
171
A ALIANÇA DAS OBRAS
DEUS, tendo criado o homem à Sua imagem em conhecimento,
retidão e inocência, entrou em aliança de vida com ele, sobre a condição
de uma obediência perfeita, proibindo-o de comer da árvore do
conhecimento do bem e do mal sob pena de morte.
Segundo esta declaração: (1) Deus entrou numa aliança com Adão.
(2) A promessa que acompanhava a aliança era a vida. (3) A condição
era uma obediência perfeita. (4) A pena pela desobediência era a morte.
§ 1. Deus fez uma aliança com Adão.
Esta declaração não repousa sobre nenhuma declaração expressa
das Escrituras. Entretanto, é um modo conciso e correto de declarar um
fato claro das Escrituras, isto é, que Deus fez a Adão uma promessa que
dependia de uma condição, e uniu à desobediência uma certa pena. Isto é
o que nas Escrituras se entende por aliança, e isto é tudo o que se
entende pelo termo aqui empregado. Embora a palavra aliança não se
emprega em Gênesis, e não aparece em nenhum outro lugar em nenhuma
passagem clara com referência à transação que aqui se registra,
entretanto, porquanto o plano de salvação é constantemente designado
como uma Nova Aliança, novo não meramente em antítese ao fato no
Sinai, mas sim novo com referência a todas as alianças legais, está claro
que a Bíblia apresenta a disposição aqui concertada com Adão como
uma verdadeira transação federal. As Escrituras não sabem de nada mais
que dois métodos de alcançar a vida eterna: aquele que exige uma
perfeita obediência, e aquele que demanda fé. Se o último é chamado
uma aliança, o primeiro é designado como da própria natureza. É de
grande importância que se retenha a forma escriturística de apresentar a
verdade. O Racionalismo foi introduzido na Igreja sob a coberta de uma
declaração filosófica das verdades da Bíblia livres da mera forma externa
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
172
na qual os escritores sagrados, instruídos no judaísmo, tinham-nas
apresentado. Sobre esta base foi descartado o sistema federal, como era
chamado. Da mesma maneira, declarou-se que os ofícios profético,
sacerdotal e régio de Cristo eram uma forma recarregada e insatisfatória
sob a qual expor sua obra como nosso Redentor. Logo se rejeitou todo o
caráter sacrifical de Sua morte, e toda ideia de expiação, como mero
revestimento judeu. Assim, pela teoria da acomodação, cada doutrina
distintiva da Escritura foi posta de lado, e o cristianismo foi reduzido a
um deísmo. Por isso, é algo mais que um mero assunto de método o
aderir-se à forma escriturística de apresentar as verdades escriturísticas.
Deus concertou uma aliança com Adão. Aquela aliança é às vezes
chamada uma aliança de vida, porque se prometia vida como
recompensa da obediência. Às vezes é chamada aliança das obras,
porque as obras eram a condição da qual dependia a promessa, e porque
distingue-se desta maneira da nova aliança, que promete vida sob a
condição da fé.
§ 2. A promessa.
A recompensa prometida a Adão sob a condição de sua obediência
era a vida. (1) Isto está comprometido na ameaçadora advertência: «No
dia que dela comeres [isto é, da árvore da ciência do bem e do mal],
certamente morrerás». Está bem claro que isto envolvia a certeza de que
não ia morrer se não comesse. (2) Isto fica confirmado por inumeráveis
passagens e pelo teor geral das Escrituras, nas quais se ensina de maneira
tão clara e diversa que a vida foi, por mandato de Deus, conectada com a
obediência. «Faze isto, e viverás». Este é o modo uniforme em que a
Bíblia fala de que a lei ou a aliança sob o qual o homem pela
constituição de sua natureza e pela ordenança de Deus, foi colocado. (3)
Porquanto as Escrituras apresentam em todo lugar a Deus como juiz ou
governador moral, segue-se necessariamente desta descrição que Suas
criaturas racionais serão tratadas segundo os princípios da justiça. Se não
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
173
há transgressão, não há castigo. E os que continuam santos porque
continuam na graça e no companheirismo dAquele cuja graça é vida, e
cuja bondade amorosa é melhor que a vida. (4.) E, por último, a
santidade, ou como o Apóstolo o expressa, estar espiritualmente
ocupado, é vida. Portanto, não há dúvida, que tivesse Adão continuado
na santidade, teria desfrutado da vida que brota da graça de Deus.
A vida assim prometida incluía a feliz, santa e imortal existência da
alma e do corpo. Isto está claro. (1) Porque a vida prometida devia ser
idônea para o ser a quem foi feita a promessa. Mas a vida apropriada
para o homem como um ser moral e inteligente, composto de alma e
corpo, inclui a ditosa, santa e imortal existência de sua natureza inteira.
(2) A vida da qual as Escrituras falam em todo lugar como conectada
com a obediência é aquela que, como se acaba de declarar, surge do
favor e da comunhão de Deus, incluindo glória, honra e imortalidade,
como o Apóstolo nos ensina em Romanos 2:7. (3) A vida obtida por
Cristo para Seu povo foi a vida perdida pelo pecado. Mas a vida que o
crente deriva de Cristo é vida espiritual e eterna, a exaltação e completa
bênção de sua natureza inteira, tanto alma como corpo.
§ 3. A condição.
A condição da aliança feita com Adão diz-se nos símbolos de nossa
igreja que é a perfeita obediência.
Que esta afirmação é correta, poderia inferir-se: (1.) Pela natureza
do caso e dos princípios gerais claramente revelado na palavra de Deus.
Tal é a natureza de Deus, e tal a relação com que Ele sustenta Suas
criaturas morais, que o pecado, a transgressão da lei divina, deve
implicar a destruição do companheirismo entre o homem e seu Criador, e
a manifestação do desprazer divino. O apóstolo, portanto, diz que aquele
que ofende num ponto, que rompe um preceito da lei de Deus, é culpado
de todos. (2.) É assumido por todas as partes na Bíblia, que a condição
de aceitação sob a lei é obediência perfeita. “Maldito aquele que não
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
174
permanecer em todas as coisas escritas no livro da lei, para cumpri-las.”
Isto não é uma peculiaridade da economia mosaica, mas uma declaração
de um princípio que se aplica a todas as leis divinas. (3.) Todo o
argumento do Apóstolo em suas epístolas aos Romanos e aos Gálatas,
baseia-se no suposto de que a lei exige a perfeita obediência. Se isso não
se conceder, todo seu argumento cai por terra.
O mandamento específico dado a Adão de que não comesse de uma
certa árvore, portanto, não foi o único comando que estava obrigado a
obedecer. Foi dado simplesmente como a prova externa e visível para
determinar se estava disposto a obedecer a Deus em tudo. Criados
santos, com todos os seus afetos puros, havia mais razão que a prova de
sua obediência devesse ser uma ordem exterior e positiva; algo mau,
simplesmente porque era proibido, e não mau em sua própria natureza.
Assim se veria que Adão obedecia por pura obediência. Sua obediência
seria mais diretamente para com Deus, e não a sua própria razão.
À questão quanto a se a condição da aliança feita com Adão era
uma obediência perpétua além de perfeita, deve provavelmente ser
respondida em sentido negativo. Parece razoável em si mesmo e
claramente comprometido nas Escrituras que todas as criaturas racionais
têm um período determinado de prova. Se forem fiéis durante este
período, ficam confirmadas em sua integridade, e já não são mais
expostas ao perigo da apostasia Assim, lemos de anjos que não
guardaram seu primeiro estado, e dos que o guardaram. Os que
permaneceram fiéis prosseguiram em santidade e no favor de Deus. Por
isso, deve-se inferir que se Adão tivesse mantido sua obediência durante
o período designado para sua prova, nem ele nem sua posteridade ter-seiam expostos ao perigo de pecar.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
§ 4. A penalidade.
175
A penalidade que suportava o quebrantamento da aliança é expressa
com o inclusivo termo «morte». «No dia que dela comeres, certamente
morrerás». Que isto não se refere à mera dissolução do corpo fica claro:
(1) Porque a palavra morte, tal como se usa na Escritura com
referência às consequências da transgressão, inclui todo mal penal. O
pagamento do pecado é morte. A alma que pecar, essa morrerá. Assim,
toda e qualquer forma de mal que se inflija como castigo do pecado fica
compreendida sob o termo morte. (2) A morte com que se ameaçava era
o oposto à vida prometida. Mas a vida prometida, como vimos, inclui
todo o envolvido numa existência feliz, santa e imortal da alma e do
corpo; e por isso a morte deve incluir não só todas as misérias da vida e a
dissolução do corpo, mas também tudo o que se compreende por morte
espiritual e eterna. (3) Deus é a vida da alma. Seu favor e comunhão com
Ele são essenciais para a santidade e a sorte. Se se perde seu favor, as
consequências inevitáveis são a morte da alma, isto é, sua perda de vida
espiritual, e uma pecaminosidade e miséria sem fim. (4) A natureza da
pena ameaçada é ganha de sua imposição. As consequências do pecado
de Adão foram a perda da imagem e do favor de Deus, e todos os males
que surgiram daquela perda. (5) Finalmente, a morte em que se incorreu
pelo pecado de nossos primeiros pais é aquela da qual somos redimidos
por Cristo. Cristo, entretanto, não livra meramente nosso corpo da
tumba, mas salva a alma da morte espiritual e eterna; e por isso, a morte
espiritual e eterna, junto com a dissolução do corpo e todas as desgraças
desta vida, ficaram incluídas na pena originalmente incluída na aliança
das obras. Adão morreu certamente no dia em que comeu do fruto
proibido. A pena com que tinha sido ameaçado não era um castigo
momentâneo, mas a permanente sujeição a todos os males que surgem
do justo desagrado de Deus.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
§ 5. As partes da aliança das obras.
176
Pertence à natureza de uma aliança que deve haver dois ou mais
partes. Uma aliança não é de uma parte somente. As partes da aliança
original eram Deus e Adão. Adão, entretanto, não agiu em sua
capacidade individual, antes, como cabeça e representante de toda a sua
raça. Isto está claro: (1) Porque tudo o que foi dito a ele tem tanta
referência à sua posteridade como ao próprio Adão. Tudo o que foi
concedido a ele foi concedido a eles. Tudo o prometido a ele foi
prometido a eles. E tudo aquilo que se ameaçou a ele, em caso de
transgressão, foi ameaçado contra eles. Deus não deu a terra a Adão para
que fosse apenas para ele, mas sim como a herança para sua raça. O
domínio de que foi investido sobre os animais inferiores pertencia
igualmente aos seus descendentes. A promessa de vida abraçava a eles
assim como a ele. (2) Em segundo lugar é um fato firme e inegável que a
pena em que incorreu Adão sobreveio sobre toda sua raça. A terra foi
amaldiçoada para eles assim como o foi para ele. Eles devem ganhar seu
pão com o suor de suas frontes. As dores de parto são a herança comum
de todas as filhas de Eva. Todos os homens estão sujeitos às doenças e à
morte. Todos nascem em pecado, carentes da imagem moral de Deus.
Não há um só mal derivado do pecado de Adão que não afete tanto a sua
raça como o afetou a ele. (3) Não só os antigos judeus inferiram o caráter
representativo de Adão com base no registro dado em Gênesis, mas
também que os escritores inspirados do Novo Testamento dão a esta
doutrina a sanção da autoridade divina. Em Adão, diz o Apóstolo, todos
morreram. A sentença de condenação, ensina-nos ele, passou pela ofensa
a todos os homens. Pela ofensa de um todos foram feitos pecadores. (4)
Este grande fato é constituído como a base de todo o plano de redenção.
Como caímos em Adão, somos salvos em Cristo. Negar o princípio no
primeiro caso é negar o segundo, porque ambos os princípios estão
inextricavelmente unidos nas exposições da Escritura. (5) O princípio
envolvido na condição de Adão como cabeça subjaz a todas as
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
177
instituições religiosas que Deus estabeleceu para os homens; subjaz a
todos os Seus procedimentos providenciais com nossa raça, e subjaz
inclusive às influências salvadoras de Seu Espírito. Por isso, é um dos
princípios fundamentais tanto da religião natural como da revelada. (6) O
que é assim claramente revelado na palavra e providência de Deus
encontra uma resposta na própria constituição de nossa natureza. Todos
os homens são levados como instintivamente a reconhecer a validez
deste princípio de representação. Os governantes representam a seu
povo; os pais, a seus filhos; os tutores, a seus tutelados. Todas estas
considerações têm seu lugar aqui, quando está sob discussão a natureza
da aliança das obras e as partes desta aliança, embora naturalmente terão
que ser examinadas mais de perto quando se considerar o efeito do
pecado de Adão sobre a sua posteridade. Os homens podem debater
quanto às bases da condição de cabeça de Adão, mas o próprio fato
dificilmente pode ser questionado da parte dos que reconhecem a
autoridade das Escrituras. Por isso, entrou na fé de todas as Igrejas
cristãs, e é apresentado com maior ou menor clareza em todos os seus
símbolos autorizados.
§ 6. A perpetuidade da aliança das obras.
Se Adão agiu não apenas por si mas também por sua posteridade,
esse fato determina a questão quanto a se o pacto das obras ainda
continua em vigor. No sentido evidente dos termos, dizer que os homens
seguem sob essa aliança é dizer que seguem sob prova; que a raça não
caiu quando Adão caiu. Mas se Adão agiu como cabeça de toda a raça,
então todos os homens passaram por sua prova nele, e caíram com ele
em sua primeira transgressão. Por isso, as Escrituras ensinam que
entramos no mundo sob condenação. Somos por natureza, isto é, tal
como nascemos, filhos da ira. Este fato é dado por sentado em todas as
provisões do evangelho e em todas as instituições de nossa religião.
Requer-se que os meninos sejam batizados para remissão dos pecados.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
178
Mas enquanto que se deve rejeitar a doutrina Pelagiana, que ensina que
cada homem chega ao mundo livre de pecado e livre de condenação, e
que passa por sua prova em sua própria pessoa, é entretanto certo que
onde não há pecado não há condenação. Por isso, nosso Senhor disse ao
jovem: «Faze isto, e viverás». E por isso o Apóstolo, no segundo
capítulo de sua Epístola aos Romanos, diz que Deus recompensará a
cada homem segundo as suas obras. Aos bons, dará vida eterna; aos
maus, indignação e ira. Com isto só é dito que estes princípios eternos de
justiça seguem em vigor. Se alguém pode apresentar-se diante do
tribunal de Deus e demonstrar que está livre de pecado, quer imputado,
quer pessoal; quer original, quer próprio, não será condenado. Mas o fato
é que todo mundo jaz em maldade. O homem é uma raça apóstata. Os
homens estão envolvidos nas consequências penais e naturais da
transgressão de Adão. Tiveram sua prova nele, e ninguém se mantém por
si mesmo.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
CAPÍTULO VII
179
A QUEDA
O relato escriturístico.
O relato escriturístico da Queda, como dado no livro de Gênesis, é
que Deus pôs Adão «no jardim do Éden para o cultivar e o guardar. E o
SENHOR Deus lhe deu esta ordem: De toda árvore do jardim comerás
livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não
comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás. ...
Mas a serpente, mais sagaz que todos os animais selváticos que o
SENHOR Deus tinha feito, disse à mulher: É assim que Deus disse: Não
comereis de toda árvore do jardim? Respondeu-lhe a mulher: Do fruto
das árvores do jardim podemos comer, mas do fruto da árvore que está
no meio do jardim, disse Deus: Dele não comereis, nem tocareis nele,
para que não morrais. Então, a serpente disse à mulher: É certo que não
morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos
abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal.
Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável aos olhos
e árvore desejável para dar entendimento, tomou-lhe do fruto e comeu e
deu também ao marido, e ele comeu.» [Gn 2:16; 3:1-6].
As consequências deste ato de desobediência foram: (1) Um
sentimento imediato de culpa e vergonha. (2) O desejo e esforço de
ocultar-se da presença de Deus. (3) A denúncia e imediata execução do
justo juízo de Deus sobre a serpente, sobre o homem, e sobre a mulher.
(4) A expulsão do jardim do Éden, e a proibição do acesso à Árvore da
Vida.
É evidente que este relato da prova e queda do homem não é nem
uma alegoria nem um mito, mas uma história verdadeira: (1) Pela
evidência interna. Quando se contrasta com relatos mitológicos da
criação e origem do homem que se encontram nos registros de antigas
nações pagãs, sejam orientais, gregas ou etruscas, a diferença é logo
evidente. Estes últimos são evidentemente produto de uma crua
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
180
especulação; o registro da Escritura é simples, inteligível, e carregado
das mais elevadas verdades. (2) Pelo fato de que não só se apresenta
como uma questão histórica num livro que todos os cristãos reconhecem
como de autoridade divina, mas também constitui uma parte integral do
livro do Gênesis que é confessadamente histórico. Constitui a primeira
das dez divisões nas quais está dividido aquele livro em sua estrutura
interna, e pertence de forma essencial a seu plano. (3) Não só constitui
uma parte essencial do livro de Gênesis, mas também uma parte
essencial da história escriturística como um todo, que trata da origem,
apostasia e desenvolvimento da raça humana, em conexão com o plano
da redenção. (4) Portanto, encontramos que tanto no Antigo como no
Novo Testamento dá-se por sentado os fatos aqui registrados, e
mencionados como questão histórica. (5) E finalmente, estes fatos
subjazem a todo o sistema doutrinal revelado nas Escrituras. Nosso
Senhor e Seus Apóstolos se referem aos mesmos não só como
verdadeiros, mas também como constituindo a base de todas as
posteriores revelações e dispensações de Deus. Foi devido ao fato de que
Satanás tentou o homem e o levou à desobediência que veio a ser o
cabeça do reino das trevas, o poder do qual Cristo deveu destruir, e de
cujo domínio resgatou o Seu povo. É porque nós morremos em Adão que
devemos ser vivificados em Cristo. Assim que a Igreja universal se
sentiu obrigada a receber o registro da tentação e queda de Adão como
um verdadeiro relato histórico.
Há muitos que, embora admitindo o caráter histórico deste relato,
consideram-no contudo como figurado em grande medida. Entendem-no
eles como uma declaração não tanto de acontecimentos externos como
de um processo mental interno; explicando como foi que Eva chegou a
comer do fruto proibido e como chegou a induzir a Adão a unir-se a ela
em sua transgressão. Não admitem que o tentador fosse uma serpente,
nem que falasse com Eva, mas supõem que se sentiu atraída pela beleza
do objeto proibido, e que começou a questionar em sua própria mente o
fato ou a justiça da proibição. Mas não apenas não há razão alguma para
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
181
afastar-se da interpretação literal da passagem, mas também esta
interpretação está apoiada pela autoridade dos escritores do Novo
Testamento. Eles reconhecem a serpente como ali presente, e como o
agente na tentação e queda de nossos primeiros pais.
A árvore da vida.
Segundo a narração sagrada, havia duas árvores juntas no jardim do
Éden, que tinham um peculiar caráter simbólico ou sacramental. Uma
era chamada a Árvore da Vida, e a outra, a Árvore do Conhecimento. A
primeira era o símbolo da vida, e seu fruto não podia ser comido exceto
com a condição de que o homem retivesse sua integridade. Não podemos
determinar se o fruto daquela árvore tinha a virtude inerente de
comunicar vida, isto é, de sustentar o corpo do homem em seu vigor e
beleza juvenis, ou refiná-lo gradualmente até que chegasse a ser o que é
agora o corpo glorificado de Cristo, ou se a conexão entre comer seu
fruto e a imortalidade era simplesmente convencional e sacramental. É
suficiente saber que comer daquela árvore assegurava de algum modo o
desfrutar da vida eterna. Que este é o caso está claro, não só porque
depois de sua transgressão o homem foi expulso do paraíso, para «que
não estenda a mão, e tome também da árvore da vida, e coma, e viva
eternamente» (Gn 3:22), mas também porque Cristo é chamado a Árvore
da vida. É chamado assim porque aquela árvore era tipo dEle e a
analogia é que assim como Ele é a fonte de vida, espiritual e eterna, para
o Seu povo assim aquela árvore foi disposta para ser a fonte de vida para
os primeiros pais de nossa raça e para todos os seus descendentes, se eles
não se tivessem rebelado contra Deus. Nosso Senhor promete (Ap 2:7)
dar aos que vencerem o direito de comer da árvore da vida que está no
meio do paraíso de Deus. Afirma-se (Ap 22:2) que no céu há uma árvore
da vida, cujas folhas são para a cura das nações; e se acrescenta: «Bemaventurados os que lavam as suas vestiduras, para que tenham o direito
de se chegarem à árvore da vida, e para que entrem pelas portas na
cidade» [Ap 22:14, TB]. O sentido simbólico e tipológico da árvore da
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
182
vida fica assim esclarecido. Assim como o paraíso era tipo do céu, do
mesmo modo a árvore que teria dado uma vida imortal ao Adão
obediente naquele paraíso terrestre é o tipo Daquele que é a fonte de vida
espiritual e eterna para o Seu povo no paraíso celestial.
A árvore do conhecimento.
A natureza e significado da árvore do conhecimento do bem e do
mal não estão tão claros. Por árvore do conhecimento é certamente bem
provável que devamos entender uma árvore cujo fruto comunicaria
conhecimento. Isto se pode inferir: (1) Por analogia. Assim como a
árvore da vida sustentava ou comunicava vida, assim a árvore do
conhecimento tinha sido posto para comunicar conhecimento. (2) Com
base na sugestão do tentador, que assegurou à mulher que comer do fruto
da árvore abrir-lhe-ia os olhos. (3) Ela compreendeu a designação,
porque considerava a árvore como desejável para alcançar a sabedoria.
(4) O efeito de comer do fruto proibido foi que os olhos dos
transgressores foram abertos. E (5) no versículo 22 lemos que Deus disse
do homem caído: «Eis que o homem se tornou como um de nós,
conhecedor do bem e do mal». A não ser que isto se entenda
ironicamente, o que neste contexto parece totalmente antinatural, deve
significar que Adão tinha, por comer do fruto proibido alcançado um
conhecimento, em alguns aspectos, análogo ao conhecimento de Deus,
embora diferente em sua natureza e efeitos. Por isso, parece claro com
base na narração inteira, que a árvore do conhecimento era uma árvore
cujo fruto comunicava conhecimento. Pode ser, certamente, que não
fosse por nenhuma virtude inerente à árvore em si, mas por ter sido
constituído assim por Deus. Não é necessário supor que o fruto proibido
tivesse o poder de corromper nem a natureza corpórea nem a moral do
homem, produzindo assim o conhecimento experimental do bem e do
mal. Tudo o que se demanda no texto é que o conhecimento seguisse ao
comer do fruto.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
183
As palavras «bem e mal» neste contexto admitem três
interpretações. Em primeiro lugar, na Escritura se expressa a ignorância
da infância dizendo que o menino não pode distinguir sua mão direita da
esquerda; às vezes, dizendo que não pode discernir entre o mal e o bem.
Assim, em Dt 1:39 diz-se: «Vossos meninos ... que, hoje, nem sabem
distinguir entre bem e mal», e em Is 7:16, «Antes que este menino saiba
desprezar o mal e escolher o bem». Por outro lado, a maturidade, quer
em conhecimento intelectual ou espiritual, é expressada dizendo que
alguém tem poder para distinguir entre o bem e o mal. Assim, o crente
perfeito ou amadurecido tem «os sentidos exercitados no discernimento
do bem e do mal» (Hb 5:14). Concordando com a analogia destas
passagens, a árvore do conhecimento do bem e do mal é simplesmente a
árvore do conhecimento. A primeira expressão é plenamente equivalente
à outra. Esta interpretação tira muitas dificuldades da passagem. É
sustentada também pela linguagem de Eva, que disse que era uma árvore
desejável para alcançar a sabedoria. Antes de pecar, Adão tinha a
ignorância da felicidade e da inocência. Os ditosos não sabem o que é a
dor, e os inocentes não sabem o que é o pecado. Quando comeu da
árvore proibida, alcançou um conhecimento que jamais tinha tido antes.
Mas, em segundo lugar, as palavras «bem e mal» podem ser
tomadas num sentido moral. Se isto é assim, o significado não pode ser
que o fruto dessa árvore ia levar a Adão ao conhecimento da distinção
entre o bem e o mal, e assim despertar sua natureza moral latente. Esse
conhecimento ele deve ter tido desde o princípio, e era algo bom não
para ser proibido. Alguns supõem que pelo conhecimento do bem e do
mal que se entende o conhecimento de que coisas são boas e quais são
más. Trata-se de um ponto determinado para nós pela vontade revelada
de Deus. Tudo o que Ele manda é bom, e tudo o que Ele proíbe é mau. A
questão é determinada pela autoridade. Não podemos responder com
base na natureza das coisas, nem por considerações de conveniência.
Supõe-se que em lugar de submeter-se à autoridade ou lei de Deus como
a norma de sua conduta, Adão aspirava conhecer por si mesmo o que era
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
184
bom e mau. O que buscava era a emancipação das ataduras da
autoridade. Entretanto, a isto se pode objetar que não era este o
conhecimento que alcançou ao comer do fruto proibido. Foi-lhe dito que
os seus olhos seriam abertos, que conheceria o bem e o mal; e seus olhos
foram abertos; alcançou o conhecimento desejado. Mas este
conhecimento não era a capacidade de decidir por si mesmo entre o bem
e o mal. Teve menos deste conhecimento depois que antes de sua queda.
Em terceiro lugar, «bem e mal» podem ser tomados num sentido físico,
denotando felicidade e miséria. Comer da árvore proibida ia determinar a
questão da felicidade ou miséria de Adão. Conduziu a um conhecimento
experimental da diferença. Deus conhecia a natureza e os efeitos do mal
com base em Sua onisciência. Adão só podia conhecê-los por
experiência, e este conhecimento o obteve quando pecou. Seja qual for a
interpretação particular que se adote, estão todas elas incluídas na
declaração geral de que a árvore do conhecimento deu a Adão um
conhecimento que não tinha antes: chegou a um conhecimento
experimental da diferença entre o bem e o mal.
A serpente
Pode deduzir-se da narração, que Adão esteve presente com Eva
durante a tentação. Em Gênesis 3.6, diz-se que a mulher deu do fruto da
árvore a seu marido que estava “com ela.” Portanto, foi uma parte de
toda a transação. Quando se diz que uma serpente dirigiu-se a Eva,
estamos obrigados a aceitar as palavras em seu sentido literal. A serpente
não é uma designação figurativa para Satanás, nem Satanás adotou a
forma de uma serpente. Uma serpente real foi o agente da tentação,
como fica claro do que se diz das características naturais da serpente no
primeiro versículo do capítulo, e pela maldição pronunciada sobre o
mesmo animal, e pela inimizade que se declarou que subsistiria entre ela
e o homem para sempre. Mas é evidente que Satanás foi o verdadeiro
tentador, e que empregou a serpente meramente como seu órgão ou
instrumento: (1) Pela natureza da transação. O que aqui é atribuído à
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
185
serpente transcende em muito o poder de qualquer criatura irracional. A
serpente pode ser que seja o mais ardiloso dos animais do campo, mas
não tem as altas capacidades intelectuais que o tentador exibe aqui. (2)
No Novo Testamento se declara de maneira direta, e dá-se por sentado
em várias formas, que Satanás conduziu a nossos primeiros pais ao
pecado. Em Ap 12:9 diz-se: «E foi expulso o grande dragão, a antiga
serpente, que se chama diabo e Satanás, o sedutor de todo o mundo». E
em Ap 20:2 [RC]: «Ele prendeu o dragão, a antiga serpente, que é o
diabo e Satanás». Em 2Co 11:3 Paulo diz: «Receio que, assim como a
serpente enganou a Eva com a sua astúcia, assim também seja
corrompida a vossa mente e se aparte da simplicidade e pureza devidas a
Cristo». Mas o fato de que pela serpente entendia-se como sendo Satanás
fica claro pelo v. 14, onde fala de Satanás como o grande enganador; e o
que se diz em Rm 16:20, «E o Deus da paz, em breve, esmagará debaixo
dos vossos pés a Satanás», é uma evidente alusão a Gn 3:15. Em Jo 8:44,
nosso Senhor chama o diabo homicida desde o princípio, e pai de
mentira, porque foi por ele que entraram no mundo o pecado e a morte.
Tal era deste modo a fé da Igreja judaica. No Livro de Sabedoria 2:24
diz-se que «Por meio da inveja de Satanás entrou a morte no mundo».
Nos escritos judeus posteriores esta ideia apresenta-se com frequência. 133
Quanto ao fato de que a serpente falasse, não há nisso mais
dificuldade que na proclamação de palavras articuladas do Sinai, ou o
ressoar de uma voz do céu no batismo de nosso Senhor, ou em que a
asna de Balaão lhe dirigisse a palavra. As palavras pronunciadas foram
produzidas por ação de Satanás, e de efeitos similares produzidos por
seres angélicos, bons e maus, há numerosos casos na Bíblia.
133
Veja-se Eisenmenger, Endecktes Judenthum, edición de Königsberg, 1711; pág. 822.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
186
A natureza da tentação
As primeiras palavras do tentador a Eva tinham a intenção de
suscitar nela desconfiança quanto à bondade de Deus, e duvida quanto à
veracidade da proibição. «De maneira que Deus lhes disse: Não comais
de toda árvore do jardim?», ou , antes, como as palavras provavelmente
significam: «Disse Deus: Não comam de nenhuma árvore do jardim?»
As seguintes palavras foram um assalto direto sobre a fé dela: «Não
morrereis», mas sim bem ao contrário, tornar-vos-eis como Deus em
conhecimento. E a esta tentação ela cedeu, e Adão se uniu na
transgressão. Com base neste relato parece que a dúvida, a incredulidade
e a soberba foram os princípios que conduziram a este fatal ato de
desobediência. Eva duvidou da bondade de Deus; não creu em Sua
ameaça; aspirou a um conhecimento proibido.
Os efeitos do primeiro pecado.
Os efeitos do pecado sobre nossos mesmos primeiros pais foram:
(1) Vergonha, um sentimento de degradação e de contaminação. (2)
Temor do desagrado de Deus; ou, um sentimento de culpa, e o
conseguinte desejo de fugir de Sua presença. Estes efeitos eram
inevitáveis. Demonstram a perda não só da inocência, mas também da
retidão original, e com ela do favor e da comunhão de Deus. Assim, o
estado ao qual Adão viu-se reduzido por sua desobediência, pelo que
respeita à sua condição subjetiva, foi análogo ao dos anjos caídos. Ficou
inteira e totalmente arruinado. Diz-se que ninguém se torna totalmente
depravado por uma só transgressão. Num sentido, é certo. Mas uma
transgressão, ao incorrer na ira e maldição de Deus e na perda de
comunhão com Ele, envolve a morte espiritual de uma maneira tão
absoluta, como uma perfuração do coração causa a morte do corpo; ou
como uma espetada nos olhos nos envolve em perpétuas trevas. As
outras formas de mal conseguintes à desobediência de Adão foram
meramente subordinadas. Foram tão somente a expressão do desagrado
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
187
divino e as consequências daquela morte espiritual em que consistia
essencialmente a pena anunciada.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
CAPÍTULO VIII
188
O PECADO
§ 1. A natureza da questão a ser considerada.
NOSSOS primeiros pais, é-nos dito, caíram do estado em que foram
criados ao pecar contra Deus. Isto apresenta uma das questões mais
difíceis e vastas seja em moral ou em teologia. O que é o pecado? A
existência do pecado é um fato inegável. Ninguém pode examinar sua
própria natureza, nem observar a conduta de seus semelhantes, sem verse levado por força à convicção de que existe o mal do pecado. Não é
uma questão puramente moral ou teológica. Cai também dentro do
âmbito da filosofia, que tenta explicar todos os fenômenos da natureza
humana assim como do mundo externo. Por isso, os filósofos de todas as
eras e de todas as escolas se viram obrigados a tentar esta questão. As
teorias filosóficas a respeito da natureza do pecado são tão numerosas
como as diferentes escolas de filosofia. Esta grande questão chega à
consideração do teólogo cristão com certas limitações. Aceita ele a
existência de um Deus pessoal de perfeição infinita, e aceita a
responsabilidade do homem. Ele não pode aceitar como certa nenhuma
teoria da natureza ou da origem do pecado que entre em conflito com
nenhum destes princípios fundamentais. Antes de entrar em enunciar
qualquer das teorias que foram adotadas com maior ou menor extensão,
é importante determinar os dados com base nos quais se deve determinar
a resposta à pergunta: O que é pecado? Ou as premissas das quais se
deva deduzir a resposta. Estas são simplesmente as declarações da
Palavra de Deus e os fatos de nossa própria natureza moral. Ignorando
quer totalmente ou em parte estas duas fontes de conhecimento, muitos
filósofos, e inclusive teólogos, recorrem à razão, ou antes, à especulação,
para decidir esta questão. Mas este método é irrazoável, e com toda
certeza levará a falsas conclusões. Ao determinar a natureza da sensação
não podemos adotar o método a priori [apriorístico], e argumentar com
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
189
base na natureza da coisa como deveria afetar os nossos órgãos
sensoriais. Temos que aceitar os fatos da consciência sensorial como o
fenômeno a explicar.
Não podemos dizer que a natureza da luz é tal que não pode ser
causa do fenômeno da visão; nem dos ácidos que não podem afetar o
órgão do gosto; nem que nossas sensações são enganosas quando nos
levam a atribuir a eles tais causas. Tampouco podemos determinar
filosoficamente os princípios da beleza, e decidir o que é a que os
homens devem admirar, e diante do que devem sentir desagrado. Tudo a
que a filosofia pode fazer é tomar os fatos de nossa natureza estética e
deles deduzir as leis ou princípios da beleza. Da mesma maneira, os fatos
de nossa consciência moral devem ser aceitos como verdadeiros e
fidedignos. Não podemos arguir que a constituição do universo e que a
relação do indivíduo com o todo é tal, que não pode existir o pecado, que
não há nada pelo que deveríamos sentir remorso, ou por causa do que
deveríamos receber castigo. Tampouco podemos adaptar qualquer teoria
de obrigação moral que nos impeça reconhecer como pecado aquilo que
a consciência nos leva a condenar. Qualquer pessoa que adotasse tal
teoria do sublime e belo que demonstrasse que o Niágara e os Alpes não
são sublimes objetos da natureza; ou que a Virgem do Sisti ou a
Transfiguração de Rafael não são belas produções da arte; ou que a
“Ilíada” e “Paraíso Perdido” não são dignos da admiração das idades,
perderia todo o seu esforço. E assim, aquele que ignora as realidades de
nossa natureza moral em suas teorias da origem e natureza do pecado, se
esforçará em vão. Mas isto se faz constantemente. Descobrir-se-á que
todos os pontos de vista antiteístas e anticristãos a respeito deste tema
são especulações puramente arbitrárias, enfrentadas com os mais simples
e inegáveis fatos da consciência.
Com relação à natureza do pecado, tem-se que observar que há dois
aspectos em que se pode contemplar a questão. O primeiro diz respeito à
sua natureza metafísica, e o segundo à sua natureza moral. O que é que
chamamos pecado? Trata-se de uma substância, de um princípio, ou de
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
190
um ato? É uma privação, uma negação, um defeito? É um antagonismo
entre a mente e a matéria, entre a alma e o corpo? É o egoísmo como
sentimento, ou como propósito? Todas estas são questões que tratam da
natureza metafísica do pecado, pelo que é como ente na natureza. Pelo
contrário, as perguntas que seguem tratam, antes, de sua natureza moral,
isto é: O que é que dá ao pecado seu caráter como mal moral? Como se
relaciona com a lei? Com que lei se relaciona o pecado? Qual é sua
relação com a justiça de Deus? Qual é sua relação com sua santidade?
Qual é a relação que tem ou pode ter o pecado com a lei; trata-se só de
atos deliberados, ou também de ações impulsivas e de afetos, emoções e
princípios, ou disposições? É evidente que estas são questões morais,
não metafísicas. Em algumas das teorias a respeito da natureza do
pecado, este é contemplado exclusivamente em um destes aspectos; em
outras, exclusivamente no outro; em algumas outras se combinam ambas
as perspectivas.
§ 2. Teorias filosóficas da natureza do pecado.
A primeira teoria em ordem temporal, à parte da primordial
doutrina da Bíblia, quanto à origem e a natureza do pecado, é a dualista,
que supõe a existência de um princípio eterno do mal. Esta doutrina foi
extensamente disseminada pelo Oriente, e em diferentes formas foi
parcialmente introduzida na Igreja cristã. Segundo a doutrina dos Parsis,
este princípio original era um ser pessoal. Segundo os Gnósticos,
Marcionitas e Maniqueus, era uma substância, uma ὕλη - hyle ou matéria
eterna. Agostinho diz: “Iste [Manes] duo principia inter se diversa atque
adversa, eademque æterna et coæterna, hoc est semper fuisse, composuit:
duasque naturas atque substantias, boni scilicet et mali, sequens alios
antiquos hæreticos, opinatus est.” 134 Estes dois princípios [o do Bem e o
do Mal] estão em conflito perpétuo. No mundo presente estão
134
Liber Hæresibus, XLVI.; Works, edit. Benedictines, vol. viii. p. 48, d.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
191
misturados. Ambos entram na constituição do homem. Tem um espírito
[πνεῦμα - pneuma] derivado do reino da luz, e um corpo com sua vida
animal [σῶμα - soma e ψυχή - psuche] derivado do reino das trevas.
Assim, o pecado é um mal físico, a contaminação do espírito por sua
união com um corpo material; e deve ser vencido por meios físicos, isto
é, por meios adaptados para destruir a influência do corpo sobre a alma.
Daí a eficácia da abstinência e da austeridade. 135
Esta teoria, evidentemente, é inconsistente com o Teísmo, ao fazer
com que algo fora de Deus seja eterno e independente de Sua vontade.
Ele deixa de ser um Ser infinito e um soberano absoluto. Vê-se em todas
as partes limitado por um poder coeterno que não pode controlar. (2)
Destrói a natureza do pecado como mal moral, ao fazer dele uma
substância, e ao apresentá-lo como inseparável da natureza do homem
como criatura composta de matéria e espírito. (3) Destrói, naturalmente,
a responsabilidade humana, não só ao fazer necessário o mal moral com
base na própria constituição do homem, e atribuindo sua origem a uma
fonte eterna e necessariamente operante, mas também ao fazer dele uma
substância, o que destrói sua natureza como pecado. Esta teoria é tão
totalmente antiteísta e anticristã que embora tenha prevalecido muito
tempo como heresia na Igreja, nunca entrou em conexão viva com a
doutrina cristã.
O pecado considerado como uma mera limitação do ser
A segunda teoria anticristã da natureza do pecado é a que faz dele
uma mera negação, ou limitação, do ser. O ser, a substância, é o bem.
Agostinho diz: “Omne quod est, in quantum aliqua substantia est, et
bonum [est].” 136 Deus, como a substância absoluta, é o bem supremo. O
mal absoluto não seria nada. Por isso, quanto menos ser, menos bem; e
135
Baur's Manichean System. Neander's Church History, edit. Boston, 1849, vol. i. pp. 478-506.
Müller's Lehre von der Sünde, Vol. I. pp. 504-518.
136
De Genesi ad Literam, XI. xiii. 17, Works, edit. Benedictines, vol. 3. p. 450, d.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
192
137
toda negação ou limitação do ser é má, ou pecado. Espinoza diz: “Quo
magis unusquisque, suum utile quærere, hoc est suum esse conservare
conatur et potest, eo magis virtute præditus est; contra quatenus
unusquisque suum utile, hoc est suum esse conservare negligit, eatenus
est impotens.” Em sua demonstração desta proposição, faz com que o
poder e a bondade sejam a mesma coisa, potentia e virtus são o mesmo.
Por isso, a carência de virtude, ou o mal, é a fraqueza ou limitação do
ser. O Professor Baur, de Tubinga, apresenta de maneira ainda mais
taxativa esta postura a respeito da natureza do pecado. 138
Ele diz: «O mal é o finito; porque o finito é negativo; a negação do
infinito. Todo o finito é relativamente nada; uma negatividade que, na
constante distinção mais e menos da realidade, aparece em formas
diferentes». E segue: «Se a liberdade do pecado é a eliminação de toda
limitação, então fica claro que só uma série infinita de gradações pode
levar-nos a ponto em que o pecado é reduzido a um mínimo
infinitesimal. Se este mínimo desaparecesse totalmente, então o ser,
assim totalmente livre de pecado, faz-se um com Deus, porque só Deus é
absolutamente isento de pecado. Mas se tiverem que existir outros seres
além de Deus, deve haver neles, até o ponto de que não são infinitos
como o é Deus, e por esta mesma razão, um mínimo de mal». Assim, a
distinção entre bem e mal é meramente quantitativa, uma distinção entre
mais ou menos. O ser é bom, a limitação do ser é má. Esta ideia de
pecado está na natureza do sistema panteísta. Se Deus é a única
substância, a única vida, o único agente, então Ele é a soma de tudo o
que é, ou antes, tudo o que existe é a manifestação de Deus; a forma de
sua existência. Consequentemente, se o mal existe é tanto uma forma da
existência de Deus como o bem; e não pode ser outra coisa senão um
desenvolvimento imperfeito, ou mera limitação do ser.
137
138
Ethices, Par. IV. propos. xx.; Works, edit. Jena, 1803, vol. ii. p. 217.
In the Tübingen Zeitschrift, 1834, Drittes Heft.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
193
Esta teoria, evidentemente: (1) ignora a diferença entre o malum
metaphysicum [mal metafísico] e o malum morale [mal moral], entre o
físico e o moral; entre uma árvore raquítica e um homem ímpio. Em
lugar de explicar o pecado, nega sua existência. Por isso, entra em
conflito com a mais clara verdade intuitiva, e com a mais poderosa de
nossas convicções instintivas. não há nada do que estejamos mais
seguros, nem sequer de nossa própria existência, que da diferença entre o
pecado e a limitação do ser, entre o que é moralmente mau e a mera
limitação do poder. (2) Esta teoria dá por certo o sistema panteísta do
universo, e por isso diverge de nossa natureza religiosa, que exige e
supõe a existência de um Deus pessoal. (3) Ao destruir a ideia de pecado,
destrói todo sentimento de obrigação moral, dando uma liberdade sem
restrições a todas as más paixões. Não só ensina que tudo o que é, é bom;
que tudo o que existe ou sucede tem direito a ser, mas que a única norma
da virtude é o poder. Como diz Cousin, o vencedor está sempre certo; a
vítima sempre está errada. O vencedor é sempre mais moral que o
vencido. A virtude e a prosperidade, a desgraça e o vício, diz ele, estão
em necessária harmonia. A fraqueza é um vício (isto é, pecado), e por
isso é sempre castigada – e vencida. 139 Este princípio foi adotado por
escritores como Carlyle, que em seu culto ao herói tornam sempre bons
os fortes, e apresentam os assassinos, piratas e perseguidores como
sempre mais morais e mais dignos de admiração que suas vítimas.
Satanás é assim muito mais digno de homenagem que o melhor dos
homens, porquanto nele há mais de ser e de poder, e ele é o sedutor dos
anjos e o sedutor dos homens. Jamais a mente humana concebeu um
sistema mais totalmente demoníaco que este. Entretanto, este sistema
não só tem proponentes filosóficos, mas também impregna muita da
literatura popular tanto da Europa como da América.
139
History of Modem Philosophy, tradução de Wight, New York, 1852, Vol. I, pp. 182-187.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
194
A teoria de Leibnitz sobre a privação.
Quase nos mesmos termos, mas com um espírito e propósito muito
diferentes da doutrina de Espinoza e de seus sucessores, está a teoria do
Leibnitz, que também resolve o pecado em privação, e o atribui à
necessária limitação do ser. Entretanto, Leibnitz era teísta, e seu objetivo
em sua «Théodicée» era vindicar a Deus, demonstrando que a existência
do pecado é consistente com Suas perfeições divinas. Sua obra é
religiosa em seu espírito e propósito, por errônea e perigosa que seja em
alguns de seus princípios. Ele deu por sentado que este é o melhor dos
mundos possíveis. Como o pecado existe no mundo, tem que ser ou
necessário, ou inevitável. Não deve ser atribuído à ação de Deus. Mas
como para a filosofia de Leibnitz Deus é o agente universal, o pecado
deve ser uma simples negação ou privação para a qual não se precisa de
uma causa eficiente. Estes são os dois pontos a estabelecer. Primeiro,
que o pecado é inevitável; e segundo, que não se deve à ação de Deus. É
inevitável, porque surge da necessária limitação da criatura. A criatura
não pode ser absolutamente perfeita. Seu conhecimento e poder devem
ser limitados. Mas se limitados, não só devem ser suscetíveis de errar,
mas também o errar ou as ações errôneas são inevitáveis, ou teríamos
uma ação absolutamente perfeita de um agente menos que absolutamente
perfeito; o efeito transcenderia à capacidade da causa, Por isso, segundo
Leibnitz, o mal surge «par la suprême necessité des vérilés éternelles
[pela suprema necessidade das coisas eternas]». 140 “Le franc-arbitre va
au bien, et s’il rencontre le mal, c’est par accident, c’est que le mal est
caché sous le bien et comme masqué.” A origem do mal é assim referido
à vontade, mas a vontade é inevitável, ou por necessidade induzido ao
erro, pelas limitações inseparáveis da natureza de uma criatura. Se,
portanto, Deus criou um mundo absolutamente, Ele deve criar um do
qual o pecado não pode excluir-se. Sendo este a origem e a natureza do
pecado, segue-se que Deus não é seu autor. A providência, segundo
140
Théodicée, I.25. Works, edición de Berlín, 1840, pág. 511.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
195
Leibnitz, é uma criação contínua (pelo menos este é o ponto de vista que
se apresenta em algumas partes de sua “Théodicée” 141 ), portanto tudo o
que é positivo e real deve ser devido à sua agência. Mas ainda sendo
somente negação, ou privação, não é nada positivo, e portanto não
necessitamos uma causa eficiente, mas simplesmente uma causa
deficiente para justificar sua existência. A similaridade no modo de
enunciar esta doutrina e a doutrina agostiniana que faz de todo pecado
um defeito, e que reconcilia sua existência com a santidade de Deus com
base no mesmo princípio que adota Leibnitz, é evidente para todos.
Entretanto, trata-se meramente de uma similaridade no modo de
expressão. As duas doutrinas são essencialmente diferentes, como
veremos quando passarmos a considerar a teoria de Agostinho. Para
Agostinho, o defeito é a ausência de um bem moral que a criatura
deveria possuir; para Leibnitz, a negação é a necessária limitação dos
poderes da criatura.
As objeções a esta teoria que faz do pecado uma mera privação,
atribuindo-o à natureza das criaturas como seres finitos, são
substancialmente as mesmas que se apresentaram contra as teorias
anteriormente mencionadas. (1) Em primeiro lugar, faz do pecado um
mal necessário. As criaturas são necessariamente imperfeitas ou finitas, e
se o pecado é a inevitável consequência de tal imperfeição, ou limitação
do ser, o pecado deve ser também um mal necessário. (2) Faz de Deus,
no fim das contas, o autor do pecado quanto a que atribui a Ele a
responsabilidade por sua existência. Porque inclusive admitindo que seja
uma mera negação, não demandando nenhuma causa eficiente,
entretanto Deus é o autor da limitação na criatura, da qual surge
necessariamente o pecado. Ele constituiu que tal maneira as obras de
Suas mãos, que não pode mais que pecar, assim como o menino não
pode mais que errar em seu juízo. A razão é tão fraca inclusive no
homem adulto que são totalmente inevitáveis os erros quanto à natureza
141
Théodicée, I. 27, and III. 381.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
196
e causas das coisas. E se o pecado é igualmente inevitável com base na
própria constituição da criatura, Deus, que é o autor desta constituição,
deve ser responsável por sua existência. Isto não é só uma detração do
caráter de Deus, mas também está diretamente oposto aos ensinos de Sua
palavra. A Bíblia nunca atribui a origem do pecado, quer nos anjos ou
nos homens, às necessárias limitações de seu ser como criaturas, mas sim
ao uso indesculpável e pervertido de sua própria liberdade de ação. Os
anjos caídos não guardaram seu primeiro estado; e o homem, deixado à
liberdade de sua própria vontade, caiu do estado em que tinha sido
criado. (3) Esta teoria tende a apagar as distinções entre o mal moral e
físico. Se o pecado é uma mera privação, ou se é a necessária
consequência da fraqueza da criatura, é objeto de comiseração mais que
de aborrecimento. Nos escritos dos proponentes desta teoria são
constantemente intercambiados e confundidos os dois sentidos das
palavras bem e mal, o moral e o físico.
A distinção, entretanto, entre a virtude e o vício, a santidade e o
pecado, como se revela em nossa consciência e na palavra de Deus, é
absoluta e total. Ambas são ideias simples. Sabemos o que é a dor da
experiência; sabemos o que é o pecado da mesma fonte. Sabemos que
ambas as coisas são tão diferentes como o dia e a noite, como a luz e o
som. Portanto, toda teoria que tenda a confundir entre ambas as coisas
deve ser falsa. Em consequência, as Escrituras, enquanto que apresentam
o mero sofrimento como objeto de comiseração, apresentam o pecado
como objeto de aborrecimento e condenação. A ira e a maldição de Deus
são denunciados contra todo pecado como justa consequência. (4) Por
isso, a mencionada doutrina tende não só a diminuir nosso sentimento do
mal ou da contaminação do pecado, mas também a destruir todo
sentimento de culpa. Nossos pecados são nossas misérias, nossas
fraquezas. Não são o que a consciência pronuncia que são, crimes que
clamam por seu justo castigo. Entretanto, o pecado se revela à nossa
consciência não como uma fraqueza, mas sim como um poder. É maior
nos mais fortes. Não são os fracos mentais os que são os piores entre os
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
197
homens, mas sim que os grandes em intelecto foram, em muitos casos,
os maiores em iniquidade. Satanás, o pior dos seres criados, é a mais
poderosa das criaturas. (5) Se esta teoria for correta, o pecado deve ser
eterno. Porquanto nunca podemos libertar-nos das limitações de nosso
ser, nunca podemos ficar livres do pecado ao qual estas limitações
inevitavelmente dão origem. A alma, portanto, como se tem dito, é a
assíntota de Deus, sempre se aproxima mas nunca chegar ao estado de
impecabilidade absoluta.
O pecado é antagonismo necessário.
Outra teoria evidentemente inconsistente com os fatos da
consciência e os ensinos da Bíblia, é a que explica o pecado com base na
lei da necessária oposição, ou antagonismo. Toda a vida, diz-se, implica
ação e reação. Inclusive no universo material prevalece a mesma lei. Os
corpos celestiais são guardados em suas órbitas pelo equilíbrio de forças
centrífugas e centrípetas. Há polaridade na luz, no magnetismo e na
eletricidade. Todas as mudanças químicas produzem-se pela atração e
repulsão. Assim no mundo animal não há forças sem obstáculos a
vencer; não há repouso sem fatiga; não há vida sem morte. Da mesma
maneira, a mente se desenvolve por meio de esforços continuados, por
constante conflito entre o que está dentro e fora. Enfatiza-se que a
mesma lei deve prevalecer no mundo moral. Não pode haver bem sem
mal. O bem é a resistência ou a vitória sobre o mal. O que seria o
universo material, não havia uma matéria, e sim uma propriedade; e se
tudo fosse oxigênio ou tudo carbono, como seria a vida sem a ação e a
reação; o que seria a mente, sem a luta com o erro e a busca da verdade;
tal, diz-se, o mundo moral seria sem pecado; uma piscina estancada e
sem vida. Pelo que às criaturas concerne, mantém-se que é uma lei de
sua constituição que se desenvolvem pelo antagonismo, pela ação de
forças contrárias ou de princípios opostos; de maneira que um mundo
moral sem pecado é uma impossibilidade. O pecado é a condição
necessária para a existência da virtude.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
198
Esta teoria geral é de origem primitiva e ampla difusão. Em sua
forma mais recente, apresentada por Blasche e Rosenkranz, o próprio
universo, como produto do autodesenvolvimento do Ser infinito
absoluto, implicando uma separação ou a diferença do puro e simples em
que não se fazia nenhuma distinção, é mau. Vem à existência por uma
queda ou apostasia. Assim, como o Professor Müller em sua obra sobre
“O pecado,” diz, em vez de panteísmo, temos um sistema que se
aproxima quase ao Pan-satanismo. Entretanto, à parte deste extremo
terrível da doutrina, em qualquer forma destrói a própria natureza do
pecado. O que é assim chamado é a lei universal de toda a existência
finita. Não pode haver ação sem reação. Não pode haver vida sem a
diversidade e o antagonismo das operações. E se o bem não pode existir
sem o mal, o mal deixa de ser algo que tem que ser aborrecido e
condenado. Os homens deixam de ser responsáveis por algo que é
inseparável de sua própria natureza como criaturas, e por isso não há
nada que a consciência possa condenar ou que Deus possa castigar. Com
base nesta teoria, toda a nossa natureza é um engano, e todas as
denúncias da Escritura contra o pecado são os desvarios do fanatismo.
A teoria de Schleiermacher sobre o pecado.
A doutrina de Schleiermacher a respeito do pecado está tão
relacionada com todo o seu sistema filosófico e teológico que não pode
ser compreendida sem algum conhecimento do mesmo. Sua filosofia é
panteísta. Sua teologia simplesmente a interpretação da consciência
humana conforme os princípios fundamentais de sua filosofia. É
chamada teologia cristã porque é a interpretação da consciência religiosa
dos cristãos, isto é, daqueles que conhecem e creem nos fatos registrados
a respeito de Cristo.
Os princípios condutores de seu sistema são como seguem:
1. Deus é a absoluta Infinitude (die einfache and absolute
Unendlichkeit, a infinidade simples e absoluta), não uma pessoa, mas
sim o simples ser com o simples atributo da onipotência. Outros
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
199
atributos que atribuímos ao Ser Infinito não expressam o que está nEle
(ou antes, em Isso), mas sim os efeito produzidos em nós. A sabedoria,
bondade, santidade em Deus, significam simplesmente a causalidade
nEle que produz estes atributos em nós.
2. O poder absoluto significa todo o poder. Deus, ou o ser
absolutamente poderoso, é a única causa. Tudo o que é e tudo o que
acontece deve-se à Sua eficiência.
3. Este poder infinito produz o mundo. Seja qual for a relação entre
ambos, quer se se trata da substância da que o mundo é o fenômeno, quer
se o mundo é a substância da qual Deus é a vida, o mundo, em certo
sentido, é. Há um finito assim como um infinito.
4. O homem, como parte integral do mundo, consiste em dois
elementos ou tem uma relação tanto com o finito e o infinito, Deus e a
natureza. Há no homem consciência de si mesmo, ou uma consciência
que é afetada pelo mundo. Ele está no mundo, e é do mundo e é afetado
pelo mundo. Por outro lado, tem o que Schleiermacher chama
Gottesbewusstseyn, o consciência de Deus. Não se tenta uma mera
consciência de Deus, mas sim é Deus em nós em forma de consciência.
5. O estado normal ou ideal do homem consiste no controle
absoluto ininterrupto da consciência de Deus, ou de Deus em nós. Estes
dois princípios são às vezes distinguidos como carne e espírito. Mas por
carne não significa o corpo; nem tampouco, como Paulo frequentemente
o utiliza, para denotar nossa natureza caída e corrompida; mas sim nossa
natureza toda quanto à sua relação com o mundo. É equivalente, na
terminologia de Schleiermacher, à consciência do eu. E por espírito não
denota a razão, nem o que a Bíblia significa pelo espírito no homem, isto
é, o Espírito Santo, mas sim a consciência de Deus (Gottesbewusstesyn),
ou Deus em nós,
6. A religião consiste do sentimento da dependência absoluta. Isto
é, no reconhecimento de que Deus, ou o Ser Absoluto, é a única causa, e
de que nós somos meramente a forma em que sua causalidade é revelada
ou exercitada.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
200
7. O estado original do homem não foi um estado normal ou ideal.
Isto é, a consciência de Deus ou o princípio divino não era
suficientemente forte para controlar absolutamente a consciência do eu.
Este era um estado a alcançar mediante o progresso ou desenvolvimento.
8. O sentimento que surge da ausência deste controle absoluto do
princípio superior é o sentimento de pecado; e a convicção de que o
princípio superior deveria reger é o sentimento de culpa. Com este
sentimento de pecado e de culpa surge o sentimento da necessidade da
redenção.
9. Esta redenção consiste em dar controle completo à consciência de
Deus; e é efetuada por meio de Cristo, que é o homem normal ou ideal.
Isto é, Ele é o homem em quem a consciência de Deus, a natureza divina,
Deus (estes são, em seu sistema, termos intercambiáveis), foi totalmente
dominante desde o princípio. Nós nos tornamos semelhantes a Ele, isto
é, somos redimidos, em parte pelo reconhecimento de Seu verdadeiro
caráter como isento de pecado, e em parte pela comunhão com Ele por
meio de Sua Igreja.
Fica claro que este sistema exclui a possibilidade do pecado no
verdadeiro sentido escriturístico do termo:
1. Porque exclui a ideia de um Deus pessoal. Se o pecado é a
ausência de conformidade com a lei, tem que existir um legislador,
alguém que prescreva a regra do direito a Suas criaturas. Mas neste
sistema não há um governante consciente de si mesmo, pessoal, que seja
o governador moral dos homens.
2. Porquanto este sistema nega toda eficiência, e naturalmente toda
liberdade à criatura. Se o Ser Infinito é o único agente, então tudo o que
é, deve-se à Sua eficiência direta; e portanto o pecado é ou Sua obra, ou
uma mera negação.
3. Porquanto, segundo esta teoria, o que se chama pecado é
absolutamente universal e absolutamente necessário. É a consequência
inevitável ou condição da existência de um ser como o homem. Isto é, de
um ser com uma consciência de si mesmo e uma consciência de Deus em
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
201
tais proporções e relação que só se pode chegar à dominância do último
de maneira gradual.
4. Porquanto o que se chama pecado e culpa são tais só em nossa
consciência, ou em nossa apreensão subjetiva dos mesmos. Certas coisas
produzem em nós a sensação de dor, outras a sensação de prazer;
algumas o sentimento de aprovação; outras, de desaprovação; e isso, por
assim dizer, pela ordenança de Deus. Mas a dor e o prazer, o bem e o
mal, são meros estados subjetivos. Não têm uma realidade objetiva.
Somos pecaminosos e culpados só com relação aos nossos próprios
sentimentos, não diante de Deus, ou com referência ao critério do juízo
de Deus. 142 Deve ficar bem claro, para todos aqueles que não se
entregaram ao controle dos princípios panteístas em que se baseia todo
este sistema, quão inteiramente esta posição a respeito da questão que
nos ocupa destrói toda verdadeira concepção do que é o pecado; quão
inconsequente é com toda responsabilidade; como entra em conflito com
o testemunho de nossa própria consciência e com os ensinamentos da
Escritura.
A teoria sensorial.
Uma sexta teoria situa a fonte e a sede do pecado na natureza
sensorial do homem. Estamos compostos de corpo e espírito. Seja qual
for a relação entre ambos, não se podem deixar de reconhecer como
sendo em certo sentido elementos distintos de nossa natureza. Todos os
intentos de identificar não só conduzem à contradição das verdades
autoevidentes, mas também à degradação do espiritual. Se a mente é o
produto do corpo, ou a mais alta função da matéria, ou se o corpo é o
produto da mente, ou a forma exterior em que a mente existe, em
qualquer caso, a mente se materializa. «É o ensino inegável da história»,
142
Schleiermacher's Glaubenslehre. Dr. Gess's Uebersicht über das theologische System
Schleiermachers. Müller’s Lehre Von der Sünde, vol. i. pp. 412-437. Bretschneider's Dogmatik, pp.
14-38 of Appendix to Vol. I. Morell's Philosophy of Religion.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
202
143
diz Müller, «que a eliminação da distinção entre espírito e natureza
sempre acaba na naturalização do espírito, e nunca na espiritualização da
natureza»
É um fato de consciência e de comum acordo que o homem consta
de alma e corpo. Não é menos certo que pelo corpo que está conectado
com o mundo exterior ou da natureza, e pela alma com o mundo
espiritual e Deus; que tem necessidades, desejos, apetites e afetos, que
encontra seus objetos no mundo material, e que tem outros instintos,
afetos, e poderes que encontram seus objetos no mundo espiritual. É
evidente que estes últimos são mais altos e devem ser uniformes e
sempre dominantes; é um fato de experiência que o contrário é o caso;
que o inferior prevalece sobre o superior; que os homens são governados
universalmente, em maior ou menor grau, e sempre num grau
pecaminoso, por sua natureza sensorial. Preferem o visível e temporal ao
invisível e eterno. Buscam a gratificação que se deve encontrar nos
objetos materiais antes que a bênção que se acha nas coisas do Espírito.
Nisto, segundo esta teoria, consiste a fonte e a essência do pecado.
Esta doutrina, que prevaleceu em todas as eras da Igreja, existiu em
diversas formas: (1) Na do sistema maniqueu, que ensina o mal essencial
da matéria. (2) No do Romanismo posterior, que ensina que o homem,
tal como foi criado originalmente, estava constituído de maneira que a
alma estava sujeita ao corpo, e que seus poderes mais altos estavam
subordinados à sua natureza inferior e sensorial. No caso de Adão, este
mal original em sua constituição estava, segundo os Romanistas,
corrigido pelo dom sobrenatural da retidão original. Quando aquela
retidão foi perdida pela queda, fez-se dominante o elemento sensorial na
natureza do homem. Nisto consiste sua pecaminosidade habitual, e esta é
a fonte de todas as transgressões que têm lugar. (3) A forma mais
comum desta teoria é essencialmente a mesma que a doutrina romana,
143
Vol. I. p 363.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
203
exceto que não atribui o predomínio do corpo sobre a alma à perda da
retidão original.
O fato de que os homens estão governados pelos elementos
inferiores e não pelos mais elevados de sua natureza, como questão da
experiência, são explicados de diferentes maneiras. (1) Alguns dizem
que se deve à relativa fraqueza dos poderes mais elevados. Isto se reduz
à doutrina de Leibnitz de que o pecado deve-se às limitações de nossa
natureza, ou à fraqueza e propensão a errar inerentes à nossa constituição
como criaturas. (2) Outros apelam à liberdade da vontade. O homem,
como agente livre, tem o poder quer de resistir, quer de submeter-se às
seduções da carne. Se for submetido, é sua própria falta e pecado. Não
há necessidade nem coerção nisso. Mas se esta submissão é universal e
uniforme, deve ter uma causa universal e adequada. Esta causa não se
encontra na mera liberdade do homem, ou em sua capacidade de
submeter-se. Deve ser que a causa é uniforme e permanente, e que tal
causa só pode achar-se na própria constituição do homem, ao menos em
seu estado atual, que faz com que o elemento sensual no homem seja
mais poderoso que o espiritual. (3) Outros, por sua vez, enquanto que
não negam a capacidade plenária do homem para resistir às seduções dos
sentidos, dão conta da ascendência universal dos poderes inferiores
mediante uma referência à ordem de desenvolvimento de nossa natureza.
Estamos constituídos de tal maneira, ou viemos ao mundo em tal estado,
que a parte inferior ou sensorial de nossa natureza alcança invariável e
necessariamente a força antes que se desenvolvam os poderes mais
elevados. As propensões animais da criança são poderosas, enquanto que
a razão e a consciência são fracas. É por isso que o inferior alcança tal
domínio sobre o superior que é depois sempre mantido.
Mas é evidente que esta teoria, em nenhuma de suas formas, não
chega a expor a verdadeira natureza do pecado, nem a explicar de
maneira satisfatória sua origem.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
204
1. O pecado não é essencialmente o estado ou ato de uma natureza
sensorial. As criaturas apresentadas na Escritura como mais pecaminosas
são os espíritos caídos, que não têm corpos nem apetites sensuais.
2. Em segundo lugar, os pecados mais ofensivos no homem, e que
mais lhe degradam, e que mais carregam a sua consciência, nada têm que
ver com o corpo. A soberba, a malícia, a inveja, a ambição, e, acima de
tudo, a incredulidade e a inimizade com Deus, são pecados espirituais.
Podem existir não só em seres que não têm constituição material, mas
também na alma separada do corpo, e quando fica extinta sua natureza
sensorial.
3. Esta teoria tende a diminuir nossa consciência de pecado e de
culpa. Faz de todo mal moral uma mera fraqueza, o consentimento dos
poderes mais fracos do espírito às mais intensas forças da carne. Se
pecado invariavelmente, e por uma lei que controla os homens em seu
estado atual da existência, surge da própria constituição de sua natureza
como seres sensíveis, então a responsabilidade pelo pecado deve ser
grandemente diminuída, se não totalmente destruída.
4. Se o corpo é a sede e a fonte do pecado, então tudo aquilo que
tenda a debilitar o corpo ou a reduzir a força de seus desejos tenderá a
fazer os homens mais puros e virtuosos. Se é assim, o monasticismo e
ascetismo têm um fundamento na verdade. São sabiamente adaptados à
elevação da alma acima da influência da carne e do mundo, e de todas as
formas do mal. Mas toda a experiência demonstra o contrário. Inclusive
os que se apartam assim do mundo e maltratam os seus corpos, fazem-no
com sinceridade, aderindo-se com fidelidade a seus princípios, toda a
tendência de sua disciplina é má. Alimenta a soberba, a pretensão de
justiça própria, o formalismo e a falsa religião. Os fariseus, na opinião de
Cristo, com suas vidas tão estritas e constantes jejuns, estavam mais
afastados do reino dos céus que os publicanos e as meretrizes.
5. Com base na hipótese envolvida nesta teoria, os velhos deveriam
ser bons. Neles se extinguem as concupiscências da carne. Perdem sua
capacidade de desfrutar o que agrada aos olhos ou ministra aos gostos
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
205
dos jovens. O mundo, para eles, perdeu seus atrativos. O corpo se
transforma numa carga. É o estado ao qual o jovem asceta quer reduzir
sua constituição corporal mediante a abstinência e a austeridade;
entretanto, quanto mais velho o homem, a não ser que seja renovado pela
graça de Deus, tanto pior o pecador. A alma está mais morta, mais
insensível a tudo o que é elevado e espiritual, e mais totalmente afastada
de Deus; menos agradecida por Suas misericórdias, menos temerosa de
Sua ira, e menos afetada por todas as manifestações de Sua glória e de
Seu amor. Assim, não é o corpo que é a causa do pecado.
6. Esta teoria está oposta à doutrina da Bíblia. As Escrituras se
referem certamente a uma ampla gama de pecados da natureza sensual
do homem; e mencionam a carne (ou σάρξ - sarx) como a sede do
pecado e a fonte de todas as suas manifestações em nosso estado
presente. Além disso, empregam a palavra σαρκικός - sarkinós, carnal,
como sinônimo de corrompido e pecaminoso. Tudo depende do sentido
em que os escritores sagrados empreguem as palavras σάρξ - sarx y
σαρκικός - sarkinós como antitéticas a πνεῦμα - pneuma e πνευματικός pneumatikos. Segundo uma interpretação, σάρξ - sarx significa o corpo
com sua vida animal, seus instintos e apetites. Ou como Bretschneider o
define: 144 “Natura visibilis seu animalis tanquam appetituum naturalium
fons et sedes, et quidem in malam partem, quatenus hæc natura animalis,
legi divinæ non adstricta, appetit contra legem, igiturque cupiditatum et
peccatorum est mater.” Se este for o sentido de σάρξ - sarx, então
σαρκικός – sarkinós significa animal, e ψυχικός - psuchikos sensorial.
Por outro lado, com base nesta postura, πνεῦμα - pneuma significa
razão, e πνευματικός - pneumatikos o razoável, isto é, o que é governado
pela razão. Segundo esta postura, os σαρκικοί - sarkikoi são as que estão
controlados por seus sentidos e pela natureza animal; e os πνευματικός pneumatikos os governados por sua razão e poderes superiores. Segundo
a outra interpretação destes termos, σάρξ - sarx significa a natureza caída
144
Lexicon in Novum Testamentum, sub voce.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
206
do homem, sua natureza tal qual é agora; y πνεῦμα - pneuma o Espírito
Santo. Logo os σαρκικοί - sarkikoi são os homens naturais,
irregenerados, isto é, os destituídos da graça de Deus, e os πνευματικός pneumatikos são aqueles em quem mora o Espírito Santo. Naturalmente,
admite-se que a palavra σάρξ - sarx emprega-se com frequência na
Escritura, e especialmente nos escritos de Paulo, para denotar o corpo;
logo para o que é externo e ritual; logo para o perecível. A humanidade,
quando é designada como carne, é apresentada como terrestre, fraca e
fugaz. Além destes significados comuns e admitidos da palavra,
emprega-se também num sentido moral. Designa o homem, ou
humanidade, ou natureza humana como apóstata de Deus. Portanto, as
obras da carne não são meramente obras sensuais, mas obras
pecaminosas, tudo no homem que é mau. Tudo o que é uma
manifestação de sua natureza como caída fica incluída sob as obras da
carne. Por isso se atribuem a esta classe a inveja, a malícia, a soberba e
as contenções; assim como as orgias e as bebedeiras, Gl 5:19-21. Andar
segundo a carne, pensar conforme a carne, estar na carne, etc., etc. (vejase Rm 8:1-13) são modos escriturísticos para expressar o estado, a
conduta e a vida dos homens do mundo de todas as classes. O
significado de carne, entretanto, tal como se emprega nos escritos de
Paulo, fica bem claramente determinado por sua antítese com Espírito.
Que o πνεῦμα - pneuma de quem ele fala é o Espírito Santo fica
abundantemente demonstrado. Chama-o o Espírito de Cristo, o Espírito
de Deus, o Espírito que vivificará vossos corpos mortais; que testifica
com nossos espíritos que somos filhos de Deus; cuja morada nos crentes
faz deles o templo de Deus. Os πνευματικοί - pneumatikoi, ou
espirituais, são aqueles em quem mora o espírito Santo como o princípio
controlador de suas vidas. Assim, as Escrituras estão diretamente opostas
à teoria que faz do corpo ou natureza sensual do homem a fonte de
pecado, e que sua essência consiste em ceder a nossos apetites e afetos
mundanos, em lugar de obedecer à razão e à consciência.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
207
A teoria de que todo pecado consiste em egoísmo.
Há outra doutrina a respeito da natureza do pecado que pertence às
teorias filosóficas, e não às teológicas, sobre esta questão. Faz com que
todo pecado consista em egoísmo. O egoísmo não deve ser confundido
com o amor próprio. Este último é um princípio natural e original de
nossa natureza e da natureza de todas as criaturas sensíveis, tanto
racionais como irracionais. Pertence à constituição original das mesmas,
e é necessário para sua preservação e bem-estar, e não pode ser
pecaminoso. Assim, o egoísmo não é o mero amor ao eu, mas sim a
indevida preferência de nossa própria felicidade à felicidade ou bemestar dos outros. Segundo alguns, esta preferência é da natureza de um
desejo ou sentimento. Segundo outros, é da natureza de um propósito.
Nesta última postura, todo pecado consiste no propósito de buscar nossa
própria felicidade em lugar do bem geral ou felicidade, como se expressa
usualmente, do universo. Em todo caso, o pecado é a indevida
preferência de nós mesmos.
Esta teoria se baseia nos seguintes princípios, ou é um elemento
essencial no seguinte sistema doutrinal: (1) A felicidade é o maior bem.
Tudo o que tenha a tendência a promover a maior quantidade de
felicidade é por isso mesmo bom, e tudo o que tenha a tendência oposta é
mau. (2) Como a felicidade é o único e último bem, a benevolência, ou a
disposição ou propósito de impulsionar a felicidade, deve ser a essência
e soma da virtude. (3) Como Deus é infinito, Ele deve ser imensamente
benevolente, e por isso deve ser Seu desejo e propósito produzir a maior
possível quantidade de felicidade. (4) O universo, ao ser a obra de Deus,
tem que estar desenhado e adaptado para chegar a este fim, e é por isso o
melhor de todos os possíveis mundos ou sistemas de coisas. (5) Como o
pecado existe em nosso mundo atual, deve ser o meio necessário para o
maior bem e por isso, como dizem alguns, é consequente com a
santidade de Deus permitir e ordenar sua existência; ou, como outros
dizem, que o crie. (6) Não há mais pecado no mundo que o necessário
para assegurar a maior felicidade para o universo.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
208
A primeira e mais evidente objeção a toda esta teoria já foi
apresentada, e é que destrói o próprio conceito de bem moral. Confunde
o correto com o que convém. Por isso, contradiz a consciência e o juízo
intuitivo da mente. É intuitivamente certo que o correto é correto em sua
própria natureza, independentemente de sua tendência a impulsionar a
felicidade. Fazer da santidade só um meio para um fim; exaltar a alegria
sobre a excelência moral, é não só uma perversão e degradação do alto
ao baixo, mas também a total destruição do princípio. Esta é uma
questão que, falando propriamente, não admite prova. Só pode ser
afirmada. Se alguém negasse que o doce e o amargo diferem, seria
impossível demonstrar que há diferença entre ambas as coisas. Só
podemos apelar à nossa própria consciência e afirmar que percebemos a
diferença. E podemos apelar ao testemunho de todos os outros homens,
que também afirmam o mesmo. Mas afinal de contas, trata-se só da
declaração de um fato primeiro da parte de um indivíduo, e logo da
massa da humanidade. De maneira semelhante, se alguém disser, que
não há diferença entre o bem e o conveniente, que uma é boa
simplesmente porque é conveniente; ou, se dissesse que não há diferença
entre santidade e pecado, só podemos remeter-nos à nossa própria
consciência e à consciência comum dos homens, como contradizendo
esta declaração. Assim, sabemos pela própria constituição de nossa
natureza que o correto e o conveniente não são ideias idênticas; que a
diferença é essencial e imutável. E sabemos da mesma fonte, e com a
mesma segurança ou certeza, que a felicidade não é o sumo bem, mas o
contrário, que a santidade é tanto maior que a felicidade como o céu é
mais alto que a terra, ou Cristo que Epicuro.
(2) Esta teoria está tão oposta à nossa natureza religiosa como à
moral. Dependemos de Deus; devemos a Ele nossa lealdade; devemos
fazer Sua vontade sejam quais forem as consequências; e somos
exaltados e purificados na mesma proporção em que nos perdemos nEle,
adorando Suas divinas perfeições, buscando promover Sua glória, e
reconhecendo que de fato e por direito todas as coisas são por Ele, por
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
209
meio dEle e para Ele. Não obstante, segundo esta teoria devemos nossa
adesão ao universo de seres sensíveis. Estamos obrigados a impulsionar
a felicidade dos mesmos. Esta seria nossa mais elevada e única
obrigação. Por isso mesmo não pode haver religião no verdadeiro sentido
da palavra. A religião é a homenagem e a adesão da alma a um Ser
pessoal imensamente perfeito, a quem devemos nossa existência, que é a
fonte de todo bem, e por quem todas as coisas consistem. Substituir o
universo por este Ser, e resolver todas as suas obrigações na obrigação
de promover a felicidade do universo, é tornar realmente toda a religião
impossível. O universo não é nosso Deus. Não é ao universo que
amamos, não é ao universo que adoramos, não é ao universo que
tememos. Não é a graça do universo que é nossa vida, nem sua
desaprovação nossa morte.
(3) Porquanto esta teoria está assim oposta à nossa natureza moral e
religiosa, é má em seus efeitos práticos. É um refrão, uma máxima
baseada na natureza das coisas e na experiência universal, que o mundo é
governado pelas ideias. É duvidoso que a história proporciona algum
exemplo mais chamativo da verdade desta máxima que a proporcionada
pela operação da teoria de que toda virtude se baseia na conveniência de
que a santidade é a que tende a produzir felicidade. Quando um
indivíduo adota este princípio, toda sua vida interior e exterior fica
determinada por ele. Cada questão que se apresenta para sua decisão
recebe resposta não com a referência à lei de Deus, nem em
conformidade com os instintos de sua natureza moral, mas pelo cálculo
da conveniência. E quando uma pessoa fica sob o controle desta teoria,
invariavelmente e de maneira necessária torna-se calculador. Se a
felicidade for o maior bem, e se tudo o que nos pareça adaptado para
impulsionar a felicidade é correto, então perde-se de vista a Deus e Sua
lei moral. Nossa própria felicidade é apta para converter-se no principal
bem para nós, como o é para o universo.
(4) Quase não será necessário lembrar que somos incompetentes
para decidir qual será o curso de conduta que produzirá a maior
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
210
quantidade de bem físico, e que por isso nunca podemos decidir o que é
o bem e o mal. Pode-se dizer que não se deixa à nossa própria
sagacidade o decidir esta questão. A lei de Deus tal como se revela em
Sua palavra é uma norma divina mediante a qual podemos aprender o
que tende à felicidade e o que tende à desgraça. Mas esta postura não só
degrada a lei moral a uma série de máximas sábias, mas também muda
todo o motivo para a obediência. Obedecemos não por consideração à
autoridade de Deus, mas sim porque Ele sabe melhor que nós o que é
que levará ao máximo bem. Além disto, nas perguntas que diariamente
se apresentam para a decisão, vemo-nos obrigados a julgar por nós
mesmos o que é correto e incorreto, à luz da consciência e dos princípios
gerais contidos nas Escrituras. E se todos estes princípios se decompõem
no máximo em um princípio, que isso é justo que promove a felicidade,
vemo-nos obrigados a recorrer aos cálculos de conveniência, pelo que
em nossa curta visão da sabedoria somos totalmente incompetentes.
(5) Além de tudo isso, esta teoria pressupõe que o pecado, e a atual
terrível quantidade de pecado, são os meios necessários para o maior
bem. O que sucede então da distinção entre o bem e o mal? Se o bem é o
que tende a promover a maior felicidade, e se o pecado é necessário para
promover a maior felicidade, então o pecado deixa de ser pecado, e se
torna em bem. Logo deve ser correto fazer males para que venham bens.
Como, diz o apóstolo, poderia julgar Deus o mundo com base neste
princípio? Se os pecados dos homens não só promoverem de fato o
maior fim, mas também um homem tem, ao pecar, o propósito e desejo
de cooperar com Deus para produzir a maior quantidade de felicidade,
como pode ser condenado? Se a virtude ou santidade que é correta
simplesmente porque tende a produzir a maior felicidade, e se o pecado
também tende ao mesmo resultado, então o homem que peca com vistas
ao maior bem é tão virtuoso quanto o homem que pratica a santidade
com este mesmo objetivo. Pode-se dizer que é uma contradição dizer que
um homem peca com um propósito verdadeiramente benevolente;
porque a essência da virtude é propor o maior bem, e por isso tudo o que
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
211
se faz na execução daquele propósito é virtuoso. Exatamente. A mesma
objeção mostra que o bem se torna em mau e o mal em bem, segundo o
desígnio com que é cometido ou levado a cabo. Por isso, se um homem
mente, rouba ou assassina com um desígnio de promover o bem da
sociedade, da igreja ou do universo, é um homem virtuoso. Foi
principalmente por adotar e levar a cabo esta doutrina que os jesuítas
chegaram a ser uma abominação aos olhos da cristandade, e que foram
expulsos de todos os países civilizados. Infelizmente, os jesuítas não
foram os seus únicos proponentes. Este princípio foi extensamente
espalhado em livros de moral, e chegou a ser adotado por certos teólogos
como o fundamento de todo o seu sistema de doutrina cristã.
(6) Se a felicidade não é, então, o sumo bem, então a benevolência
não é o epítome de toda excelência, e o egoísmo como oposto da
benevolência não pode ser a essência do pecado. Mais uma vez, a
respeito desta questão pode-se apelar com certeza à nossa própria
consciência e à comum consciência dos homens. Nossa natureza moral
nos ensina, por um parte, que não se pode reduzir toda virtude à
benevolência: a justiça, a fidelidade, a humildade, a longanimidade, a
paciência, a constância, a mente espiritual, o amor de Deus, a gratidão a
Cristo e o zelo por Sua glória não se revelam à consciência como formas
de benevolência. São coisas tão distintas para nossa sensibilidade moral
como o vermelho, azul e verde são distintos para o olho. Por outro lado,
a incredulidade, a dureza de coração, sua ingratidão, a impenitência, a
malícia e a inimizade contra Deus não são modificações do egoísmo.
Estes intentos de simplificação não só são antifilosóficos, mas também
perigosos, porquanto levam a confundir coisas diferentes, e, como
vimos, a negar a natureza essencial das distinções morais.
A doutrina que faz com que todo o pecado consiste em egoísmo,
como foi em geral mantido, especialmente neste país, considera o
egoísmo como o oposto à benevolência segundo a teoria que acaba de
ser considerada. Há outros, entretanto, que dizem que é o oposto ao amor
de Deus. Como Deus é o verdadeiro centro da alma e a soma de toda
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
212
perfeição, a apostasia dEle é a essência do pecado; a apostasia de Deus
implica, segundo se diz, um novo cair em nós mesmos e fazer do eu o
centro de nosso ser. Assim Müller, 145 Tholuck, 146 e muitos outros, fazem
da alienação de Deus o princípio fundamental do pecado. Mas destronar
a Deus requer pôr um ídolo em seu lugar. Esse ídolo, Agostinho e depois
dele numerosos escritores das diferentes escolas, dizem ser a criatura,
como o Apóstolo descreve de maneira concisa a maldade dos homens,
dizendo que “adorando e servindo às criaturas antes que ao Criador.”
Mas Müller sustenta que, como este é o eu o pecador busca na criatura, o
verdadeiro princípio do pecado que consiste em pôr o eu em lugar de
Deus, e faz disso o fim supremo da vida e sua gratificação ou satisfação
o grande objeto de perseguição. Naturalmente, não se nega que o
egoísmo, em algumas de suas formas, inclui uma ampla classe dos
pecados dos quais se fazem culpados os homens. O que se objeta é fazer
do egoísmo a essência de todo pecado, ou o intento de reduzir todas as
manifestações do mal moral a este único princípio. Isto não se pode
fazer. Há pecado desinteressado assim como benevolência
desinteressada.
Um homem pode real e deliberadamente sacrificar-se no pecado,
como em fazer o bem. Muitos pais têm violado a lei de Deus, não para
seu próprio benefício, mas em benefício de seus filhos. Pode-se dizer que
isto é só uma forma de egoísmo, porque a felicidade de seus filhos é sua
felicidade, e o pecado se comete com a satisfação de seus sentimentos
paternos. Para isto, entretanto, pode-se responder, em primeiro lugar, que
é contraditório dizer que o que se faz por outro é feito por nós mesmos.
Quando uma mãe sacrifica a riqueza e a vida por seu filho, embora ela
age sob o impulso do instinto maternal, ela age desinteressadamente. O
sacrifício consiste em preferir a seu filho que a si mesma. Em segundo
lugar, se um ato deixa de ser virtuoso quando seu desempenho encontra e
145
146
Lehre von der Sünde, vol. i. pp. 134-158.
Von der Sünde und vom Versöhner, p. 32.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
213
satisfaz alguma demanda de nossa natureza, então nenhum ato pode ser
virtuoso. Quando um homem faz qualquer obra boa, ele satisfaz sua
consciência. Se a mentira fizer um ato de bondade ao pobre, se é
dedicada se ao alívio do doente ou preso, ele satisfaz seus sentimentos
benévolos. Se ele busca o favor e a comunhão de Deus, e se consagra ao
Seu serviço, ele satisfaz os mais nobres princípios de sua natureza, e
experimenta o maior prazer de que é suscetível. Não é necessário
portanto, que um ato, quer seja bem ou mal, deva ser desinteressado, que
não deve atender a nossa satisfação.
Tudo depende do motivo pelo qual se faz. Se isso for motivo da
felicidade de outro e não a nossa, o ato é desinteressado. É contrário,
portanto, ao testemunho da consciência de cada homem dizer que o
egoísmo é o elemento essencial do pecado. Não há egoísmo na malícia,
nem na inimizade com Deus. Há formas mais elevadas de mal que o
mero egoísmo. A verdadeira natureza do pecado é a alienação de Deus, e
a oposição a Seu caráter e vontade. É o oposto à santidade e não admite
ser reduzido a nenhum outro princípio, nem o amor da criatura nem o
amor ao eu.
§ 3. A doutrina da Igreja Primitiva.
As teorias já consideradas são chamadas filosóficas, quer seja
porque se referem à natureza metafísica do pecado, ou porque se
baseiam em princípio filosófico. A moral nas doutrinas teológicas sobre
o tema são assim designadas, porque se baseiam no que se supõe que são
os ensinos de nossa natureza moral ou da palavra de Deus. Pelo que
respeita à Igreja primitiva, a doutrina a respeito do pecado foi enunciada
só em termos gerais. Em quase todos os casos as afirmações doutrinais
discriminativas receberam sua forma como declarações contrárias a
posturas errôneas. Enquanto que a verdade não foi negada, a Igreja se
contentou em sustentá-la e afirmá-la da maneira simples com que se
encontra na Bíblia. Mas quando se assumiram posições que não eram
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
214
congruentes com a doutrina revelada, ou quando se enunciou uma
verdade de maneira que contradizia a outra, fez-se necessário ser mais
explícito, e enunciar uma expressão da doutrina que incluísse tudo o que
Deus tinha revelado a respeito do mesmo. Este processo na
determinação, ou melhor dizendo, na definição das doutrinas, foi
necessariamente gradual. Foi só depois que surgisse na igreja um erro
após outro, que a verdade foi distinguindo-se de cada um deles mediante
declarações mais explícitas e realizadas. Como as primeiras heresias
foram o Gnosticismo e o Maniqueísmo, sistemas nos quais, em
diferentes formas, o pecado era apresentado como um mal necessário
que tinha sua origem numa causa independente de Deus e além do
controle da criatura, a Igreja foi chamada a negar tais erros, e a declarar
que o pecado não era nem necessário nem eterno, mas que tinha sua
origem na livre vontade de criaturas racionais. Na luta com o
maniqueísmo, toda a tendência da Igreja foi exaltar a liberdade e a
capacidade do homem, a fim de manter a doutrina essencial, então
assaltada de tantos lados, de que o pecado é um mal moral pelo qual o
homem, deve ser condenado, e não uma calamidade pela qual deve ser
compadecido. Foi a inevitável consequência do estado não situado de
fórmulas doutrinais que se deram declarações contraditórias inclusive da
parte dos que buscavam defender a verdade, e não só no caso de
diferentes escritores, mas também o mesmo escritor apresentasse, em
distintas ocasiões, declarações contraditórias.
Em meio destas inconsistências insistia-se constantemente nos
seguintes pontos: (1) Que todos os homens são pecadores em seu estado
atual. (2) Que esta pecaminosidade universal dos homens teve sua
origem histórica e causal na apostasia voluntária de Adão. (3) Que tal é o
atual estado da natureza humana que a salvação não pode ser alcançada
de outra maneira senão por meio de Cristo e mediante a assistência de
Seu Espírito. (4) Que inclusive os meninos, logo que nascem, necessitam
a regeneração e a redenção, e que podem ser salvos só por meio dos
méritos de Cristo. Estas grandes verdades, que se encontram na base do
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
215
evangelho, entraram na fé geral da Igreja antes de ser tão intensamente
defendidas por Agostinho em sua controvérsia com Pelágio. É verdade
que se podem citar muitas asserções dos pais gregos que são
inconsequentes com algumas das proposições anteriormente citadas. Mas
os mesmos escritores, em outras passagens, afirmam sua fé nestas
básicas verdades escriturísticas; e estão implicadas nas orações e
ordenanças da Igreja, e foram posteriormente incorporadas nas
confissões públicas dos gregos, assim como dos latinos.
Clemente de Alexandria 147 diz: τὸ γὰρ ἐξαμαρτάνειν πᾶσιν ἔμφυτον
καὶ κοινόν. Justino diz: 148 Τὸ γένος τῶν ἀνθρώπων ἀπὸ τοῦ Ἀδὰμ ὑπὸ
θάνατον καὶ πλάνην τὴν τοῦ ὄφεως ἐπεπτώκει, aunque él añade: παρὰ
τὴν ἰδίαν αἰτίαν ἐκάστου αὐτῶν πονηρευσαμένου.
Orígenes diz: 149 “Si Levi . . . . in lumbis Abrahæ fuisse perhibetur,
multo magis omnes homines qui in hoc mundo nascuntur et nati sunt, in
lumbis erant Adæ, cum adhuc esset in Paradiso; et omnes homines cum
ipso vel in ipso expulsi sunt de Paradiso.”
Atanásio diz: 150 Πάντες οὐν οἰ ἐξ Αδὰμ γενόμενοι ἐν ἁμαρτίαις
συλλαμβάνονται τῇ τοῦ προπάτορος καταδίκη — δείκνυσιν ὡς ἐξ ἀρχῆς
ἡ ἀνρθρώπων φύσις ὐπὸ τὴν ἀμαρτίαν πέπτωκεν ὑπὸ τῆς ἐν Εὔᾳ παρα
βάσεως, καὶ ὑπὸ κατάραν ἡ γέννησις γέγονεν.
Ambrósio diz: 151 “Manifestum itaque in Adam omnes peccasse
quasi in massa: ipse enim per peccatum corruptus, quos genuit omnes
nati sunt sub peccato. Ex eo igitur cuncti peccatores, quia ex ipso sumus
omnes.”
Cipriano diz: 152 “Si . . . . baptismo atque a gratia nemo prohibetur;
quanto magis prohiberi non debet infans, qui recens natus nihil peccavit,
nisi quod secundum Adam carnaliter natus, contagium mortis antiquæ
147
Pædagogus, III. 12; Works, edit. Paris, 1641, p. 262, c.
Dialogus cum Tryphone Judæo, 88; Works, edit. Cologne, 1636, p. 316, a.
149
In Epistolam ad Romanos, lib. v. § 1; Works, edit. Wirceburgi, 1794, vol. xv. p. 219.
150
Expos. in Psalms; on Ps. l. (li.), 7.
151
In Epistolam ad Romanos, v. 12; Works, Paris, 1661, vol. iii. p. 269, a.
152
Epistola, lxiv. edit. Bremen, 1690, p. 161, of third set.
148
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
216
prima nativitate contraxit? qui ad remissam peccatorum accipiendam hoc
ipso facilius accedit, quod illi remittuntur non propria, sed aliena
peccata.” Mais uma vez, diz ele: “Fuerant et ante Christum viri insignes,
sed in peccatis concepti et nati, nec originali nec personali caruere
delicto.”
Estes escritores ensinavam, conforme diz Gieseler, 153 que por meio
de Cristo e de sua obediência na árvore da cruz foi curada a
desobediência original do homem com referência à árvore do
conhecimento; que assim como ofendemos a Deus no primeiro Adão
pela transgressão, assim por meio do segundo Adão somos reconciliados
com Deus; que Cristo nos libertou do poder do diabo ao que estávamos
sujeitos pelo pecado de Adão; que Cristo recuperou para nós a vida e a
imortalidade. 154 Não se mantém que os pais gregos sustentaram a
doutrina do pecado original na forma em que foi posteriormente
desenvolvida por Agostinho, mas antes, ensinavam que a raça tinha
caído em Adão, que todos necessitam a redenção, e que a redenção só
pode ser obtida por meio do Senhor Jesus Cristo. 155
§ 4. A teoria Pelagiana.
A começos do quinto século, Pelágio, Celéstio e Juliano
introduziram uma nova teoria quanto à natureza do pecado e o estado do
homem desde a queda, e de nossa relação com Adão. O fato de que sua
doutrina era uma inovação fica demonstrado pelo fato de que foi
universalmente rejeitada e condenada logo que foi plenamente
compreendida. Eram homens cultos e capazes, e de caráter exemplar.
153
Kirchengeschichte, edit. Bonn, 1855, vol. vi. p. 180.
Irenæus, V. xvi. 3; Works, edit. Leipzig, 1853; vol. i. p. 762.
155
J .G. Walch: De Pelagianismo ante Pelagium. J. Hern: De Sententiis eorum Patrum quorum
auctoritas ante Augustinum plurimum valuit. Neander’s Church History, vol. i. Gieseler’s
Kirchengeschichte, vol. vi. Shedd’s History of Christian Doctrine. Also Münscher’s, Meyer’s, and
Klee’s Dogmengeschichte.
154
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
217
Pelágio era britânico, embora não há certeza se era nativo da Bretanha
francesa ou do que se conhece como Grã-Bretanha. Era monge, embora
leigo. Celéstio era mestre e jurista; Juliano era um bispo da Itália. O
princípio radical da teoria Pelagiana é que a capacidade constitui o limite
da obrigação. «Se eu devo, eu posso», é o aforismo sobre o qual repousa
todo o sistema.
A oração celebrada de Agostinho, “Da quod jubes, et jube quod
vis,” foi pronunciada por Pelágio como um absurdo, porque assume que
Deus pode exigir mais do que o homem pode fazer, e o que o homem
deve receber como um dom. Em oposição a esta postura [Pelágio]
enunciou o princípio de que o homem deve ter a total capacidade para
fazer e ser tudo o que se lhe pode exigir em justiça. “Iterum quærendum
est, peccatum voluntatis an necessitatis est? Si necessitatis est, peccatum
non est; si voluntatis, vitari potest. Iterum quærendum est, utrumne
debeat homo sine peccato esse? Procul dubio debet. Si debet potest; si
non potest, ergo non debet. Et si non debet homo esse sine peccato, debet
ergo cum peccato esse, et jam peccatum non erit, si illud deberi
constiterit.” 156
A íntima convicção de que os homens não podem ser responsáveis
por nada que não esteja em seu poder, em primeiro lugar, levou à
doutrina Pelagiana da liberdade da vontade. Não era suficiente para a
livre ação que o agente fosse autodeterminado, ou que todas as suas
volições ficassem determinadas por seus próprios estados interiores.
Demandava-se que tivesse poder sobre estes estados. Segundo Pelágio, a
liberdade da vontade é poder plenário, em toda ocasião e em cada
momento, de escolher entre o bem e o mal, e de ser ou santo ou ímpio.
Tudo o que não caia assim dentro do poder imperativo da vontade não
pode ter caráter moral. “Omne bonum ac malum, quo vel laudabiles vel
vituperabiles sumus, non nobiscum oritur, sed agitur a nobis: capaces
enim utriusque rei, non pleni nascimur, et ut sine virtute, ita et sine vitio
156
Gieseler, vol. I.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
218
procreamur: atque ante actionem propriæ voluntatis, id solum in homine
est, quod Deus condidit.” 157 Outra vez: “Volens namque Deus
rationabilem creaturam voluntarii boni munere et liberi arbitrii potestate
donare, utriusque partis possibilitatem homini inserendo proprium ejus
fecit, esse quod velit; ut boni ac mali capax, natural iter utrumque posset,
et ad alterumque voluntatem deflecteret.”
2. Por isso, o pecado consiste na deliberada eleição do pecado.
Pressupõe o conhecimento do que é mau, assim como a plena capacidade
para escolhê-lo ou rejeitá-lo. Naturalmente, disto segue:
3. Que não pode existir o chamado pecado original, ou corrupção
inerente e hereditária. Os homens nascem, como se afirma na citação
anterior, ut sine virtute, ita sine vitio. Em outras palavras, os homens
nascem no mundo, desde a Queda, no mesmo estado em que Adão foi
criado. Juliano diz: 158 “Nihil est peccati in homine, si nihil est propriæ
voluntatis, vel assensionis. Tu autem concedis nihil fuisse in parvulis
propriæ voluntatis: non ego, sed ratio concludit; nihil igitur in eis esse
peccati.” Este é o ponto em que insistiram principalmente os Pelagianos,
que é contrário à natureza do pecado que possa ser irradiado ou herdado.
Se a natureza é pecaminosa, então Deus, como autor da natureza, tem
que ser o autor do pecado. Juliano 159 portanto diz: “Nemo naturaliter
malus est; sed quicunque reus est, moribus, non exordiis accusatur.”
4. Consequentemente, o pecado de Adão só prejudicou a ele. Esta
foi uma das acusações formais apresentadas contra os Pelagianos no
Sínodo de Dióspolis. Pelágio tentou responder a ela, dizendo que o
pecado de Adão exerceu a influência de um mau exemplo, e que neste
sentido e neste grau danificou a sua posteridade. Mas negou toda relação
causal entre o pecado de Adão e a pecaminosidade de sua raça, ou que a
morte seja um mal penal. Adão teria morrido pela constituição de sua
natureza, tanto se tivesse pecado como se não o tivesse feito; e sua
157
Pelagius, Apud Augustinum de Peccato Originali, 14; Works, edit. Benedictines, vol. x. p. 573, a. b.
Apud Augustinum Opus Imperfectum contra Julianum, I. 60; Works, vol. x. p. 1511, d.
159
Ibid.
158
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
219
posteridade, tanto na mais tenra infância como os adultos, morrem pela
semelhante necessidade de sua natureza. Como Adão não era em
nenhum sentido o representante de sua raça, como eles não sofreram sua
prova nele, cada homem enfrenta sua prova por si mesmo; e é justificado
ou condenado unicamente sobre a base de seus próprios atos pessoais.
5. Porquanto os homens vêm ao mundo sem a contaminação do
pecado original, e porquanto têm poder plenário para fazer tudo o que
Deus exige, podem viver, e em muitos casos vivem, sem pecado; ou, se
num momento determinado transgridem, podem voltar-se para Deus e
obedecer perfeitamente todos os Seus mandamentos. Por isso, Pelágio
ensinou que alguns homens não tinham necessidade de repetir por si
mesmos a petição na oração do Senhor: «perdoa nossas transgressões».
Antes do Sínodo de Cartago um dos motivos pelos quais foi acusado de
heresia, foi que ele ensinou, “et ante adventum Domini fuerunt homines
impeccabiles, id est, sine peccato.”
6. Outra consequência de seus princípios, que Pelágio
inevitavelmente deduziu, era que os homens podiam ser salvos sem o
evangelho. Porquanto o livre-arbítrio no sentido de capacidade plenária
pertence essencialmente ao homem do mesmo modo que a razão, os
homens, sejam pagãos, judeus ou cristãos podem obedecer a lei de
maneira plena e alcançar a vida eterna. A única diferença é que sob a luz
do evangelho esta perfeita obediência resulta mais fácil. Uma de suas
doutrinas, portanto, era que “lex sic mittit ad regnum coelorum,
quomodo et evangelium.”
7. O sistema pelagiano nega a necessidade da graça no sentido da
influência sobrenatural do Espírito Santo. Mas porquanto as Escrituras
falam tão plena e constantemente da graça de Deus como se manifesta e
exercida na salvação dos homens, Pelágio não pôde evitar reconhecer
este fato. Mas por graça ele entendia todo aquilo o que derivamos da
bondade de Deus. Nossas faculdades naturais da razão e da livre
vontade, a revelação da verdade tanto em Suas obras como em Sua
palavra, todas as bênçãos providenciais e vantagens que os homens
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
220
desfrutam, caem dentro do conceito Pelagiano de graça. Diz Agostinho
que Pelágio descrevia a graça como os dotes naturais dos homens, que
porquanto são o dom de Deus, são graça. “Ille (Pelagius) Dei gratiam
non appellat nisi naturam, qua libero arbitrio conditi sumus.” 160 E
Juliano, diz ele, inclui sob o termo todos os dons de Deus. “Ipsi gratiæ,
beneficiorum quæ nobis præstare non desinit, augmenta reputamus.” 161
8. Porquanto as crianças estão destituídas de caráter moral, o
batismo no caso deles não pode simbolizar nem efetuar a remissão de
pecado. Entretanto é, segundo Pelágio, só um sinal de sua consagração a
Deus. Ele cria que nenhuns mais que os batizados eram admitidos no
reino dos céus, no sentido cristão do termo, mas mantinha que os
crianças não batizadas eram entretanto participe da vida eterna. Por este
termo se significava o que posteriormente os escolásticos chamaram
limbos infantum [o limbo dos pequenos]. Este foi descrito como que
μέσος τόπος κολάσεως καὶ παραδείσου, εἰς ὃν καὶ τὰ ἀβάπτιστα βρέφη
μετατ θέμενα ζῇν μακαρίως. 162 Pelágio e suas doutrinas foram
condenados por um concílio em Cartago em 412 d.C. Foi exonerado
pelos Sínodos de Jerusalém e Dióspolis em 415 d.C., mas condenado
pela segunda vez num sínodo de sessenta bispos em Cartago em 416 d.C.
Zósimo, bispo de Roma, pôs-se primeiro do lado dos Pelagianos, e
censurou a ação dos bispos da África; mas quando sua decisão foi
confirmada pelo concílio geral de Cartago em 418 d.C., em que
estiveram presentes duzentos bispos, uniu-se na condenação, e declarou
excomungado a Pelágio e a seus partidários. Em 431 d.C. a Igreja do
Oriente se uniu nesta condenação aos Pelagianos, no Sínodo Geral
celebrado em Éfeso. 163
160
Epistola, clxxix. 3; Works, edit. Benedictines, vol. ii. pp. 941, d, 942, a.
Ibid.
162
Sobre a distinção entre vita æterna y regnum coelorum, veja-se Pelagius Apud Augustinum de
Peccatorum Meritis et Remissione, I. 58; Works, vol. x. p. 231. Conc. Carth. 415.
163
Wigger, Augustianism and Pelagianism. Guericke, Church History, §§ 91-93. Ritter, Geschlchte
der Chrislichen Philosophie, Vol. II, págs. 337-443 e todas as histórias da igreja e histórias de
doutrina.
161
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
221
Argumentos contra a doutrina Pelagiana.
As objeções às doutrinas Pelagianas da natureza do pecado serão
necessariamente consideradas quando se apresentar a doutrina
Escriturística e Protestante. Por agora é suficiente dizer:
1. Que o princípio fundamental em que se baseia todo o sistema
contradiz a consciência comum dos homens. Não é verdade, como nos
ensina nossa consciência, que nossa obrigação esteja limitada por nossa
capacidade. Cada pessoa sabe que está obrigado a ser melhor que o que
é, e melhor que o que pode fazer-se a si mesmo por esforço de vontade.
Temos a obrigação de amar a Deus perfeitamente, mas sabemos que tal
amor perfeito está além de nosso poder. Reconhecemos a obrigação de
estar livres de todo pecado, e totalmente conformados à perfeita lei de
Deus. Mas ninguém está tão enfatuado ou cego a seu verdadeiro caráter
que creia realmente que alcançou esta perfeição, ou que tenha
capacidade para chegar a ela. É a oração ou aspiração diária e constante
de cada santo e de cada pecador o ser libertado da escravidão do mal. O
soberbo e maligno quereria ser humilde e benevolente; o ambicioso se
alegraria em ser generoso; o incrédulo deseja a fé, e o pecador
endurecido o arrependimento. O pecado é em sua própria natureza uma
carga e um tortura, e embora seja amado e abrigado, como as taças do
bêbado são queridas, entretanto, se pudesse efetuar a emancipação por
um ato da vontade, o pecado deixaria de reinar em qualquer criatura
racional. Assim, não há verdade da que os homens estejam mais
intimamente convencidos que a de que são escravos do pecado; que não
podem fazer o bem que quisessem, e que não podem alterar seu caráter à
vontade. Assim, não há princípio mais afastado da comum consciência
dos homens que o princípio fundamental do Pelagianismo de que nossa
capacidade limita nossa obrigação, que não estamos obrigados a ser
melhores do que podemos fazer a nós mesmos por um ato de vontade.
2. Não é menos repelente para a natureza moral do homem declarar,
como ensina o Pelagianismo, que nada é pecaminoso exceto a
transgressão deliberada de uma lei conhecida; que não há caráter moral
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
222
nos sentimentos e nas emoções; que o amor e o ódio, a malícia e a
benevolência, consideradas como afetos da mente, são do mesmo modo
indiferentes; que o mandamento de amar a Deus é um absurdo porque o
amor não está sujeito ao controle da vontade. Todos os nossos juízos
morais devem estar pervertidos antes que possamos assentir a um
sistema que envolva tais consequências.
3. Em terceiro lugar, a doutrina Pelagiana, que confunde liberdade
com capacidade, ou que faz com que a liberdade de um agente livre
consista no poder de determinar seu caráter por uma volição, é contrário
à consciência de todas as pessoas. Sentimos e não podemos deixar de
reconhecer que somos livres quando nos autodeterminamos; enquanto
que ao mesmo tempo estamos conscientes de que os estados
controladores da mente não estão sob o controle da vontade, ou, em
outras palavras, que não estão sob nosso próprio poder. Uma teoria que
está baseada na identificação de coisas que são essencialmente
diferentes, como a liberdade e a capacidade, deve ser falsa.
4. O sistema Pelagiano deixa sem explicação a pecaminosidade
universal dos homens, fato este que não pode ser negado. Atribuí-lo à
mera livre ação do homem é dizer que uma coisa é sempre simplesmente
porque pode ser.
5. Este sistema não chega a satisfazer as necessidades mais
profundas e universais de nossa natureza. Ao fazer o homem
independente de Deus dando por sentado que Deus não pode controlar
agentes livres sem destruir sua liberdade, faz uma zombaria de toda
oração pela graça controladora de Deus sobre nós e outros, e lança o
homem completamente sobre seus próprios recursos para enfrentar o
pecado e os poderes das trevas, sem esperança de libertação.
6. Faz a redenção (no sentido de uma libertação do pecado)
desnecessária ou impossível. É desnecessário que deva haver um
redentor para uma raça que não caiu, e que tem plena capacidade para
evitar todo pecado ou para livrar-se a si mesma de seu poder. E é
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
223
impossível, se os agentes livres forem independentes do controle de
Deus.
7. Dificilmente será necessário dizer que um sistema que afirma que
o pecado de Adão só fez mal a ele mesmo; que os homens nascem no
mundo no estado em que Adão foi criado; ou que os homens podem
viver, e com frequência vivem, sem pecado; que não temos necessidade
de ajuda divina a fim de ser santos; e que o cristianismo não tem uma
superioridade essencial sobre o paganismo ou a religião natural, está
totalmente em desacordo com a Palavra de Deus. Certamente, a oposição
entre o Evangelho e o Pelagianismo é tão terminante e radical que este
último sistema jamais foi considerado absolutamente como uma forma
de cristianismo. Em outras palavras, nunca foi a fé de nenhuma igreja
cristã organizada. É pouca coisa mais que uma forma de Racionalismo.
§ 5. A doutrina de Agostinho
O elemento filosófico da doutrina de Agostinho.
Há dois elementos na doutrina Agostiniana do pecado: um
metafísico ou filosófico, o outro moral ou religioso. O primeiro é uma
especulação do entendimento, o outro se deriva de sua experiência
religiosa e do ensino do Espírito Santo. Um desapareceu, deixando
poucos vestígios na história da doutrina que outras especulações, sejam
aristotélicas ou platônicas. O outro permanece, e deu forma à doutrina
cristã desde aquele dia até a atualidade. E não é para assombrar-se. Nada
é mais incerto e insatisfatório que as especulações do entendimento ou
teorias filosóficas. Enquanto que nada é mais certo e universal que a
consciência moral dos homens e as verdades que esta revela. E como as
Escrituras, sendo a obra de Deus, conformam-se e devem conformar-se à
constituição de nossa natureza, as doutrinas fundamentadas sobre o
duplo ensino do Espírito, em Sua palavra e nos corações de Seu povo,
ficam sem mudanças de geração em geração, enquanto que as
especulações da filosofia ou dos teólogos filosóficos caem como as
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
224
folhas de um bosque. Ninguém hoje em dia se interessa na filosofia de
Orígenes, nem dos neoplatônicos, nem de Agostinho, enquanto que a
linguagem de Davi no Salmo 51 é empregado para expressar a
experiência e convicções de todo o povo de Deus em todas as eras e
partes do mundo.
O elemento metafísico na doutrina Agostiniana do pecado surgiu de
sua controvérsia com os maniqueus. Manes ensinava que o pecado era
uma substância. Isto Agostinho negou. Para ele tratava-se de uma
máxima de que “Omne est esse bonum” Mas se esse (ser) é bom, e o
mal, se é o contrário do bem, então o mal tem que ser o oposto ao ser, ou
nada, isto é, a negação ou privação do ser. Assim, foi levado a adotar a
linguagem dos neoplatônicos e de Orígenes, que por um processo
diferente, foram levados a definir o mal como uma negação do ser como
o chama Plotino, στέρησις τοῦ ὄντος; e Orígenes diz, πᾶσα ἡ κακία
οὐδέν ἐστιν, e o mal em si ele que diz é ἐστερῆσθαι τοῦ ὄντος. Ao fazer
assim do ser o bem e da negação do ser o mal, Agostinho parece ter
cometido o mesmo erro que outros filósofos cometeram tão
frequentemente — de confundir o bem físico e moral. Quando Deus ao
princípio declarou todas as coisas, materiais e imateriais, que Ele fez, ser
muito bom, Ele simplesmente declarou que estão adaptados aos fins para
os que se fizeram solidariamente. Ele não tinha a intenção de nos ensinar
que a bondade moral poderia ser pregada da matéria ou de um animal
irracional. Em outros casos, a boa palavra bom significa agradável, ou
adaptado para dar prazer. Em outros ainda, significa moralmente correto.
Inferir do fato de tempo que tudo o que Deus fez é bom, ou é que todo
esse bonum, que o mal moral, portanto, a negação do bem deve ser a
negação do ser, é tão ilógico como afirmar que, porque o mel é bom (no
sentido de ser agradável ao gosto) a amargura é má, no sentido de ser
pecaminosa. Embora Agostinho usasse a linguagem daqueles filósofos
que, tanto antes dele como depois, destroem a própria natureza do
pecado ao fazer dele uma mera limitação do ser, entretanto ele estava
muito longe de sustentar o mesmo sistema. (1) Eles tornavam o pecado
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
225
necessário, como surgindo da própria natureza de uma criatura. Ele o
fazia voluntário. (2) Eles o faziam puramente físico. Ele o fazia moral.
Para ele inclui contaminação e culpa. Para eles não incluía nenhuma de
ambas as coisas. (3) Em Agostinho esta negação não era meramente
passiva, não se tratava da mera carência de ser, era tal privação que
tendia à destruição. (4) Sim, para Agostinho, o mal, tal como foi mais
plena e claramente ensinado por seus seguidores, não era uma mera
privação, um mero defeito. Que uma pedra não possa ver, envolve a
negação do poder da visão. Mas não é um efeito, porque o poder da
visão não pertence às pedras. A cegueira é um defeito num animal, mas
não um pecado. A ausência do amor a Deus numa criatura racional é
pecado, porquanto é a ausência de algo que pertence a tal criatura, e que
deveria ter. No verdadeiro sentido agostiniano, portanto, o pecado é a
negação só como é a privação do bem moral: a privatio boni, ou, como
foi expresso posteriormente de maneira geral, uma ausência de
conformidade com a lei ou norma do bem.
As razões de Agostinho para fazer do pecado uma negação
Ao fazer do pecado uma negação, Agostinho tinha principalmente
dois fins em vista. (1) Mostrar que o pecado não é necessário. Se se
tratasse de algo que existe por si mesmo, ou de algo criado pelo poder de
Deus, estaria além do poder do homem. Seria sua vítima, não seu autor.
(2) Ele desejava mostrar que não era devido à eficiência divina. Segundo
sua teoria da relação de Deus com o mundo, não só tudo o que é, cada
substância, está criada e sustentada por Deus, mas sim toda atividade ou
poder, toda energia mediante a qual são produzidos os efeitos positivos é
a energia de Deus. Por isso, se o pecado fosse algo em si mesmo, algo
mais que um defeito, ou uma falta de conformidade com uma lei, Deus
deve ser o autor. Por isso, ele adotou aquela perspectiva da natureza
psicológica do pecado que não exigisse uma causa eficiente mas sim,
como dizia frequentemente, uma causa deficiente. Se um homem, para
empregar a antiga ilustração Agostiniana, tange as cordas de uma harpa
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
226
desafinada, ele é a causa do som, mas não da dissonância. Assim, Deus é
a causa da atividade do pecador, mas não da discordância entre seus atos
e as leis da verdade e direito eternas. 164
O elemento moral de sua doutrina.
A verdadeira doutrina Agostiniana do pecado é aquela que o ilustre
pai tirou de sua própria experiência religiosa, conduzida e determinada
pelo Espírito de Deus.
Ele esteve (1) Consciente de pecado. Reconheceu-se a si mesmo
como culpado e poluído, como sob a justiça de Deus, ofensivo à Sua
santidade. (2) Sentiu-se assim culpado e poluído não só por seus atos
deliberados de transgressão, mas também por seus afetos, sentimentos e
emoções. Este sentimento de pecado ligado não só com estes estados de
mente positivos e conscientes, mas também com a mera ausência de
afetos retos, com a falta de amor, de humildade, de fé e outras virtudes
cristãs, ou com sua fraqueza e inconstância. (3) Reconheceu o fato de
que sempre tinha sido um pecador. Até onde se estendia sua consciência,
era consciência de pecado. (4) Estava profundamente convencido de que
não tinha poder para mudar sua natureza moral nem para fazer-se santo;
que toda a liberdade que possuía, por livre que fosse em pecar, ou
(depois da regeneração) em agir de maneira santa, não tinha a liberdade
de capacidade que Pelágio pretendia como uma prerrogativa essencial da
humanidade. (5) Estava envolvido nesta consciência de pecado como
culpa, ou justo merecimento de castigo, assim como contaminação, que
não podia ser um mal necessário, mas sim devia ter sua origem no livre
ato do homem, e que por isso devia ser voluntário. Voluntário: (a) Ao ter
sua origem num ato da vontade; (b) Ao ter sua sede na vontade; (c) Ao
consistir na determinação da vontade ao mal: a palavra vontade denota
aqui, como geralmente em Agostinho, o sentido mais amplo de tudo
164
Veja-se, a respeito da teoria de Agostinho, Müller, Lehre von der Sünde, vol. I, págs. 338-349.
Ritter, Geschichte der Chrislichen Philosophie, Vol. II, págs. 337-425.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
227
aquilo no homem que não cai sob a categoria do entendimento. (6) O que
a consciência lhe ensina que era certo a respeito de si mesmo ele viu
certo a respeito de outros. Todos os homens demonstravam ser
pecadores. Davam todos evidência de pecado logo que davam evidência
de razão. Todos davam evidência não só de ser transgressores da lei de
Deus, mas também de estar espiritualmente mortos, carentes de toda
evidência de vida espiritual. Eram os voluntários escravos do pecado,
totalmente incapazes de libertar-se a si mesmos de sua escravidão à
corrupção. Ninguém jamais tinha dado evidência de possuir a capacidade
de autorregenerar-se. Todos os que davam evidência de estar
regenerados atribuíam unânimes a obra não a si mesmos, mas à graça de
Deus.
Com base nestas realidades da consciência e da experiência,
Agostinho chegou à inevitável conclusão: (1) De que se os homens
forem salvos não pode dever-se ao próprio mérito deles, mas somente ao
imerecido amor de Deus. (2) Que a regeneração da alma deve ser a obra
exclusiva e sobrenatural do Espírito Santo; que o pecador não podia nem
levar a cabo a obra nem cooperar em sua produção. Em outras palavras,
que a graça é certamente eficaz ou irresistível. (3) Que a salvação é por
graça, pela soberana misericórdia de Deus, (a) Em que Deus tivesse
podido em justiça, deixar os homens a perecerem em sua apostasia sem
provisão alguma para sua redenção. (b) Em que ao estar os homens
destituídos da capacidade de fazer algo santo ou meritório, sua
justificação não pode ser pelas obras, não devida a um favor. (c) Em que
não depende da vontade das pessoas salvas, mas do beneplácito de Deus,
os que têm que ser feitos partícipes da redenção de Cristo. Em outras
palavras, a eleição para vida eterna deve estar baseada no soberano
beneplácito de Deus, e não na previsão de boas obras. (4) Uma quarta
inferência com base nos princípios de Agostinho era a perseverança dos
santos. Se Deus escolhe, por Seu beneplácito, a alguns para a vida
eterna, não podem deixar de obter a salvação. Vê-se então que assim
como todas as doutrinas distintivas dos Pelagianos são as consequências
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
228
lógicas de seu princípio da capacidade plenária como a base e limite da
obrigação, da mesma maneira as doutrinas distintivas de Agostinho são
as consequências lógicas de seu princípio da total capacidade do homem
caído para não fazer nada espiritualmente bom.
Ensinado por sua própria experiência que ele era culpado e poluído
desde seu nascimento, e que não tinha poder para mudar sua própria
natureza, e vendo que todos os homens estão envolvidos na mesma
pecaminosidade e impotência, aceitou a solução escriturística destes atos
da consciência e da observação, e por isso manteve: (1) Que Deus criou
o homem originalmente à Sua própria imagem e semelhança em
conhecimento, retidão e santidade, imortal e investido de domínio sobre
as criaturas. Também manteve que Adão foi dotado de perfeita liberdade
da vontade, não só com espontaneidade e a capacidade de
autodeterminação, mas com o poder de escolher o bem ou o mal, e de
determinar assim seu próprio caráter. (2) Que sendo deixado ao poder de
sua própria vontade, Adão, sob a tentação do Diabo, pecou
voluntariamente contra Deus, e assim caiu do estado em que tinha sido
criado. (3) Que as consequências deste pecado sobre Adão foram a perda
da imagem divina e a corrupção de toda a sua natureza, de maneira que
ficou espiritualmente morto, e por isso mesmo indisposto, incapacitado e
transformado em oposto a todo bem espiritual. Além desta morte
espiritual, veio a ser mortal, suscetível a todas as misérias desta vida, e à
morte eterna. (4) Tal era a união entre Adão e seus descendentes que as
mesmas consequências da transgressão sobrevieram a eles. Nascem
filhos da ira, isto é, em estado de condenação, destituídos da imagem de
Deus, e moralmente depravados. (5) Esta depravação inerente,
hereditária, é verdadeira e propriamente da natureza de pecado,
envolvendo ao mesmo tempo culpa e corrupção. Em sua natureza formal
consiste na privação da retidão original e na (concupiscência) inordinatio
naturae, a desordem de toda a natureza. É da natureza de um habitus em
distinção de um ato, atividade ou agência. É voluntário, no sentido
mencionado anteriormente, especialmente de modo que que não surgiu
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
229
da necessidade da natureza, nem da eficiência de Deus, mas sim da livre
ação de Adão. (6) Que a perda da retidão original e a corrupção da
natureza conseguinte à queda de Adão são inflições penais, sendo o
castigo de seu primeiro pecado. (7) Que a regeneração, ou chamada
eficaz, é uma ação sobrenatural do Espírito Santo, em que a alma é o
sujeito, e não o agente; que é soberana, concedida ou retida segundo o
beneplácito de Deus, e, consequentemente, que a salvação é totalmente
de graça.
Este é o sistema Agostiniano em todos os seus aspectos essenciais.
E esta é a doutrina que permaneceu e que foi a forma de doutrina
constante entre o grande corpo de cristãos evangélicos desde aquele
tempo até a atualidade. Naturalmente, admite-se que Agostinho cria
muitas coisas, junto com os pontos anteriormente mencionados, que
eram peculiares do homem ou da época em que viveu, mas que não
pertencem ao Agostinianismo como sistema de doutrina. Da mesma
maneira que o Luteranismo não inclui todas as opiniões individuais de
Lutero e o Calvinismo não inclui todas as opiniões pessoais de Calvino,
assim também há muitas coisas ensinadas por Agostinho que não
pertencem ao Agostinianismo. Ele ensina que todo pecado é a negação
do ser; que a liberdade é capacidade, de maneira que ao negar ao homem
caído a capacidade de mudar seu próprio coração, é-lhe negada a
liberdade da vontade; que a concupiscência (no sentido inferior da
palavra), como sentimento instintivo, é pecaminosa; que uma natureza
pecaminosa é propagada pela mesma lei de geração; que o batismo tira a
culpa do pecado original; e que todos os meninos não batizados (como
os Romanistas seguem ensinando e quase todos os Protestantes o negam)
estão perdidos. Estes e outros pontos não formam parte integral de seu
sistema, e não receberam a sanção da Igreja quando se pronunciou em
favor de sua doutrina em oposição à dos Pelagianos. Da mesma maneira,
é questão de importância secundária como compreendeu a natureza da
união entre Adão e sua posteridade; que sustentasse a teoria
representativa ou a realista; ou que finalmente adotasse o Traducianismo
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
230
contra o Criacionismo, ou o segundo contra o primeiro. Em todos estes
pontos a linguagem é confusa e indecisa. É suficiente ter sustentado que
tal era a união entre Adão e sua raça, que toda a família humana teve sua
prova nele, e que caiu com ele em sua primeira transgressão, de maneira
que todos os males que são as consequências desta transgressão,
incluindo a morte física e espiritual, são o castigo daquele pecado. A
respeito deste ponto ele é perfeitamente explícito. Quando Juliano
objetou que o pecado não pode ser o castigo do pecado, respondeu que é
preciso distinguir três coisas, que devemos conhecer, “aliud esse
peccatum, aliud poenam, peccati, aliud utrumque, id est, ita peccatum, ut
ipsum sit etiam poena peccati, . . . . pertinet originale peccatum ad hoc
genus tertium, ubi sic peccatum est, ut ipsum sit et poena peccati.” 165
Outra vez diz ele: “Est [peccatum] . . . . non solum voluntarium atque
possibile unde liberum est abstinere; verum etiam necessarium
peccatum, unde abstinere liberum non est, quod jam non solum
peccatum, sed etiam poena peccati est.” 166
A morte espiritual (quer dizer, o pecado original ou a corrupção
inerente), diz Wiggers, quer dizer, segundo Agostinho, a pena especial e
principal da primeira transgressão de Adão, que passou na pena de todos
os homens. 167 Isto está de acordo exatamente com a doutrina do
Apóstolo, que diz: “Em Adão todos morrem,” 1 Cor. 15:22, e que uma
sentença de condenação (κρῖμα εἰς κατάκριμα) por uma ofensa passa a
todos os homens, Rom. 5:16, 17. Isto Agostinho conectou como uma
doutrina da Escritura, e como um juízo histórico. Isto, entretanto, é uma
doutrina em que os homens encontraram sempre difícil de crer, e um fato
que demorou para admitir.
Pelágio disse: 168 “Nulla ratione concedi ut Deus, qui propria
peccata remittit, imputet aliena.” E Juliano exclama com veemência:
165
Opus Imperfectum, I. 47; Works, edit. Benedictines, vol. x., pp. 1495, d, and 1496, d.
Opus Imperfectum, V. 59, Works, edit. Benedictines, vol. x., p. 2026, b.
167
Augustinismus und Pelagianismus, edit. Hamburg, 1833, vol. i. p. 104.
168
Apud Augustinum de Peccatorum Meritis et Remissionie, III. iii. 5; Works, vol. x., p. 289, a.
166
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
231
“Amolire te itaque cum tali Deo tuo de Ecclesiarum medio: non est ipse,
cui Patriarchæ, cui Prophetæ, cui Apostoli crediderunt, in quo speravit et
sperat Ecclesia primitivorum, quæ conscripta est in coelis; non est ipse
quem credit judicem rationabilis creatura; quem Spiritus sanctus juste
judicaturum esse denuntiat. Nemo prudentium, pro tali Domino suum
unquam sanguinem fudisset: nec enim merebatur dilectionis affectum, ut
suscipiendæ pro se onus imponeret passionis. Postremo iste quem
inducis, si esset uspiam, reus convinceretur esse non Deus; judicandus a
vero Deo meo, non judicaturus pro Deo.” 169
A esta grande objeção Agostinho dá respostas diferentes. (1.)
Refere-se aos exemplos das Escrituras em que os homens foram
castigados pelos pecados dos demais. (2.) Ele apela ao fato de que Deus
visita os pecados dos pais sobre seus filhos. (3.) Às vezes ele diz que
devemos nos conformar com a garantia de que o Juiz de toda a terra deve
fazer o correto, se podemos ver a justiça de Seus caminhos ou não. (4.)
Nos demais ele parece adotar a doutrina realista de que todos os homens
estavam em Adão, e que seu pecado foi o pecado deles, sendo o ato da
humanidade genérica. Como Levi estava nos lombos de Abraão, e foi
dizimado nele, assim nós estávamos neste lombo de Adão, e pecamos
nele. (5.) E, finalmente, ele insiste que como somos justificados pela
justiça de Cristo, não é incongruente que devemos ser condenados pelo
pecado de Adão. 170 Observar-se-á que algumas destas causas são
inconsistentes com outras.
Se uma for válida, as outras não são válidas. Se podemos conciliar a
condenação dos homens por causa do pecado de Adão, em razão de que
ele era nosso representante, ou que sustentou a relação que todos os pais
mantêm com seus filhos, renunciamos a base de uma união realista. Se a
última teoria for verdade, então o pecado de Adão foi nosso ato tão certo
como era dele. Se adotarmos a teoria representativa, seu ato não foi
169
170
Opus Imperfectum contra Julianum, I. 50; Works, vol. x. p. 1501, a, b.
See Münscher’s Dogmengeschichte, vol. iv., p. 195.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
232
nosso ato num sentido distinto daquele em que um representante age por
seus eleitores. Disto é claro: (1.) Que Agostinho não tinha nenhuma
convicção clara e definitiva sobre a natureza da união entre Adão e sua
raça, que é o fundamento da imputação de seu pecado à sua posteridade,
mais do que tinha a respeito da origem da alma; e (2.) Que nenhuma
teoria particular sobre este ponto, se representativa ou realista, podem
adequadamente constituir um elemento do agostinianismo, como uma
forma histórica e a igreja da doutrina.
§ 6. A doutrina da igreja de Roma.
Este é um ponto de difícil decisão. Os próprios Romanistas
divergem tanto quanto ao que ensina a Igreja deles a respeito do pecado
original como os que não pertencem à sua comunhão. As origens desta
dificuldade são: (1) Primeiro, a grande diversidade de opiniões a respeito
do tema que prevaleceram na Igreja Latina antes das decisões
autoritativas do concílio de Trento e do Catecismo Romano. (2) A
ambiguidade e ausência de precisão ou de plenitude nas decisões daquele
concilio. (3) As diferentes interpretações dadas por teólogos
proeminentes a respeito do verdadeiro sentido dos cânones Tridentinos.
Diversidade de doutrina na Igreja Latina.
Quanto ao primeiro destes pontos pode-se observar que havia
principalmente três elementos conflitivos na Igreja Latina antes da
Reforma, com relação a toda a questão do pecado. (1) A doutrina de
Agostinho. (2) A dos Semipelagianos, e (3) A daqueles dentre os
escolásticos que tentaram encontrar um território intermediário entre os
outros dois sistemas. A doutrina de Agostinho, como foi apresentada em
anteriores seções, recebeu a sanção da Igreja Latina, e declarou a
verdadeira fé ortodoxa. Mas inclusive durante o tempo de Agostinho, e
em maior extensão no século seguinte, começaram a prevalecer sérias
divergências de seu sistema. Estas divergências se relacionavam com
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
233
todas as muito inter-relacionadas doutrinas do pecado, da graça e da
predestinação. O Pelagianismo foi universalmente rejeitado e condenado.
Admitia-se que a raça do homem caiu em Adão; que seu pecado afetou
prejudicialmente a sua posteridade assim como a ele mesmo; que os
homens nascem em estado de alienação de Deus; que necessitam o poder
do Espírito Santo a fim de ser restaurados à santidade. Mas, qual é a
natureza do pecado original, ou daquela depravação ou deterioração de
nossa natureza que se deriva de Adão? Quais são os restos da divina
imagem que seguem preservados, ou, qual é o poder para o bem que
seguem tendo os homens caídos? E qual é a base sobre a qual Deus leva
a uns, e não a outros, ao gozo da vida eterna? Estas eram perguntas que
receberam respostas muito distintas. Agostinho, como vimos, respondeu
à primeira destas perguntas, dizendo que o pecado original consiste não
só na perda da retidão original, mas também na concupiscência, ou
desordem, ou corrupção da natureza, que é verdadeira e propriamente
pecado, incluindo ao mesmo tempo culpa e contaminação. A segunda
pergunta ele respondeu dizendo que o homem caído não tem poder para
levar a cabo o que é espiritualmente bom; nem pode regenerar-se a si
mesmo, nem preparar-se a si mesmo para a regeneração, nem cooperar
com a graça de Deus em tal obra. Estes princípios conduzem
necessariamente às doutrinas da graça eficaz ou irresistível e da eleição
soberana, como se tem visto e admitido universalmente. Foram estas
necessárias consequências, mais que os próprios princípios, os que
causaram a oposição. Mas por livrar-se das consequências era necessário
que fossem refutados os princípios. Esta Oposição ao Agostinianismo
surgiu com os monges, e prevaleceu principalmente entre eles. Como diz
Gieseler, 171 era algo muito natural. Agostinho ensina que o homem não
podia fazer nada por si mesmo, e que não podia adquirir mérito algum
aos olhos de Deus. Os monges criam não só que podiam fazer tudo o que
Deus lhes demandava, mas também mais ainda. Se não, para que
171
Kirchengeschichte, vol. vi. p. 350.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
234
submeter-se a seus votos de celibato, pobreza e obediência? O partido
que assim se formou contra a doutrina ortodoxa ou estabelecida foi
chamada Semipelagiana, porque estava situada numa posição
intermediária entre Pelágio e Agostinho.
Os Semipelagianos
Os principais dirigentes deste partido foram João Cassiano, um
monge oriental e discípulo de João Crisóstomo; Lerinensis Vincentius, e
Fausto de Régio. O trabalho mais importante do Cassiano se intitulou
“Collationes Patrum,” que é uma coleção de diálogos sobre diversos
temas. Foi um devoto mais que um escritor especulativo, baseando-se na
autoridade das Escrituras para o apoio de sua doutrina. Educado na
Igreja grega e formado num monastério, todas as suas prevenções foram
adversas ao agostinismo. E quando trasladou sua residência a Marselha
no sul da França, e se encontrou em meio das igrejas que se inclinaram à
autoridade de Agostinho, pôs-se a modificar e suavizar, mas não
diretamente a opor-se às doutrinas distintivas daquele pai. 172 Vicente do
Lerins, era um homem de um espírito diferente e de maior poder. Sua
confiança estava na tradição. Sustentou a doutrina mais alta sobre a
Igreja, e ensinou que a comunhão com ela na fé e as ordenanças foi a
única condição essencial da salvação. Foi o autor da célebre fórmula
quanto à regra de fé, quod ubique, quod semper, quod ab omnibus
creditum est. Sua obra principal se intitula “Commonitorium,” ou
recordador, uma coleção principalmente de extratos. Este trabalho foi
considerado durante muito tempo um padrão entre os romanistas, e foi
respeitado por muitos protestantes de alta reputação pela capacidade que
mostra. Pretendia-se que fosse um guarda contra a heresia, ao mostrar o
que os líderes da Igreja tinham ensinado contra os hereges, e para
determinar o princípio em que a autoridade dos pais devia ser admitido.
Um só pai, embora um bispo, confessor ou mártir, poderia errar, e seus
172
See below, vol. iii., p. 449.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
235
ensinos serem propriamente desatendidos, mas quando ele esteve de
acordo com a tendência geral do ensino eclesiástico, quer dizer, com a
tradição, ele foi plenamente crido. 173
O mais capaz e mais influente dos líderes do partido semipelagiano
foi Fausto de Régio, que assegurou a condenação do Lucidus, um
defensor extremo da doutrina agostiniana, no Sínodo de Arles, 475, a.D.,
e quem foi chamado pelo conselho para escrever a obra “De gratia Dei et
humanæ mentis libero arbitrio,” que alcançou grande celebridade e
autoridade.
Os semipelagianos, entretanto, estavam longe de estar de acordo
entre si quanto ao pecado nem quanto à graça. Cassiano ensinou que os
efeitos do pecado de Adão a sua posteridade foram: (1.) Que se
converteu em mortal, e sujeito às fraquezas físicas desta vida. (2.) Que os
conhecimentos da natureza e da lei divina que Adão possuía
originalmente, foi em grande medida preservada até que os filhos de Sete
se casaram com as filhas de Caim, quando a raça se tornou gravemente
deteriorada. (3.) Que os efeitos morais da queda foram para debilitar a
alma com toda sua força para o bem, para que os homens necessitassem
constantemente a ajuda da graça divina. (4.) Que essa graça ou era a
influência sobrenatural do Espírito, a eficiência providencial de Deus, ou
seus vários dons de faculdades e de conhecimentos, ele em nenhuma
parte se explica claramente. Ele admitiu que os homens não poderiam
salvar-se, mas sustentou que não estavam espiritualmente mortos, que
estavam doentes, e constantemente necessitavam a ajuda do Grande
Médico. Ele ensinou que o homem às vezes começou o trabalho de
conversão; às vezes Deus, e às vezes, em certo sentido, Deus salva os
que não o desejam. 174 Vicente, evidentemente, considerava que a
doutrina agostiniana do pecado original, faz com que Deus seja o autor
do mal; porque, diz ele, isso assume que Deus criou uma natureza, que
173
174
Sacr. Bibl. Sanc. Pat., 2d. edit. Paris, 1589, tom. iv. pp. 62-91.
Magna Bib. Vet. Pat., Cologne, 1618, tom. v. par. ii., p. 90 ff.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
236
age de acordo com suas próprias leis e sob o impulso de uma cativa
vontade, não pode fazer nada senão o pecado. 175 E ele pronuncia
heréticos os que ensinam que a graça salva aos que não pedem, não
buscam, ou não batem, em alusão evidente à doutrina de Agostinho que
não é de quem quer, nem de quem corre, mas de Deus mostrar a
misericórdia. Fausto admitiu uma corrupção moral da natureza como
consequência da queda de Adão, ao que chamou pecado original
(originale delictum). Em sua carta a Lucidus anatematiza a doutrina de
Pelágio de que o homem nasce “sem pecado.” 176 Deste estado
deteriorado, doentio, nenhum homem pode livrar-se. Ele necessita a
graça de Deus. Mas o que era a graça é duvidoso. A partir de algumas
passagens de seus escritos não parece ser destinado a ele somente, ou
principalmente, a influência moral da verdade revelada pelo Espírito nas
Escrituras. Ele diz que Deus atrai os homens a Si, mas “Quid est
attrahere nisi prædicare, nisi scripturarum consolationibus excitare,
increpationibus deterrere, desideranda proponere, intentare metuenda,
judicium comminari, præmium polliceri?” 177
Os Semipelagianos concordavam no rechaço da doutrina Pelagiana
de que o pecado de Adão tinha prejudicado só a ele; admitiam que os
efeitos daquele pecado passaram a todos os homens, afetando tanto o
corpo como a alma. Tornou o corpo mortal, e suscetível às doenças e ao
sofrimento; e a alma foi debilitada, de modo que se fez tendente ao mal e
incapaz, sem ajuda divina, de fazer nada espiritualmente bom. Mas
sustentavam contra o Agostinianismo, ao menos segundo as declarações
de Próspero e Hilário, os defensores do Agostinianismo no sul da
França: (1) Que o começo da salvação está no homem. O homem
começa a buscar a Deus, e que logo Deus o ajuda. (2) Que este incipiente
voltar-se da alma a Deus é algo bom, e num sentido é meritório. (3) Que
a alma, em virtude de sua liberdade da vontade ou capacidade para o
175
Wiggers, ut supra, vol. ii., p. 214.
Sac. Bibl. Sanc. Pat., 2d. edit. Paris, 1589, tom. iv. pp. 875, 876.
177
De Lib. Arbit. I. xvii.: Ibid. p. 906.
176
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
237
bem, coopera com a graça de Deus em regeneração assim como em
santificação. Que estas acusações estavam bem baseadas é o que se deve
inferir das decisões dos concílios de Orange e Valência em 529 d.C., nos
quais as doutrinas de Agostinho foram de novo ratificadas. Como as
decisões daqueles concílios foram ratificadas pelo Papa, foram do
mesmo modo, segundo a teoria papal, declaradas como a fé da Igreja.
Entre as questões que assim se declararam como incluídas na
verdadeira doutrina escriturística estão: (1) Que a consequência do
pecado de Adão não se limita ao corpo, nem às faculdades inferiores da
alma, mas envolve a perda de capacidade para o bem espiritual. (2) Que
o pecado derivado de Adão é morte espiritual. (3) Que a graça é
concedida, não porque o homem a busca, mas a disposição para buscar é
uma obra da graça e o dom de Deus. (4) Que o princípio da fé e a
disposição para crer não é da vontade humana, mas sim da graça de
Deus. (5) Crer, querer, desejar, buscar, pedir, bater na porta da
misericórdia, tudo isso deve ser atribuído à obra do Espírito e não ao
bem que pertence à natureza do homem caído.
Por isso, os dois grandes pontos em disputa entre os Agostinianos e
os Semipelagianos foram decididos em favor dos primeiros. Estes pontos
eram: (1) Que o pecado original, ou a corrupção da natureza derivada de
Adão, não foi simplesmente um desfalecimento de nosso poder para o
bem, mas sim foi morte espiritual; realmente pecado, incapacitando a
alma para qualquer bem espiritual. E (2) Que na obra da conversão não é
o homem quem começa, mas sim o Espírito de Deus. O pecador não tem
poder para voltar-se a si mesmo a Deus, mas é voltado ou renovado pela
graça divina antes que possa fazer algo espiritualmente bom. 178
As decisões dos concílios do Orange e Valência em favor do
Agostinianismo não puseram fim à controvérsia. O partido
Semipelagiano seguiu sendo numeroso e ativo, e chegou a ganhar tanta
influência que no nono século Gottschalk foi condenado por ensinar a
178
Binius, Concilia, Colonia, 1618, Tomo II, párrafo I, pág. 638.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
238
doutrina da predestinação no sentido Agostiniano. Deste período até o
tempo da Reforma e das decisões do Concílio de Trento, prevaleceu uma
grande diversidade de opiniões na Igreja Latina a respeito de todas as
questões referentes ao pecado, à graça e à predestinação. Ao chegar-se a
admitir geralmente que a retidão original era um dom sobrenatural,
chegou-se também a manter de maneira geral que o efeito do pecado de
Adão sobre si mesmo e sobre sua posteridade foi a perda daquela retidão.
Este foi seu único efeito subjetivo. Assim, a alma fica no estado em que
foi originalmente criada, e em que existiu, dizem alguns que durante um
período mais longo, outros mais curto, ou num período nada perceptível,
antes da recepção do dom sobrenatural. É neste estado que os homens
nascem no mundo da apostasia de Adão.
A doutrina de Anselmo.
Esta perda da retidão original era considerada universalmente como
um mal penal. Era o castigo pelo primeiro pecado de Adão, que veio
igualmente sobre ele e sobre todos os seus descendentes. A questão
agora é: qual é o estado moral de uma alma carente de retidão original
considerado como um dom sobrenatural? Foram as diferentes respostas
dadas a esta pergunta que deram origem aos pontos de vista em conflito
a respeito da natureza e consequências do pecado original.
1. Alguns diziam que este estado negativo era em si mesmo
pecaminoso. Admitindo que o pecado original era simplesmente a perda
da retidão original, era entretanto verdadeira e propriamente pecado. Esta
foi a postura assumida por Anselmo, o pai da filosofia e teologia
escolásticas.
Em sua obra, “De Conceptu Virginali et Originali Peccato,” diz ele
das crianças, 179 “Quod in illis non est justitia, quam debent habere, non
hoc fecit illorum, voluntas personalis, sicut in Adam, sed egestas
naturalis, quam ipsa natura accepit ab Adam — facit natura personas
179
Cap. xxiii.; Opera, Paris, 1721, p. 104, B, d.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
239
infantium peccatrices. Nullam infantibus injustitiam super prædictam
nuditatem justitiæ. 180 Peccatum originale aliud intelligere nequeo, nisi
ipsam — factam per inobedientiam Adæ justitiæ debitæ nuditatem.” 181
Mas este pecado original, mesmo em crianças, embora puramente
negativo, entretanto, é verdadeira e propriamente pecado. Anselmo diz:
“Omne peccatum est injustitia, et originale peccatum est absolute
peccatum, unde sequitur quod est injustitia. Item si Deus non damnat nisi
propter injustitiam; damnat autem aliquem propter originale peccatum,
ergo non est aliud originale peccatum quam injustitia. Quod si ita est,
originale peccatum non est aliud quam injustitia, i.e., absentia debitæ
justitiæ.” 182
A doutrina de Abelardo.
2. A postura assumida por outros dos escolásticos foi que a perda da
retidão original deixou a Adão precisamente no estado em que tinha sido
criado, e por isso in puris naturalibus (isto é, nos atributos simples e
essenciais de sua natureza). E como seus descendentes compartilham sua
sorte, nascem no mesmo estado. Não haveria corrupção hereditária
inerente, nem caráter moral, bom ou mau. Não se lhes poderia imputar
como pecado a ausência de um dom sobrenatural não pertencente à
natureza do homem, e que deveria ser outorgado como um favor. Assim,
o pecado original na posteridade de Adão não poderia consistir em outra
coisa que na imputação aos mesmos da primeira transgressão que ele
cometeu. Eles sofrem o castigo por aquele pecado, castigo que é a perda
da retidão original. Segundo esta postura, o pecado original é pena mas
não culpa. É verdade que a consequência inevitável desta privação de
retidão seria que os poderes inferiores da natureza humana chegariam a
dominar sobre a mais alta, e que cresceria em pecado. Entretanto, não
teria pecado inerente ou subjetivo no recém-nascido. Haveria uma
180
Cap. xxiv.; Ibid. p. 105, A, c.
Cap. xxvii.; Ibid. p. 106, A, b.
182
Cap. iii.; Ibid. p. 98, A, e, B, a.
181
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
240
propensão natural ao pecado, surgindo da constituição original e normal
de nossa natureza, e a ausência de retidão original que seria um freio, ou
estorvo, mediante o qual os poderes inferiores deveriam ser mantidos sob
sujeição. Mas ao esta ser a condição em que Adão saiu das mãos de seu
Criador, não poderia em si mesma ser pecaminosa. O pecado consiste em
assentimento e propósito, e, por isso mesmo, até que a alma não consinta
a este domínio de sua natureza inferior e aja de maneira deliberada de
acordo com a mesma, não pode ser acusada de nenhum pecado pessoal e
inerente. Por isso, não há pecado de natureza em distinção a pecado
cometido. É certo, como ensinavam os defensores desta teoria, em
obediência à fé universal da Igreja e a clara doutrina da Bíblia, que os
homens nascem em pecado. Mas é a culpa do primeiro pecado de Adão,
e não sua própria corrupção inerente. Eles admitiam a fidelidade da
tradução latina de Romanos 5:12, que faz o Apóstolo dizer que todos os
homens pecaram em Adão (in quo omnes peccaverunt). Mas entendiam
esta passagem como não ensinando nada mais que a imputação do
primeiro pecado de Adão, e não uma corrupção inerente hereditária da
natureza. Esta foi a teoria do pecado original adotada por Abelardo, que
mantinha que nada pertencia propriamente à natureza de pecado, senão
uma ação executada com má intenção. Como não pode haver tal intenção
nos recém-nascidos, não pode, falando corretamente, haver pecado neles.
Há uma propensão a pecar que ele chama vitium; mas o pecado consiste
em consentir com esta inclinação, e não na própria inclinação. “Vitium
itaque est, quo ad peccandum proni efficimur, hoc est inclinamur ad
consentiendum ei, quod non convenit, ut illud scilicet faciamus aut
dimittamus. Hunc vero consensum proprie peccatum nominamus, hoc est
culpam animæ, qua damnationem meretur.” 183 Ele admitiu o pecado
original como um castigo, ou como a culpa do pecado de Adão, mas isto
era externo e não inerente. 184
183
184
Ethica seu liber dictus: scito se ipsum, cap. iii.; Opera, Paris, 1859, vol. ii. p. 596.
In Epistolam ad Romanos, lib. ii.; Ibid. vol. ii. p. 238.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
241
Esta postura a respeito do pecado foi intensamente apoiada por
alguns dos teólogos da Igreja de Roma na época da Reforma,
especialmente por Catarino e Pighius. Este último, de acordo com
Chemnitz, 185 assim indicou sua doutrina: “Quod nec carentia justitiæ
originalis, nec concupiscentia habeat rationem peccati, sive in parvulis,
sive adultis, sive ante, sive post baptismum. Has enim affectiones non
esse vitia, sed naturæ conditiones in nobis. Peccatum igitur originis non
esse defectum, non vitium aliquod non depravationem aliquam, non
habitum corruptum, non qualitatem vitiosam hærentem in nostra
substantia, ut quæ sit sine omni vitio et depravatione, sed hoc tantum
esse peccatum originis, quod actualis transgressio Adæ reatu, tantum et
poena transmissa et propagata sit ad posteros sine vitio aliquo et
pravitate hærente in ipsorum substantia: et reatum hunc esse; quod
propter Adæ peccatum extorres facti sumus regni coelorum, subjecti
regno mortis et æternæ damnationi, et omnibus humanæ naturæ miseriis
involuti. Sicut ex servis, qui próprio vitio libertatem amiserunt,
nascuntur servi: non suo, sed parentum vitio. Et sicut filius scorti,
sustinet infamiam matris, sine proprio aliquo in se hærente vitio.” 186
A doutrina de Tomás de Aquino.
3. A terceira forma da doutrina que prevaleceu durante este período
foi a proposta por Tomás de Aquino (1224-1274 d.C.), um monge
dominicano, o Doutor Angélico dos escolásticos, e em muito o teólogo
mais influente da Igreja Latina dos tempos de Agostinho. Sua «Suma
Teológica» foi considerada durante muito tempo como uma obra
normativa entre os Romanistas, e continua sendo citada como autoridade
tanto pelos Romanistas como pelos Protestantes. Tomás se aproximou
muito de Agostinho que os outros teólogos de seu tempo. Ensinou ele:
(1) Que a retidão original foi para Adão um dom sobrenatural. (2) Que
185
186
Examen Concilii Tridentini, de Peccato Originale, edit. Frankfort, 1674, part i., p. 100.
See also Köllner’s, Symbolik, vol. ii. p. 285.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
242
por sua transgressão perdeu este dom para si e para sua posteridade. (3)
Que a retidão original consistia originalmente na inclinação fixa da
vontade para com Deus, ou a submissão da vontade a Deus. (4) Que a
consequência inevitável ou concomitante da perda desta retidão original,
desta conversão para com Deus, é a aversão da vontade com relação a
Deus. (5) Que o pecado original, portanto, consiste em duas coisas:
Primeiro, a perda da retidão original, e segundo, a desordem da natureza
inteira. O primeiro ele chamou o aspecto formal, e o outro, o material do
pecado original. Para empregar sua própria ilustração, uma faca é de
ferro; o ferro é o material, a forma é aquilo que faz do material uma faca.
Assim no pecado original esta aversão da vontade com relação a Deus
(como hábito) é a substância do pecado original, deve sua existência e
natureza à perda da retidão original. (6) Por isso, a alma, depois da perda
de sua retidão primária, não permanece in puris naturalibus, mas em um
estado de corrupção e pecado. Este estado às vezes se chama inordinatio
virium animae; às vezes uma deordinatio; às vezes aversio voluntatis
abono incomunicabili; às vezes uma disposição corrompida, quando ele
diz: 187 “Causa hujus corruptæ dispositionis, quæ dicitur originale
peccatum, est una tantum, scilicet privatio originalis justitiæ, per quam
sublata est subjectio humanæ mentis ad Deum.”
Mais frequentemente, seguindo o seu usus loquendi * e de períodos
posteriores esta parte positiva do pecado original é chamada
concupiscência. Esta é uma palavra muito difícil de compreender, porque
é usada em sentidos muito distintos inclusive com relação ao mesmo
tema. Alguns, por concupiscência, podem simplesmente designar o
instinto sexual; outros, o que pertence em geral à nossa natureza
sensorial; outros, tudo aquilo no homem que tem como seu objeto o
visível e temporal; e outros ainda, a disposição torcida da alma, pela
qual, sendo adversa a Deus a criatura é dirigida ao mal. Assim, quando
187
*
Summa, II. i. lxxxii. art. ii. edit. Cologne, 1640, p. 144 of second set.
usus loquendi, isto é, o significado das palavras no seu contexto. (N. do T.)
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
243
se diz que o pecado original, quando é considerado positivamente,
consiste na concupiscência, tudo depende do sentido em que se tome a
palavra. Se por concupiscência se significa só a natureza sensorial, então
o pecado original tem sua sede principalmente no corpo e nos afetos
animais, ficando os poderes superiores da alma sem ser afetados por sua
contaminação. Tomás de Aquino toma a palavra em seu sentido mais
amplo, como é evidente pelos equivalentes recém-mencionados, aversão
a Deus, disposição corrompida desordem ou deformidade dos poderes da
alma. É neste sentido, diz ele: “Originale peccatum concupiscentia
dicitur.” (7) Quanto aos elementos, constitutivos desta corrupção
original, ou tal como o expressa ele, as feridas sob as quais sofre nossa
natureza caída, diz que incluem: (a) Ignorância e ausência do
conhecimento correto de Deus na inteligência. (b) Uma aversão na
vontade com relação ao sumo bem. (c) Nos sentimentos ou afetos, ou
antes, naquele departamento de nossa natureza em que são manifestados
pelos sentimentos, uma tendência a deleitar-se em coisas criadas. Por
isso, a sede do pecado original nele é toda a alma. (8) Esta
concupiscência ou corrupção inerente não é um ato ou agência ou
atividade, mas um hábito, isto é, uma disposição imanente inerente da
mente. 188 (9) Finalmente, o pecado original é um mal penal. A perda de
retidão original e a consistente desordem de nossa natureza, são a
penalidade pela primeira transgressão de Adão. Até aqui, a doutrina de
Tomás está estritamente de acordo com a de Agostinho. Sua
consideração da questão poderia ser redigida como uma exposição da
resposta no «Catecismo de Westminster», que declara que a
pecaminosidade daquele estado em que caíram os homens consiste na
culpa do primeiro pecado de Adão, a ausência de retidão original e a
corrupção de toda a sua natureza. A diferença reside no grau de dano
recebido pela apostasia de Adão, ou a profundidade da corrupção da
natureza derivada dele. Tomás chama isto de frouxidão ou fraqueza.
188
Ibid. art. i.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
244
Como consequência da queda, os homens são totalmente incapazes de
salvar-se a si mesmos, nem de fazer nada verdadeiramente bom à vista
de Deus sem a ajuda da graça divina, mas seguem tendo a capacidade de
cooperar com aquela graça. Não podem, como ensinavam os
Semipelagianos, começar a obra de voltar-se a Deus e por isso
necessitam a graça preveniente (gratia praeveniens), mas com esta graça
são capacitados a cooperar. Isto origina a diferença entre a graça eficaz
(irresistível) de Agostinho, e o sinergismo que entra em todos os outros
sistemas.
A doutrina dos Escotistas.
4. Duns Escoto, um Franciscano, professor da Teologia em Oxford,
Paris e Colônia, onde morreu ou 1308 d.C., foi um grande oponente de
Tomás de Aquino. Pelo que respeita à questão do pecado original, uniuse aos semipelagianos. Fez com que o pecado original consistisse só na
perda da retidão original, e como esta era puramente um dom
sobrenatural, não pertencente à natureza do homem, sua perda deixou a
Adão, e a sua posteridade depois dele, precisamente no estado em que o
homem tinha sido criado originalmente. Seja qual for a desordem
conseguinte a esta perda de retidão, não é da natureza do pecado.
“Peccatum originale,” diz ele, “non potest esse aliud quam ista privatio
[justitiæ originalis]. Non enim est concupiscentia: tum quia illa est
naturalis, tum quia ipsa est in parte sensitiva, ubi non est peccatum.” 189
Por isso, os homens fazem no mundo in puris naturalibus, não no
sentido Pelagiano, porquanto os Pelagianos não admitem nenhum dom
sobrenatural de retidão dado a Adão, mas no sentido de que possuem
todos os atributos essenciais de suas naturezas sem danificar e
incontaminados. Assim como o livre-arbítrio, isto é, a capacidade para
fazer e ser tudo o que é demandado do homem por seu Criador, pertence
essencialmente à sua natureza, também isto permanece desde a Queda.
189
In Lib. IV Sentent., lib. II. dist. xxx. qu. 2; Venice, 1506, 2d part, fol. 83, p. 2, b.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
245
Fica certamente debilitado e rodeado de dificuldades, porquanto o que
dava equilíbrio à nossa natureza, a retidão original, foi-se, mas segue aí.
Não pode fazer o bem nem tornar-se bom sem a graça de Deus. Mas a
dependência da que fala Escoto é mais a da criatura com relação ao
Criador que a do pecador para com o Espírito de Deus. Seu empenho
parece ter sido o de reduzir o sobrenatural ao natural; confundir a
distinção feita constantemente na Bíblia e pela Igreja entre a eficiência
providencial de Deus presente em todas as partes e operando sempre em
e com causas naturais, com a eficiência do Espírito Santo na regeneração
e santificação da alma. 190
Os Dominicanos e Franciscanos chegaram a ser e continuaram
sendo durante muito tempo, as duas ordens monásticas mais poderosas
da Igreja de Roma. Assim como eram antagonistas em tantos outros
pontos, também estavam opostos em doutrina. Os Dominicanos, como
discípulos de Tomás de Aquino, foram chamados Tomistas, e os
Franciscanos, como seguidores de Duns Escoto, foram chamados
Escotistas. A oposição entre estes partidos incluía, como vimos, a
oposição de pontos de vista quanto ao pecado original. Os Tomistas
estavam inclinados a um Agostinianismo moderado, e os Escotistas a um
Semipelagianismo. Mas todas as teoria anteriormente mencionadas, com
diversas modificações, tinham seus zelosos defensores na Igreja Latina,
quando o Concílio do Trento foi convocado para determinar de maneira
autoritativa a verdadeira doutrina, e levantar uma barreira ao poder
crescente da Reforma.
A doutrina Tridentina a respeito do Pecado Original.
O Concílio de Trento confrontava-se com uma tarefa extremamente
difícil. Em primeiro lugar, era necessário condenar as doutrinas dos
Reformadores. Mas os Protestantes, tanto Luteranos como Reformados,
tinham proclamado sua adesão ao sistema Agostiniano em sua pureza e
190
Ritter, Geschichte der christlichen Philosophie, Vol. IV, págs. 354-472.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
246
plenitude; e a declaração desse sistema tinha recebido a sanção de
concílios e de papas, e não podia ser impugnado de maneira correta. Esta
dificuldade foi superada dando uma falsa descrição da doutrina
Protestante, e fazendo-a parecer inconsequente com a doutrina de
Agostinho. Este método foi preservado até nossos dias. Moehler em sua
obra «Symbolik» descreve a doutrina dos Protestantes a respeito do
pecado original, e especialmente a de Lutero, como uma forma de
Maniqueísmo. A outra dificuldade, mais séria, era a grande diversidade
de opinião existente na Igreja e no próprio Concílio. Alguns eram
Agostinianos; outros mantinham que o pecado original consistia
simplesmente na carência da retidão original, mas que esta carência é
pecado. Outros não admitiam pecado original, mas sim a imputação da
primeira transgressão de Adão. Outros, com os Dominicanos, insistiam
que a desordem de todas as capacidades conseguintes à perda da retidão
original, isto é, a concupiscência, é verdadeira e propriamente pecado.
Os Franciscanos negavam isto. Sob estas circunstâncias os legados
pontifícios, que assistiam ao Concílio exortaram aos reunidos a que não
decidissem nada com relação à natureza do pecado original, lembrando
que não tinham sido chamados para ensinar doutrinas senão para
condenar erros. 191 E o Concílio procurou seguir este conselho, e por isso
suas decisões foram expressas em termos muito gerais.
1. O Sínodo pronuncia um anátema sobre aqueles que não
confessam que Adão, quando transgrediu no paraíso o mandamento de
Deus, perdeu imediatamente a santidade e retidão em que tinha sido
constituído (constitutus fuerat, o positus erat), e que por aquela ofensa
incorreu na ira e indignação de Deus e também na morte e na sujeição
àquele que tem o poder da morte, isto é, o diabo, e que Adão inteiro por
sua queda em transgressão foi mudado para pior em corpo e alma.
Os efeitos do primeiro pecado de Adão sobre si mesmo foram
então: (1) A perda da retidão original. (2) A morte e o cativeiro a
191
Moehler’s Symbolik, 6th edition, p. 57.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
247
Satanás. (2) A deterioração de toda sua natureza tanto em alma como em
corpo.
2. O Sínodo anatematiza também aos que dizem que o pecado de
Adão só danificou a ele, e não a sua posteridade; ou que perdeu a
santidade e retidão que tinha recebido de Deus só por si e não também
por nós, ou que transmitiu à raça humana só a morte e as penas corporais
(paenas corporis) e não o pecado, que é a morte da alma.
Ensina-se aqui que os efeitos do pecado de Adão sobre sua
posteridade são: (1) A perda da retidão original. (2) A morte e as
misérias da vida; e (3) O pecado, ou morte espiritual (peccatum, quod est
mors animae). Esta é uma clara condenação do Pelagianismo, e uma
clara declaração do pecado original como algo irradiado a todos os
homens. Entretanto, da natureza deste pecado não se declara nada mais
que é a morte da alma, o que pode ser explicado de diferentes maneiras.
3. Também são condenados os que dizem que este pecado de Adão,
que é irradiado a todos (omnibus transfusum), e que está inerente em
cada um como seu próprio pecado (inest unicuique proprium), pode ser
eliminado pelos poderes da natureza humana, ou por qualquer outro
remédio senão o mérito de nosso único Mediador, o Senhor Jesus Cristo,
que nos reconciliou a Deus por seu sangue, e que nos é feito justiça,
santificação e redenção.
Declara-se aqui: (1) Que o pecado original é comunicado por
propagação e não, como dizem os Pelagianos, por imitação. (2) Que
pertence a cada homem e lhe é inerente. (3) Que não pode ser tirado por
outro meio senão pelo sangue de Cristo.
4. O Sínodo condena a todos os que ensinam que o recém-nascido
não deveria ser batizado; ou que, embora batizado para remissão de
pecados, não derivam nada do pecado original de Adão, que deve ser
expiado na bacia de bronze da regeneração a fim de obter a vida eterna,
de maneira que no caso deles o batismo não seria verdadeiro, mas sim
falso. Por isso, as crianças, que não podem ter cometido pecado pessoal,
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
248
são verdadeiramente batizadas para a remissão de pecados, para que o
que contraíram na geração seja purificado em regeneração.
Daí parece que segundo o Concílio de Trento há pecado nos recémnascidos, que é necessário que seja remetido e lavado mediante a
regeneração.
5. O quinto cânon declara que por meio da graça de nosso Senhor
Jesus Cristo conferida no batismo, a culpa do pecado original é remetida,
e tudo é eliminado que tenha a verdadeira e própria natureza de pecado.
Admite-se que a concupiscência (vel fomes) fica no batizado, contra a
qual devem lutar os crentes, mas se declara que a concupiscência,
embora às vezes é chamada pecado pelo Apóstolo (como se admite), não
é verdadeira nem propriamente pecado nos regenerados.
Tudo isto é o que ensina o Concílio sob o cabeçalho de pecado
original, exceto que é preciso dizer que não têm o propósito de que suas
decisões se apliquem à Virgem Maria. O Sínodo deixa sem decidir se ela
foi sujeito ao pecado original, como o mantinham os Dominicanos,
seguindo a Tomás de Aquino, ou se foi concebida de maneira imaculada,
como o afirmavam zelosamente os Franciscanos, seguindo a Duns
Escoto.
Na sexta sessão, ao tratar da justificação (isto é, da regeneração e
santificação), o Concílio decide vários pontos, que devem determinar a
postura que adotaram seus membros a respeito da natureza do pecado
original. Nos cânones adotados naquela sessão, declara-se, entre outras
coisas: (1) Que os homens não podem, sem a graça divina por meio de
Jesus Cristo, por suas próprias obras, isto é, obras levadas a cabo com
suas próprias forças, ser justificados diante de Deus. (2) Que a graça não
é dada simplesmente para fazer mais fáceis as boas obras. (3) Que os
homens não podem crer, esperar, amar ou arrepender-se para obter a
graça regeneradora sem a graça preveniente de Deus (sine praevenienti
Spiritus inspiratione atque ejus adjutorio). (4) Os homens podem
cooperar com esta graça preveniente, podem assentir a ela, ou podem
rejeitá-la. (5) Os homens, pela Queda, não perderam seu liberum
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
249
arbitrium, capacidade de fazer o bem ou o mal. (6) Nem todas as obras
feitas antes da regeneração são pecaminosas.
De tudo isto fica evidente que, enquanto o Concílio de Trento
rejeitou a doutrina Pelagiana da capacidade plenária do homem desde a
Queda, e também a doutrina Semipelagiana de que os homens podem
começar a obra de reforma e conversão, entretanto condena com não
menos clareza a doutrina Agostiniana da total incapacidade humana para
fazer algo espiritualmente bom, mediante o que possa preparar-se ou
dispor-se a si mesmo para a conversão, ou merecer a graça regeneradora
de Deus.
A verdadeira doutrina da Igreja de Roma.
Permaneceu a mesma incerteza a respeito de qual era a verdadeira
doutrina da Igreja de Roma quanto ao pecado original depois deste
Concílio como a que havia antes. Cada partido interpretava seus cânones
segundo suas próprias opiniões. O Sínodo declarou que todos os homens
nascem infectados com o pecado original, mas fica sem decidir se este
pecado consistiu simplesmente na culpa do primeiro pecado de Adão, ou
na carência de retidão original, ou na concupiscência. E por isso todos os
pontos de vista seguiram sendo sustentados pelos teólogos da Igreja de
Roma. Os antigos Protestantes em geral consideraram os cânones do
Concílio de Trento como redigidos a propósito para obscurecer o
assunto, e mantiveram que a verdadeira doutrina da Igreja [de Roma]
envolvia a negação de todo pecado original no sentido de pecado,
objetivo ou inerente. Neste ponto de vista concorrem muitos, se não a
maioria, dos teólogos modernos. Winer (em seu «Comparative
Darstellung»), Guericke (em seu «Symbolik»), Koellner (em seu
«Symbolik»), Baur (em seu “Answer to Moehler”), e o doutor Shedd, em
sua «History of Christian Doctrine», denunciam todos à Igreja de Roma
como sustentando que o pecado original é meramente negativo, a
carência de retidão original, e negando que haja algo subjetivo no estado
da natureza humana tal como os homens nascem neste mundo, que tenha
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
250
a natureza própria de pecado. As razões que sustentam esta visão da
questão são:
1. As doutrinas prevalecentes dos escolásticos e dos teólogos
Romanistas a respeito da natureza do pecado. De acordo com os
protestantes, “Quidquid a norma justitiæ in Deo dissidet, et cum ea
pugnat, habet rationem peccati.” 192 A isto os romanistas se opõem à
definição de Andradius: “Quod nihil habeat rationem peccati nisi fiat a
volente et sciente.” Se este é o caso, então é impossível que não deveria
haver nenhum pecado inerente ou inato. Como as crianças não são
“conhecer e querer,” no sentido dos agentes morais, não podem ter
pecado. Belarmino 193 diz: “Non satis est ad culpam, ut aliquid sit
voluntarium habituali voluntate, sed requiritur, ut processerit ab actu
etiam voluntario: Alioqui voluntarium illud, habituale voluntate, naturale
esset, et misericordia non reprehensione dignum.” Ele diz que se o
homem fosse criado in puris naturalibus, sem a graça, e com esta
oposição da carne à razão, não seria um pecador. Com a perda da retidão
original está inevitavelmente conectada esta rebelião da natureza inferior
do homem contra sua natureza superior. Com a perda da inclinação da
vontade para com Deus se implica necessariamente a aversão a Deus.
Esta tendência da vontade que acompanha o pecado original não é
pecado em si mesma, e entretanto é pecado em nós. Porque Belarmino
diz que há uma «perversio voluntatis et obliquitas unicuique inhraerens,
per quam peccatores proprie et formaliter dicimur, cum primum homines
esse incipimus». Isto, certamente, parece contraditório. A perversão da
vontade, ou concupiscência, conseguinte à perda da retidão original, não
é em si mesma pecaminosa. Não obstante, constitui-nos em própria e
formalmente pecadores logo que começamos a existir. Nada é da
natureza do pecado senão a ação voluntária, ou o que procede do mesmo,
e entretanto as crianças são pecadores desde o seu nascimento. Ele tenta
192
193
Chemnitz, Examen Concilii Tridentini, I. iv. edit. Frankfort, 1674, p. 116.
De Amissione Gratia et Statu Peccati, V. xviii., Disputationes, vol. iv. p. 333, d.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
251
conciliar estas contradições dizendo: “Peccatum in Adamo actuale et
personale in nobis originaliter dicitur. Solus enim ipse actuali voluntate
illud commisit, nobis vero communicatur per generationem eo modo,
quo communicari potest id, quod transiit, nimirum per imputationem.
Omnibus enim imputatur, qui ex Adamo nascuntur, quoniam omnes in
lumbis Adami existentes in eo et per eum peccavimus, cum ipse
peccavit.” Quer dizer, o ato voluntário de Adão, foi ao mesmo tempo o
ato da vontade de todos os seus descendentes. Assim o pecado original
está em nós, embora nada é pecado em nenhuma criatura que não
consista num ato de sua própria vontade, ou que não flua de tal ato. Mas
a isto Baur observa com razão: «O que é um ato de uma vontade não
existente, um ato a que se atribui a natureza de pecado, embora se
encontre totalmente fora da consciência do indivíduo? Pode-se atribuir
algum significado a tal exposição? Não destrói acaso a ideia de culpa e
pecado, que seja imputado só porque é irradiado em geração
comum?» 194 Se alguém, ou uma igreja, sustentam uma teoria a respeito
da natureza do pecado que seja incompatível com a doutrina do pecado
original, a existência de tal pecado é por isso mesmo negada. (2) Outra
razão enfatizada em favor da posição de que a Igreja de Roma nega o
pecado original se deduz do que esta Igreja ensina a respeito da retidão
original. Se a retidão original é um dom sobrenatural não pertencente à
integridade da natureza humana, sua perda o deixa no estado em que saiu
das mãos de seu Criador. E este estado não pode ser pecaminoso a não
ser que Deus seja o autor do pecado. Até Belarmino, que disputa pelo
pecado original, em certo sentido, diz entretanto que o homem está,
desde a Queda, no mesmo estado que Adão tal como foi criado. “Non
magis differt status hominis post lapsum Adæ a statu ejusdem in puris
naturalibus, quam differat spoliatus a nudo, neque deterior est humana
natura, si culpam originalem detrahas, neque magis ignorantia et
infirmitate laborat, quam esset et laboraret in puris naturalibus condita.
194
Katholicismus und Protestantismus, Tübingen, 1836; segunda edición, pág. 92, nota.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
252
Proinde corruptio naturæ non ex alicujus doni naturalis carentia, neque
ex alicujus malæ qualitatis accessu, sed ex sola doni supernaturalis ob
Adæ peccatum amissione profluxit.” 195 (3) O Concílio de Trento declara
de maneira expressa que a concupiscência nos batizados, isto é, os
regenerados, não é de natureza de pecado. Logo não pode ser nos não
batizados; porque sua natureza não é mudada pelo batismo.
Por outro lado, entretanto, pode-se arguir: (1) Que o Concílio de
Trento se declara expressamente contra a doutrina Pelagiana de que o
pecado de Adão danificasse só a ele, e declara que toda nossa natureza,
alma e corpo, foi por isso mesmo mudada para pior. (2) Afirmam que
derivamos de Adão não meramente uma natureza mortal, mas sim
pecado, que é morte da alma. (3) Que os pequenos recém-nascidos
necessitam o batismo para a remissão de pecado, e que o que é eliminado
no batismo de crianças veram et propriam peccati rationem habet. (4) O
Catecismo Romano ensina196 que «nascemos em pecado», que somos
oprimidos pela corrupção da natureza (naturae vitio premimur) e 197 que
nós nihil simus, nisi putida caro; que o vírus do pecado penetra até os
mesmos ossos, isto é, rationem, et voluntatem, quæ maxime soldæ sunt
animæ partes. Esta última passagem não se refere expressamente ao
pecado original, mas sim ao estado dos homens em geral como
pecadores. Entretanto, indica a postura assumida pela Igreja de Roma a
respeito da atual condição da natureza humana. (5) Belarmino, que é
frequentemente citado para demonstrar que os Romanistas fazem do
pecado original a mera perda da retidão original, diz: «Si privationem
justitiæ originalis ita velit esse effectum pecati, ut non sit etiam ipsa vere
proprieque peccatum, Concilio Tridentino manifeste repugnat, neque
distingui potest a sententia Catharini» (quem fizesse que o pecado
original consistisse somente na imputação do primeiro pecado de Adão).
195
De Gratia Primi Hominis, cap. v.; Disputationes, edit. Paris, 1608, vol. iv. p. 16, d, e.
P. iii. c. 10, qu. 4; Streitwolf, Libri Symbolici Ecclesiæ Catholicæ, vol. i. p. 579.
197
P. iv. c. 14, qu. 5; Ibid. pp. 675, 676.
196
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
253
Por tudo isto fica evidente que, embora a doutrina da Igreja de
Roma não seja nem lógica nem internamente coerente, é entretanto
verdade que esta Igreja ensina a doutrina do pecado original no sentido
de uma corrupção pecaminosa da natureza, ou de uma pecaminosidade
inata, hereditária. Deve-se observar também que todos os partidos na
Igreja de Roma; antes e depois do Concílio de Trento, e por muito que
diferissem em outros pontos, estavam unidos no ensino da imputação do
pecado de Adão; isto é, que por aquele pecado passou a sentença de
condenação a todos os homens.
§ 7. A doutrina Protestante a respeito do pecado
Na época da Reforma, as Igrejas Protestantes não tentaram
determinar a natureza do pecado de forma filosófica. Não o
consideraram nem como uma limitação necessária, nem como uma
negação de ser, nem como a condição indispensável da virtude, nem
como tendo sua sede na natureza sensual do homem, nem como
consistindo só em egoísmo, nem como sendo, à semelhança da dor, um
mero estado da consciência, e não um mal diante de Deus. Baseando sua
doutrina sobre sua consciência moral e religiosa e sobre a Palavra de
Deus, declararam que o pecado era a transgressão da, ou carência de
conformidade com, a lei divina. Nesta definição concordam todas as
classes de teólogos, Luteranos e Reformados. Segundo Melâncton,
“Peccatum recte definitur ἀνομία, seu discrepantia a lege Dei, h. e.,
defectus naturæ et actionum pugnans cum lege Dei, easdemque ex ordine
justitiæ divinæ ad poenam obligans.” Gerhard diz: 198 “Peccatum” seu
“ἀνομία” est “aberratio a lege, sive non congruentia cum lege, sive ea in
ipsa natura hærat, sive in dictis, factis ac concupiscentiæ motibus,
inveniatur.” Baier diz: 199 “Carentia conformitatis cum lege.” Vitringa
198
199
Loci Theologici, XI. i. 3; edit Tübingen, 1766, vol. v. p. 2, b.
Compendium Theologiæ, edit. Frankfort, 1739, p. 346.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
254
200
“Forma peccati est disconvenientia actus habitus, aut status
diz:
hominis cum divina lege.”
Nestas definições se inclui: (1) Que o pecado é um mal específico,
diferindo de todas as outras formas de mal. (2) Que o pecado está
relacionado com a lei. As duas coisas são correlativas, pelo que onde não
há lei não pode haver pecado. (3) Que a lei com a qual assim se relaciona
o pecado não é meramente a lei da razão, nem a da consciência, ou a da
conveniência, mas a lei de Deus. (4) Que o pecado consiste
essencialmente na carência de conformidade, da parte de uma criatura
racional, à natureza ou lei de Deus. (5) Que inclui culpa e contaminação
moral.
O pecado é um mal específico
O pecado é um mal específico. Isto o sabemos por nossa própria
consciência. Ninguém senão um ser sensível pode conhecer o que é um
sentimento. Não podemos nem determinar a priori qual é a natureza de
uma sensação, nem comunicar a ideia a alguém que careça dos órgãos
sensoriais. A não ser que tivéssemos sentido dor ou prazer, não
poderíamos compreender o que significam estas palavras. Se tivéssemos
nascido cegos, não teríamos nem ideia do que é a luz. Se tivéssemos
nascido surdos, não teríamos ideia do que é poder ouvir. Ninguém senão
uma criatura racional pode saber o que se significa por insensatez. Só
criaturas com uma natureza estética podem ter a percepção da beleza ou
da deformidade. De uma maneira semelhante, só seres morais podem
saber o que é o pecado ou a santidade. O conhecimento, em todos estes
casos, é dado imediatamente na consciência. Seria em vão tentar decidir
a priori o que são a dor, o prazer, a visão e a audição; e muito menos
demonstrar que não há tais sensações, ou que não diferem entre si e de
todas as demais outras formas de nossa experiência. Cada homem, em
virtude de ser uma criatura moral, e porquanto é pecador, tem por isso
200
Doctrina Christianæ Religionis, x. 7; edit. Lyons, 1762, vol. ii. pp. 285, 286.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
255
em sua própria consciência o conhecimento do pecado. Sabe que quando
não é o que deveria ser, quando faz o que deveria não fazer, ou omite o
que se deveria fazer, é culpado de pecado. Sabe que o pecado não é
simplesmente a limitação de sua natureza; nem meramente um estado
subjetivo de sua própria mente, sem ter caráter à vista de Deus; que não é
só uma insensatez, ou que esteja por debaixo de sua dignidade; ou
simplesmente inconveniente porque é prejudicial a seus próprios
interesses, ou prejudicial ao bem-estar de outros. Sabe que tem um
caráter específico próprio, e que inclui ao mesmo tempo culpa e
contaminação.
O pecado tem relação com a lei.
Uma segunda verdade incluída em nossa consciência de pecado é
que tem relação com a lei. Como seres morais e racionais estamos
necessariamente sujeitos à lei do direito. Isto está incluído na consciência
da obrigação. A palavra dever não teria significado, se não fosse assim.
Quando dizemos que algo é nosso dever significamos que estamos
obrigados; que estamos sob uma autoridade de alguma classe. A palavra
lei, com relação a questões morais e religiosas, emprega-se em dois
sentidos. Primeiro, às vezes significa um poder controlador, como
quando o Apóstolo diz que tinha uma lei em seus membros lutando
contra a lei da mente. Segundo, significa aquilo que vincula, um
mandamento de alguém em autoridade. Este é o senso comum do termo
no Novo Testamento. Como a regra que obriga a consciência dos
homens, e que prescreve o que devem e não devem fazer, foi
variadamente revelada na constituição de nossa natureza, no Decálogo,
nas instituições mosaicas e na totalidade das Escrituras, o termo
emprega-se às vezes num sentido que inclui todas estas formas de
revelação; às vezes em referência exclusiva a uma delas, e às vezes
exclusivamente com referência a outra. Em todos os casos se retém a
ideia geral. A lei é aquilo que liga a consciência.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
256
O pecado está relacionado com a Lei de Deus.
A grande pergunta é: Qual é a lei que prescreve ao homem o que
deve ser e fazer?
(1) Alguns dizem que é nossa própria razão, ou os mais altos
poderes da alma. Estes poderes têm a prerrogativa de governar. O
homem é autônomo. É responsável perante si mesmo. Ele está obrigado
a submeter sua vida, e sobretudo seus poderes inferiores, à sua razão e
consciência. Com relação à sua própria dignidade é a obrigação completa
sob a qual se encontra, e que cumpre todos os seus deveres quando se
vive como é digno de si mesmo. Esta teoria enfrenta a evidente objeção:
(a) De que a lei é algo fora de nós e superior a nós, totalmente
independente de nossa vontade ou razão. Não podemos nem fazê-la nem
alterá-la. Se nossa razão e consciência estão pervertidas, e determinam
como correto o que por sua natureza é injusto, nem por isso alteram a
realidade. A lei permanece imutável em suas demandas e em sua
autoridade. (b) Com base na teoria não poderia haver sentido de culpa.
Quando um homem age contra os ditados de sua razão, ou de maneira
depreciativa à dignidade de sua natureza, ele pode sentir-se
envergonhado ou degradado, mas não culpado. Não pode haver uma
convicção de que é responsável perante a justiça, nem nada dessa
horrenda expectação de juízo, que diz o Apóstolo que é inseparável da
comissão de pecado.
(2) Outros dizem que a lei deve ser achada na ordem moral do
universo, ou na idoneidade eterna das coisas. Mas tudo isto são meras
abstrações. Não podem impor obrigação nem infligir penalidade pela
transgressão. Esta teoria outra vez omite de vista, e desconhece por
completo, alguns dos mais simples atos da consciência universal dos
homens.
(3) Outros dizem que a única lei a que estão sujeitas as criaturas
racionais são uma consideração ilustrada pela sorte do universo.
(4) Outros ainda tomam uma postura mais baixa, e dizem que a
única coisa que tem autoridade sobre o homem é uma ilustrada
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
257
consideração por nossa própria felicidade. Mas é evidente que as teorias
negam o caráter específico da obrigação moral. Não existe nelas o
pecado como distinto do imprudente ou inconveniente. Não pode haver
sentido de culpa nem responsabilidade perante a justiça, exceto por
violações das normas da conveniência.
(5) Fica claro pela própria constituição de nossa natureza que
estamos sujeitos à autoridade de um ser racional e moral, um Espírito
que conhecemos infinito, eterno e imutável em Seu ser e perfeições.
Todos os homens, em todas as idades e partes do mundo, sob todas as
formas da religião, e de todos os graus de cultura, têm sentido e
reconhecido que estavam sujeitos a um ser persona1 superior a eles.
Nenhuma forma da filosofia especulativa, por plausível ou por muito
difundida que estivesse ou sustentada confiantemente nas escolas ou em
particular, valeram jamais para invalidar este juízo instintivo e intuitivo
da mente. Homens ignorantes do verdadeiro Deus fizeram-se para si
mesmos deuses imaginários, cuja ira suplicaram e aos quais tentaram
propiciar para alcançar os seu favor. Mas quando lhes foi apresentado à
mente a ideia escriturística de Deus como um Ser pessoal imensamente
perfeito, nunca se pode descartar. Recomenda-se à razão e a consciência.
Resolve todos os enigmas de nossa natureza. Dá satisfação a todos os
nossos desejos e aspirações; e sentimo-nos obrigados a conformar-nos a
este Ser, a Ele e à Sua vontade, e sabemos que somos diante dEle
responsáveis por nosso caráter e conduta. Esta vinculação não a podemos
lançar de nós mesmos. A lei da gravitação não mais inexoravelmente une
a terra à sua órbita que nossa natureza moral une a nossa lealdade e a
responsabilidade de Deus. Seria pouco razoável negar um como o outro,
e tão inútil para opor-se a uma diante da outra. Esta é claramente a
doutrina do Apóstolo na passagem que acabamos de nos referir
[Romanos 1]. Ele se estava referindo aos mais depravados e viciosos do
mundo pagão, homens aos quais Deus tinha entregue a uma mente
reprovada; e entretanto afirma que não só eles tinham conhecido a Deus,
mas também conheciam Seu justo juízo; que os que cometem pecado são
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
258
dignos de morte; isto é, que estavam de direito submetidos à autoridade,
e inevitavelmente expostos à ira e indignação, de um governador moral.
Este é um fato, assim, que é dado na consciência universal dos homens.
O pecado está relacionado com a lei, e esta lei não a promulgamos nós,
não é uma mera ideia ou abstração, não é uma mera verdade ou razão, ou
a idoneidade das coisas, mas sim a natureza e vontade de Deus. A Lei,
tal como se revela à consciência, implica um legislador, um ser de cuja
vontade é a expressão, e que tem o poder e o propósito manter em vigor
todas as suas demandas. E não só isto, mas também um que, pela própria
perfeição de Sua natureza, tem que mantê-las em vigor. É em vão
argumentar contra estas convicções. É em vão dizer, não há Deus, não
há um Ser de quem dependamos, e perante quem somos responsáveis por
nosso caráter e conduta.
Alcance das demandas da Lei.
A pergunta seguinte é: Que demanda esta lei? Esta é a questão a
respeito da qual se deu maior diversidade de opiniões e sobre as diversas
respostas recebidas se fundamentaram sistemas de teologia assim como
de moral. A resposta dada pela consciência insofisticada e ilustrada dos
homens, e pela palavra de Deus, é que a lei exige uma completa
perfeição, ou a total conformidade da natureza moral e conduta de uma
criatura racional à natureza e à vontade de Deus. Ordena-nos que
amemos a Deus com todo o coração, com toda a alma, com toda nossa
força, e com toda nossa mente, e a nosso próximo como a nós mesmos.
Isto Implica uma total congenialidade com Deus; a consagração sem
reservas de todos os nossos poderes a Seu serviço, e a absoluta
submissão à Sua vontade. Não se pode demandar nada mais que isto a
nenhuma criatura. Nenhum anjo ou santo glorificado pode ser ou fazer
mais que isto, e isto é o que a lei demanda de toda criatura racional, em
todo tempo e em cada estado de seu ser. Num sentido esta obrigação está
limitada pela capacidade (não no sentido teológico moderno do termo)
da criatura. A capacidade de uma criança é menor que a de um cristão
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
259
adulto, ou que a de um anjo. Pode conhecer menos. Pode conter menos.
Está num degrau inferior de ser. Mas o que a lei demanda é a perfeição
moral absoluta da criança do adulto ou do anjo. E esta perfeição inclui a
total ausência de todo pecado e a total conformidade da natureza à
imagem e vontade de Deus. E assim como esta é a doutrina da Bíblia,
assim o é também o ensino da consciência. Cada homem, ou pelo menos
cada cristão, sente que peca ou que é pecaminoso sempre e quando não
alcançar a uma total conformidade com a imagem de Deus. Sente que a
frouxidão, a frieza dos afeiçoados, o defeito no zelo, e a carência de
humildade, de gratidão, de docilidade, de longanimidade e de
benevolência são nele da natureza do pecado. A antiga máxima, omne
minus bonum habet rationem mali, autentica-se na consciência de cada
crente não sofisticado. Esta foi a doutrina de Agostinho, que em sua
carta a Jerônimo, 201 diz: “Plenissima (caritas) quæ jam non possit augeri,
quamdiu hic homo vivit, est in nemine; quamdiu autem augeri potest,
profecto illud, quod minus est quam debet, ex vitio est.” Os teólogos
luteranos e reformados afirmam o mesmo princípio.202 Se for correto
este princípio, se a lei exigir a plena conformidade com a natureza e
vontade de Deus, disso segue:
1. Que não pode haver perfeição nesta vida. Cada uma das formas
de perfeccionismo que prevaleceu jamais na Igreja está baseada quer na
hipótese de que a lei não exige uma total libertação do mal moral, ou na
negação de que não há nada que tenha natureza de pecado exceto atos da
vontade. Mas se a lei é tão extensa em suas demandas para anunciar
como pecado todo defeito em qualquer dever, e toda deficiência na
pureza, ardor ou constância dos santos afetos, então chega a seu fim a
201
Epistola, CLXVII. iv. 15; Works, edit. Benedictines, vol. ii. p. 897, a.
See Chemnitz, Examen Concilii Tridentini, I. De Justificatione, edit. Frankfort, 1674, p. 165, f. De
Bonis Operibus, qu. 3, p.
205, a. Gerhard, Loci Theologici, XI. x. 42-45, v. p. 21-24. Quenstedt, Theologia, P. II. cap. ii. § 2, q.
3, edit. Leipzig, 1715, p. 967.
202
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
260
presunção de que qualquer mero homem desde a Queda tenha jamais
alcançado a perfeição.
2. Segue também deste princípio que nunca se pode atribuir aos
homens neste mundo nenhum mérito por boas obras. Por mérito,
segundo o sentido escriturístico da palavra, significa-se o merecimento
de uma recompensa como assunto de justiça, com base em uma total
satisfação das demandas da lei. Mas se estas demandas nunca foram
perfeitamente cumpridas por nenhum homem caído, nenhum de tais
homens pode ser justificado por suas obras, nem ter, como o expressa o
Apóstolo, nenhum καύχημα - kauchëma, nenhum direito baseado no
mérito aos olhos de Deus. Sempre tem que depender da misericórdia e
esperar a vida eterna como um livre dom de Deus.
3. Ainda mais evidentemente se segue do princípio em questão que
não pode haver tal coisa como obras de supererrogação. Se ninguém
nesta vida pode guardar perfeitamente os mandamentos de Deus, fica
muito claro que ninguém pode fazer mais que o que exige a lei. Os
Romanistas contemplam a lei como uma série de promulgações
específicas. Além daqueles mandamentos que comprometem a todos os
homens, há certas coisas que chamam preceitos, que não são de
obrigação universal, como o celibato, a pobreza e a obediência
monástica, e coisas semelhantes. Estas vão além da lei. Ao acrescentar
ao cumprimento das demandas de Deus a observância dos preceitos,
alguém pode chegar a cumprir mais do que se requer dele, e adquirir
assim uma quantidade de mérito maior que aquele que necessita para si
mesmo, que em virtude da comunhão dos santos pertence à Igreja, e que
pode ser aplicada, por meio do poder das chaves, para benefícios de
outros. Naturalmente, toda a base para esta teoria fica eliminada se a lei
exige uma perfeição absoluta, a qual, inclusive segundo a doutrina deles,
ninguém alcança nesta vida. Sempre estão carregados com pecados
veniais, que Deus em Sua misericórdia não imputa como pecados
verdadeiros, mas que entretanto são imperfeições.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
261
O pecado não se limita a atos da vontade.
4. Outra conclusão que se tira da doutrina escriturística quanto ao
alcance da lei divina, como o mantêm todos os Agostinianos, é que o
pecado não se limita a atos da vontade. Há três sentidos em que se
emprega a palavra «voluntário» com relação a esta questão. O primeiro e
estrito sentido não considera uma ação como da vontade se não é um ato
de deliberada autodeterminação, algo que é levado a cabo sciente et
volente [sabendo e querendo]. Segundo, todos os exercícios espontâneos
e impulsivos dos sentimentos e dos afetos são em certo sentido
voluntários. E terceiro, tudo o que seja inerente na vontade como um
hábito ou disposição chama-se voluntário como pertencente à vontade. A
doutrina da Igreja de Roma a respeito destes pontos, como se mostra na
seção precedente, é assunto de disputa entre os próprios Romanistas. A
maioria dos escolásticos e dos teólogos Romanistas negam que nada seja
da natureza do pecado senão as ações voluntárias no primeiro sentido da
palavra «voluntário» que se mencionou anteriormente. Já se viu como
tentam conciliar a doutrina da corrupção hereditária e inerente, ou
pecado original, com este princípio. Mas mantendo este princípio, negam
rotundamente que os meros impulsos, os motus primo primi, como são
chamados, das más disposições sejam de natureza pecaminosa. Veem-se
forçados a adotar esta doutrina por sua postura a respeito do batismo.
Nesta ordenança, segundo a teoria que mantêm, eliminou-se tudo o que
seja de natureza de pecado. Mas a concupiscência, com suas inclinações,
permanece. Estas, entretanto, se não são deliberadamente seguidas e
obedecidas, não são pecaminosas. Que o sejam ou não, naturalmente
depende do alcance da lei. Nada é pecaminoso se não o contrário à lei
divina. Se esta lei demanda perfeita conformidade com a imagem de
Deus, então estes impulsos ao mal são claramente pecaminosos. Mas se a
lei só toca atos deliberados, não o são. A doutrina Protestante que
pronuncia que estes atos impulsivos são da natureza de pecado fica
confirmada pela consciência do crente. Reconhece como um mal em sua
própria natureza os primeiros impulsos de malícia, inveja, orgulho ou
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
262
cobiça. Sabe que surgem de uma natureza má, ou imperfeitamente
santificada. Constituem parte da carga de corrupção que espera
abandonar na tumba; e sabe que estará livre disso no céu; jamais
perturbaram a alma perfeitamente santa de seu bendito Senhor, a cuja
imagem sempre está agora obrigado a conformar-se.
5. Segue do princípio de que a lei condena toda carência de
conformidade com a natureza de Deus, que condena as más disposições
ou hábitos, assim como todos os pecados voluntários, sejam deliberados
ou impulsivos. Segundo a Bíblia e os ditados da consciência, há
pecaminosidade além de pecados; existe o caráter em distinção dos atos
fugazes mediante os quais este caráter se revela; isto é, um estado
pecaminoso, permanente, inerente, formas imanentes de mal, que são
verdadeira e propriamente da natureza de pecado. Assim, nem todo
pecado é uma agência, atividade ou ato: pode ser e é também uma
condição ou estado da mente. Esta distinção entre pecado habitual e
cometido foi reconhecido e admitido na Igreja desde o princípio. Nosso
Senhor nos ensina esta distinção quando fala de um mau coração em
distinção a atividades ímpias, coisas tão distintas como uma árvore e
seus frutos. O Apóstolo fala do pecado como uma lei, ou princípio
controlador que regula ou determina suas ações inclusive apesar de sua
melhor natureza. Diz que o pecado habita nele. Queixa-se dele como
uma carga muito pesada para levar, da qual geme rogando a libertação.
E sua experiência nisto é a experiência (não dizemos a teoria) de todo o
povo de Deus. Sabem que há mais neles da natureza de pecado que
meros atos e exercícios; que seu coração não é reto diante de Deus; que a
própria fonte da qual brotam as águas é amarga; que a árvore é
conhecida por seus frutos.
Consiste na ausência de conformidade com a Lei de Deus.
Os Protestantes ensinam não só que o pecado é um mal específico,
que tem relação com a lei, que a lei é a natureza e vontade de Deus, e
que reconhece e condena todas as formas de mal moral ou carência de
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
263
excelência moral, mas também que a natureza formal do pecado é a
ausência de conformidade com a lei divina ou norma de excelência. Esta
ausência de conformidade não é uma mera negação como a que se possa
pregar de uma pedra ou de um bruto, dos quais se pode dizer que não
estão conformados à imagem de Deus. A ausência de conformidade com
a lei divina que constitui o pecado é a ausência de congenialidade de
uma natureza moral com outra; da natureza dependente e criada com a
natureza imensamente santa que necessariamente não é só a soma mas
sim a norma de toda excelência. Nisto consiste o pecado, em que não
somos conformes a Deus. Assim como o oposto da razão é a sem razão,
o oposto à sabedoria é a insensatez, e o oposto ao bem é o mal, da
mesma maneira o oposto à santidade divina é o pecado. Não importa de
que exercícios ou estados na natureza de um ser moral se possa pregar
esta oposição; de atos deliberados, de meros atos impulsivos, ou de
disposições ou hábitos; se opõe-se à natureza divina é pecado, odioso em
si mesmo e digno de condenação. Assim, em todo pecado há um
elemento positivo. Isto é, não se trata meramente da privação de retidão,
mas sim é uma injustiça positiva. Porque a ausência de um numa
natureza moral é o segundo. A falta de congenialidade com Deus é
alienação de Deus, e, como dizem as Escrituras, inimizade contra Ele.
Assim, os símbolos e os teólogos Protestantes, ao definir o pecado não
meramente como egoísmo ou amor da criatura ou amor ao mundo, que
só são modos de sua manifestação, mas sim como a ausência de
conformidade de um ato, hábito ou estado de um homem com a lei
divina, que é a revelação da natureza divina, têm como apoio tanto a
razão como a consciência. Esta doutrina da natureza do pecado fica
plenamente sustentada pela autoridade da Escritura. O Apóstolo João diz
que toda carência de conformidade com a lei é pecado. As duas ideias
hamartia e anomia são coextensivas. Tudo o que seja o um, é o outro.
Parece que alguns dos tempos do Apóstolo estavam dispostos a limitar as
demandas da fé divina, e a considerar algumas coisas como não
proibidas de maneira específica como legítimas. Em oposição a isto, o
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
264
Apóstolo lhes diz que todo o mal é ilegítimo, porque a própria natureza
do mal é falta de conformidade com a lei: πᾶς ὁ ποιῶν τὴν ἁμαρτίαν καὶ
τὴν ἀνομίαν ποιεῖ - pas ho pion ten hamartian kai ten anomian poiei,
aquele que comete pecado comete anomia, porque ἡ ἁμαρτία ἐστὶν ἡ
ἀνομία - he hamartía estin he anomia, porque toda falta de conformidade
com a lei é pecado (1Jo 3:4). Com isto concordam também todas as
exposições da Escritura. As palavras ali empregadas para pecado em
todas as suas formas expressam a ideia de não conformidade com uma
norma. E além disto a Bíblia ensina em todo lugar que Deus é a fonte e
norma de todo bem. Seu favor é a vida da alma. A congenialidade com
Ele, a conformidade com Sua vontade e natureza, é a ideia e perfeição de
toda excelência; e o estado oposto, a carência desta congenialidade e
conformidade, é a soma e essência de todo mal.
O pecado inclui culpa e contaminação
O pecado inclui culpa e contaminação; o primeiro expressa sua
relação com a justiça, o segundo sua relação com a santidade de Deus.
Estes dois elementos de pecado serviam na consciência de cada pecador.
Sabe que está condenado pela justiça de Deus, e que é ofensivo a Seus
santos olhos. Inclusive para si mesmo ele é odioso, degradado e se
condena a si mesmo. Entretanto, há duas coisas incluídas na culpa. A
primeira a expressamos mediante as palavras criminalidade, demérito e
inutilidade. A outra é a obrigação de sofrer o castigo devido a nossas
ofensas. Estas são evidentemente coisas distintas, embora expressas pela
mesma palavra. Diz-se da culpa de nossos pecados que foi posta sobre
Cristo, isto é, a obrigação de dar satisfação às demandas da justiça por
causa dos mesmos. Mas Ele não assumiu a criminalidade, o demérito ou
a inutilidade de nossas transgressões. Quando o crente é justificado, élhe tirada sua culpa, mas não seu demérito. Permanece sendo de fato, e a
seus próprios olhos, a mesma criatura indigna, merecedora do inferno,
considerada em si mesma, que o que era antes. Um homem condenado
perante um tribunal humano por qualquer ofensa contra a comunidade,
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
265
quando sofreu a pena que a lei prescreve não é por isso menos indigno, e
seu demérito existe sendo o mesmo que existia desde o princípio. Mas
foi tirada sua responsabilidade perante a justiça ou obrigação à pena da
lei, em outras palavras, sua culpa neste sentido da palavra foi removida.
Seria injusto castigá-lo outra vez por aquela ofensa.
Esta distinção os teólogos costumam expressar com os termos
reatus culpæ y reatus penæ. Culpa é (strafwürdiger Zustand) ser digno
de repreensão; e reatus penæ é culpa na forma de um castigo inerente:
enquanto que reatus penæ é a dívida que devemos à justiça. O fato de
que a culpa, no sentido inclusivo do termo, e a contaminação entram na
natureza do pecado, ou são inseparáveis da mesma, não só se revela à
nossa própria consciência, mas também as Escrituras o dão em todo
lugar como suposto. A Bíblia declara constantemente que o pecado e
todo pecado, tudo o que leve sua natureza, não só é odioso diante de um
Deus santo, mas também é objeto de Sua ira e indignação, a justa razão
para infligir castigo.
Isto está admitido, e não se pode negar. A única pergunta é. O que é
necessário para suscitar o sentimento de culpa tal como existe na
consciência? Ou, o que é preciso para que alguma coisa seja uma base
justa para o castigo diante de Deus? É suficiente com que a própria coisa
seja pecaminosa? Ou é necessário que se deva a nossa própria ação
voluntária? Este último o dão por sentado não só os Pelagianos e todos
aqueles que definem o pecado como a transgressão voluntária da lei
conhecida, mas também muitos que mantêm a distinção do pecado
habitual em distinção a pecado cometido, e que inclusive reconhecem
que os homens fazem em pecado. Insistem que inclusive o mal inato, o
pecado inerente, deve ser atribuível à nossa própria ação voluntária, ou
não pode ser culpa em nós. Mas isto é:
1. Contrário à nossa própria consciência. A existência do pecado no
coração, a presença de atitudes ímpias, sem considerar sua origem, vai
inevitavelmente acompanhada por um sentimento de contaminação e
culpa. Sendo estas disposições ímpias em sua própria natureza, devem
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
266
incluir tudo o que é essencial a esta natureza. E, como se reconheceu, a
culpa é essencial à natureza do pecado. Nada há pecaminoso que não
implique culpa. A consciência ou convicção de pecado tem por isso que
incluir a convicção de culpa. E consequentemente, se ficamos
convencidos pelas declarações da Escritura e pelo estado de nossa
natureza que nascemos em pecado, temos que ficar convencidos de que a
culpa vai juntamente com a inata corrupção da natureza. Além disto, o
pecado habitual ou residente não é voluntário no sentido de ser por
desígnio ou intencionado, ou no sentido de que esteja sob o poder da
vontade, e entretanto todos os cristãos admitem que este pecado
residente constitui uma terrível carga de culpa; uma carga mais pesada
para o coração e a consciência que todas nossas transgressões cometidas.
2. O princípio em questão não está menos oposto aos juízos comuns
dos homens. Todos os homens julgam instintivamente a um homem pelo
que é. Se é bom, assim o consideram. Se é mau, pronunciam-no mau.
Este juízo é tão inevitável ou necessário como o de que alguém seja alto
ou baixo, erudito ou literato. A questão quanto à origem do caráter do
homem não entra na base deste juízo. Se nasce bom, se ele se tornou
bom a si mesmo, ou se recebeu esta qualidade de bom como dom de
Deus não afeta de maneira material ao caso. É bom, e como deve ser
considerado e tratado. Da mesma maneira, tudo o que é necessário a fim
de justificar e precisar o juízo de que um homem seja mau é que assim o
seja. Este é o princípio pelo qual nos julgamos a nós mesmos, e sobre o
qual os homens se julgam universalmente uns aos outros. Por isso, este
princípio tem que ser bom.
3. A doutrina de que o pecado, a fim de incluir culpa, tem que poder
ser referido à nossa própria ação voluntária, é contrária à analogia. Não é
assim com a santidade. Adão foi criado santo. Sua santidade constituía
tão verdadeiramente seu caráter como se a tivesse adquirido por si
mesmo, e se tivesse sido retida teria continuado sendo, e enquanto que
fosse retida era objeto de complacência e a base de recompensa diante de
Deus. A graça habitual, como é chamada, ou o novo princípio da vida
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
267
espiritual, comunicada à alma na regeneração, não é autoproduzida. É
devido ao poder sobrenatural do Espírito Santo, e entretanto constitui o
caráter do crente. A única razão pela qual não é meritória é que é tão
imperfeita, e que não pode cancelar a dívida que já devemos à justiça de
Deus. Entretanto, a alma, se é perfeitamente santificada pelo Espírito
Santo, é tão pura, tão objeto de aprovação e de deleite para Deus, como
um anjo não caído.
4. A doutrina em questão contradiz a fé da Igreja universal. Deve-se
fazer uma distinção entre a fé da Igreja e as especulações (ou inclusive as
doutrinas) dos teólogos. Com frequência ambas as coisas divergem. A
primeira é determinada pelas Escrituras e pelos ensinos internos do
Espírito; as segundas estão grandemente modificadas pela filosofia
vigente do século em que viveram estes teólogos, e pelas idiossincrasias
de suas próprias mentes. Durante a Idade Média, por exemplo, as
especulações dos escolásticos e a fé da Igreja tinham bem pouco em
comum. A fé da Igreja encontra-se em seus credos, orações e geralmente
em suas formas de devoção. Em todas estas, ao longo de todos os séculos
a Igreja mostrou que considera a todos os homens como carregados com
o pecado original, como pertencentes a uma raça contaminada e culpada,
contaminada e culpada desde o primeiro momento de sua existência. Não
se pode dizer que a Igreja cresse que o pecado original fosse devido à
ação de cada homem individual, nem que fosse o ato da humanidade
genérica. Estes são pensamentos alheios às mentes do comum dos
crentes. Por isso, deve ter existido sempre e em todas as partes na Igreja
a convicção de que pode haver culpa que não está ligada à ação
voluntária dos culpados. As crianças foram sempre batizadas para
remissão de pecados, e os homens sempre foram considerados pela igreja
como nascidos em pecado.
5. A explicação dada do inegável fato da contaminação e culpa
inatas, da parte daqueles que admitem o fato, mas que mantêm que este
pecado original é atribuível à nossa própria ação, é totalmente
insatisfatória. Esta explicação é que cometemos uma ação milhares de
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
268
anos antes que existíssemos, isto é, que a substância que constitui nossas
almas individuais cometeu, na pessoa de Adão, o pecado de desobedecer
a Deus no paraíso. Esta explicação, naturalmente, pressupõe o fato a
explicar. O fato permanece, aconteça o que acontecer à explicação. Os
homens nascem em estado de pecado e contaminação. Tudo o que se
segue de rejeitar as explicações é que pode existir pecado que não seja
atribuível à ação voluntária daqueles em quem está inerente. Esta
consequência é muito mais fácil de admitir, na opinião da imensa
maioria das pessoas, que a doutrina de que somos pessoalmente culpados
de comer do fruto proibido como nossa própria ação.
6. A Bíblia, ao ensinar em todo lugar que os homens nascem em
pecado, que vêm ao mundo como filhos da ira, ensina com isso que pode
haver e que há pecado (contaminação e culpa) que se herda e deriva, que
é inerente e inato, e por isso não atribuível à nossa própria ação. Como
as Escrituras não ensinam em nenhum lugar que realmente pecamos
antes de existir, afirmam o fato que entra na fé comum da Igreja, que a
culpa une-se a todo pecado, seja como for que se origine aquele pecado.
§ 8. Os efeitos do pecado de Adão sobre sua posteridade.
É parte da fé de todo o âmbito cristão que o pecado de Adão
danificou não só a ele mesmo, mas também a todos os descendentes dele
por geração comum. A natureza e o alcance do mal assim irradiado à sua
raça, e a base ou razão de que os descendentes de Adão ficassem
envoltos nas más consequências de sua transgressão, foram assunto de
diversidade e de discussão. Quanto a estes dois pontos a comum doutrina
Agostiniana é brevemente declarada nos Símbolos de nossa Igreja.
Segundo um de nossos pontos normativos: «a pecaminosidade daquele
estado em que o homem caiu consiste na culpa do primeiro pecado de
Adão, a ausência de retidão original, e a corrupção de toda sua natureza,
o que recebe usualmente o nome de pecado original, junto com todas as
transgressões materializadas que surgem dele». Esta corrupção de
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
269
natureza é declarada na Confissão de Fé como «tanto em si mesma como
em todas as suas atividades, verdadeira e propriamente pecado». E como
consequência desta corrupção original, os homens estão «totalmente
indispostos, incapacitados e feitos opostos a todo bem, e totalmente
inclinados a todo mal». Quanto à base destes males, ensina-nos que
«tendo sido concertado a aliança com Adão não só por ele mesmo mas
também por toda a sua posteridade, toda a humanidade ao descender dele
por geração comum pecou nele e caiu com ele em sua primeira
transgressão». Ou, como se expressa na Confissão: «Nossos primeiros
pais, sendo a raiz de toda a humanidade, a culpa de seu pecado foi
imputada, e a mesma morte em pecado e natureza corrompida foram
comunicadas a toda a sua posteridade, descendendo deles por geração
comum.»
Nesta perspectiva da relação da humanidade com Adão, e das
consequências de sua apostasia, os três temas principais que se incluem
são a imputação do primeiro pecado de Adão; a corrupção da natureza
derivada dele, e a incapacidade do homem caído para qualquer bem
espiritual.
§ 9. Imputação imediata.
Admitindo-se que a raça do homem participa das más
consequências da queda de nossos primeiros pais, este fato é explicado
mediante diferentes teorias.
1. A adotada pelos Protestantes em geral, tanto por Luteranos como
por Reformados, e também pelo grande corpo da Igreja Latina, é que em
virtude da união, federal e natural, entre Adão e sua posteridade, seu
pecado, embora não o ato deles, é-lhes imputado de tal maneira que é a
base judicial de que a pena de que foi ameaçado caísse também sobre
eles. Esta é a doutrina da imputação imediata.
2. Outros, enquanto admitem que toda a posteridade comum de
Adão deriva dele uma natureza corrompida, negam entretanto, primeiro,
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
270
que esta corrupção ou morte espiritual seja uma inflição penal por seu
pecado; e segundo, que haja imputação alguma aos descendentes de
Adão de seu primeiro pecado. Tudo o que realmente lhes é imputado é
sua própria depravação inerente e hereditária. Esta é a doutrina da
imputação mediata.
3. Outros descartam inteiramente a ideia de imputação, pelo que
respeita ao pecado de Adão, e atribuem a corrupção hereditária dos
homens à lei geral da propagação. Pela totalidade dos reinos vegetal e
animal, semelhante gera semelhante. O homem não é uma exceção a esta
lei. Ao ter perdido Adão sua retidão original e corrompido sua natureza
por sua apostasia, transmite esta natureza despojada e deteriorada a todos
os seus descendentes. Com esta teoria não se determina até que grau
esteja a natureza humana danificada pela queda. Segundo alguns, está
tão deteriorada para estar espiritualmente morta, no verdadeiro sentido
escriturístico do termo, enquanto que segundo outros o dano resulta
pouco mais que uma fraqueza física, uma constituição danificada que o
primeiro pai transmitiu a seus filhos.
4. Outros por sua vez adotam a teoria realista, e ensinam que assim
como a humanidade genérica existia total e inteira nas pessoas de Adão e
Eva, seu pecado foi o pecado de toda a raça. Ao nos ser comunicada a
mesma substância numérica racional e voluntária que agiu em nossos
primeiros pais, o ato deles foi verdadeira e propriamente nosso ato,
sendo o ato de nossa razão e vontade, como foi o seu ato. Por isso nos é
imputado não como dele, mas sim como nosso próprio. Literalmente
pecamos em Adão, e consequentemente a culpa deste pecado é nossa
culpa pessoal, e a conseguinte corrupção da natureza é o efeito de nosso
próprio ato voluntário.
5. Outros, enfim, negam toda relação causal, seja lógica ou natural,
seja judicial ou física, entre o pecado de Adão e a pecaminosidade de sua
raça. Alguns que assumem esta postura dizem que foi uma constituição
divina que se Adão pecava, todos os homens deveriam pecar. O primeiro
acontecimento estava conectado com os outros só no propósito divino.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
271
Outros dizem que não há necessidade de explicar o fato de que todos os
homens sejam pecadores além de atribuí-lo ao seu livre-arbítrio. Adão
pecou, e outros homens pecam. Isto é tudo. Um fato tem uma explicação
tão fácil como o outro.
Enunciado da doutrina de imputação imediata
A primeira das doutrinas anteriormente mencionadas é a que se
apresenta nos Símbolos das Igrejas Luterana e Reformada, e pelo grande
corpo de teólogos daquelas grandes ramos históricos da comunidade
Protestante. 203 Qual foi esta doutrina pode enunciar-se em poucas
palavras. Imputar é simplesmente atribuir a, tal como se diz que
atribuímos bons ou maus motivos a alguém. No sentido jurídico e
teológico da palavra, imputar é atribuir qualquer coisa a uma pessoa ou
pessoas, sobre razões adequadas, como a razão judicial ou meritória de
recompensa ou castigo, isto é, da outorga de bem ou da inflição de mal.
A mais elaborada discussão da palavra hebraica ‫ חָשַׁב‬- chashab e da
grega λογίζομαι - logízomai, que se empregam na Escritura com relação
a este tema, não dá nada além do simples resultado que se mencionou.
1. Imputar é contar a, ou pôr em dia de alguém. Pelo que respeita ao
sentido da palavra, não há diferença se o que se imputa é pecado ou
justiça; seja que se trate de nosso pessoalmente, ou o pecado ou a justiça
de outro.
2. Imputar pecado, no sentido escriturístico e teológico, é imputar a
culpa do pecado. E por culpa se significa não a criminalidade nem a
vergonha moral, nem o demérito, nem muito menos a contaminação
moral, mas a obrigação judicial de dar satisfação à justiça. Por isso, o
203
Na época da Reforma, um influente partido da Igreja de Roma mantinha, seguindo a alguns dos
escolásticos, que o pecado original consiste só na imputação do primeiro pecado de Adão, e como as
Confissões dos Reformadores foram dadas não apenas como exposição da verdade, mas também
como protesto contra os erros da Igreja de Roma, observar-se-á que os Protestantes afirmam que o
pecado original é não somente a imputação do pecado de Adão, mas também a corrupção hereditária
da natureza; e os teólogos Reformados com frequência destacavam mais a última coisa que a primeira,
devido ao fato de que a primeira era admitida por seus adversários, mas a segunda era negada.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
272
mal conseguinte à imputação não é uma inflição arbitrária; não se trata
meramente de uma desgraça ou calamidade; nem de uma disciplina, mas
de um castigo, isto é, um mal infligido em execução da pena da lei e para
a satisfação da justiça.
3. Uma terceira observação na elucidação do que se significa pela
imputação do pecado de Adão é que todos os teólogos, sejam
Reformados ou Luteranos, admitem que na imputação do pecado de
Adão a nós, de nossos pecados a Cristo, e da justiça de Cristo aos
crentes, a natureza da imputação é a mesma, de maneira que um caso
ilustra os outros. Quando se diz que nossos pecados foram imputados a
Cristo, ou que Ele levou nossos pecados, não se significa que realmente
Ele cometesse nossos pecados, ou que Ele fosse moralmente criminoso
por causa deles, ou que o demérito dos mesmos estivesse sobre Ele.
Tudo o que se significa é que Ele tomou, usando a linguagem dos velhos
teólogos, «nosso posto perante a lei». Ele assumiu o responder às
demandas da justiça pelos pecados dos homens, ou, como o expressa o
Apóstolo, ser feito maldição por eles. Da mesma maneira, quando se diz
que a justiça de Cristo é imputada aos crentes, não significa que
operassem eles aquela justiça, que eles fossem os agentes dos atos de
Cristo na obediência da lei; nem que o mérito de Sua justiça sejam os
méritos pessoais deles; nem que constitua seu caráter moral;
simplesmente significa que Seu, tendo sido operada por Cristo para
benefício de seu povo, em nome deles, por Ele como representante deles,
é posta na conta deles, de maneira que Deus possa ser justo ao justificar
aos ímpios. Muita da dificuldade a respeito desta questão surge da
ambiguidade na linguagem. As palavras justo e injusto têm dois
significados distintos. Às vezes expressam um caráter moral. Um homem
justo é um homem reto ou bom. Em outras ocasiões, estas palavras não
expressam caráter moral, mas sim simplesmente uma relação com a
justiça. Neste sentido, um homem justo é alguém com relação a quem
ficam satisfeitas as demandas da justiça. Pode ser pessoalmente injusto
(ou ímpio), e legalmente justo. Se não fosse assim, nenhum pecador
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
273
poderia ser salvo. Não há um só crente na terra que não se sinta e se
reconheça pessoalmente injusto, culpado, merecedor da ira e maldição de
Deus. Não obstante, alegra-se na certeza de que a imensamente meritória
justiça de Cristo, Sua plena expiação pelo pecado, constitui-lhe
legalmente, não moralmente, justo para a justiça divina. Assim, quando
Deus declara os injustos como justos, não os declara o que não são ou
simplesmente declara que a dívida deles à justiça foi paga por outro. E
quando se diz que o pecado de Adão é imputado à sua posteridade, não
se significa que eles tivessem cometido este pecado, ou que fossem os
agentes de seu ato, nem se significa que sejam moralmente criminosos
pela transgressão dele; que seja para eles a razão de remorso e de
autoinculpação; significa-se apenas que em virtude da união entre ele e
seus descendentes, seu pecado é a base judicial da condenação de sua
raça, precisamente como a justiça de Cristo é a base judicial da
justificação de Seu povo. Até aqui o enunciado desta questão.
Não é menos uma doutrina da Escritura que um fato da experiência
o fato de que a humanidade é uma raça caída. Os homens são
pecaminosos universalmente, sob todas as circunstâncias de seu ser neste
mundo, e estão expostos a inumeráveis males. Muitos destes, e isso em
muitos casos, e os mais chocantes, caem sobre os filhos dos homens na
tenra infância, antes de qualquer possível transgressão própria. É um fato
que não se pode negar; e por esta causa a mente humana se torturou para
encontrar uma solução. A solução escriturística deste terrível problema é
que Deus constituiu a nosso primeiro pai como cabeça federal e
representante de sua raça, e o pôs à prova não só por si mesmo mas
também por toda a sua posteridade. Se ele tivesse retido sua integridade,
ele e todos os seus descendentes teriam sido confirmados para sempre
num estado de santidade e felicidade. Ao cair do estado em que foi
criado, eles caíram com ele em sua primeira transgressão, de maneira
que a pena por este pecado veio sobre eles assim como sobre ele. Assim,
os homens tiveram sua prova em Adão. Porquanto ele pecou, sua
posteridade vem ao mundo num estado de pecado e de condenação. São
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
274
por natureza filhos da ira. Os males que sofrem não são imposições
arbitrárias, nem simplesmente as consequências naturais de sua
apostasia, mas sim inflições judiciais. A perda da retidão original, e a
morte espiritual e temporal sob a qual começam sua existência, são a
penalidade pelo primeiro pecado de Adão. Não dizemos que esta solução
do problema da pecaminosidade e miséria do homem careça de
dificuldades; porque os caminhos de Deus são inescrutáveis. Mas podese afirmar com confiança, primeiro, que esta é a solução escriturística ao
problema; e segundo, que é muito mais satisfatória para a razão e a
consciência que nenhuma outra solução que tenha sugerido jamais o
engenho humano. Isto fica demonstrado por sua geral aceitação na Igreja
Cristã.
A base da imputação do pecado de Adão.
A base da imputação do pecado de Adão, ou a razão pela qual a
penalidade de seu pecado tem caído sobre toda a sua posteridade,
segundo a doutrina anteriormente enunciada, é a união entre nós e Adão.
Naturalmente não seria próprio imputar o pecado de um homem a outro
a não ser que houvesse alguma conexão entre eles que explicasse e
justificasse tal imputação. As Escrituras nunca falam da imputação dos
pecados dos anjos nem dos homens nem a Cristo, nem da justiça dele a
eles; porquanto não existe aquela relação entre homens e anjos, nem
entre anjos e Cristo, para implicar um nas consequências judiciais do
pecado ou da justiça do outro. A união entre Adão e sua posteridade que
é a base da imputação de seu pecado a eles é ao mesmo tempo natural e
federal. Ele era a cabeça natural deles. Tal é a relação entre pai e filho,
não só no caso de Adão e de seus descendentes, mas em todos os outros,
que o caráter e conduta do um, de maneira necessária, e em maior ou
menor grau, afetam o outro. Nenhum fato da história está mais claro que
o de que os filhos levam as iniquidades de seus pais. Eles sofrem pelos
pecados dos primeiros. Deve haver uma razão para isso, uma razão
fundada na mesma constituição de nossa natureza. Mas havia algo
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
275
peculiar no caso de Adão. Acima e além desta relação natural que existe
entre um homem e sua posteridade, havia uma constituição divina
especial pela qual ele foi designado a cabeça e o representante de toda a
raça.
Adão, a Cabeça Federal de sua raça.
1. Assim, o primeiro argumento em favor da doutrina da imputação
é que as Escrituras apresentam a Adão como não só a cabeça natural,
mas também a cabeça federal de sua posteridade. Isto está claro, como já
se observou com base na narração dada em Gênesis. Tudo o que se diz
ali a Adão foi dito em sua capacidade representativa. A promessa de vida
foi para ele e para sua semente depois dele. O domínio com que foi
investido pertencia à sua posteridade além de a ele mesmo. Todos os
males com que foi ameaçado em caso de transgressão incluíam a eles, e
de fato têm caído sobre eles. Eles são mortais; devem ganhar seu pão
com o suor do seu rosto; estão submetidos a todos os inconvenientes e
sofrimentos que surgem do desterro de nossos primeiros pais do paraíso,
e da maldição pronunciada por causa do homem sobre a terra. E não
menos evidentemente nascem no mundo carentes de retidão original e
sujeitos à morte espiritual. Por isso, a pena total com que foi ameaçado
Adão foi infligida a eles. Foi morte com a promessa de redenção. Agora,
que estes males são penais em nosso caso assim como no dele é coisa
clara, porque o castigo é um sofrimento infligido na execução de uma
ameaça e para satisfação da justiça. Não importa qual seja o sofrimento.
Seu caráter como pena não depende de sua natureza, mas sim do
desígnio para o qual se aplica. Um homem, como já se observou antes,
pode ser encerrado no cárcere para o proteger da violência popular;
outro, em execução de uma sentença legal. Num caso o encarceramento
é um favor; no outro, um castigo. Assim, porquanto os males que os
homens sofrem devido ao pecado de Adão são infligidos em execução da
pena com que foi ameaçado, são tão verdadeiramente penais em nosso
caso como no dele; e por conseguinte ele foi tratado como a cabeça
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
276
federal e representante de sua raça. Além da clara hipótese da verdade
desta relação federal, esta é declarada de maneira expressa na Palavra de
Deus. O paralelo estabelecido pelo Apóstolo entre Adão e Cristo se
relaciona precisamente neste ponto. Adão era o tipo dAquele que devia
vir, porque como o primeiro era o representante de sua raça, assim o
outro é o representante de Seu povo. E as consequências da relação se
mostram como igualmente análogas. Foi porque Adão era o
representante de sua raça que seu pecado é a base judicial para a
condenação deles; e é devido ao fato de que Cristo é o representante de
Seu povo, que Sua justiça é a base judicial da justificação dos crentes.
O princípio representativo nas Escrituras.
2. Este princípio representativo impregna a totalidade das
Escrituras. A imputação do pecado de Adão à sua posteridade não é um
fato isolado. É só uma ilustração de um princípio geral que caracteriza as
dispensações de Deus desde o princípio do mundo. Deus Se declarou a
Si mesmo a Moisés como sendo «SENHOR, SENHOR Deus
compassivo, clemente e longânimo e grande em misericórdia e
fidelidade; que guarda a misericórdia em mil gerações, que perdoa a
iniqüidade, a transgressão e o pecado, ainda que não inocenta o culpado,
e visita a iniqüidade dos pais nos filhos e nos filhos dos filhos, até à
terceira e quarta geração!» (Êx 34:6, 7). Jeremias diz: «Tu usas de
misericórdia para com milhares e retribuis a iniquidade dos pais nos
filhos; tu és o grande, o poderoso Deus, cujo nome é o SENHOR dos
Exércitos» (Jr 32:18). A maldição pronunciada sobre Canaã caiu sobre
sua posteridade. A venda da parte de Esaú de sua primogenitura excluiu
a seus descendentes da aliança da promessa. Os filhos de Moabe e de
Amom ficaram excluídos da congregação de Jeová para sempre, porque
seus antepassados se opuseram aos israelitas quando saíram do Egito. No
caso de Datã e Abirão, como no de Acã, «suas mulheres, e seus filhos, E
seus pequenos» pereceram pelos pecados de seus pais. Deus disse a Eli
que a iniquidade de sua casa não seria expiada jamais nem com
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
277
sacrifícios nem com ofertas. A Davi foi dito: «Não se apartará jamais de
tua casa a espada, porquanto me menosprezaste, e tomaste a mulher de
Urias heteu para que fosse tua mulher». Ao desobediente Geazi lhe
disse: «A lepra de Naamã pegará a ti e a sua descendência para sempre».
O pecado de Jeroboão e dos homens de sua geração determinou o
destino das dez tribos para toda a história. A imprecação dos judeus,
quando demandaram a crucificação de Cristo: «O seu sangue caia sobre
nós e sobre nossos filhos» segue gravitando sobre o disperso povo de
Israel. Nosso próprio Senhor disse aos judeus de Sua geração que eles
tinham edificado os sepulcros dos profetas que seus pais tinham matado,
com o que se reconheciam eles mesmos como filhos de assassinos, e que
por isso o sangue daqueles profetas seria demandado das mãos deles.
Este princípio passa através de todas as Escrituras. Quando Deus
concertou aliança com Abraão, não foi por si mesmo somente, mas
também por sua posteridade. Eles ficaram ligados por todas as
estipulações daquela aliança. Eles compartilharam suas promessas e suas
ameaças, e em centenas de casos a pena pela desobediência sobreveio
sobre aqueles que não tiveram parte nas transgressões. Os filhos
sofreram igualmente com os adultos nos juízos, fossem de fome,
pestilência ou guerra, que sobrevieram ao povo por seus pecados. Da
mesma maneira, quando Deus renovou e ampliou a aliança abraâmica no
Monte Sinai, foi feito com os adultos daquela geração como
representantes de seus descendentes até as mais remotas gerações. E os
judeus estão até o dia de hoje sofrendo a pena dos pecados de seus pais
pela rejeição dAquele de quem falaram Moisés e os profetas.
Todo o plano de redenção descansa sobre o mesmo princípio. Cristo
é o representante de Seu povo, e sobre esta base são-lhe imputados seus
pecados a Ele e a justiça dEle é imputada a eles. Da mesma maneira, na
aliança batismal o pai age pelo filho, e o vincula, sem o consentimento
do filho, e o destino do filho depende, como norma geral, da fidelidade
do pai. Ninguém que crê a Bíblia pode fechar os olhos ao fato de que em
todas as partes se reconhece um caráter representativo dos pais, e que as
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
278
dispensações de Deus estiveram baseadas desde o começo sobre o
princípio de que os filhos levam as iniquidades de seus pais. Esta é uma
das razões que os incrédulos dão para rejeitar a origem divina das
Escrituras. Mas a incredulidade não dá alívio algum. A história está tão
cheia desta doutrina como a Bíblia. O castigo de um delinquente envolve
a sua família em sua desgraça e miséria. O pródigo e o bêbado provocam
a pobreza e a miséria de todos os que estão relacionados com eles. Não
há nação existente hoje em dia sobre a face da terra, cujas condições de
riqueza ou de miséria não tenham ficado principalmente determinadas
pelo caráter e a conduta de seus antepassados. Se, incapazes de resolver
os mistérios da Providência, precipitamo-nos ao ateísmo, só aumentamos
mil vezes as trevas que nos rodeiam. É mais fácil crer que todas as coisas
estão guiadas pela razão e a bondade infinitas, e que redundarão para
maior glória de Deus e para a maior bênção do universo, que crer que
esta imensa acumulação de pecado e desgraça é a obra de uma força cega
sem propósito e sem fim.
Se for admitido o fato de que levamos as consequências do pecado
de Adão, e que os filhos sofrem pelas iniquidades de seus pais, poder-seia induzir que isto não se deve atribuir à justiça de Deus, mas à operação
sem desígnio de uma lei geral, que apesar de alguns males incidentais é
globalmente benéfica. Mas com esta hipótese a dificuldade não fica
diminuída, mas aumentada. Com base em ambas as teorias, a natureza e
o grau de sofrimento são os mesmos. A única diferença tem que ver com
a pergunta: Por que sofrem por ofensas das quais não são pessoalmente
culpados? A Bíblia diz que estes sofrimentos são judiciais; que são
infligidos como castigo para manter a lei. Outros dizem que são meras
consequências naturais, ou inflições arbitrárias de um soberano. Se um
rei desse morte aos filhos de um rebelde, libertaria de reprovação a sua
conduta o dizer que era um ato de soberania arbitrária? Se a prevenção
do crime for um fim importante do castigo (embora não é seu fim
primordial), não seria um alívio dizer que a morte dos filhos estava
disposta para prevenir que outros pais se rebelassem? Pode-se admitir
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
279
que a execução dos filhos de um criminoso da parte de um soberano
humano seria um castigo cruel e injusto, enquanto que se nega e se deve
negar que seja injusto da parte de Deus que Ele visite as iniquidades dos
pais sobre seus filhos. Em primeiro lugar, nenhum soberano humano tem
os direitos sobre seus súditos que pertencem a Deus sobre Suas criaturas
como Criador deles. E em segundo lugar, nenhum soberano humano tem
o poder e a sabedoria para alcançar o maior bem com base nas
penalidades que ele aplique pela violação da lei. Não podemos inferir
que porquanto uma conduta determinada seja incorreta por parte do
homem, seja por isso injusta em Deus. Ninguém poderia com justiça
enviar uma pestilência ou fome através de uma terra, mas Deus envia tais
visitações não só com justiça, senão para a manifestação de Sua própria
glória e para o bem de Suas criaturas.
O mesmo princípio envolto em outras doutrinas.
Que o pecado de Adão se imputa à sua posteridade fica
demonstrado não só (1) Pelo fato de que ele era sua cabeça e
representante natural, e (2) Pelo fato de que este princípio de
representação impregna as Escrituras; e (3) pelo fato de que é a base
sobre a qual se administra a providência de Deus, e (4) Pelo fato de que
males conseguintes à apostasia de Adão são expressamente declarados
nas Escrituras como de inflição penal, mas também (5) Pelo fato de que
o princípio de imputação esta envolto em outras grandes doutrinas da
Bíblia. A hipótese de que um homem não possa ser, sob o governo de
Deus, castigado justamente pelos pecados de outro, não é só contrária às
expressas declarações das Escrituras, como vimos, e à administração do
governo divino desde o princípio, mas também é subversiva das
doutrinas da expiação e da justificação. A ideia da transferência de culpa
ou de castigo vicário está na raiz de todas as ofertas expiatórias sob o
Antigo Testamento, e da grande expiação sob a nova dispensação. Levar
o pecado é, na linguagem das Escrituras, levar a culpa do pecado. A
vítima levava o pecado do ofertante. Fazia-se imposição das mãos sobre
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
280
a cabeça do animal prestes a ser degolado, para expressar a transferência
de culpa. Aquele animal devia estar isento de todo defeito ou mancha,
para pôr em evidência de que seu sangue não era derramado por suas
próprias deficiências, mas pelo pecado de outro. Tudo isto era simbólico
e típico. Não podia haver uma verdadeira transferência de culpa a um
animal irracional, nem fazer-se uma verdadeira expiação mediante seu
sangre. Mas estes serviços eram significativos. Tinham a intenção de
ensinar estas grandes verdades: (1) Que a pena pelo pecado era a morte.
(2) Que o pecado não podia ser perdoado sem intervir expiação. (3) Que
a expiação consiste num castigo vicário. O inocente toma o lugar do
culpado, e sofre a pena em seu lugar. Esta é a ideia que acompanha as
ofertas de expiação em todas as eras e em todas as nações. Esta é a ideia
inculcada em toda a Bíblia. E isto é o que ensinam as Escrituras a
respeito da expiação operada por Cristo. Ele levou nossos pecados; Ele
foi feito maldição por nós; Ele sofreu em nosso lugar a maldição da lei.
Tudo isto vai sobre o terreno de que os pecados de um homem podem
ser justamente imputados a outro, sobre uma base adequada. Na
justificação inclui-se a mesma ideia de raiz. A justificação não é uma
mudança subjetiva no estado moral do pecador; não é um mero perdão;
não é simplesmente o perdão e a restauração ao favor, como quando um
rebelde é perdoado e restaurado ao gozo de seus direitos civis. É uma
declaração de que as demandas da justiça ficaram satisfeitas. Procede
sobre a hipótese de que a justiça que a lei demanda pertence quer
pessoalmente, quer inerentemente, ou por imputação, à pessoa
justificada, ou declarada justa. Assim, há uma conexão lógica entre a
negação da imputação do pecado de Adão e a negação das doutrinas
escriturísticas a respeito da expiação e da justificação. As objeções que
se apressam contra a primeira doutrina têm o mesmo peso contra as
últimas. E é questão histórica que os que rejeitam uma rejeitam deste
modo as outras.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
281
Argumento com base em Romanos 5:12-21.
Em Romanos 5:12-21, o Apóstolo ensina esta doutrina da maneira
mais normal e explícita. O desígnio daquela passagem é ilustrar o
método da salvação. O Apóstolo tinha estado ensinando que todos os
homens são pecadores, e que todo mundo é culpado diante de Deus.
Estando todos os homens sob a condenação da lei, é impossível que
pudessem ser justificados pela lei. A mesma lei não pode ao mesmo
tempo justificar e condenar as mesmas pessoas. Assim, porquanto
nenhuma carne pode ser justificada pelas obras da lei, Deus enviou o Seu
Filho para nossa salvação. Ele assumiu nossa natureza, tomou nosso
lugar, e obedeceu e sofreu em nosso lugar, operando assim para nós uma
justiça perfeita e imensamente meritória. Sobre a base daquela justiça,
Deus pode agora ser justo ao justificar os ímpios, se, renunciando eles à
sua própria justiça, recebem e confiam nesta justiça de Deus, que lhes é
oferecida gratuitamente no Evangelho. A doutrina fundamental da
Epístola aos Romanos, como doutrina fundamental do Evangelho, é,
portanto, que a justiça de um homem, Cristo, pode ser e é imputada de
tal maneira aos crentes para ser a base meritória da Justificação dos
mesmos perante o tribunal de Deus. Para tornar esta doutrina mais clara
a seus leitores, o Apóstolo faz referência ao caso análogo da condenação
da raça humana pelo pecado de Adão; e expõe que assim como o pecado
de Adão é a base judicial da condenação de todos os que estavam nele,
isto é, de todos os representados por ele, da mesma maneira a obediência
de Cristo é a base judicial da justificação de todos os que estão nEle. No
prosseguimento deste plano, primeiro afirma a imputação do pecado de
Adão à sua posteridade. Logo a demonstra. Logo comenta a respeito
dela. Logo a aplica; e por fim tira inferências da mesma. Assim, de todas
as maneiras possíveis, como parece, expõe a doutrina como parte da
revelação de Deus. A asserção da doutrina se contém no versículo doze
do capítulo. Foi por um homem, diz ele, que o pecado e a morte
passaram a todos os homens; porquanto todos pecaram. Pecaram por
meio de, ou em, aquele um homem. Seu pecado foi o pecado de todos
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
282
em virtude da união entre eles e ele. A prova desta doutrina está contida
nos versículos treze e quatorze. O Apóstolo argui assim: O castigo supõe
pecado; o pecado supõe lei; porque o pecado não é imputado onde não
há lei. Todos os homens são castigados; todos estão sujeitos a males
penais. Portanto, todos eles são réus de pecado, e consequentemente
todos são culpados de violar a lei. Esta lei não pode ser a lei de Moisés,
porque os homens morriam (isto é, estavam sujeitos à pena da lei) antes
que aquela lei fosse dada. Não pode ser a lei escrita no coração; porque
morrem aqueles que nunca cometeram nenhum pecado pessoal. Há
males penais, por isso, que sobrevêm a toda a humanidade antes que
nada em seu estado e conduta mereça tal inflição. A base para esta
inflição, portanto, deve ser buscada fora deles mesmos, isto é, no pecado
de seu primeiro pai. Por isso, Adão é tipo de Cristo. Assim como o
primeiro é cabeça e representante de sua raça, assim o segundo é cabeça
e representante de Seu povo. Assim como o pecado do primeiro é a base
da condenação de sua posteridade, assim a justiça do segundo é a base
para a justificação de todos os que estão nEle. Mas embora haja esta
grande analogia entre a Queda e a Redenção do homem, há entretanto
certos pontos de diferença, todos eles em favor do plano de redenção. Se
morremos pela ofensa de um homem, muito mais abundará a graça para
os muitos por meio de um homem. Se por um delito passou a todos a
sentença de condenação, a livre justificação é de muitas ofensas. Se
somos condenados por um pecado em que não tivemos participação
pessoal e voluntária, muito mais viveremos com base em uma justiça que
recebemos de coração. Por isso, prossegue o Apóstolo na aplicação de
sua ilustração, se todos os homens (em união com Adão) são condenados
pela ofensa de um homem, assim também todos (em união com Cristo)
serão justificados sobre a base da justiça de um homem. Assim como a
desobediência de um homem nos constituiu pecadores, assim a
obediência de um homem nos constitui justos (vv. 18 e 19). Com base
nestas premissas o apóstolo chegou a duas conclusões: Primeiro, que a
lei não foi disposta para Justificação, senão para que o pecado abundasse
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
283
no conhecimento e na consciência dos homens; e, em segundo lugar, que
onde o pecado abundou, a graça abundará mais. Os benefícios e as
bênçãos da redenção excederão em muito os males da apostasia.
Seja o que for que se pense dos detalhes desta exposição.
dificilmente se pode duvidar que expressa a ideia principal da passagem.
Poucos podem duvidar, e poucos o duvidaram jamais, que o apóstolo
ensina aqui claramente que o pecado de Adão é a base judicial da
condenação de sua raça. Com isto não só concorda, como já vimos, o
relato escriturístico da Queda, mas também o que ensina o Apóstolo em
1 Coríntios 15:21,22: «Visto que a morte veio por um homem, também
por um homem veio a ressurreição dos mortos. Porque, assim como, em
Adão, todos morrem, assim também todos serão vivificados em Cristo.»
A união com Adão é a causa da morte; a união com Cristo é a causa da
vida.
Argumento com base no consentimento geral.
A imputação do pecado de Adão foi a doutrina da Igreja universal
em todas as idades. Era a doutrina dos judeus, derivada do claro ensino
das Escrituras do Antigo Testamento. Era e é a doutrina das igrejas
Grega, Latina, Luterana e Reformada. Sua negação é uma novidade. Foi
só pelo surgimento do Arminianismo que um corpo considerável de
cristãos se aventurou a opor-se a uma doutrina tão claramente ensinada
na Bíblia, e sustentada por tantos fatos da história e da experiência. Os
pontos de diversidade com referência a esta questão não se relacionam
com o fato de que o pecado de Adão seja imputado à sua posteridade,
senão com as bases da imputação ou com suas consequências. Na Igreja
Grega se adotaram as posturas mais baixas prevalecentes entre os
cristãos. Os teólogos daquela igreja sustentavam geralmente que a morte
natural, e uma deterioração de nossa natureza, junto com uma mudança
para pior em todo o estado do mundo, foram os únicos males penais que
a raça da humanidade sofre devido ao pecado de Adão. Na Igreja Latina,
durante a Idade Média, como já vimos, dava-se uma grande diversidade
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
284
de opinião quanto à natureza e extensão dos males trazidos sobre o
mundo pela apostasia de nossos primeiros pais. O Concílio de Trento
declarou que estes males eram a morte, a perda da retidão original, e o
pecado, que é descrito como a morte da alma. Os Luteranos e
Reformados mantiveram a mesma doutrina com maior consistência e
solenidade. Mas em toda esta diversidade se admitia universalmente,
primeiro, que certos males são infligidos sobre toda a humanidade.
devido ao pecado de Adão; e, segundo, que estes males são penais. Os
homens eram considerados, com respeito à Igreja, como portadores em
maior ou menor grau do castigo pelo pecado de seu primeiro pai.
Objeções à doutrina.
A grande objeção a esta doutrina, que é manifestamente injusto que
um homem seja castigado pelo pecado de outro, já foi considerada de
passagem. O que é castigo? É um mal ou um sofrimento infligido para
vindicar a lei. Onde está a injustiça de que um homem sofra por outro,
sobre a base da união entre eles? Se há injustiça no caso, deve ser na
inflição de sofrimento anterior ou sem ter em conta um merecimento
pessoal. Não consiste no motivo de tal inflição. A inflição de sofrimento
para gratificar a malícia ou a vingança é naturalmente um crime. Infligilo por mero capricho é igualmente evidentemente mau. Infligi-lo para
alcançar algum fim reto e desejável pode ser não só justo, mas também
benevolente. E não é tal fim sustentar a lei divina? O fato de que toda a
humanidade sofre devido ao pecado de Adão não o nega nem o pode
negar nenhum crente na Bíblia. Não se pode negar que estes sofrimentos
foram dispostos por desígnio. Estão incluídos nas ameaças dadas no
princípio. Foram expressamente declarados na Bíblia como penais.
Afirma-se que a sentença de condenação passou a todos os homens pela
ofensa de um homem. Uma parte da pena ameaçada contra o pecado no
grande progenitor da raça foi que seu posteridade sofresse as
consequências de sua transgressão. E assim sofrem. É em vão, portanto,
negar a realidade, e não se obtém alívio algum negando que estes
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
285
sofrimentos são infligidos em execução da pena da lei e com o objeto
imensamente importante para sustentar sua autoridade.
§ 10. Imputação mediata
Nos meados do século dezessete, Amyraut, Cappel e La Place (ou
Placæus), três distinguidos professores na escola teológica francesa em
Saumur introduziram várias modificações da doutrina Agostiniana ou
Reformada a respeito dos decretos, da eleição, da expiação e da
imputação do pecado de Adão. La Place ensinou que derivamos uma
natureza corrompida de Adão, e que esta natureza corrompida, e não o
pecado de Adão, é a base da condenação que sobreveio sobre toda a
humanidade. Quando se objetou a esta exposição que perdia de vista a
culpa do primeiro pecado de Adão, respondeu que não negava a
imputação deste pecado, mas que simplesmente a fazia depender de
nossa participação em sua natureza corrompida. Somos inerentemente
depravados, e por isso estamos envolvidos na culpa do pecado de Adão.
Não há imputação direta nem indireta do pecado de Adão à sua
posteridade, mas só uma imputação indireta e mediata do mesmo,
baseada no fato de que participamos de seu caráter moral. Estes pontos
de vista foram apresentados pela primeira vez por La Place num ensaio,
«De statu homini lapsi ante gratiam», publicado nas «Theses
Salmurienses», e depois de maneira mais elaborada num tratado, «De
imputatione primi peccati Adami». Esta doutrina foi formalmente
condenada pelo Sínodo Nacional da França em 1644-45;204 pelas igrejas
suíças na «Formula Consensus»; e pelos teólogos holandeses. Jaeger,
um teólogo luterano, em seu “Ecclesiastical History,” 205 justifica-se
dizendo: “Contra doctrinam Plactæi — tota Gallia reformata, quin et
Theologi reformati in Hollandiâ surrexêre.” O decreto do Sínodo Francês
204
205
See Quick’s Synodicon, London, 1692.
Tom. i. lib. ix. cap. v.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
286
de Charenton sobre este tema é o seguinte: “Cum relatum esset ad
Synodum, scripta quædam . . . . prodisse, quæ totam rationem peccati
originalis solâ corruptione hæreditariâ in omnibus hominibus inhærente
definiunt, et primi peccati Adami imputationem negant: Damnavit
Synodus doctrinam ejusmodi, quatenus peccati originalis naturam ad
corruptionem hæreditariam posterum Adæ ita restringit, ut imputationem
excludat primi illius peccati, quo lapsus est Adam: Adeoque censuris
omnibus ecclesiasticis subjiciendos censuit pastores, professores, et
quoscunque alios, qui in hujus quæstionis disceptatione a communi
sententia recesserit Ecclesiarum Protestantium, quæ omnes hactenus et
corruptionem illam, et imputationem hanc in omnes Adami posteros
descendentem agnoverunt.”
Foi para fugir do sentido desta decisão que Placæus propôs a
distinção entre a imputação mediata e imediata. Disse que não negava a
imputação do pecado de Adão, mas só que precedia a contemplação da
corrupção hereditária. Mas isto é o mesmo que tinha declarado o Sínodo.
A corrupção hereditária ou morte espiritual é a pena, ou, tal como o
expressam as confissões Luteranas, Calvino e os Protestantes em geral,
era um mal infligido pelo justo juízo de Deus, por causa do pecado de
Adão». A Fórmula Consensus Ecclesiarum Helveticarun foi estabelecida
em 1675, em oposição à doutrina de Amyraut sobre a graça universal, à
doutrina de Placæus a respeito da imputação mediata, e a todas as outras
a respeito da obediência ativa de Cristo. 206 Nesta fórmula diz-se:
“Censemus igitur (quer dizer, porque a aliança das obras não só se
aplicou com Adão, mas também nele, com toda a raça humana)
peccatum Adami omnibus ejus posteris, judicio Dei arcano et justo,
imputari. Testatur quippe Apostolus ‘in Adamo omnes peccasse:’ ‘Unius
hominis inobedientia peccatores multos constitui;’ ‘in eodem omnes
mori.’ Neque vero ratio apparet, quemadmodum hæreditaria corruptio,
tanquam mors spiritualis, in universum genus humanum justo Dei
206
Niemeyer, Collectio Confessionum, p. 81.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
287
judicio cadere possit, nisi ejusdem generis humani delictum aliquod,
mortis illius reatum inducens, præcesserit. Cum Deus justissimus totius
terræ judex nonnisi sontem puniat.” 207
Rivet, um dos professores da Universidade de Leyden, publicou um
tratado em apoio da decisão do Sínodo da França, intitulado «Decretum
Synodi Nationalis Ecclesiarum Reformatarum Gallire initio anni 1645,
de imputatione primi Peccati omnibus Adami posteris, cum Ecclesiarum
et Doctorum Protestantium consensu, ex scriptis eorum ab Andrea
Riveta collecto». Este tratado está contido no terceiro volume da edição
fólio de suas obras. Seus colegas na Universidade publicaram seu apoio
formal à sua obra, e a recomendaram fervorosamente como antídoto à
nova doutrina de Placæus. Os teólogos de outras universidades da
Holanda se uniram nesta condenação da doutrina da imputação mediata.
Chamam-no o εὕρημα Imputationis Mediatæ a “ficulneum nuditatis
indecentis tegumentum,” e insistem que a imputação do pecado de Adão
não se baseia em nossa corrupção inerente como tampouco a imputação
da justiça de Cristo se baseia em nossa justiça inerente. “Quomodo et
justitia Christi electis imputatur, non mediate per renovationem et
obedientiam horum propriam, sed immediate, ad quam hæc ipsa propria
forum obedientia demum subsequitur.” 208 Estas duas grandes doutrinas
foram consideradas como indissoluvelmente unidas. Os teólogos
protestantes estão de acordo em sustentar que “Imputatio justitiæ Christi
et culpæ Adami pari passu ambulant, et vel utraque ruit, vel utraque
agnosci debet.” 209
A imputação mediata fora da Igreja Francesa
Embora a doutrina da imputação mediata foi assim geralmente
condenada tanto pela Igreja Reformada como pela Luterana, achou
distinguidos defensores além do âmbito da Igreja Francesa. Vitringa o
207
Art. x.; Niemeyer, p. 733.
De Moor, Commentarius in Marckii Compendium, cap. xv. § 32, vol. iii. p. 280.
209
Ibid. vol. iii. p. 255.
208
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
288
jovem, Venema e Stapfer, em sua «Teologia Polêmica», deram sua
sanção. Procedendo deste último autor, foi adotada pelo Presidente
Edwards, em um capítulo de sua obra sobre o «Pecado Original».
Entretanto, aparece ali meramente como uma adição estranha. Não foi
adotada em seu sistema para qualificar suas perspectivas teológicas em
outras doutrinas. Embora o Presidente Edwards se mostre claro
partidário da doutrina de Placæus, ao dizer 210 «que a má disposição vem
primeiro, e que a imputação de culpa é consequente», entretanto ensina
de maneira expressa e formal, e de maneira extensa, a doutrina da
imputação imediata em outras seções de sua obra. (1) Argui através de
toda uma seção para demonstrar a condição de cabeça federal de Adão;
(2) Mantém que a ameaça de morte feita a Adão incluía a perda da
retidão original e a morte espiritual. (3) Que a ameaça incluía sua
posteridade, e que os males que sofrem como consequência de seu
pecado são verdadeiramente penais. Se é assim, a perda da retidão
original e da depravação inerente são penais, supõem uma culpa
antecedente. Isto é, uma culpa antecedente, e não consequente à
existência e contemplação da depravação. (4) Em sua exposição de
Romanos 5:12-21, ele ensina de maneira expressa a doutrina comum, e
diz «Como este lugar em geral é muito pleno e plano, assim a doutrina
da corrupção da natureza, tal como se deriva de Adão, e também a
imputação de seu primeiro pecado, são ambos claramente ensinados ali.
A imputação da transgressão de Adão é certamente declarada de uma
maneira bem direta e frequente. Aqui nos assegura que pelo pecado de
um homem a morte passou a todos; todos sendo juntamente sentenciados
a este castigo como tendo pecado (assim se implica) no pecado daquele
homem. E se repete, vez após vez, que todos são condenados, muitos
morreram, muitos foram constituídos pecadores, etc., pelo delito de um,
pela desobediência de um, e por uma ofensa». 211 Como a culpa precede
210
211
Original Sin, IV. iii.; Works, edit. N. Y. 1829, vol. ii. p. 544.
Original Sin, III. i.; Works, vol. ii. p. 512.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
289
ao castigo, se, como diz Edwards, a depravação ou morte espiritual é um
castigo, então a imputação da culpa do primeiro pecado de Adão precede
à depravação, e não é consequente a ela. Esta é a exposição que dá ao
longo de toda sua obra sobre o Pecado Original. É só quando responde à
objeção de que é injusto que sejamos castigados pelo pecado de Adão
que entra em abstrusas discussões metafísicas a respeito da natureza da
unidade ou identidade, e tenta demonstrar 212 que Adão e sua posteridade
são um agente, e não agentes distintos. Assim que é, antes, o realismo
que a imputação mediata o que Edwards adotou para a ocasião.
Placæus e seus seguidores, a fim de defender o terreno que tinham
assumido, apelaram a muitos escritos de teólogos anteriores que
pareciam ignorar a imputação imediata do pecado de Adão, e que
atribuíam a condenação da raça principalmente, se não de maneira
exclusiva, à depravação hereditária derivada de nosso primeiro pai. Estas
passagens se podiam encontrar com facilidade, e se podem explicar
também com facilidade sem supor, o que seria contrário à mais clara
evidência, que se negasse ou pusesse em dúvida a direta imputação do
pecado de Adão. Antes que surgisse Ário com a direta negação da
verdadeira divindade de Cristo e da doutrina da Trindade, a linguagem
dos escritores eclesiásticos era confusa e contraditória. Da mesma
maneira, muito é o que se pode encontrar, inclusive na Igreja Latina e
nos escritos do próprio Agostinho, antes do surgimento da controvérsia
Pelagiana, que é difícil de conciliar com o sistema Agostiniano.
Agostinho viu-se obrigado a publicar um volume de retratações, e em
muitos casos, quando não tinha nada de que retratar-se encontrou muito
que modificar e que explicar. Assim, não é para assombrar-se que antes
que alguém negasse abertamente a doutrina da imputação imediata, e
especialmente quando a doutrina igualmente importante da depravação
hereditária era abertamente rejeitada por um influente partido da Igreja
de Roma, que os teólogos Protestantes parecessem negligenciar uma
212
Ibid. p. 546.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
290
doutrina que ninguém negava, e que dedicassem sua atenção
principalmente aos pontos que então estavam controvertidos. Entretanto,
Rivet mostra claramente que embora não fosse destacada, a doutrina da
imputação imediata do pecado de Adão era universalmente assumida.
Isto fica claro pelo fato de que todas as consequências naturais da
apostasia de Adão, a mortalidade, a perda da retidão original, a
corrupção da natureza ou morte espiritual, etc., etc., eram da natureza de
castigo. O que os Reformadores estavam desejosos de manter era que a
depravação hereditária original (a concupiscência, na linguagem da
Igreja Latina) era da natureza do pecado, e consequentemente que os
homens não perecem eternamente só propter peccatum alienum, sino
también propter peccatum proprium. Este é, em especial, o caso com
Calvino. Na Confissão de Fé que redigiu para a escola de Genebra, é
dito: “Singuli nascuntur originali peccato infecti . . . et a Deo damnati,
non propter alienum delictum duntaxat, sed propter improbitatem, quæ
intra eos est.” E em outro lugar ele diz: “Dicimus Deum justo judicio
nobis in Adamo maledixisse, ac voluisse nos ob illius peccatum
corruptos nasci, ut in Christo instauremur.” Outra vez: “Peccavit unus,
omnes ad poenam trahuntur, neque id modo, sed ex unius vitio,
contagionem omnes contrahunt.” Novamente: “Si quæratur causa
maledictionis, quæ incumbit omnibus posteris Adæ, dicitur esse alienum
peccatum, et cujusque proprium.” No mesmo sentido, diz Beza: 213 “Tria
sunt quæ hominem reum constitunut coram Deo, (1.) Culpa promanans
ex eo quod omnes peccavimus in proto lapso (Rom. v. 12). (2.)
Corruptio quæ est pæna istius culpæ, impositam tam Adamo, quam
posteris. (3.) Peccata quæ perpetrant homines adulti.” 214 O Reitor
Cunningham 215 chama a atenção ao fato de que a doutrina da imputação
213
Apolog. pro Justificatione.
Véase Turretin, locus IX, quæst. 9, y De Moor, Comentarius in Johannis Marckii Compendium,
cap. XXV. §32, vol. III. pág. 260. ss., donde se puede encontrar un tratamiento extendido de esta
controversia.
215
The Reformers and the Theology of the Reformation, second edition, p. 383.
214
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
291
imediata do pecado de Adão é ensinada de maneira muito mais explícita
nos Catecismos Maior e Menor de Westminster que na Confissão de fé.
Isto o explica de maneira muito natural com base na hipótese de que a
negação desta doutrina da parte de Placæus não tinha atraído a atenção
na Inglaterra quando foi preparada a Confissão (1646), mas que chegou a
ser conhecida antes que os catecismos fossem completados.
Objeções à doutrina da imputação mediata
As principais objeções contra a doutrina da imputação mediata são:
1. Que nega o que a Escritura afirma. As Escrituras afirmam que a
sentença de condenação passou a todos os homens pelo pecado de um
homem. Isto a doutrina da imputação mediata nega, e afirma que a base
desta condenação é a depravação inerente. Somos contados partícipes do
pecado de Adão só devido ao fato de que derivamos uma natureza
corrompida dele. Mas, segundo as Escrituras, a razão de que sejamos
depravados é que somos considerados como partícipes de seu pecado, ou
devido ao fato de que a culpa daquele pecado nos é imputada. A culpa na
ordem da natureza e de fato precede à morte espiritual que é sua
consequência penal.
2. Esta doutrina nega o caráter penal da corrupção hereditária em
que nascem todos os homens. Segundo as Escrituras e a fé da igreja
universal, a mortalidade, a perda de retidão original, e a corrupção
hereditária são infligidas à humanidade em execução da ameaça feita
contra Adão, e estão incluídas no inclusivo termo de morte, por meio da
que se expressou a pena ameaçada. Isto é enfaticamente ensinado pelo
Presidente Edwards assim como da parte dos outros teólogos
Reformados. Ele dedica uma seção de sua obra para demonstrar que a
morte mencionada em Gênesis, e da que fala o Apóstolo em Rm 5:12,
incluía a morte espiritual, e que a posteridade de Adão estava incluída
nesta pena. Diz ele: «As calamidades que lhes sobrevêm como
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
292
consequência de seu pecado são trazidas sobre eles como castigos.» 216
Além disso, ele acrescenta que destrói toda a força do argumento do
Apóstolo «supor que a morte da qual fala aqui como caindo sobre a
humanidade por causa do pecado de Adão não vem como um
castigo». 217 E outra vez: «Não suponho que a depravação natural da
posteridade de Adão se deva só ao curso da natureza; deve-se também ao
justo juízo de Deus». 218 Mas o castigo supõe culpa; se a perda de retidão
e a conseguinte corrupção da natureza são castigos, supõem a
antecedente imputação de culpa; e por isso a imputação é imediata e não
mediata; é antecedente e não consequente à nossa depravação inerente. A
postura que os teólogos Reformados apresentam uniformemente a
respeito deste tema é que Deus constituiu a Adão como cabeça e
representante de sua raça. A pena incluída na aliança concertada com ele,
e que incluía sua posteridade era a perda do favor e da comunhão de
Deus. As consequências da perda do favor divino no caso de Adão eram:
(1) A perda da justiça original; (2) A conseguinte corrupção de toda a
sua natureza, e (3) a exposição à morte eterna. Estas consequências
sobrevêm à sua posteridade na mesma ordem: primeiro, na perda, ou
antes, na destituição da retidão original; e segundo, na corrupção da
natureza; e terceiro, na exposição à morte eterna; de maneira que
nenhum filho de Adão é exposto à morte eterna sem levar em conta sua
própria pecaminosidade pessoal e merecimento.
Neste ponto Turrettin diz: “Poena quam peccatum Adami in nos
accersit, vel est privativa, vel positiva. Prior est carentia et privatio
justitiæ originalis; posterior est mors tum temporalis, tum æterna, et in
genere mala omnia, quæ peccatoribus immittuntur. Etsi secunda
necessario sequitur primam ex natura rei, nisi intercedat Dei
misericordia, non debet tamen cum ea confundi. Quoad primam dicimus
Adami peccatum nobis imputari immediate ad poenam privativam, quia
216
Original Sin, II. i; Works, vol. ii. p. 432.
Ibid. II. iv. ut supra, p. 481.
218
Ibid. IV. ii. ut supra, p. 540.
217
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
293
est causa privationis justitiæ originalis, et sic corruptionem antecedere
debet saltem ordine naturæ; sed quoad posteriorem potest dici imputari
mediate quoad poenam positivam, quia isti poenæ obnoxii non sumus,
nisi postquam nati et corrupti sumus.” 219 Vogelsang 220 diz: “Certe
neminem sempiterna subire supplicia propter inobedientiam protoplasti,
nisi mediante cognata perversitate.” E Mark 221 diz que se Placæus e
outros não significava nada mais por imputação mediata que “hominum
natorum actualem punitionem ulteriorem non fieri nudo intuitur
Adamicæ transgressionis absque interveniente etiam propria corruptione
et fluentibus hinc sceleribus variis, neminem orthodoxum possent habere
obloquentem.” Mas, acrescenta, é evidente que significava muito mais.
Eles negam a imputação do primeiro pecado de Adão como a causa desta
inerente corrupção. Como Adão ficou sujeito por sua apostasia à morte
eterna, mas por meio da intervenção da graça redentora foi
indubitavelmente salvo dela, assim também embora toda sua posteridade
incorre na mesma terrível pena por sua própria e inerente corrupção,
entretanto temos toda a razão para crer que nenhum ser humano perde-se
realmente sem incorrer pessoalmente na pena da lei por sua transgressão
pessoal. Mas isto é pela redenção de Cristo. Todos os que nascem na
infância são salvos, mas são salvos pela graça. É entretanto importante
que se compreendam claramente as verdadeiras posturas das Igrejas
Reformadas a respeito da doutrina da imputação imediata. Estas igrejas
não ensinam que o primeiro pecado de Adão seja o único e imediato
fundamento da condenação de sua posteridade à morte eterna, mas sim é
a base daquela perda do favor divino do que se origina a perda da retidão
original e a corrupção de nossa natureza toda, o que por sua vez deve ser
a base imediata da exposição à perdição final, da qual, entretanto e como
creem quase todos os Protestantes, são salvos todos aqueles que não têm
outros pecados pelos quais responder.
219
Loc. IX. quæst. ix. 14, edit. Edinburgh, 1847, p. 558.
Quoted by De Moor, Commentarius, vol. iii. p. 275.
221
Ibid. p. 278.
220
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
294
A imputação mediata aumenta as dificuldades que
devem ser explicadas
3. Uma objeção adicional à doutrina da imputação mediata é que
aumenta, em lugar de aliviar, a dificuldade do caso. Nega que se fizesse
uma aliança com Adão. Nega que a humanidade tivesse jamais uma
prova. Supõe que em virtude de uma lei natural de propagação, quando
Adão perdeu a imagem de Deus e se tornou pecador, seus filhos herdam
este caráter, e que sobre a base deste caráter estão sujeitos à ira e
maldição de Deus. Por isso, todos os males que a doutrina escriturística e
da Igreja descrevem como sobrevindo à posteridade de Adão como o
castigo judicial por seu primeiro pecado, descreve-os a doutrina da
imputação mediata como inflições soberanas, ou como meras
consequências naturais. O que a Escritura declara que é um justo juízo,
Placæus o apresenta como uma administração arbitrária.
Inconsistente com o argumento do apóstolo em Rm 5:12-21
4. Uma objeção ainda mais séria é que esta doutrina destrói o
paralelo entre Adão e Cristo que tanto destaca o Apóstolo em sua
Epístola aos Romanos. O grande tema que ele se empenha em ensinar e
ilustrar, e que apresenta como um elemento cardeal do método de
salvação, é que os homens estão justificados para uma retidão que não é
pessoalmente deles. Para ilustrar e confirmar esta grande doutrina
fundamental, refere-se ao fato de que os homens foram condenados por
um pecado que não é pessoalmente deles. Vez após vez insiste em que
foi pelo pecado de Adão, e não por nosso próprio pecado ou
pecaminosidade, que a sentença de morte (a perda do favor divino) foi
passada sobre todos os homens. É sobre esta base que ele apressa aos
homens a que se apoiem mais confiantemente sobre a promessa da
justificação sobre a base de uma justiça que não é inerentemente nossa.
Este paralelo fica destruído, a doutrina e o argumento do apóstolo ficam
frustrados, se negar-se que o pecado de Adão, como antecedente de
qualquer pecado ou nossa pecaminosidade, é a base de nossa
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
295
condenação. Se somos partícipes das consequências penais do pecado de
Adão só devido à natureza corrompida derivada dele por uma lei da
natureza, então somos justificados só sobre a base de nossa própria
santidade inerente derivada por uma lei de graça de Cristo. Assim, temos
a doutrina da justificação subjetiva, que derruba a grande doutrina da
Reforma e a grande base para a paz e confiança do povo de Deus, isto é,
que a base de nossa justificação diante de Deus é uma justiça não dentro
de nós, mas sim operada por nós, – a justiça de outro, a do eterno Filho
de Deus, e por isso mesmo uma justiça imensamente meritória. Qualquer
doutrina que tenda a invalidar ou a debilitar a evidência escriturística
deste artigo fundamental de nossa fé está forjada de males maiores que
os que lhe pertencem quando considerada em si mesma. Esta é a razão
pela qual os teólogos Reformados se opuseram tão tenazmente à doutrina
de La Place. Viram e disseram que com base em seus princípios a
doutrina da imputação da justiça de Cristo antecedente à nossa
santificação não podia ser defendida.
A doutrina está baseada sobre um princípio falso.
5. Entretanto, é possível que a objeção mais séria contra a doutrina
da imputação mediata seria a respeito do princípio sobre o qual se baseia
e dos argumentos de seus defensores em seu apoio. O grande princípio
em que se insiste em apoio desta doutrina é que um homem não pode ser
em justiça castigado pelo pecado de outro. Se é assim, então é injusto da
parte de Deus visitar as iniquidades dos pais em seus filhos. Então foi
injusto da parte de Cristo declarar que o sangue dos profetas mortos
desde o princípio seria demandada dos homens de sua geração. Logo é
injusto que os judeus de nosso tempo atual, desde a crucificação de
nosso Senhor, vejam-se dispersados e acossados, segundo as predições
dos profetas, pela rejeição do Messias. O mesmo sucede com o dilúvio
enviado em ira sobre o mundo, a destruição de Sodoma e Gomorra, e o
extermínio dos cananeus, em que milhares de crianças morreram sendo
inocentes dos delitos pelos quais se infligiram estes juízos, que seriam
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
296
atos de enorme injustiça. Se este princípio for correto, então toda a
administração do governo de Deus sobre o mundo, os procedimentos de
Deus sobre as nações e com a Igreja, não se podem defender. Ele, desde
o princípio e ao longo de todas as eras, teve os filhos como responsáveis
da conduta dos pais, incluiu-os sem seu consentimento nas alianças
feitos com seus pais, e visitou sobre eles as consequências da violação de
tais alianças, das quais eles não eram pessoalmente culpados, assim
como lhes outorgou ricas bênçãos ganhas pela fidelidade de seus
progenitores, sem nada meritório da parte deles. Além disso, se este
princípio é válido, então toda a doutrina escriturística dos sacrifícios e da
expiação é um engano. E também temos que adotar a teoria sociniana
que faz com que a morte de Cristo seja uma mera inculcação da verdade,
em lugar de uma satisfação penal pelo pecado. Um serviço didático, e
não expiatório.
Os teólogos Reformados do século dezessete expressaram seu
profundo pesar de que homens que professavam ser ortodoxos adotassem
de Pelagianis et Pelagianizantibus, contra a doutrina da imputação
imediata, «exceções» e [«mesquinhas objeções ...»] “objectiones . . . .
petitas a Dei justitia et veritate, ab actus et personæ Adamicæ
singularitate, ex sceleris longe ante nos præterito tempore, ex posterum
nulla scientia vel consensione in illud, ex non imputatis aliis omnibus
factis et fatis Adami, etc.,” que tinham sido tantas vezes refutadas nas
controvérsias com os Socinianos e os Remonstrantes. 222 Fica muito claro
que se não se pode estabelecer tal constituição entre os homens, nem
sequer da parte de Deus, de maneira que um homem possa em justiça
levar a iniquidade de outro, então a Bíblia e a Providência tornam-se
igualmente ininteligíveis, e as grandes doutrinas da fé cristã são
derrubadas.
222
De Moor, Coommentarius in Johannis Marckii Compendium, vol. iii. p. 279.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
297
A teoria da propagação.
A teoria dos que negam toda imputação do pecado de Adão à sua
posteridade, seja mediata ou imediata, e que representam a corrupção da
raça como consequência de sua apostasia com base na lei geral da
propagação, de que semelhante gera semelhante, difere só em termos da
doutrina de La Place. Tudo o que ele significava por imputação mediata
era que os descendentes de Adão derivaram dele uma natureza
corrompida, têm o mesmo caráter moral, e por isso são considerados
dignos da mesma condenação. Isto estão dispostos a admitir os
proponentes da teoria recém-mencionada. Por isso, a doutrina deles é
suscetível a todas as objeções que militam contra a doutrina da
imputação mediata, e não demanda uma consideração separada.
§ 11. A preexistência.
O princípio de que um homem pode em justiça ser considerado
responsável ou considerado como culpado só por seus próprios atos
voluntários e por suas consequências subjetivas é tão plausível que para
muitas mentes tem a autoridade de uma verdade intuitiva. Entretanto, é
uma doutrina tão clara da Bíblia e, deste modo, tão claramente o
testemunho da experiência que os homens nascem em pecado, que
chegam ao mundo em estado de culpa e de contaminação moral, que
surge uma necessidade de conciliar esta realidade com o que eles
consideram como verdade evidente por si mesma. Propuseram-se duas
teorias para conseguir esta conciliação. A primeira é a da preexistência.
Orígenes, e depois dele alguns personagens dispersos ao longo da
história da Igreja, até o dia de hoje, supuseram que os homens existiam
em outro estado antes de nascer neste mundo, e que tendo pecado
voluntariamente contra Deus naquele anterior estado de ser, entram neste
mundo com uma carga de culpa e contaminação devido a seu próprio ato
voluntário. Ao não ter sido nunca adotada esta postura por nenhuma
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
298
igreja cristã, não pertence de maneira própria à teologia cristã. É
suficiente observar a respeito dela:
1. Que não pretende estar ensinada nas Escrituras, e por isso que
não pode ser um artigo de fé. Os Protestantes se unem em ensinar que
«todo o conselho de Deus com relação a todas as coisas necessárias para
Sua própria glória, e para a salvação do homem, e sua fé e vida, são
ensinadas ou diretamente nas Escrituras, ou se podem deduzir de
maneira boa e necessária das próprias Escrituras, às quais nunca se deve
acrescentar nada, seja por novas revelações do Espírito nem pelas
tradições dos homens». Porquanto a doutrina da preexistência das almas
nem está expressamente estabelecida na Bíblia, nem se pode deduzir
dela, não se pode receber como um dos princípios formativos da doutrina
cristã. Tudo o que pretendem seus defensores cristãos é que não é
contradita pelas Escrituras, e que por isso são livres para sustentá-la.
2. Mas nem mesmo isto pode ser concedido. É expressamente
contrário aos claros ensinos da Palavra de Deus. Segundo a história da
criação o homem foi feito à imagem de Deus. Seu corpo foi feito do pó
da terra, e sua alma foi derivada de maneira imediata de Deus, e ele o
pronunciou que «era muito bom». Isto é totalmente inconsistente com a
ideia de que Adão fosse um espírito caído. A Bíblia ensina também que
Adão foi criado à imagem de Deus em conhecimento, retidão e santidade
e um estado mais elevado. Também as Escrituras, como já vimos, dizem
que foi por um homem que entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a
morte, porque todos pecaram naquele um homem. Há uma relação causal
entre o pecado de Adão e a condenação e pecaminosidade de sua
posteridade. Isto contradiz a teoria que atribui a atual pecaminosidade
dos homens não aos atos de Adão, mas sim ao ato voluntário de cada
homem individual num estado anterior de existência.
3. Esta doutrina está tão carente de todo apoio do testemunho da
consciência como da autoridade da Escritura. Ninguém tem nenhuma
reminiscência de uma existência anterior. Nada há em seu estado atual
que o conecte com um anterior estado do ser. Trata-se simplesmente de
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
299
uma mera hipótese, sem a menor evidência de parte de nenhum fato
conhecido.
4. A teoria, se for certa, não nos dá nenhum alívio. Pecados dos
quais nada sabemos; que foram cometidos por nós antes de nascer; que
não podem ser trazidos à consciência como nossos próprios pecados,
nunca podem constituir uma base justa de castigo, não mais que as ações
de um idiota. É desnecessário, no entanto, prosseguir este assunto ainda,
porquanto as objeções contra a teoria realista, na maioria dos casos, têm
o mesmo peso contra a teoria da preexistência.
§ 12. A Teoria Realista
Os que rejeitam a insustentável teoria da preexistência e, entretanto,
mantêm o princípio de que só se pode atribuir culpa ao que se deve à
nossa ação se veem empurrados a pressupor que Adão e sua raça são um
no sentido que seu ato de desobediência foi literalmente o ato de toda a
humanidade. E em consequência são tão verdadeiramente culpados num
sentido pessoal, devido a isso, como o era o próprio Adão; e que a
corrupção inerente fluindo daquele ato pertence-nos no mesmo sentido e
da mesma maneira que pertencia a ele. Seu pecado, diz-se então, «é
nosso não porque nos seja imputado, mas que se nos imputa porque é
verdadeira e propriamente nosso». Temos que disputar constantemente
com a ambiguidade dos termos. Há um sentido em que a proposição
anterior é perfeitamente verdadeira, e há um sentido em que não o é. É
verdade que a justiça de Cristo nos é imputada porque é nossa com base
nos termos da aliança da graça; porque foi operada para nós por nossa
grande cabeça e representante, que obedeceu e sofreu em nosso lugar.
Mas não é verdade que seja nossa no sentido de que fôssemos os agentes
por meio dos quais tal justiça fosse levada a cabo, ou as pessoas em
quem é inerente. De maneira semelhante, do pecado de Adão pode-se
dizer que nos é imputado porquanto é nosso, porquanto é o pecado da
cabeça divinamente constituída e representante de nossa raça. Mas não é
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
300
nosso no mesmo sentido em que era dele. Não foi nosso ato, isto é, um
ato em que nossa razão, vontade e consciência fossem exercidos. Há um
sentido em que o ato de um agente é o ato do principal. Vincula-o
legalmente, de uma maneira tão eficaz quanto fosse possível vincular-se.
Mas ele não é, por isso mesmo, o agente eficiente do ato. O sentido em
que muitos afirmam que o ato de Adão foi nosso ato é que a própria
natureza ou substância numérica, a mesma razão e vontade que existiram
e que agiram em Adão, pertencem-nos; de maneira que fomos verdadeira
e propriamente os agentes de seu ato de apostasia.
A Teoria da Identidade, do Reitor Edwards
A hipótese que o Reitor Edwards se lança a disputar é «Que Adão e
sua posteridade não são um, mas agentes inteiramente distintos». 223 A
teoria sobre a base da qual ele tenta demonstrar que Adão e sua
posteridade foram um agente não é exatamente a velha teoria realista,
mas antes, uma teoria dela, e depende de suas peculiares perspectivas a
respeito da unidade ou identidade. Segundo ele, toda unidade depende da
arbitrária disposição de Deus». A única razão pela qual uma árvore
totalmente crescida é a mesma com sua primeira semente, ou que o
corpo de um homem adulto é o mesmo com sua substância infantil, é que
Deus assim quer considerá-los. Nenhuma criatura é uma e a mesma nos
diferentes períodos de sua existência porque seria numericamente uma e
a mesma substância, ou vida, ou organismo; mas simplesmente porque
Deus «as trata como uma, comunicando-lhes semelhantes propriedades,
relações e circunstâncias; e assim nos leva a considerá-las e tratá-las
como uma». 224 Diz ele: «Se a existência de uma substância criada é
totalmente o efeito, em cada momento sucessivo, do poder imediato de
Deus naquele momento, sem nenhuma dependência de uma existência
anterior, tanto como a primeira criação fora do nada, então o que existe
223
224
Original Sin, IV. iii.; Works, edit. N. Y. 1829, vol. ii. p. 546.
Ibid. p. 556.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
301
naquele momento, por este poder, é um novo efeito; e considerado
simples e absolutamente, não o mesmo com qualquer existência passada,
embora seja como ela, e siga com base em um certo método
estabelecido. E não há identidade nem unidade no caso, senão a que
depende da arbitrária disposição do Criador, que, por Seu sábio e
soberano decreto une novos efeitos sucessivos de tal maneira que os
considera como um». 225 Emprega ele duas ilustrações para esclarecer seu
sentido de maneira perfeita. O resplendor da lua nos parece uma coisa
permanente, mas é na realidade um novo efeito produzido cada
momento. Cessa, e é renovado, em cada ponto sucessivo do tempo, e
assim vai transformando-se num efeito totalmente novo em cada
instante. Não é numericamente mais a mesma coisa como a que existia
no momento anterior que o som do vento que sopra agora é,
individualmente, o mesmo som do vento que soprava faz justamente um
momento. O que é certo do resplendor da lua, diz ele, deve sê-lo também
de sua solidez, e de todo o resto que pertença à sua substância. Também,
as imagens de coisas postas diante de um espelho parecem permanecer
precisamente as mesmas, com uma identidade contínua perfeita. Mas se
sabe que não é assim. Estas imagens são constantemente renovadas pela
impressão e reflexo de novos raios de luz. A imagem que existe neste
momento não se deriva absolutamente da imagem que existia no
momento justamente anterior. Não é numericamente a mesma, como se
fosse pintada por um artista com umas cores que se desvanecessem logo
que são pintados. A evidente falácia destas ilustrações é que os casos são
aparentemente semelhantes, mas não na realidade. O resplendor da lua e
a imagem num espelho não são substâncias que tenham uma existência
continuada; são meramente efeitos sobre nossos órgãos visuais. Pelo
contrário, as substâncias que produzem estes efeitos são existências ou
entidades objetivas, e não estados subjetivos de nossa sensibilidade.
225
Ibid. pp. 555, 556.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
302
Entretanto, Edwards diz que o que é verdade das imagens deve ser
verdade dos mesmos corpos. «Não podem ser os mesmos, com uma
identidade absoluta, mas devem ser renovados a cada momento, se for
como se demonstrou, que seu atual existência não é, falando
estritamente, o efeito de sua existência passada, mas é de maneira total,
em cada instante, o efeito de uma nova ação ou aplicação da poderosa
causa de sua existência». 226 Assim, porquanto não existe a identidade
numérica de substância nas coisas criadas, e como toda unidade depende
da arbitrária disposição de Deus» e que as coisas são uma, porque assim
as considera e trata Deus, «não há uma razão sólida», conforme mantém
Edwards, pela qual a posteridade de Adão não seja «tratada como uma
com ele para a derivação … da perda de retidão, e a conseguinte
corrupção e culpa». 227 Segundo esta doutrina da identidade, tudo o que
existem, incluindo a alma humana, é e permanece sendo uma não devido
a nenhuma continuidade de vida e substância, mas sim como uma série
de novos efeitos produzidos em cada momento sucessivo pela renovada
eficácia de Deus. Toda a teoria resolve-se na doutrina de que a
preservação é uma criação contínua. O argumento do Edwards para
demonstrar este extremo é que «a existência de cada substância criada é
uma existência dependente, e por isso é um efeito, e deve ter alguma
causa; e a causa deve ser uma destas: ou a existência antecedente da
mesma substância, ou o poder do Criador». Não pode ser a existência
antecedente da mesma substância, e por isso deve ser o poder de Deus.
Sua conclusão é que a manutenção da substância criada da parte de Deus
«é plenamente equivalente a uma produção imediata do nada, em cada
momento». 228
226
Original Sin, IV. iii.; Works, vol. ii., p. 555, note.
Ibid. p. 557.
228
Ibid. p. 554.
227
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
303
Objeções à teoria de Edwards
As consequências fatais desta visão da natureza da preservação
apresentaram-se sob o epígrafe da Providência. Tudo o que se deve
observar aqui é:
1. Que se baseia na pressuposição de que podemos compreender a
relação da eficiência de Deus com os efeitos produzidos no tempo.
Devido ao fato de que cada novo efeito que nós produzimos deve-se a
um novo exercício de nossa eficiência, dá-se por sentado que este deve
ser o caso com Deus. Entretanto, Ele habita na eternidade. Para Ele não
há distinção entre o passado e o futuro. Todas as coisas estão igualmente
presentes diante dEle. Como nós existimos no tempo e no espaço, todos
os nossos modos de pensamento estão condicionados por estas
circunstâncias de nosso ser. Mas como Deus não está sujeito às
limitações do tempo ou do espaço, não temos direito de transferir a Ele
estas limitações. Isto só demonstra que não podemos compreender como
Deus produz efeitos sucessivos. Não sabemos o que sejam por atos
sucessivos, e por isso é totalmente irrazoável e presunçoso fazer desta
hipótese a base para explicar magnas doutrinas escriturísticas. É
certamente igualmente concebível ou inteligível que Deus quer a
existência continuada das coisas que Ele cria, que aquelas que Ele cria de
novo em cada momento sucessivo.
2. Esta doutrina de uma criação continuada destrói a distinção
escriturística e do senso comum entre a criação e a preservação. As duas
coisas se apresentam de maneira constante como diferentes, e são
consideradas como diferentes pelo juízo comum da humanidade. Pela
criação, Deus chama as coisas à existência, e mediante a preservação as
sustenta em seu ser. As duas ideias são essencialmente distintas.
Portanto, toda teoria que as confunda deve ser falaciosa. Deus quer que
as coisas que criou continuem sendo; e negar que Ele possa causar uma
existência continuada é negar Sua onipotência.
3. Esta doutrina nega a existência da substância. A ideia de
substância é uma ideia primordial. Dá-se na constituição de nossa
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
304
natureza. É uma verdade intuitiva, como se demonstra por sua
universalidade e necessidade. Um dos elementos essenciais desta ideia é
a continuidade ininterrupta do ser. A substância é aquilo que permanece;
que segue sem mudanças sob todas as mudanças fenomenológicas às
quais está sujeita. Segundo a teoria da criação contínua não há nem pode
haver substância criada. Deus é a única substância no universo. Tudo o
que é fora de Deus é uma série de novos efeitos; não há nada que tenha
existência continuada, e por isso não há substância.
4. Segue-se necessariamente que se Deus é a única substância, Ele é
o único agente no universo. Sendo que todas as coisas fora de Deus são
chamadas a ser do nada a cada momento, ficam reduzidas a modos da
eficiência de Deus. Se Ele cria a alma em cada instante sucessivo, Ele
cria todos os seus estados, pensamentos, sentimentos e volições. A alma
é só uma série de atos divinos. E por isso não pode haver livre-arbítrio,
nem pecado, nem responsabilidade, nem existência individual. O
universo é só a automanifestação de Deus. Assim, esta doutrina é
essencialmente panteísta em suas consequências.
5. Resolver toda identidade numa «disposição arbitrária de Deus»,
nega que haja qualquer verdadeira identidade em quaisquer coisas
criadas. Edwards diz de maneira expressa que não são numericamente as
mesmas. Não podem ser as mesmas com uma identidade absoluta. São
uma somente porque Deus assim as considera, e porque são semelhantes,
de maneira que as consideramos como as mesmas. Sendo este o caso,
não parece haver base sequer para a culpa e a contaminação na alma
individual como procedente de seus próprios atos, porque não há nada
senão uma conexão aparente, não real, entre o presente e o passado na
vida da alma. Não é a mesma alma que é culpado hoje do pecado
cometido ontem. Muito menos pode ser tal identidade arbitrária ou
suposta entre Adão e sua raça uma base justa para eles levarem a culpa
do primeiro pecado dele. Em resumo, esta doutrina subverte todas as
nossas ideias. Supõe que algumas coisas que, como a alma humana, são
verdadeiramente uma, não são uma no sentido de identidade numérica; e
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
305
que algumas coisas que não são idênticas, como Adão e sua posteridade,
são uma no sentido de que a alma de um homem é uma, ou que a
identidade pode-se pregar de qualquer criatura. Por isso, esta doutrina,
que explicaria a culpa e a depravação inata dos homens sobre a base de
uma disposição arbitrária de Deus, pela quais se declaram como um ser
que na realidade são subsistências distintas, é não só contrária às
Escrituras e às convicções intuitivas dos homens, mas que não oferece
nenhuma solução satisfatória aos atos que pretende explicar. Não traz à
consciência de nenhum homem que o pecado de Adão foi seu pecado no
sentido de que nossos pecados de ontem são nossa culpa de hoje.
A própria teoria Realista.
A estranha doutrina do Edwards acima descrita concorda com a
teoria realista até onde ele e os realistas se unem em dizer que Adão e
sua raça são um no mesmo sentido em que uma árvore é um durante todo
o seu progresso desde a semente até a maturidade, ou em que a alma
humana é uma durante todos os diferentes períodos de sua existência.
Mas difere de maneira essencial em que Edwards nega a identidade
numérica em qualquer caso. A identidade, segundo ele, não inclui em
nenhuma criatura a existência continuada de uma e a mesma substância.
Pelo contrário, a doutrina realista faz da identidade numérica da
substância a essência da identidade. Cada gênero ou espécie de plantas
ou animais é uma porquanto todos os indivíduos daqueles gêneros e
espécies são partícipes de uma e a mesma substância. Em cada espécie
há só uma substância da que os indivíduos são modos de manifestação.
Segundo sua teoria a humanidade é numericamente uma e a mesma
substância da qual os indivíduos são os modos de manifestação. Segundo
esta teoria, a humanidade é numericamente uma e a mesma substância
em Adão e em todos os indivíduos de sua raça. O pecado de Adão foi,
portanto, o pecado de toda a humanidade, porquanto foi cometido por
numericamente a mesma substância racional e voluntária que nos
constitui como homens. Foi nosso pecado no mesmo sentido em que foi
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
306
seu pecado, porquanto foi nosso ato (o ato de nossa razão e vontade)
tanto como dele. Há duas classes de objeções a esta teoria que pudemos
aqui passar a considerar. Primeiro, as que militam contra o realismo
como teoria; e em segundo lugar, as que se relacionam com sua
aplicação à relação da união entre nós e Adão como solução dos
problemas do pecado original.
Recapitulação das Objeções à teoria realista.
(1) O realismo é uma mera hipótese; uma de muitas possíveis
hipóteses. A possibilidade é tudo o que se pode pretender em seu favor.
Não se pode dizer que seja provável, e muito menos ainda que seja certo;
e por isso não pode ser constituído de maneira legítima como base de
outras doutrinas.
(2) Não tem o apoio das Escrituras. A Bíblia, certamente, diz que
Adão e sua raça são um; mas também diz que Cristo e seu povo são um;
que toda a multidão de crentes de todas as idades e no céu e na terra são
um. Assim, na vida comum falamos de cada comunidade organizada
como um todo. A Igreja visível é uma. Todo estado ou reino separados
são um. Tudo depende da natureza desta unidade. E esta deve ser
determinada pela natureza daquilo de que se fala, e do usus loquendi da
Bíblia e da vida comum. Assim como ninguém infere do fato de que as
Escrituras declaram que Cristo e Seu povo são um que sejam
numericamente a mesma substância; nem da unidade pregada dos crentes
como distintos do resto da humanidade que sejam de uma substância e o
resto dos homens de outra substância diferente, tampouco temos direito
nós a inferir do fato de que a Bíblia diga que Adão e sua posteridade são
um que sejam numericamente a mesma substância. E tampouco as
Escrituras descrevem a natureza e os efeitos da união entre nós e Adão
para demandar nem justificar a doutrina realista. A natureza e os efeitos
de nossa unidade com Adão são declarados em todos os pontos
essenciais como análogos à natureza e aos efeitos de nossa unidade com
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
307
Cristo. Assim como esta não é uma unidade de substância, tampouco é a
outra.
(3) Mostrou-se que o realismo não tem sustento da consciência dos
homens, mas pelo contrário, contradiz os ensinos da consciência tal
como são interpretados pela grande maioria de nossa raça, tanto letrados
como iletrados. Todo homem é revelado a si mesmo como uma
substância individual.
(4) O realismo, como se argui mais acima, contradiz a doutrina das
Escrituras até onde é irreconciliável com a doutrina escriturística da
existência separada da alma.
(5) Subverte a doutrina da Trindade até onde faz do Pai, Filho e
Espírito Santo um Deus só no sentido em que todos os homens são um
homem. As pessoas da Trindade são um Deus porque são um em
essência ou substância. E todos os homens são um homem porque são
um em essência. As respostas que os realistas Trinitários dão a estas
questões são insatisfatórias, porque supõem a divisibilidade, e
consequentemente a materialidade, do Espírito.
(6) É difícil, se não impossível, conciliar a teoria realista com a
impecabilidade de Cristo. Se uma essência numérica da humanidade fezse culpada e contaminada em Adão, e se nós somos culpados e estamos
contaminados porque somos partícipes daquela substância caída, como
pôde livrar-se a natureza humana de Cristo de pecado, se tomou sobre Si
da mesma essência numérica que pecou em Adão?
(7) As objeções anteriores são de aparência teológica ou
escriturísticas; outras de caráter filosófico serviram para varrer a doutrina
do realismo de todas as escolas da filosofia moderna, exceto até onde foi
combinada com as formas superiores de monismo panteísta.
O Realismo não é solução para o problema do pecado.
As objeções que militam contra esta teoria como solução dos
problemas do pecado original não são menos decisivas. Há duas coisas
que o realismo se propõe explicar. Primeiro, o fato de que sejamos
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
308
castigados pelo pecado de Adão; e segundo, que a depravação hereditária
seja em nós verdadeira e propriamente pecado, envolvendo culpa assim
como contaminação. O primeiro é explicado com base em que o ato de
Adão foi nosso próprio ato; e o segundo sobre a base de que a
depravação inata é a consequência de nossa própria ação voluntária.
Assim como um homem é responsável por seu caráter ou estado mental
permanente produzidos por suas transgressões pessoais, assim nós somos
responsáveis pelo caráter com que viemos ao mundo, porque é resultado
de nossa apostasia voluntária de Deus. A isto é evidente objetar:
1. Que admitindo que o realismo seja certo; admitindo que a
humanidade seja numericamente uma e a mesma substância, da qual os
homens individuais são os modos de manifestação; e admitindo que esta
humanidade genérica pecou em Adão, isto não nos dá uma solução
satisfatória de nenhum dos atos anteriormente enunciados. Duas coisas
são necessárias para vindicar a inflição de castigo por um pecado
cometido com base em uma responsabilidade pessoal. Primeiro, que o
pecado seja um ato de consciente autodeterminação. De outra maneira
não pode ser levado à consciência para produzir o sentimento de
criminalidade. E o sofrimento sem o sentimento de criminalidade ou de
culpa, pelo que respeita a quem padece, não é castigo, mas uma
crueldade arbitrária. E, segundo, para vindicar o castigo aos olhos da
justiça, no caso que se supõe, tem que haver uma criminalidade pessoal
manifesta a todos os seres inteligentes conhecedores do caso. Se o
homem cometesse um delito em estado de sonambulismo ou de insânia,
sem saber o que fazia, sendo impossível que o reconhecesse ao ser
restaurado a uma condição normal, está claro que tal delito não poderia
ser com justiça a base do castigo. O castigo infligido com base nisso não
seria castigo aos olhos de quem o sofresse, nem justo para os outros. Não
está menos claro que se alguém cometesse um crime em um bom estado
de mente, e depois se tornasse louco, não poderia ser castigado com
justiça enquanto continuasse em tal estado. A execução de um maníaco
ou de um idiota por qualquer delito cometido antes da insânia ou idiotice
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
309
seria um ultraje. Se estes princípios são corretos, então fica claro,
inclusive admitindo tudo o que pretendem os realistas, que não se obtém
nenhum alívio. Não dá nenhuma solução satisfatória nem ao fato de que
sejamos castigados pelo pecado de Adão nem da culpa que acompanha a
nossa depravação hereditária inerente. Um pecado do qual é impossível
que estejamos conscientes como nosso ato voluntário não pode ser mais
a base de castigo como nosso ato que o pecado de um idiota, de um
louco, ou de um cadáver. Quando o corpo do Cromwell foi exumado e
pendurado de uma forca, Cromwell não foi por isso castigado; e aquela
ação foi, para toda a humanidade, uma mera manifestação de impotente
ato vingativo.
2. Mas a teoria realista não pode ser admitida. A hipótese de que
agimos milhares de anos antes de nascer para ser pessoalmente
responsáveis por aquela ação é monstruosa. É, como diz Baur, uma
proposição impensável; isto é, uma proposição à qual não se pode
atribuir nenhum significado inteligível. Podemos compreender como se
pode dizer que morremos com Cristo e que ressuscitamos com Ele; que
Sua morte foi nossa morte, e Sua ressurreição nossa ressurreição, no
sentido de que Ele agiu por nós como nosso substituto, cabeça e
representante. Mas dizer que verdadeira e realmente morremos e
ressuscitamos nEle; que nós fomos os agentes de Seus atos, não
comunica ideia alguma à mente. Da mesma maneira podemos
compreender como se pode dizer que pecamos em Adão e que caímos
nele enquanto que ele era a cabeça divinamente designada e
representante de sua raça. Mas a proposição de que nós executamos seu
ato de desobediência é para nossos ouvidos um som sem significado
algum. É tão impossível quanto algo não existente possa agir. Então não
existíamos. Não tivemos ser antes de nossa existência neste mundo; e
que nós agíssemos antes de ter existido é uma absoluta impossibilidade.
Deve-se lembrar que um ato implica um agente; e o agente de um ato
voluntário responsável deve ser uma pessoa. Antes da existência da
personalidade de um homem, aquele homem não pode levar a cabo
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
310
nenhuma ação voluntária. O pecado cometido é um ato de
autodeterminação voluntária; e, por isso mesmo, tal ato é impossível
antes da existência do eu. A substância com a qual parece um homem
pode ter existido antes que ele chegasse a ser, mas não o homem como
tal. Admitindo que as almas dos homens sejam formadas da substância
genérica da humanidade, esta substância não é mais aquele homem que o
pó da terra do qual Adão foi formado era seu corpo. A ação voluntária e
responsável, o caráter moral e a culpa podem pregar-se só de pessoas, e
não podem pregar-se deles nem verdadeiramente lhes pertencer antes
que existam. Por isso, a doutrina que supõe que somos pessoalmente
culpados do pecado de Adão sobre a base de que fomos agentes daquele
ato, que nossa vontade e razão foram exercidos de tal maneira naquela
ação como para fazer-nos a nós pessoalmente responsáveis da mesma e
de suas consequências, é absolutamente inconcebível.
3. Outra objeção a esta teoria é que não dá razão alguma pela qual
nós sejamos responsáveis pelo primeiro pecado de Adão, e não de suas
posteriores transgressões. Se seu pecado, é nosso devido ao fato de que a
totalidade da humanidade, como natureza genérica, agiu nele, esta razão
aplica-se deste modo a todos os seus outros pecados, o mesmo que a seu
primeiro ato de desobediência, ao menos antes do nascimento de seus
filhos. A raça não estava menos individualizada e concentrada em Adão
quando estava no jardim que depois de ter sido expulso dele. Além disso,
por que é o pecado de Adão, em lugar de, ou mais que o pecado de Eva
pelo qual somos responsáveis? É uma realidade escriturística clara de
que a humanidade tem uma relação com o pecado de Adão que não tem
com o pecado de Eva. Diz-se que levamos a culpa de seu pecado, mas
nunca que levamos a culpa dela. A razão é que Adão era nosso
representante. A aliança foi feita com ele; assim como em gerações
posteriores a aliança foi feita com Abraão, e não com Sara. Sobre esta
base há uma razão inteligível pela qual a culpa do pecado de Adão nos
seja imputada, o que não se aplica ao pecado de Eva. Mas com base na
teoria realista seria o reverso. Eva pecou primeiro. A humanidade
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
311
genérica, individualizada nela, apostatou de Deus, antes que Adão
tivesse delinquido; e por isso foi o pecado dela, mais que o dele, aquele
que arruinou nossa comum natureza. Mas não é esta a descrição que dá a
Escritura.
4. A oposição imposta contra a doutrina da imputação mediata, que
é inconsequente com a doutrina apostólica da justificação, e
incompatível com seu argumento em Rm 5:12-21, tem uma força igual
contra a teoria realista. O que o Apóstolo ensina, no que ele insiste com
maior energia, e o que é o fundamento da esperança de cada crente, é
que somos justificados por atos que não são nossos próprios; dos quais
não fomos os agentes, e cujo mérito não nos vem pessoalmente nem
constitui nosso caráter moral. Isto, diz-nos ele, é análogo ao caso de
Adão. Nós não fomos agentes em sua ação. Seu pecado não foi nosso
pecado. Sua culpa não nos pertence pessoalmente. É-nos imputada como
algo que não é nosso, um peccatum alienum, e a pena da mesma é a
perda do favor divino, a perda da retidão original e a morte espiritual,
são suas tristes consequências. Da mesma maneira que a justiça de Cristo
não é nossa, antes, é-nos imputada, e temos um título justo sobre a base
daquela justiça, se a aceitamos e confiamos nela, para todos os
benefícios da redenção. Isto, que é claramente a doutrina do Apóstolo e
das igrejas Protestantes, é negado pela escola realista. Isto é, nega que o
pecado de Adão como pecado de outro seja a base de nossa condenação;
e em coerência deve também negar (como de fato o negam a maioria dos
Realistas) que a justiça de Cristo, como justiça de outro, seja a base de
nossa justificação. O que torna mais séria esta objeção é que as razões
atribuídas para negar que o pecado de Adão, se não é nosso próprio,
possa nos ser justamente imputado, militam com a mesma força contra a
imputação de uma justiça que não é pessoalmente nossa. O grande
princípio que está na base da teoria realista, como de todas as demais
falsas teorias a respeito do pecado original, é que um homem pode ser
responsável só de seus próprios atos e do caráter que ele mesmo formou.
Se for assim, então, segundo o Apóstolo, a não ser que possamos
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
312
cumprir a lei com perfeição e restaurar nossa natureza à imagem de Deus
por nossa própria ação, temos que perecer eternamente.
5. Finalmente, deve rejeitar-se a solução apresentada pelos Realistas
para explicar nossa relação com Adão e para resolver os problemas do
pecado original, porquanto o Realismo é uma teoria puramente
filosófica. Certamente, diz-se com frequência que a doutrina de nossa
relação de aliança com Adão, e da imediata imputação de seu pecado à
sua posteridade, é uma teoria. Mas isto não é verdade. Não se trata de
uma teoria, senão do simples enunciado de um claro fato escriturístico. A
Bíblia diz que o pecado de Adão foi a causa da condenação de sua raça.
Diz-nos que não se trata da mera causa ocasional, mas sim da base
judicial daquela condenação; que foi por, ou devido a, seu pecado que
foi pronunciada a sentença de condenação sobre todos os homens. Esta é
a doutrina total da imputação imediata. É tudo o que a doutrina inclui.
Nada se acrescenta à simples declaração escriturística. Pelo contrário, o
Realismo é uma teoria filosófica exterior à Escritura, que tem a intenção
de explicar o fato de que o pecado de Adão é a base da condenação de
nossa raça. Introduz uma doutrina de universais, da relação dos
indivíduos com os gêneros e as espécies, a respeito do que as Escrituras
nada ensinam, e faz desta teoria filosófica uma parte integral da doutrina
da Escritura. Isto é acrescentar à Palavra de Deus. É fazer com que a
verdade das doutrinas escriturísticas dependam da correção de
especulações filosóficas.
É importante ter presente a relação que a filosofia sustenta de
maneira própria com a teologia. (1) A relação é íntima e necessária. As
duas ciências abrangem praticamente as mesmas esferas e tratam dos
mesmos temas. (2) Há uma filosofia subjacente a todas as doutrinas
escriturísticas, ou que as Escrituras dá por suposta em todos os seus
ensinos. (3) Como as doutrinas da Bíblia vêm de Deus, e são por isso
infalíveis e absolutamente certas, não se pode admitir nenhum princípio
filosófico como sadio que não esteja de acordo com estas doutrinas. (4)
Por isso, o verdadeiro ofício e esfera da filosofia cristã, ou da filosofia
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
313
nas mãos de um cristão, é determinar e ensinar estes fatos e princípios a
respeito de Deus, do homem e da natureza que estejam de acordo com a
palavra divina. Um cristão não pode adotar certa teoria da liberdade
humana e mediante ela decidir o que a Bíblia ensina a respeito da prévia
ordenação e da providência; ao contrário, deveria deixar que os ensinos
da Bíblia determinem sua teoria da liberdade. E assim sucede com todas
as outras doutrinas; e isto se pode fazer com a total certeza de que a
filosofia à qual somos assim levados a adotar será autenticada como
verdadeira perante o tribunal da razão iluminada. A objeção ao Realismo
é que inverte esta ordem ou empreende o controle das Escrituras, em
lugar de deixar-se levar por elas. A Bíblia diz que estamos condenados
pelo pecado de Adão. O Realismo o nega, e diz que ninguém é nem pode
ser condenado exceto por seu próprio pecado.
§ 13. O pecado original.
Os efeitos do pecado de Adão sobre sua posteridade são declarados
em nossos símbolos como: (1) A culpa de seu primeiro pecado. (2) A
perda da retidão original. (3) A corrupção de toda nossa natureza, a qual
(isto é, a qual corrupção) recebe usualmente o nome de pecado original.
Usualmente, mas nem sempre. Não é incomum que por pecado original
se signifique todas as consequências más subjetivas da apostasia de
nosso primeiro pai, e que por isso inclua os três pontos mencionados. Por
isso, o Sínodo Nacional da França condenou a doutrina de Placæus,
porque fez com que o pecado original consistisse em depravação
inerente e hereditária com exclusão da culpa do primeiro pecado de
Adão.
Esta corrupção inerente em que nascem todos os homens desde a
Queda é propriamente chamada pecado original: (1) Porque é
verdadeiramente da natureza de pecado. (2) Porque brota de nossos
primeiros pais como a origem de nossa raça. (3) Porque é a origem de
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
314
todos os outros pecados; e (4) Porque em sua natureza distingue-se dos
pecados de comissão.
A natureza do pecado original.
Quanto à natureza desta corrupção hereditária, embora a fé da Igreja
Católica, ao menos das igrejas Latina, Luterana e Reformada, fosse
uniforme em todo o essencial, entretanto foi geral a diversidade de
opiniões entre os teólogos. (1) Segundo muitos dos pais gregos, e em
tempos posteriores dos Remonstrantes, e Arminianos, trata-se de um mal
físico mais que moral. A condição física de Adão ficou deteriorada por
sua apostasia, e esta constituição natural deteriorada descendeu à sua
posteridade. (2) Segundo outros, a concupiscência, ou corrupção inata,
tem tal domínio sobre a natureza sensorial ou animal do homem, acima
de seus mais altos atributos da razão e da consciência, que envolve uma
maior tendência ao pecado, mas não é em si mesma pecaminosa. Alguns
dos teólogos Romanistas apoiam de maneira clara esta doutrina, e alguns
Protestantes, como vimos, sustentam que esta é a doutrina simbólica da
Igreja de Roma como tal. Esta mesma postura foi defendida por teólogos
de nossa própria era e país. (3) Outros mantêm uma doutrina
estreitamente relacionada com a recém-mencionada. Falam de
depravação inerente, e admitem que é de natureza de uma corrupção
moral, mas negam que suporte culpa à alma, até que seja exercida,
assentida e abrigada. (4) A doutrina das igrejas Reformada e Luterana a
respeito desta questão é apresentada em Suas confissões autorizadas.
A “Confissão do Augsburgo”. 229 “Docent quod post lapsum Adæ
omnes homines, secundum naturam propagati, nascantur cum peccato,
hoc est, sine metu Dei, sine fiducia erga Deum, et cum concupiscentia.”
“Articuli Smalcaldici.” 230 “Peccatum hæreditarium tam profunda et
tetra est corruptio naturæ, ut nullius hominis ratione intelligi possit, sed
ex Scripturæ patefactione agnoscenda, et credenda sit.”
229
230
I. ii. 1; Hase, Libre Symbolici, p. 9.
III. i. 3; Ibid. p. 317.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
315
231
“Formula Corcordiæ.” “Credendum est . . . . quod sit per omnia
totalis carentia, defectus seu privatio concreatæ in Paradiso justitiæ
originalis seu imaginis Dei, ad quam homo initio in veritate, sanctitate
atque justitia creatus fuerat, et quod simul etiam sit impotentia et
inaptitudo, ἀδυναμία et stupiditas, qua homo ad omnia divina seu
spiritualia sit prorsus ineptus. . . . . Præterea, quod peccatum originale in
humana natura non tantummodo sit ejusmodi totalis carentia, seu
defectos omnium bonorum in rebus spiritualibus ad Deum pertinentibus:
sed quod sit etiam, loco imaginis Dei amissæ in homine, intima, pessima,
profundissima (instar cujusdam abyssi), inscrutabilis et ineffabilis
corruptio totius naturæ et omnium virium, imprimis vero superiorum et
principalium animæ facultatum, in mente, intellectu, corde et voluntate.”
“Constat Christianos non tantum actualia delicta . . . peccata esse
agnoscere et definire debere, sed etiam ... hæreditarium morbum ...
imprimis pro horribili peccato, et quidem pro principio et capite omnium
peccatorum (e quo reliquæ transgressiones, tanquam e radice nascantur
...) omnino habendum esse.” 232
“Confessio Helvetica II.” 233 “Qualis (homo Adam) factus est a
lapsu, tales sunt omnes, qui ex ipso prognati sunt, peccato inquam, morti,
variisque obnoxii calamitatibus. Peccatum autem intelligimus esse
nativam illam hominis corruptionem ex primis illis nostris parentibus in
nos omnes derivatam vel propagatam, qua concupiscentiis pravis
immersi et a bono aversi, ad omne vero malum propensi, pleni omni
nequitia, diffidentia, contemptu et odio Dei, nihil boni ex nobis ipsis
facere, imo ne cogitare quidem possumus.”
231
I. 10. 11; Ibid. p. 640, the second of that number.
I. 5; Ibid. p. 640, the first of that number.
233
VIII.; Niemeyer, Collectio Confessionum, p. 477.
232
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
316
234
“Confessio Gallicana.” “Credimus hoc vitium (ex propagatione
manans) esse vere peccatum.”
“Articuli XXXIX.” 235 “Peccatum originis . . . est vitium et
depravatio naturæ cujuslibet hominis ex Adamo naturaliter propagati,
qua fit ut ab originali justitia quam longissime distet; ad malum sua
natura propendeat et caro semper adversus spiritum concupiscat, unde in
unoquoque nascentium iram Dei atque damnationem meretur.”
“Confessio Belgica.” 236 “Peccatum originis est corruptio totius
naturæ et vitium hæreditarium, quo et ipsi infantes in matris utero polluti
sunt: quodque veluti noxia quædam radix genus omne peccatorum in
homine producit, estque tam foedum atque execrabile coram Deo, ut ad
universi generis humani condemnationem sufficiat.”
“Catechesis Heidelbergensis.” (Pravitas humanæ naturæ existit) “ex
lapsu et inobedientia primorum parentum Adami et Evæ. Hinc natura
nostra ita est depravata, ut omnes in peccatis concipiamur et
nascamur.” 237
Nestas Confissões se ensina de maneira expressa que por natureza
corrompida não deve entender-se nem essência nem substância (como o
mantinha Matthias Flacius, e só ele no tempo da Reforma). A respeito
deste ponto diz a Fórmula de Concórdia: Que embora o pecado original
corrompe toda a nossa natureza, entretanto a essência ou substância da
alma é uma coisa, e o pecado original é outra. “Discrimen igitur
retinendum est inter naturam nostram, qualis a Deo creata est, hodieque
conservatur, in qua peccatum originale habitat, et inter ipsum peccatum
234
XI.; Ibid. p. 332.
IX.; Niemeyer, p. 603.
236
XV.; Ibid. p. 370.
237
VII.; Ibid. p. 431.
235
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
317
originis, quod in natura habitat. Hæc enim duo secundum sacræ
Scripturæ regulam distincte considerari, doceri et credi debent et
possunt.” 238
A Confissão de Westminster diz: 239 «Por este pecado eles (nossos
primeiros pais) caíram de sua retidão original e comunhão com Deus, e
assim deviam ser mortos em pecado, e totalmente contaminados em
todas as faculdades e partes da alma e do corpo. Sendo eles a raiz de toda
a humanidade, a culpa deste pecado foi imputada, e a mesma morte em
pecado e natureza corrompida comunicadas a toda sua posteridade,
descendendo deles por geração comum. Desta corrupção original, pela
qual ficamos totalmente indispostos, incapacitados e feitos hostis a todo
o bem, e plenamente inclinados a todo o mal, procedem todas as
transgressões que se cometem. Esta corrupção da natureza, durante esta
vida, permanece naqueles que são regenerados; e embora seja por meio
de Cristo perdoada e mortificada, entretanto tanto ela mesma como todas
as suas atividades são verdadeira e propriamente pecado.»
Enunciado da doutrina Protestante.
Com base nas anteriores declarações parece que, segundo a doutrina
das igrejas Protestantes, o pecado original, ou a corrupção da natureza
derivada de Adão, não é: (1) Uma corrupção da substância ou essência
da alma. (2) Tampouco é um elemento essencial infundido na alma,
como um veneno que se mistura com vinho. A Fórmula de Concórdia,
por exemplo, nega que as más disposições de nossa natureza caída sejam
«condiciones, seu concreatæ essentiales naturre proprietates». O pecado
original é declarado como um «accidens, i. e., quod non per se subsistit,
sed in aliqua substantia est, et ab ea discemi potest». As declarações
afirmativas a respeito disto são: (1) Que esta corrupção da natureza afeta
toda a alma. (2) Que consiste na perda ou ausência da retidão original, e
238
239
I. 33; Hase, p. 645.
Capítulo VI. §§ 2-5.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
318
a conseguinte total depravação moral de nossa natureza, incluindo ou se
manifestando numa aversão a todo o bem espiritual, ou a Deus, e numa
inclinação a todo o mal. (3) Que é verdadeira e propriamente da natureza
de pecado, incluindo ao mesmo tempo culpa e contaminação. (4) Que
retém seu caráter de pecado inclusive nos regenerados. (5) Que ocasiona
a morte espiritual da alma, de maneira que o homem natural, ou não
renovado, é totalmente incapaz, por si mesmo, de fazer nada bom diante
de Deus.
Esta doutrina, portanto, levanta-se em oposição:
1. Àquilo que ensine que a raça dos homens não ficou prejudicada
pela queda de Adão.
2. Àquilo que ensine que os males conseguintes à queda são
meramente físicos.
3. À doutrina que faça do pecado original algo inteiramente
negativo, consistindo na ausência de retidão original.
4. À doutrina que admite uma depravação hereditária da natureza,
fazendo-a consistir numa inclinação a pecar, mas negando que seja
pecaminosa por si mesma. Alguns dos teólogos ortodoxos fazem uma
distinção entre vitium e peccatum. Queriam limitar este último termo a
um pecado de comissão, enquanto que o anterior o empregavam para
denotar a pecaminosidade residente e hereditária. Há sérias objeções a
esta distinção: primeiro, que a vitium, assim entendido, é realmente
pecado; inclui tanto pecado como contaminação, e assim é definido por
Vitringa e outros que estabelecem esta distinção. Segundo, opõe-se ao
uso teológico estabelecido. A depravação, ou corrupção hereditária
inerente, sempre foi designada como peccatum, e portanto dizer que não
é peccatum senão meramente vitium produz confusão e é condizente com
o erro. Terceiro, é contrário às Escrituras, porque é inegável que a Bíblia
designa a corrupção residente ou hereditária, ou vitium, como ἁμαρτία -
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
319
hamartia. Isto os romanistas reconhecem, que negam que tal
concupiscência depois da regeneração seja de natureza de pecado. 240
5. A quinta forma de doutrina a que a fé Protestante opõe-se é a que
admite uma deterioração moral de nossa natureza, que merece o
desagrado de Deus, e que é, portanto, verdadeiramente pecado, e que
entretanto nega que o mal seja tão grande para produzir a morte
espiritual, e que envolva a total incapacidade do homem natural ao que é
espiritualmente bom.
6. E a doutrina das igrejas Protestantes opõe-se aos ensinos dos que
negam que o pecado original afete o homem inteiro, e que dizem que
tem sua sede de maneira exclusiva nos afetos ou no coração, enquanto
que o entendimento e a razão não foram danificados nem influenciados.
Portanto, a fim de sustentar a doutrina Agostiniana (ou Protestante)
do pecado original, devem-se estabelecer três pontos: I. Que toda a
humanidade descendendo de Adão por geração comum nasce destituída
de retidão original, e são sujeitos a uma corrupção da natureza que é
verdadeira e propriamente pecado. II. Que esta corrupção original afeta o
homem em Sua totalidade; não só o corpo com exclusão da alma; nem as
faculdades inferiores com exclusão das superiores; e não o coração com
exclusão dos poderes intelectuais. III. Que é de tal natureza que antes da
regeneração os homens caídos estão «totalmente indispostos,
incapacitados, e opostos a todo o bem».
Prova da doutrina do pecado original.
Primeiro argumento com base na universalidade do pecado.
O primeiro argumento como prova desta doutrina provém da
pecaminosidade universal dos homens. Todos os homens são pecadores.
Esta é inegavelmente a doutrina das Escrituras. É afirmada, suposta e
demonstrada. As asserções deste feito são muito numerosas para citá-las.
240
See above, pp. 178, 179.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
320
Em 1Rs 8:46 diz-se: «não há homem que não peque». Ec 7:20: «não há
homem justo na terra, que faça o bem e nunca peque.» Is 53:6: «Todos
nós nos desencaminhamos como ovelhas, cada qual se apartou por seu
caminho.» Is 64:6: «Todos nós somos como sujeira, e todas as nossas
justiças como trapos de imundície.» Sl 130:3: «Se observares, SENHOR,
iniqüidades, quem, Senhor, subsistirá?» Sl 143:2: «À tua vista não há
justo nenhum vivente.» Rm 3:19: «Que ... todo o mundo [πᾶς ὁ κόσμος pas ho kósmos] seja culpável perante Deus.» Vv. 22, 23: «Porque não há
distinção, pois todos pecaram e carecem da glória de Deus.» Gál 3:22:
«Mas a Escritura encerrou tudo sob o pecado», esta é, declarou a todos
os homens sob o poder e a condenação do pecado. Tg 3:2 [AV]: «Porque
todos ofendemos em muitas coisas.» 1Jo 1:8: «Se dissermos que não
temos pecado nenhum, a nós mesmos nos enganamos, e a verdade não
está em nós.» V. 10: «Se dissermos que não temos cometido pecado,
fazemo-lo mentiroso, e a sua palavra não está em nós.» 1Jo 5:19: «O
mundo inteiro jaz no Maligno.» Estas são só algumas das declarações da
pecaminosidade universal dos homens das quais a Escritura está repleta.
Mas em segundo lugar, este triste fato é constantemente assumido
na Palavra de Deus. A Bíblia em cada momento dirige-se aos homens
como pecadores. A religião que revela é uma religião para pecadores.
Todas as instituições do Antigo Testamento, e todas as doutrinas do
Novo, dão por sentado que os homens, universalmente, estão sob o poder
e debaixo da condenação do pecado. «O mundo», tal como se emprega
na Escritura, designa à massa da humanidade, em distinção à igreja, ou
ao povo regenerado de Deus, e sempre envolve em sua aplicação a ideia
de pecado. O mundo vos aborrece. Não sou do mundo. Eu vos escolhi do
mundo. Todas as exortações da Escritura que se dirigem de maneira
indiscriminada aos homens, chamando-os ao arrependimento,
necessariamente supõem a universalidade do pecado. O mesmo sucede
com as ameaças gerais e as promessas da Palavra de Deus. Em resumo,
se nem todos os homens são pecadores, a Bíblia não está adaptada a seu
verdadeiro caráter e estado.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
321
Mas as Escrituras não só afirmam diretamente e supõem em todo
lugar a universalidade do pecado entre os homens, mas que este é um
extremo que talvez mais que nenhum outro é feito objeto de um
argumento formal e prolongado. O Apóstolo, especialmente em sua
Epístola aos Romanos, começa com um processo regular de prova, de
que todos, quer judeus ou gentios, estão debaixo do pecado. Até que este
fato seja admitido e reconhecido, não há lugar nem necessidade do
Evangelho, que é o método de Deus para a salvação dos pecadores. Por
isso, Paulo começa declarando o propósito de Deus de castigar todo
pecado. Logo mostra que os gentios são universalmente culpados do
pecado de impiedade; que apesar de conhecer a Deus, não O adoram
como Deus nem Lhe dão as graças. A consequência natural, judicial, e
por isso inevitável, da impiedade é, segundo a doutrina do Apóstolo, a
imoralidade. Os que O abandonam, Deus os abandona a um domínio do
mal sem freios. Por isso é que todo mundo gentio estava afundado no
pecado. No caso dos judeus, diz-nos ele, a coisa não era melhor. Tinham
um conhecimento mais correto de Deus e de Sua lei, e muitas
instituições dadas por Deus, pelo que suas vantagens eram muito
grandes. Entretanto, eram tão verdadeira e universalmente pecadores
como os gentios. Suas próprias Escrituras, que naturalmente se dirigiam
a eles, declaram de maneira expressa: não há justo, nem um sequer. Não
há quem entende, não há quem busque a Deus. Todos se extraviaram; a
uma se tornaram inúteis; não há quem faz o bem, nem um sequer. Por
isso, conclui ele, todo mundo é culpado diante de Deus. Tanto os judeus
como os gentios estão todos debaixo do pecado. Por isso, pelas obras da
lei ninguém será Justificado. Este é o fundamento de todo o sistema
doutrinal do Apóstolo, e da religião da Bíblia. Jesus Cristo deveu salvar
a Seu povo de seus pecados. Se os homens não são pecadores, Cristo não
é o Salvador dos Homens.
O que as Escrituras ensinam de maneira tão clara o ensinam com
não menos clareza a experiência e a história. Cada homem sabe que é
pecador. Sabe que cada ser humano que tenha visto está no mesmo
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
322
estado de apostasia de Deus. A história não contém o registro de nenhum
homem sem pecado, exceto o Homem Cristo Jesus, que, ao estar isento
de pecado, fica distinto por isso de todos os outros homens. Não temos
relato algum de nenhuma família, tribo ou nação livre da contaminação
do pecado. A universalidade do pecado entre os homens é, por isso, uma
das mais inegáveis doutrinas da Escritura, e um dos fatos mais certos da
experiência.
Segundo argumento com base na total pecaminosidade dos
homens
Esta depravação universal não é um mal leve. Toda a raça humana,
por sua apostasia de Deus, está totalmente depravada. Por depravação
total não se significa que todos os homens sejam igualmente ímpios, nem
que cada homem esteja tão totalmente corrompido como é possível que
um homem seja; nem que os homens estejam destituídos de todas as
virtudes morais. As Escrituras reconhecem o fato, abundantemente
confirmado pela experiência, de que os homens, em maior ou menor
grau, são honrados em seus procedimentos, benignos em seus
sentimentos, e benéficos em sua conduta. Inclusive os pagãos, ensinanos o Apóstolo, fazem por natureza as coisas da lei. Estão mais ou
menos sob o governo da consciência, que aprova ou desaprova sua
conduta moral. Tudo isto é perfeitamente consequente com a doutrina
escriturística da depravação total, que inclui a total ausência da
santidade; a carência das devidas apreensões das perfeições divinas, e de
nossa relação com Deus como nosso Criador, Preservador, Benfeitor,
Governador e Redentor. É comum a todos os homens uma alienação
total da alma de Deus, de maneira que nenhum homem irregenerado
entende nem anda após Deus; nenhum homem assim faz de Deus sua
porção, nem da glória de Deus o fim de seu ser. O afastamento de Deus é
total ou completo. Todos os homens adoram e servem à criatura em lugar
de e mais que ao Criador. Por isso, declara-se nas Escrituras que estão
espiritualmente mortos. Estão destituídos de todo princípio de vida
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
323
espiritual. A terrível extensão e profundidade desta corrupção de nossa
natureza ficam provadas:
1. Por seus frutos; pelo terrível domínio dos pecados da carne, de
pecados de violência, dos pecados do coração, como a soberba, a inveja
e a malícia; dos pecados da língua, como a maledicência e o engano; dos
pecados da irreligião, da ingratidão, da impiedade e da blasfêmia; todos
estes marcaram toda a história de nossa raça, e seguem distinguindo o
estado de todo o mundo.
2. Pela consideração de que as demandas de Deus de nossa suprema
reverência, amor e obediência, que são habitual e universalmente
negligenciadas pelos homens irregenerados, são imensamente grandes.
Isto é, são tão grandes que não se podem imaginar maiores. Estas
demandas não só são ignoradas em tempos de excitação e de paixão, mas
sim habitual e constantemente. Os homens vivem sem Deus. São, diz o
Apóstolo, ateus. Esta alienação de Deus é tão grande e tão universal que
as Escrituras dizem que os homens são inimigos de Deus; que a mente
carnal, isto é, o estado da mente que pertence a todos os homens em seu
estado natural, é inimizade contra Deus. Isto fica demonstrado não só por
seu descuido e desobediência, mas também por rebelião direta contra a
Sua autoridade, quando em Sua providência Ele nos arrebata nossos
ídolos; ou quando Sua lei, com suas demandas inexoráveis e sua terrível
penalidade, faz-se sentir sobre a consciência, e Deus é contemplado
como um fogo consumidor.
3. Uma terceira prova do terrivelmente mau desta corrupção
hereditária vê-se no universal rechaço de Cristo da parte daqueles aos
quais Ele deveu salvar. Ele é em si mesmo distinguido entre dez mil e
totalmente desejável; unindo em Sua pessoa todas as perfeições da
Deidade e todas as excelências da humanidade. A Sua missão foi de
amor, de um amor totalmente incompreensível, imerecido, imutável e
infinito. Por amor não só se humilhou ao nascer de uma mulher, e ao ser
feito sob a lei, mas também ao viver uma vida de pobreza, de dor e de
perseguição; ao suportar sofrimentos inconcebivelmente grandes por
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
324
nossa causa, e finalmente ao levar nossos pecados sobre Seu próprio
corpo no madeiro. Ele tem feito possível que Deus seja justo e que
entretanto justifique os ímpios. Por isso, Ele oferece bênçãos de valor
infinito, sem dinheiro e sem preço, a todos os que as aceitem. Ele obteve
e nos oferece sabedoria, justiça, santificação e redenção; oferece-nos
fazer de nós reis e sacerdotes para Deus, e exaltar-nos a um estado sem
fim de inconcebível glória e bem-aventurança. Apesar de tudo isto,
apesar da divina excelência de Sua pessoa, da grandeza de Seu amor da
profundidade de Seus padecimentos e do valor das bênçãos que Ele
proveu, e sem as quais devemos perecer eternamente, os homens,
universalmente, quando são deixados a si mesmos, O rejeitam. Ele veio
aos Seus, mas os Seus não O receberam. O mundo O aborreceu, e segue
aborrecendo-O; não quer reconhecê-Lo como seu Deus e Salvador; não
está disposto a aceitar Suas ofertas. Nem quer amá-Lo ao servi-Lo. A
conduta dos homens para com Cristo é a mais clara prova da apostasia de
nossa raça, e da profundidade da depravação em que está afundada; e,
pelo que respeita aos ouvidores do Evangelho, é a maior razão para sua
condenação. Todas as outras razões parecem fundir-se nesta, porque
nosso Senhor diz que os homens estão condenados porque não creem no
unigênito Filho de Deus. E o Espírito Santo, por boca do Apóstolo, diz:
«Se alguém não ama o Senhor, seja anátema. Maranata!» sentença que
será ratificada no dia do juízo por todas as criaturas racionais, caídas e
não caídas, no universo.
A pecaminosidade dos homens é incorrigível.
4. Outra prova do ponto que estamos considerando encontra-se na
incorrigível natureza do pecado original. É, pelo que respeita a nós, uma
doença incurável. Os homens não estão tão afetados pela Queda para ter
perdido sua natureza moral. Sabem que o pecado é um mal, e que os
expõe ao justo juízo de Deus. Por isso, desde o princípio do mundo
tentaram não só expiá-lo, mas também de destruí-lo. Recorreram a todos
os meios possíveis a seu alcance com este propósito. Provaram os
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
325
recursos da filosofia e da cultura moral. Apartaram-se da contaminadora
companhia de seus semelhantes. reuniram todas as energias de sua
natureza e todos os poderes de sua vontade. Sujeitaram-se aos mais
dolorosos atos de negação de si mesmos, a observâncias ascéticas em
todas suas formas. O único resultado destes esforços foi que os
anacoretas se tornaram como sepulcros caiados, que aparecem por fora
belos, enquanto que por dentro estão cheios de ossos de mortos e de toda
imundície. Os homens foram lentos em aprender o que nosso Senhor
ensina, que é impossível fazer bom o fruto até que a árvore seja boa.
Entretanto, um mal que é tão indestrutível tem que ser muito grande.
Argumento com base na experiência do povo de Deus.
5. Podemos apelar sobre este tema à experiência do povo de Deus
em todas as idades e em todas as partes do mundo. Em nenhum respeito
foi mais uniforme esta experiência que na convicção de sua depravação
aos olhos de um Deus imensamente santo. O patriarca Jó, descrito como
o melhor homem de sua geração, pôs sua mão sobre sua boca, e sua boca
no pó diante de Deus, e declarou que se aborrecia a si mesmo, e que se
arrependia no pó e na cinza. Os Salmos Penitenciais de Davi estão
repletos não apenas com as confissões de pecado, mas também com os
reconhecimentos de sua profunda depravação diante de Deus. Isaías
clamou: Ai por mim! Sou um homem de lábios imundos, e habito no
meio de um povo que tem os lábios imundos. Os antigos profetas,
inclusive quando eram santificados desde o ventre, pronunciavam suas
justiças como trapos de imundícia. O que se diz corporativamente é em
todos os lugares apresentado como verdade da pessoa individual. Toda a
cabeça está doente, e todo o coração desacordado. Da planta do pé até a
cabeça não há nele coisa sã; só feridas, e contusões, e chagas podres. No
Novo Testamento, os escritores sagrados evidenciam o mesmo profundo
sentir de sua própria pecaminosidade, e forte convicção da
pecaminosidade da raça a que pertencem. Paulo fala de si mesmo como o
principal dos pecadores. Queixa-se de que era carnal, vendido ao pecado.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
326
Geme sob a carga de uma natureza ímpia, dizendo: Miserável homem
que sou; quem me libertará deste corpo de morte? Desde os dias dos
Apóstolos até nosso próprio tempo, não houve diversidade a este respeito
na experiência dos cristãos. Não há evidência neles de nenhuma
disposição para encobrir ou desculpar sua pecaminosidade diante de
Deus. Uniformemente e em todas as partes, e precisamente em
proporção à sua santidade, humilham-se sob o sentimento de sua culpa e
contaminação, e se aborrecem, arrependendo-se no pó e na cinza. Esta
não é uma experiência irracional, nem exagerada. É o efeito natural da
compreensão da verdade; de um discernimento sequer parcial da
santidade de Deus, da espiritualidade da lei, e da ausência de
conformidade com esta norma divina. Com esta experiência de pecado
sempre vai conectada a convicção de que nosso sentimento de sua
medida de mal, e de seu poder sobre nós, e por isso de nossa culpa e
contaminação, é totalmente inadequado. Sempre constitui parte da carga
do crente, que sente menos que o que sua razão e experiência,
iluminadas pelas Escrituras, ensinam-lhe que deveria sentir a respeito de
sua corrupção e degradação morais.
6. Quase não será necessário dizer que o que as Escrituras ensinam
de uma maneira tão manifesta de maneira indireta a respeito da
profundidade da corrupção de nossa natureza caída também o ensinam
por asserção direta. O coração humano é pronunciado como enganoso
sobre todas as coisas, e desesperadamente ímpio. Inclusive no princípio
(Gn 6:5, 6) falou-se: «Viu o SENHOR que a maldade do homem se
havia multiplicado na terra e que era continuamente mau todo desígnio
do seu coração.» Jó 15:14-16: «Deus não confia nem nos seus santos;
nem os céus são puros aos seus olhos, quanto menos o homem, que é
abominável e corrupto, que bebe a iniqüidade como a água!» Ec 9:3: «O
coração dos homens está cheio de maldade, nele há desvarios enquanto
vivem; depois, rumo aos mortos.» A Palavra de Deus está repleta de
passagens assim. Nos termos mais explícitos pronuncia a degradação e
corrupção moral do homem como consequência da Queda como uma
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
327
apostasia total de Deus; um estado de morte espiritual, implicando a total
ausência de toda verdadeira santidade.
Terceiro argumento com base na manifestação inicial do
pecado
Um terceiro grande fato da Escritura e da experiência a respeito
desta questão é a manifestação inicial do pecado. Logo que uma criança
é capaz de ação moral, dá evidência de um caráter moral pervertido. Não
somente vemos a manifestação de ira, malícia, egoísmo, inveja, orgulho
e outras ímpias disposições, mas sim todo o desenvolvimento da alma é
rumo ao mundo. A alma de uma criança dirige-se, por uma lei interior,
das coisas invisíveis e eternas às coisas que se veem e são temporais. Em
suas mais anteriores manifestações, é mundana, da terra, terrenal. Assim
como este é o testemunho da experiência universal, assim o é o da
Bíblia. Jó 11:12: «O homem estúpido se tornará sábio, quando a cria de
um asno montês nascer homem» Sl 58:3 (RC): « Alienam-se os ímpios
desde a madre; andam errados desde que nasceram.» Pv 22:15: «A
estultícia (o mal moral) está ligada ao coração da criança.»
Estes três fatos inegáveis, a universalidade do pecado entre os
homens, seu poder dominante, e sua anterior manifestação, constituem
uma clara prova da corrupção de nossa comum natureza. É um princípio
de juízo universalmente reconhecido e sobre o qual se age, que um curso
de ação em qualquer criatura, racional ou irracional, que é universal e
dominante, e que é adotado uniformemente desde o começo de seu ser
determina e revela sua natureza. O fato de que todos os indivíduos de
certas espécies vivam da rapina; que todos os indivíduos de outra espécie
vivam de erva; que alguns sejam anfíbios, e outros vivam só na terra;
que. alguns sejam gregários e outros solitários; que alguns sejam suaves
e dóceis, e outros ferozes e indomáveis; não sob certas circunstâncias e
condições, mas sempre e em todas as partes, sob todas as diferentes
circunstâncias de seu ser, considera-se prova de sua constituição natural.
Mostra o que são por natureza, em distinção ao que são ou possam ser
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
328
feitos por circunstâncias e cultura externas. O mesmo princípio aplica-se
aos nossos juízos a respeito dos homens. Tudo o que seja variável e
limitado em suas manifestações; tudo o que se encontre em alguns
homens e não em outros, atribuímos a causas peculiares e limitadas, mas
o que é universal e dominante é uniformemente atribuído à natureza do
homem. Alguns destes modos de ação universalmente manifestos entre
os homens são atribuíveis aos atributos essenciais de sua natureza, como
a razão e a consciência. O fato de que todos os homens efetuem ações
racionais constitui uma clara prova de que são criaturas racionais; e o
fato de que executem ações morais constitui prova de que têm uma
natureza moral. Outros modos universais de ação são atribuídos não aos
atributos essenciais da natureza humana, mas sim a seu atual estado
permanente. Que todos os homens busquem o conforto e os prazeres, e
que se prefiram a si mesmos antes que a outros, não deve atribuir-se à
nossa natureza como homens, mas sim ao nosso estado presente. Como o
fato de que todos os homens executem ações morais é prova de que têm
uma natureza moral, assim também o fato de que tal conduta moral é
sempre má, ou que todos os homens pecam desde o mais anterior
desenvolvimento de suas capacidades, constitui prova de que sua
natureza moral é depravada. É absolutamente inconsequente com todas
as ideias justas de Deus que Ele tenha criado o homem com uma
natureza que, com absoluta uniformidade, o conduza ao pecado e à
destruição; ou que o tenha situado em circunstâncias que inevitavelmente
o levem à sua ruína. O atual estado da natureza humana não pode ser,
por isso, sua condição normal e original. Somos uma raça caída. Nossa
natureza se tornou corrompida por nossa apostasia de Deus, e por isso é
que toda imaginação (isto é, todo exercício) dos pensamentos do coração
do homem são só e continuamente o mal. Veja-se também Gn 8:21. Esta
é a solução escriturística e a única racional do fato inegável da profunda,
universal e anterior pecaminosidade manifesta dos homens em todas as
eras, em todas as classes, e em todas as partes do mundo.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
329
Evasões dos argumentos que antecedem.
Os métodos adotados pelos que negam a doutrina do pecado
original para dar conta da universalidade do pecado são insatisfatórios
em sumo grau.
1. Não será necessário referir-nos aqui às teorias que esquivam esta
enorme dificuldade quer negando a existência do pecado, quer atenuando
sua má natureza, de maneira que a dificuldade deixe de existir. Se na
realidade não existe o mal do pecado, então não há pecado que explicar.
Mas o fato da existência do mal, de sua universalidade e de seu poder, é
muito palpável e está muito na consciência para admitir sua negação ou
que seja deixado de lado.
2. Outros mantêm que temos no livre-arbítrio do homem uma
solução suficiente para dar conta da universalidade do pecado. Os
homens podem pecar; escolhem pecar, e não se precisa de maior razão
para explicá-lo. Se Adão pecou sem uma natureza corrompida
antecedente, por que, pergunta-se, é preciso supor a corrupção da
natureza para explicar o fato de que outros homens pequem? Entretanto,
um efeito uniforme exige uma causa uniforme. O fato de que um homem
possa andar não é razão adequada para que sempre ande numa direção.
Um homem pode exercer suas faculdades para alcançar um ou outro
objetivo; o fato de que os dedique ao longo de toda uma vida a adquirir
riquezas não se explica simplesmente dizendo que é um agente livre. A
pergunta é: Por que seu livre-arbítrio está sempre exercido numa direção
determinada? Assim, o fato de que os homens sejam agentes livres não é
a solução da pecaminosidade universal e total apostasia de nossa raça
com relação a Deus.
3. Outros buscam uma explicação deste fato na ordem de
desenvolvimento dos elementos constitutivos de nossa natureza. Estamos
constituídos de tal maneira que as faculdades sensoriais são chamadas
seu exercício antes que os poderes mais elevados da razão e da
consciência. Por isso, os primeiros alcançam um domínio indevido, e
levam à criança e ao homem a obedecer os instintos inferiores de sua
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
330
natureza, quando deveria ser guiado por suas mais elevadas faculdades.
Mas, em primeiro lugar, esta é uma concepção totalmente inadequada de
nossa depravação hereditária. Não consiste exclusiva nem
principalmente no domínio da carne (no sentido ilimitado desta palavra)
sobre o Espírito. É um mal muito mais profundo e radical. É morte
espiritual, segundo as expressas declarações das Escrituras. E, em
segundo lugar, não pode ser a condição normal do homem que suas
faculdades naturais se desenvolvam em tanta ordem que inevitável e
universalmente o conduzam à sua degradação e ruína moral. E, em
terceiro lugar, esta teoria não elimina dificuldades, e por outro lado não
explica os fatos. É tão difícil de conciliar com a justiça e a bondade de
Deus o fato de que os homens nasçam com uma natureza constituída de
tal maneira que os conduz indefectivelmente ao pecado quanto nascem
num estado de pecado. Com isso se nega toda justa prova à raça.
Segundo as Escrituras e a doutrina da Igreja, a humanidade teve não só
uma prova justa, mas também favorável em Adão, que agiu como
representante deles na maturidade e plena perfeição de sua natureza, e
com todas as facilidades, motivos e considerações adaptados para
assegurar sua fidelidade. Isto é muito mais fácil de crer que a hipótese de
que Deus ponha a criança no amanhecer da razão em sua prova para a
eternidade, com uma natureza já pervertida, e sob circunstâncias que em
todo caso e indefectivelmente o levam à sua destruição. A única solução,
por isso, que provê uma explicação é a doutrina escriturística de que toda
a humanidade caiu na primeira transgressão de Adão, e levando a pena
por seu pecado entram no mundo em estado de morte espiritual, cuja
evidencia vê-se e se sente na universalidade, o poder controlador e a
anterior manifestação do pecado.
As Escrituras ensinam esta doutrina de maneira expressa
As Escrituras ensinam a doutrina do pecado original, ou a
corrupção hereditária e pecaminosa de nossa natureza como derivada de
Adão, não só de uma maneira indireta, ensinando, como já vimos, a
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
331
universal e total depravação de nossa raça, mas também declaram a
doutrina de maneira direta. Não somente ensinam que os homens pecam
universalmente e desde o primeiro despertar de seu ser, mas também
afirmam que o coração do homem é mau. Diz-se que é «Enganoso ...
mais que todas as coisas, e perverso; quem o conhecerá?» (Jr 17:9). «O
coração dos filhos dos homens está inteiramente disposto a praticar o
mal» (Ec 8:11). «Toda a imaginação dos pensamentos do seu coração era
má continuamente» (Gn 6:5, TB); ou, como em Gn 8:21 (TB): «A
imaginação do coração do homem é má desde a sua mocidade.»
Coração, na linguagem das Escrituras, significa-se o próprio homem; a
alma, aquilo que é a sede e fonte da vida. É aquilo que pensa, sente,
deseja e quer. É aquilo do qual procedem bons ou maus pensamentos,
desejos e propósitos. Nunca denota um mero ato, ou um estado
passageiro da alma. É aquilo que é permanente, que determina o caráter.
Tem a mesma relação com os atos que a terra tem com os seus produtos.
Assim como uma boa terra dá plantas apropriadas para os homens e para
os animais, e uma má terra produz cardos e espinheiros, assim nos é dito
que o coração humano (a natureza humana em seu estado atual) é
demonstrado mau pela prolífica colheita de pecados que produz sempre e
em todo lugar. Esta doutrina é ensinada ainda mais claramente em Mt
7:16-19, onde nosso Senhor diz que os homens são conhecidos por seus
frutos. «Pelos seus frutos os conhecereis. Colhem-se, porventura, uvas
dos espinheiros ou figos dos abrolhos? Assim, toda árvore boa produz
bons frutos, porém a árvore má produz frutos maus.» E outra vez, em Mt
12:33: «Ou fazei a árvore boa e o seu fruto bom ou a árvore má e o seu
fruto mau; porque pelo fruto se conhece a árvore.» A própria essência e
propósito destas instruções é que os atos morais são uma revelação do
caráter moral. Não o constituem, mas simplesmente o manifestam. O
fruto de uma árvore revela a natureza da árvore. Não faz a natureza, mas
demonstra qual é. O mesmo no caso do homem: seus exercícios morais,
seus pensamentos e sentimentos, assim como suas ações externas, estão
determinadas por uma causa moral. Há algo na natureza do homem que é
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
332
distinto de suas ações e anterior a elas que determina sua conduta (isto é,
todos os exercícios conscientes da mesma), que seja ou boa ou má. Se os
homens são universalmente maus, isso constitui, segundo o ensino de
nosso Senhor, uma prova evidente de que a natureza deles é má; tanto
como o fato de que um fruto mau demonstra que a árvore é má. Assim,
quando as Escrituras declaram que o coração do homem é «perverso»,
afirmam precisamente o que significa a Igreja quando declara que nossa
natureza é depravada. Nem a palavra coração, nem a natureza, em tais
contextos, denota substância ou essência, mas aptidão. As palavras
expressam uma qualidade em distinção a um atributo ou propriedade
essenciais. Inclusive quando falamos da natureza de uma árvore, não nos
referimos à sua essência, mas à sua qualidade; a algo que pode ser
modificado ou mudado sem uma mudança de substância. Assim, nosso
Senhor refere-se a fazer uma árvore boa, ou a fazer o mal. A explicação
do significado escriturístico da palavra coração que se dá mais acima fica
confirmada por formas análogas e sinônimas de expressão que se
empregam na Bíblia. O que é às vezes designado como um coração mau
chama-se «o velho homem», «uma lei de pecado em nossos membros»,
«a carne», «a mente carnal», etc. E, por outro lado, o que se chama «um
novo coração» é chamado «o novo homem», «nova criação» (ou
natureza), «a lei do Espírito», «a mente espiritual», etc. Todos estes
termos e frases designam o que é inerente, imanente e permanente, em
oposição ao que é passageiro e voluntário. A primeira classe de termos
emprega-se para descobrir a natureza do homem antes de sua
regeneração, e a outra para descobrir a mudança depois da regeneração.
Assim, as Escrituras, ao declarar que o coração do homem é enganoso e
desesperadamente perverso, e que sua imaginação ou exercícios são de
contínuo o mal, declaram em termos diretos a doutrina da Igreja do
pecado original.
O Salmista também afirma diretamente esta doutrina quando diz:
(Sl 51:5): «Em maldade fui formado, e em pecado me concebeu minha
mãe.» Nos versículos anteriores ele tinha confessado os seus pecados de
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
333
comissão; e aqui se humilha a si mesmo ainda mais completamente
diante de Deus, reconhecendo sua depravação inata, hereditária, uma
depravação que não considerava como uma mera fraqueza, ou inclinação
ao mal, mas antes, declara que era iniquidade e pecado. Em partes
posteriores do Salmo refere-se a esta corrupção hereditária e inerente, da
qual desejava fervorosamente ser libertado. «Eis que amas a verdade no
íntimo, e no oculto me fazes conhecer a sabedoria. Purifica-me com
hissopo, e ficarei puro; lava-me, e ficarei mais alvo do que a neve. ...
Cria em mim, ó Deus, um coração puro e renova em mim um espírito
reto » (Sl 51:6-10, RC). Era a respeito de sua parte interior, de sua
natureza interna, que tinha sido formada em iniquidade e concebida em
pecado, que ele orava para que pudesse ser purificado e renovado. Todo
o espírito deste Salmo e o contexto em que aparecem as palavras do
quinto versículo, constrangeram à maioria dos comentaristas e leitores da
Escritura a reconhecer nesta passagem uma afirmação direta da doutrina
do pecado original.
Naturalmente, nenhuma doutrina descansa sobre uma passagem
isolada. O que se ensina num lugar com toda certeza será dado por
sentado ou será afirmado em outros lugares. O que Davi diz de si mesmo
como nascido em pecado é confirmado por outras descrições da
Escritura, o que mostra que o que era verdade dele não é menos verdade
de toda a humanidade. Assim (Jó 14:4, RC): «Quem do imundo tirará o
puro?» Jó 15:14: «Que é o homem, para que seja puro? E o que nasce de
mulher, para ser justo?» Assim também nosso Senhor diz (Jo 3:6): «O
que é nascido da carne, é carne.» Isto significa, claramente, que o que
nasce de pais corrompidos é, em si mesmo, corrompido; e está
corrompido por causa de sua ascendência ou derivação. Isto está claro:
(1) Pelo uso comum da palavra carne num sentido religioso nas
Escrituras. Além dos sentidos primário e secundário da palavra
empregada de maneira familiar na Bíblia para designar nossa natureza
corrompida e caída. Por isso, estar «na carne» é estar em nosso estado
natural, irregenerado. As obras da carne são obras que brotam de uma
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
334
natureza corrompida; andar segundo a carne é viver sob a influência
controladora de uma natureza pecaminosa. Por isso, ser carnal, ou ter
uma mente carnal, é ser corrompido, ou, como Paulo explica, é estar
vendido, ser escravo do pecado. (2) Porquanto a carne é aqui oposta ao
Espírito. «O que é nascido da carne, é carne; e o que é nascido do
Espírito, é espírito.» Como a segunda parte deste versículo significa que,
sem dúvida, aquele que é proveniente do Espírito Santo, é santo, ou
conformado à natureza do Espírito Santo, a primeira parte deve significar
que aquele que se deriva de uma origem má é em si mesmo mau. Um
filho nascido de pais caídos deriva deles uma natureza caída,
corrompida. (3) Esta interpretação é exigida pelo contexto. Nosso Senhor
está atribuindo a razão para a necessidade da regeneração ou do
nascimento espiritual. Esta razão é a derivação de uma natureza
corrompida por nosso nascimento natural. É porquanto nascemos em
pecado que a renovação do Espírito Santo é universal e absolutamente
necessária para nossa salvação.
Outra passagem igualmente decisiva é Ef 2:3: «Também todos nós»
(isto é, nós os judeus, o mesmo que os gentios) «éramos, por natureza,
filhos da ira, como também os demais.» Filhos da ira, segundo uma
conhecida expressão idiomática hebraica, significa objetos da ira. Nós,
diz o Apóstolo, assim como outros homens, somos objetos da ira divina.
Isto é, estamos sob condenação, justamente expostos ao Seu desagrado.
Esta exposição à ira de Deus, como Ele ensina, não se deve
exclusivamente à nossa conduta pecaminosa, é a condição em que
nascemos. Somos por natureza filhos da ira. A palavra natureza nestas
formas de expressão sempre se opõe àquilo que é adquirido, ou
sobreposto, ou ao que se deve a uma influência ab extra ou a um
desenvolvimento interior. Paulo diz que ele e Pedro eram judeus por
natureza, isto é, eram judeus de nascimento, não por proselitismo. Diz
que os gentios fazem por natureza as coisas da lei, isto é, em virtude de
sua constituição interior, não por instruções externas. Os deuses dos
pagãos, diz ele, não são deuses por natureza. Só o são na opinião dos
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
335
homens. Na literatura clássica como na linguagem comum, dizer que os
homens são, por natureza, orgulhosos, ou cruéis, ou justos, significa
sempre que o predicado é devido a eles em virtude de sua constituição ou
condição natural, e não simplesmente devido à sua conduta ou caráter
adquirido. O dativo φύσει - phusei, nesta passagem não significa por
causa de, porque φύσις - phusis significa simplesmente natureza, seja
boa ou má. Paulo não diz diretamente que é «por causa de nossa natureza
(corrompida) que somos filhos da ira», interpretação que demanda a
introdução no texto da ideia expressa pela palavra corrompida.
Simplesmente afirma que somos filhos da ira por natureza, isto é, tal
como nascemos. Nascemos num estado de pecado e de condenação. E
esta é a doutrina da Igreja do pecado original. Nossa condição natural
não é meramente uma condição de fraqueza física, ou de propensão ao
pecado, nem de sujeição a más disposições, que, se forem abrigadas,
tornam-se pecaminosas; mas que nascemos em estado de pecado.
Rueckert, um comentarista racionalista, diz, referindo-se a esta
passagem: 241 «É perfeitamente evidente, por Rm 5:12-20, que Paulo
estava bem longe de estar oposto à ideia expressa no Sl 51:5 de que os
homens nascem pecadores, e como não interpretamos para nenhum
sistema, não tentaremos negar que o pensamento, “nascemos filhos da
ira”, isto é, tal como fomos desde o nosso nascimento ficamos expostos à
ira divina, seja o verdadeiro sentido destas palavras.»
A Bíblia descreve os homens como espiritualmente mortos
Outra maneira em que as Escrituras ensinam claramente a doutrina
do pecado original deve-se achar nas passagens que descrevem o estado
natural do homem desde a queda. Os homens, todos os homens, de todas
as nações e épocas, e de todas as condições, são descritos como
espiritualmente mortos. O homem natural, o homem tal como é por
natureza, está destituído da vida de Deus, isto é, de vida espiritual. Seu
241
Der Brief Pauli an die Epheser. Leipzig, 1834, p. 88.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
336
entendimento está entenebrecido, de maneira que não conhece nem
recebe as coisas de Deus. Não é suscetível de ser impressionado pelas
realidades do mundo espiritual. É tão insensível a elas como um homem
morto o é às coisas deste mundo. Está alienado de Deus, e é totalmente
incapaz de libertar-se por si mesmo deste estado de corrupção e desdita.
Aqueles, e só aqueles, que são renovados pelo Espírito Santo, que são
vivificados pelo poder de Deus, e que por isso mesmo são chamados
espirituais, como dirigidos e motivados por um princípio superior que
qualquer um que pertença à nossa natureza caída, são descritos como
libertados deste estado em que nascem os homens. «O homem natural»,
diz o Apóstolo, «não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são
loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem
espiritualmente» (1Co 2:14). «Ele vos deu vida, estando vós mortos nos
vossos delitos e pecados»; e não apenas vós os gentios, mas «e …nós»,
quando estávamos mortos em pecados, Deus «nos deu vida juntamente
com Cristo» (Ef 2:1, 5). O estado de todos os homens, judeus e gentios,
anterior à regeneração, é declarado como um estado de morte espiritual.
Em Ef 4:17, 18 descreve-se este estado natural do homem dizendo a
respeito dos gentios que «andam na vaidade de sua mente (isto é, em
pecado), tendo o entendimento entenebrecido, excluídos da vida de Deus
pela ignorância que há neles, pela dureza de seu coração». O estado
natural do homem é de trevas, das quais seu efeito imediato é a
ignorância e o endurecimento, e a consequente alienação de Deus. É
verdade que isto se diz dos gentios, mas o Apóstolo ensina
constantemente que o que é certo do gentio é não menos certo do judeu;
porque não há diferença, porquanto todos pecaram, e estão destituídos da
glória de Deus. Com estas poucas passagens concorda todo o teor da
Palavra de Deus. A natureza humana em seu estado atual é sempre e em
todo lugar descrita como assim entenebrecida e corrompida.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
337
Argumento com base na necessidade da Redenção.
Outro argumento sustentando a doutrina do pecado original é que a
Bíblia em todo lugar ensina que os homens necessitam da redenção
mediante o sangue de Cristo. As Escrituras não conhecem nada a
respeito da salvação de ninguém da família humana exceto por meio da
redenção que é em Cristo Jesus. Esta é tão claramente a doutrina da
Bíblia que nunca foi questionada na Igreja Cristã. As crianças precisam
da redenção assim como os adultos, porque também elas ficam incluídos
na aliança da graça. Mas a redenção, no sentido cristão do termo, é
libertação por meio do sangue de Cristo do poder e das consequências do
pecado. Cristo deveu salvar os pecadores. E não salva a ninguém mais
que a pecadores. Se salva a crianças, devem estar em estado de pecado.
não há possibilidade de evitar esta conclusão, exceto negando uma ou
outra das premissas das que se desprende. Ou temos que negar que os
crianças sejam salvas por meio de Cristo, o que é uma ideia tão anticristã
que dificilmente tem sido expressa dentro do âmbito da Igreja. Ou temos
que negar que a redenção, no sentido cristão do termo, inclui a libertação
do pecado. Esta é a postura adotada pelos que negam a doutrina do
pecado original e que, entretanto, admitem que os crianças são salvas por
meio de Cristo. Sustentam que no caso deles a redenção é meramente a
preservação do pecado. Por causa de Cristo, ou mediante Sua
intervenção, são transferidos de um estado de ser em que sua natureza se
desenvolve em santidade.
Em resposta a esta evasiva é suficiente observar: (1) Que é contrária
à doutrina clara e universalmente recebida da Bíblia quanto à natureza da
obra de Cristo. (2) que esta postura elimina a necessidade de redenção.
Mas toda a Bíblia ensina claramente que a morte de Cristo é
absolutamente necessária; que se houvesse outra maneira pela qual os
homens pudessem ser salvos, Cristo morreu em vão (Gl 2:21; 3:21).
Mas, segundo a doutrina em questão, não há necessidade para sua morte.
Se os homens são uma raça caída e não corrompida, e se podem ser
preservados de pecado com uma mera mudança em suas circunstâncias
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
338
para que então o custoso dispositivo de meios remediáveis, a encarnação,
os padecimentos e a morte do Eterno Filho de Deus, para a salvação
deles? Está bem claro que todo o plano Escriturístico da redenção está
baseado na apostasia de toda a raça humana de Deus. Assume-se que os
homens, todos os homens, os pequenos assim como os adultos, estão em
estado de pecado e de desgraça, dos quais ninguém senão um divino
Salvador pode libertá-los.
Argumento com base na necessidade da Regeneração.
Isto fica ainda mais claro com base no que as Escrituras ensinam a
respeito da necessidade da regeneração. Por regeneração se significa
tanto na Escritura como na linguagem da Igreja a renovação efetuada
pelo Espírito Santo; a mudança de coração ou de natureza efetuado pelo
poder do Espírito, mediante o qual a alma passa de um estado de morte a
um estado de vida espiritual. É esta mudança de pecado à santidade
aquele que nosso Senhor pronuncia como absolutamente essencial para a
salvação. Só os pecadores necessitam regeneração. As crianças
necessitam regeneração. Por isso, as crianças estão em estado de pecado.
O único extremo deste argumento que deve ser provado é que os
crianças precisam da regeneração no sentido que acima se explica. Mas
isto dificilmente admite alguma dúvida.
(1) Fica demonstrado pela linguagem da Escritura, que afirma que
todos os homens, a fim de entrar no Reino de Deus, devem nascer do
Espírito. A expressão que se emprega é absolutamente universal.
Significa todo ser humano descendente de Adão por geração comum.
Não se faz exceção alguma de classe, de tribo, de caráter ou de idade. E
não estamos autorizados a fazer tal exceção. Mas além disso, como
observamos anteriormente, a razão atribuída para esta necessidade do
novo nascimento aplica-se às crianças assim como aos adultos. Nosso
Senhor diz que todos os que são nascidos da carne, e porquanto são
assim nascidos, devem nascer de novo.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
339
(2) As crianças sempre foram incluídas com seus pais em cada
revelação ou promulgação da aliança da graça. A promessa de um
Redentor a nossos primeiros pais dizia respeito a seus filhos bem como a
si mesmos. A aliança com Abraão não foi somente com ele, mas também
com sua posteridade, pequenos e adultos. A aliança no Monte Sinai, que
como ensina Paulo, incluía a aliança da graça, foi solenemente ratificado
com o povo e com seus «pequenos». As Escrituras, assim, sempre
contemplam os filhos do nascimento como necessitados da salvação, e
como interessados no plano de salvação que a Bíblia tem o magno
desígnio de revelar.
(3) Isto é ainda mais evidente pelo fato de que o sinal e o selo da
aliança da graça, a circuncisão sob a Antiga dispensação, e o batismo sob
a Nova, aplicava-se a recém-nascidos. A circuncisão era certamente um
signo e sinal da aliança nacional entre Deus e os hebreus como nação.
Isto é, era o selo daquelas promessas dadas a Abraão, e depois por meio
de Moisés, que se relacionavam com a teocracia externa ou república de
Israel. Entretanto, fica claro que além destas promessas nacionais havia
também a promessa da redenção feita a Abraão, promessa que, diz
explicitamente o Apóstolo, alcançou-nos (Gl 3:14). Isto é, nós (todos os
crentes) ficamos incluídos na aliança feita com Abraão. Não está menos
claro que a circuncisão era o sinal e o selo daquela aliança. Isto fica claro
porque o Apóstolo ensina que Abraão recebeu a circuncisão como selo
da justiça da fé. Isto é, foi o selo daquela aliança que prometia e
assegurava a justiça sob a condição da fé. Está também claro porque as
Escrituras ensinam que a circuncisão tinha um sentido espiritual.
Significava purificação interior. Era administrada a fim de ensinar aos
homens que os que recebiam o rito necessitavam tal purificação, e que
esta grande bênção era prometida aos fiéis à aliança, pela qual a
circuncisão era o selo. Por isso, as Escrituras falam da circuncisão do
coração; de uma circuncisão interior efetuada pelo Espírito em distinção
da que era exterior na carne. Comparar Dt 10:16 30; Ez 44:7; At 7:51;
Rm 2:28. Com base em tudo isto, fica claro que a circuncisão não podia
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
340
ser administrada com base em seu desígnio divinamente constituído a
qualquer um que não precisasse da circuncisão ou regeneração do
coração, para fazê-los aptos para a presença e o serviço de Deus. E como
era administrada por mandato divino às crianças quando tinham oito dias
de idade, é inevitável a conclusão de que diante de Deus tais crianças,
precisam de regeneração, e por isso que nascem em pecado.
O mesmo argumento aplica-se, evidentemente, ao batismo de
crianças. O batismo é uma ordenança instituída por Cristo, para
significar e selar a purificação da alma, mediante a aspersão de seu
sangue, e sua regeneração pelo Espírito Santo. Por isso só pode ser
administrada propriamente àqueles que estão num estado de culpa e de
perdição. Entretanto, administra-se a crianças, e por isso supõe-se que as
crianças necessitam perdão e santificação. Este é o argumento que
Pelágio e seus seguidores, encontraram mais difícil de rebater. Não
podiam negar o sentido do rito. Não podiam negar que era administrado
corretamente a crianças, e entretanto recusaram admitir a inevitável
conclusão de que os crianças nascem em pecado. Por isso, foram
conduzidos à evasão artificiosa de que o batismo era administrado às
crianças não com base em seu estado atual, mas sobre a hipótese de sua
provável condição futura. Não eram pecadores, mas provavelmente
chegariam a sê-lo, e necessitariam então os benefícios dos quais o
batismo é sinal e objeto. Inclusive o Concílio de Trento encontrou
necessário protestar solenemente contra uma perversão tão manifesta de
um solene sacramento, que o reduzia a uma zombaria. A fórmula do
batismo prescrita por Cristo, e universalmente adotada pela Igreja, supõe
que aqueles a quem se administra o batismo são pecadores, e que
necessitam a remissão de pecados e a renovação do Espírito Santo.
Assim, a doutrina do pecado original fica entretecida no mesmo tecido
do cristianismo, e encontra-se na base das instituições do evangelho.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
341
Argumento com base na universalidade da morte.
Outro argumento decisivo sobre este tema é tomado da
universalidade da morte. A morte, segundo as Escrituras, é um mal
penal. Pressupõe pecado. Nenhuma criatura moral racional está sujeita à
morte, exceto por causa do pecado. Os pequeninhos morrem, e por isso
os pequeninhos são sujeitos ao pecado. A única maneira de evadir-se
deste argumento é negar que a morte seja uma inflição penal. Esta é a
postura adotada pelos que rejeitam a doutrina do pecado original.
Afirmam que se tenta um mal natural que brota da constituição original
de nossa natureza, e que por isso não é mais uma prova de que todos os
homens são pecadores que a morte dos brutos demonstra que eles sejam
pecadores. Em resposta a esta objeção, é evidente observar que os
homens não são brutos. O fato de que os animais irracionais, incapazes
de pecar, estejam sujeitos à morte, não constitui então evidência de que
as criaturas morais possam estar sujeitas com justiça ao mesmo mal,
embora livres de pecado. Mas, em segundo lugar, o que é de muito maior
peso, a objeção está em oposição direta às declarações da Palavra de
Deus. Segundo a Bíblia, a morte no caso do homem é um castigo. Adão
foi ameaçado com ela como a pena da transgressão. Se não tivesse
pecado, tampouco teria morrido. O Apóstolo declara de maneira
expressa que a morte é o pagamento (ou castigo) do pecado; e a morte é
devido ao pecado (Rm 6:23 e 5:12). Ele não só o declara como um fato,
mas também o adota como princípio, fazendo disso a base de todo o seu
argumento em Rm 5:12-20. Sua doutrina, como aqui a expõe, é que onde
não há lei não há pecado. E onde não há pecado, não há castigo. Todos
os homens são castigados, e portanto todos os homens são pecadores. O
fato de que todos os homens são castigados ele o demonstra pelo fato de
que todos morrem. A morte é o castigo. A morte, diz ele, reinou desde
Adão até Moisés. Reina inclusive sobre aqueles que não pecaram em sua
própria pessoa por transgressão voluntária, como fez Adão. Reina sobre
os pequeninhos. Passou absolutamente a todos os homens, porquanto
todos são pecadores. Não se pode pôr em dúvida que este é o argumento
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
342
do Apóstolo; e tampouco se pode pôr em dúvida que este argumento está
baseado na pressuposição de que a morte, no caso do homem, é um mal
penal, e que sua inflição é uma prova inegável de culpa. Por isso,
devemos ou rejeitar a autoridade das Escrituras, ou admitir que a morte
dos pequeninhos é uma prova de sua pecaminosidade.
Embora o argumento do Apóstolo, tal como se enunciou
anteriormente, é uma prova direta do pecado original (ou da corrupção
inerente, hereditária), não é menos prova, como se enfatizou em outra
ocasião, da imputação do pecado de Adão. Paulo argumenta em Rm
5:12-20 para demonstrar que assim como em nossa justificação a retidão
sobre cuja base somos aceitos não é subjetivamente nossa, mas a retidão
de outro, de Cristo, da mesma maneira a razão humana de nossa
condenação à morte é o pecado de Adão, algo fora de nós, e não
pessoalmente nosso. Mas deve lembrar-se que a morte da qual ele fala
conforme ao uso uniforme da Escritura, nestes contextos, é a morte de
um homem; uma morte apropriada para sua natureza como ser moral
formado à imagem de Deus. A morte com que se ameaçou a Adão não
era a mera dissolução de seu corpo, mas sim morte espiritual, a perda da
Vida de Deus. A morte física das crianças é uma prova patente de que
estão sujeitas à pena que sobreveio aos homens (que entrou no mundo e
que passou a todos os homens) devido a um homem ou pela
desobediência de um. E porquanto aquela pena era a morte espiritual,
assim como a dissolução do corpo, a morte dos crianças é uma prova
escriturística e decisiva de seu nascimento destituídos da retidão original
e infectados com uma pecaminosa corrupção da natureza. Sua morte
física, é prova de que estão envolvidos na pena, cujo principal elemento
é a morte espiritual da alma. Foi pela desobediência de um homem que
todos são constituídos pecadores, não só por imputação (o que é certo, e
de grande importância), mas também por depravação inerente. Como é
pela desobediência de um homem que todos são constituídos justos, não
só por imputação (o que é verdade e vitalmente importante), mas
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
343
também pela conseguinte renovação de sua natureza fluindo de sua
reconciliação com Deus.
Argumento com base no consentimento comum dos cristãos
Finalmente, é justo, a respeito desta questão, apelar à fé da Igreja
universal. Os protestantes, ao rejeitar a doutrina da Tradição, e ao
afirmar que a Palavra de Deus contida nas Escrituras do Antigo e do
Novo Testamento é a única norma infalível de fé e de prática não
rejeitam a autoridade da Igreja como mestra. Não se isolam da grande
companhia dos fiéis em todas as idades, para estabelecer uma nova fé.
Mantêm que Cristo prometeu o Espírito Santo para conduzir o Seu povo
ao conhecimento da verdade; que o Espírito habita como mestre em
todos os filhos de Deus, e que os que nascem de Deus são assim levados
ao conhecimento e à crença da verdade. Assim, há para a verdadeira
Igreja, ou o verdadeiro povo de Deus, só uma fé, como assim só tem um
Senhor e um Deus, o Pai de todos. Portanto, qualquer doutrina que possa
ser demonstrada como uma parte da fé (não da Igreja externa e visível,
mas sim) dos verdadeiros filhos de Deus em todas as eras do mundo, tem
que ser certa. Deve ser recebida não porque seja universalmente crida,
mas porque o fato de que seja universalmente crida por verdadeiros
cristãos é uma prova de que é ensinada pelo Espírito tanto em Sua
palavra como nos corações de Seu povo. Este é um são princípio
reconhecido por todos os Protestantes. Esta fé universal da Igreja não
deve ser buscada tanto nas decisões dos concílios eclesiásticos como nas
fórmulas devocionais que prevaleceram entre o povo. Como
frequentemente se observa, é nas orações, na hinologia, nos escritos
devocionais que os verdadeiros crentes estabelecem como canal de sua
comunhão com Deus, e o meio através do qual expressam suas mais
íntimas convicções religiosas, que devemos buscar a fé universal. Da fé
do povo de Deus ninguém se pode separar sem perder a comunhão dos
santos, e sem colocar-se fora do âmbito dos verdadeiros crentes. Se estas
coisas se admitem, temos que admitir a doutrina do pecado original.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
344
Certamente, esta doutrina recebeu várias explicações, e em muitos casos
foi desvirtuada por teólogos e por concílios, mas está indelevelmente
gravada na fé da verdadeira Igreja. Impregna as orações, o culto e as
instituições da Igreja. Todos os verdadeiros cristãos estão convencidos
de pecado; estão convencidos não só de suas transgressões individuais,
mas também da depravação de seus corações e naturezas. Reconhecem
esta depravação como inata e dominante. Gemem sob ela como sob uma
pesada carga. Sabem que por natureza são filhos da ira. Os pais levam
seus filhos a Cristo para ser lavados por Seu sangue e renovados por Seu
Espírito com tanta ansiedade como as mães se amontoavam ao redor de
nosso Senhor, com suas sofredoras crianças, para que fossem curados
por Sua graça e poder. Assim, sejam quais forem as dificuldades que
possa levar a doutrina do pecado original, devemos aceitá-la como
claramente ensinada nas Escrituras, confirmada pelo testemunho da
consciência e da história, e sustentada pela fé da Igreja universal.
Objeções
Deve-se admitir que as objeções a esta doutrina são muitas e sérias.
Mas isto é verdade de todas as grandes doutrinas da religião, seja natural
ou revelada. E tais dificuldades não se limitam à esfera da religião.
Nosso conhecimento, em todos os campos, está muito limitado, e está,
em grande medida, limitado a atos isolados. Sabemos que uma pedra cai
ao solo, que uma semente germina e produz uma planta de seu própria
natureza; mas nos é totalmente impossível compreender como se
conseguem estes efeitos com os quais estamos tão familiarizados.
Sabemos que Deus é, e que governa todas suas criaturas, mas não
conhecemos como Sua eficaz atividade controladora concorda com o
livre-arbítrio dos seres racionais. Sabemos que existem o pecado e a
desgraça no mundo, e sabemos que Deus é infinito em poder, santidade e
benevolência. O que não sabemos é como conciliar a prevalência do
pecado com o caráter de Deus. Estes são alguns atos familiares e
universalmente admitidos, tanto em filosofia como em religião. Uma
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
345
coisa pode ser certa, e com frequência o é, contra a qual se possam fazer
objeções que ninguém pode responder. Há dois importantes princípios
práticos que se seguem dos atos recém-mencionados. Primeiro, que o
fato de que não possamos limpar de objeções e dificuldades uma verdade
bem autenticada não é uma base suficiente ou racional para rejeitá-la. E
segundo, que se deve considerar como suficientemente respondida
qualquer objeção contra uma doutrina religiosa se pode mostrar-se que
se enfrenta no mesmo sentido contra um fato inegável. Se a objeção não
é uma causa racional para negar o fato, não é uma causa racional para
rejeitar a doutrina. Este é o método que os escritores sagrados adotam
para vindicar a verdade.
Ver-se-á que quase todas as objeções contra a doutrina do pecado
original, ou não se referem à evidência da verdade da doutrina seja
derivada da Escritura ou da experiência, mas à dificuldade de conciliá-la
com outras verdades, ou se insiste em que estas objeções são fatais para
a doutrina quando na realidade são igualmente válidas contra os atos da
providência como o são contra os ensinos da Escritura.
A objeção de que os homens são responsáveis apenas por
seus atos voluntários.
1. A objeção mais evidente à doutrina do pecado original se baseia
na hipótese de que nada pode ter caráter moral mais que os atos
voluntários e os estados da mente resultantes ou produzidos por nossa
atividade voluntária, e que estão sujeitos ao poder da vontade. Esta
objeção descansa sobre um princípio que já foi considerado. Chega
muito longe. Se fosse são, então não pode existir uma santidade
concriada, ou graça habitual, ou pecado inato, ou inerente ou residente.
Mas já vimos, ao tratar da natureza do pecado, que segundo as
Escrituras, e o testemunho da consciência e o juízo universal dos
homens, que o caráter moral das disposições depende de sua natureza e
não de sua origem. Adão era santo, embora criado assim. Os santos são
santos, embora regenerados e santificados pelo poder onipotente de
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
346
Deus. E por isso a alma é verdadeiramente pecaminosa se está sujeita a
disposições pecaminosas, embora estas disposições sejam inatas e
totalmente além do controle da vontade. Aqui se verá que a objeção não
vai contra a evidência escriturística da doutrina de que os homens
nascem em pecado, nem contra o testemunho dos fatos da verdade de tal
doutrina: baseia-se na dificuldade de conciliar a doutrina do pecado inato
com certos princípios adotados com relação à natureza e às bases da
obrigação moral. Tanto se podemos refutar estes princípios como se não,
isso não afeta a veracidade da doutrina. Do mesmo modo poderíamos
negar toda profecia e toda providência pelo fato de que não possamos
conciliar o controle absoluto dos agentes livres com sua liberdade. Se o
axioma moral que se adota de que um homem só pode ser responsável
por suas próprias ações entra em conflito com os fatos da experiência e
os ensinos das Escrituras, o racional é negar o pretendido axioma, e não
rejeitar os fatos com os quais o axioma está em conflito. A Bíblia, a
Igreja, a massa da humanidade e a consciência consideram o homem
responsável por seu caráter, com independência de como fosse formado
o caráter, ou de onde se derivasse; portanto, a doutrina do pecado
original não entra em conflito com verdades morais intuitivas.
Objeção baseada na justiça de Deus.
2. Objeta-se que é inconsistente com a justiça de Deus que os
homens venham ao mundo em estado de pecado. Como resposta a esta
objeção pode-se observar: (1) Que tudo o que Deus faz deve estar bem.
Se Ele permite que os homens nasçam em pecado, este fato deve ser
consistente com Sua perfeição divina. (2) É um fato da experiência, não
menos que doutrina da Escritura, que os homens nascem, ou em estado
de pecado e condenação, tal como a Igreja ensina, ou, como todos devem
admitir, num estado que inevitavelmente leva a que sejam pecaminosos e
desgraçados. Portanto, esta objeção milita tanto contra um fato
providencial como contra a doutrina das Escrituras. Ou temos que negar
a Deus, ou admitir que a existência e universalidade do pecado entre os
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
347
homens é compatível com Sua natureza e com Seu governo do mundo.
(3) A Bíblia, como com frequência se observou antes, dá conta da
corrupção de nossa raça e a explica sobre a base de que a humanidade
teve uma plena e justa prova em Adão, e que a morte espiritual em que
nascem faz parte da pena judicial de sua transgressão. Se rejeitarmos esta
solução do fato, não podemos negar o próprio fato, e, sendo um fato, tem
que ser consistente com o caráter de Deus.
A doutrina representa a Deus como autor do pecado.
3. Uma terceira objeção em que se insiste com frequência e com
confiança é que a doutrina da Igreja nesta questão faz de Deus o autor do
pecado. Deus é o autor de nossa natureza. Se nossa natureza é
pecaminosa, Deus deve ser o autor do pecado. A evidente falácia deste
silogismo é que a palavra natureza é empregada num sentido na premissa
maior, e em sentido distinto na menor. Na primeira significa substância
ou essência; na segunda, disposição natural. É verdade que Deus é o
autor de nossa essência. Mas nossa essência não é pecaminosa. Deus é
certamente nosso Criador. Ele nos fez, e não nós a nós mesmos. Somos
obra de Suas mãos. Ele é o Pai dos espíritos de todos os homens. Mas
Ele não é o autor das más disposições com as quais a natureza está
infectada ao nascer. A doutrina do pecado original não atribui a Deus
nenhuma eficiência na produção do mal. Simplesmente supõe que Ele
abandona a nossa raça apóstata, e retira dos descendentes de Adão as
manifestações de Seu favor e amor, que são a vida da alma. O fato de
que a inevitável consequência deste abandono judicial seja a morte
espiritual não faz de Deus o autor do pecado como tampouco a
imoralidade e a desesperada e imutável perversidade dos réprobos, aos
que Deus priva de Seu Espírito, pode ser atribuída ao imensamente Santo
como seu autor. É além disso um fato histórico universalmente admitido
que o caráter, dentro de certos limites, é transmissível de pais a filhos.
Cada nação, cada tribo separada, e inclusive cada família humana
estendida, tem suas peculiaridades físicas, mentais, sociais e morais que
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
348
se propagam de geração em geração. Nenhum processo de disciplina ou
de cultura posso transformar a um tártaro num inglês, nem um irlandês
em francês. Os Borbões, os Habsburgos e outras famílias históricas,
retiveram e transmitiram suas peculiaridades ao longo dos séculos. Pode
ser que não nos seja possível explicá-lo, mas não podemos negá-lo.
Ninguém nasce como homem absoluto, sem pertencer nada mais que à
humanidade genérica. Cada um nasce como homem num estado
determinado, com todas aquelas características físicas, mentais e morais
que constituem sua individualidade. Assim, nada há na doutrina da
depravação hereditária que se encontre fora de analogia com os atos da
providência.
Diz-se que destrói o livre-arbítrio dos homens.
4. Objeta-se, ademais, que esta doutrina destrói o livre-arbítrio dos
homens. Se nascemos com uma natureza corrompida pela qual nos
vemos inevitavelmente determinados a atos pecaminosos, deixamos de
ser livres na execução de tais atos, e consequentemente não somos
responsáveis pelos mesmos. Esta objeção se baseia numa teoria
particular da liberdade, e deve manter-se ou cair com ela. A mesma
objeção apresenta-se contra a doutrina dos decretos, da graça eficaz, da
perseverança dos santos; e todas as outras doutrinas que supõem que um
ato livre pode ser totalmente certo quanto à sua ocorrência. É suficiente
aqui observar que a doutrina do pecado original supõe que os homens
têm a mesma classe e o mesmo grau de liberdade para pecar sob a
influência de uma natureza corrompida como a que têm os santos e os
anjos para agir retamente sob a influência de uma natureza santa. Agir
em conformidade com sua natureza é a única liberdade que pertence a
todo ser criado.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
§ 14. O Assento do Pecado Original.
349
Tendo considerado a natureza do pecado original, a questão
seguinte diz respeito à sua sede. Segundo uma teoria, é no corpo. O
único mau efeito do pecado de Adão sobre sua posteridade que admitem
alguns teólogos é a desordem de sua natureza física, pela qual os apetites
e as paixões do corpo adquirem uma indevida influência. Escassamente
distinguível desta teoria é a doutrina de que a natureza sensual do
homem, em distinção de sua razão e consciência, é a única coisa que fica
afetado por nossa depravação hereditária. Uma terceira doutrina é que o
coração, considerado como o assento dos afetos em distinção ao
entendimento, é o assento da depravação natural. Esta doutrina está
conectada com a ideia de que todo pecado e santidade são formas de
sentimento ou estados dos afetos. E dela faz-se a base sobre a qual se
explicam a natureza da regeneração e da conversão, a relação entre o
arrependimento e a fé, e outros pontos da teologia prática. Tudo se faz
depender das inclinações ou estado dos sentimentos. Em lugar de que as
afetos sigam ao entendimento, o entendimento, diz-se, segue aos afetos.
Um homem compreende e recebe a verdade só quando a ama. A
regeneração é simplesmente uma mudança no estado dos afetos, e a
única incapacidade sob a qual os pecadores trabalham quanto às coisas
de Deus é uma falta de inclinação às mesmas. Em oposição a todas estas
doutrinas, o Agostinianismo, tal como o mantêm as Igrejas Luterana e
Reformadas, ensina que todo o homem, alma e corpo, o mais alto assim
como o mais baixo, e as faculdades intelectuais assim como as
emocionais da alma, está afetado pela corrupção de nossa natureza
derivada de nossos primeiros pais.
Assim como as Escrituras falam do corpo como santificado em dois
sentidos, primeiro, como consagrado para o serviço de Deus, e segundo,
como estando numa condição normal em todas as suas relações com
nossa natureza espiritual, a fim de ser um instrumento adequado de
justiça, e também como partícipe dos benefícios da redenção, também
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
350
mostram o corpo como afetado pela apostasia de nossa raça. Não apenas
é empregado no serviço do pecado ou como instrumento de injustiça:
além disso está deteriorado em todos os respeitos. É desordenado em
seus anelos, rebelde e difícil de refrear. É, como diz o Apóstolo, o oposto
ao corpo glorioso e espiritual com o qual será mais adiante revestido o
crente.
Toda a alma é o Assento do Pecado Original.
A teoria de que os afetos (ou, o coração no sentido limitado da
palavra), com exclusão das faculdades racionais, são a única coisa que
fica afetada pelo pecado original, é antiescriturística, e a doutrina oposta
que faz de toda a alma o centro da corrupção inerente é a doutrina da
Bíblia, tal como fica evidente:
1. Porquanto as Escrituras não fazem a ampla distinção entre o
entendimento e o coração, como o faz usualmente em nossa filosofia.
Nelas fala-se dos «pensamentos do coração», das «imaginações do
coração» e dos «olhos do coração», assim como de suas emoções e
afetos. Todo o princípio imaterial é designado na Bíblia como a alma, o
espírito, a mente, o coração. Assim, quando fala do coração, significa o
homem, o eu, aquilo em que reside a individualidade pessoal. Se o
coração está corrompido, toda a alma está corrompida com todos os seus
poderes.
2. A doutrina oposta assume que não há nada moral em nossas
cognições ou em nossos juízos; que todo conhecimento é puramente
especulativo. Enquanto que, segundo a Escritura os principais pecados
dos homens consistem em seus juízos errôneos, em pensar e crer que o
mau é bom, e que o bom é mau. Este é, em sua forma mais elevada, tal
como nos ensina isso nosso Senhor, o pecado imperdoável, ou a
blasfêmia contra o Espírito Santo. Foi devido ao fato de que os fariseus
pensavam que Cristo era mau, que Suas obras eram as obras de Satanás,
que Ele declarou que jamais poderiam ser perdoados. Foi porque Paulo
não podia ver em Cristo beleza para desejá-lo, e porque verdadeiramente
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
351
pensou que estava fazendo um serviço a Deus ao perseguir os crentes,
que foi, e se declarou a si mesmo como sendo, o primeiro dos pecadores.
Como a Bíblia o revela claramente, que os homens estão perdidos devese ao fato de que os homens são ignorantes de Deus, e a que estão cegos
à manifestação de Sua glória na pessoa de Seu Filho. Por outro lado, a
mais sublime forma de excelência moral consiste em conhecimento.
Conhecer a Deus é vida eterna. Conhecer Cristo é ser como Cristo. O
mundo, diz Ele, não me conheceu, mas estes (os crentes) Me
conheceram. A verdadeira religião consiste no conhecimento do Senhor,
e a prevalência universal deste conhecimento é predita com estas
palavras: «Todos me conhecerão, do menor até o maior, diz o Senhor.»
Através das Escrituras, a sabedoria é piedade, os sábios são os bons; a
insensatez é pecado, e os insensatos são os maus. Nada pode ser mais
repugnante à filosofia da Bíblia que a dissociação do caráter moral do
conhecimento, e nada pode estar mais em desacordo com a nossa própria
consciência. Sabemos que cada afeto numa criatura racional inclui um
exercício das faculdades cognitivas; e cada exercício de nossas
faculdades cognitivas, com relação a temas morais e religiosos, inclui o
exercício de nossa natureza moral.
3. Um terceiro argumento a respeito desta questão é tomada do fato
de que toda a Bíblia apresenta o homem natural ou irregenerado como
cego ou ignorante quanto às coisas do Espírito. Declara que não as pode
conhecer. E a condição caída da natureza humana é apresentada como
consistindo primariamente em sua cegueira mental. Os homens estão
corrompidos, diz o Apóstolo, pela ignorância que está neles.
4. A conversão afirma-se que consiste na translação das trevas à
luz. Diz-se que Deus abre os olhos. Afirma-se que os olhos do
entendimento (ou coração) são iluminados. Declara-se todos os crentes
como sujeitos de uma iluminação espiritual. Paulo descreve sua própria
conversão, dizendo que «Deus revelou a Seu Filho em mim». Abriu-lhe
os olhos para capacitá-lo a ver que Jesus era o Filho de Deus, ou Deus
manifestado em carne. Com isso chegou a ser uma nova criatura, e toda a
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
352
sua vida foi dedicada ao serviço dAquele a quem antes odiava e
perseguia.
5. Afirma-se que o conhecimento é o efeito da regeneração. Os
homens são renovados para poder conhecer. São trazidos ao
conhecimento da verdade; e são santificados pela verdade. Com base em
todas estas considerações, é evidente que todo o homem é o sujeito do
pecado original; que nossa natureza cognitiva, assim como a emocional,
está envolvida na depravação consequente à nossa apostasia de Deus;
que em nosso conhecimento, assim como em nosso amar e querer,
estamos sob a influência e domínio do pecado.
§ 15. Incapacidade.
O terceiro grande ponto incluído na doutrina escriturística do
pecado original é a incapacidade do homem caído, em seu estado natural,
para fazer por si mesmo algo bom espiritualmente. Isto se inclui
necessariamente na ideia da morte espiritual. A respeito desta questão
nos propomos: (1) Enunciar a doutrina tal como se apresenta nos
símbolos das igrejas Protestantes. (2) Explicar a natureza da
incapacidade sob a qual se afirma que trabalha o pecador. (3) Exibir as
provas escriturísticas da doutrina; e (4) Responder às objeções que
geralmente se apresentam contra ela.
A doutrina tal como é indicada nos Símbolos Protestantes
Têm prevalecido na Igreja três posturas gerais quanto à capacidade
do homem caído. A primeira, a doutrina Pelagiana, que afirma a
capacidade plenária dos pecadores para fazer tudo o que Deus demanda
deles. A segunda é a doutrina Semipelagiana (tomando o termo
Semipelagiano em seu sentido amplo e popular), que admite que as
capacidades humanas ficaram debilitadas pela queda da raça humana,
mas que nega que se tenha perdido toda capacidade para efetuar o que é
espiritualmente bom. E em terceiro lugar, a doutrina Agostiniana, ou
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
353
Protestante, que ensina que tal é a natureza da depravação inerente e
hereditária que os homens, desde a Queda, são totalmente incapazes de
voltar-se a si mesmos para Deus, ou fazer algo verdadeiramente bom
diante dEle. Com estas três perspectivas a respeito da capacidade dos
homens caídos se incluem suas correspondentes perspectivas a respeito
da graça, ou da influência e operações do Espírito Santo na regeneração
e conversão do homem. Os Pelagianos negam a necessidade de qualquer
influência sobrenatural do Espírito na regeneração e santificação dos
homens. Os Semipelagianos admitem a necessidade desta divina
influência para ajudar os debilitados poderes do homem na obra de
voltar-se para Deus, mas pretendem que o pecador coopera nessa obra e
que o resultado depende de sua cooperação voluntária. Os Agostinianos
e Protestantes atribuem toda a obra de regeneração ao Espírito de Deus,
sendo a alma passiva nisso, e não agente da mudança; embora ativa e
cooperando em todos os exercícios da vida divina da qual foi feita
receptora.
A doutrina da incapacidade do pecador é assim indicada nos
símbolos da Igreja Luterana. A “Confissão de Augsburgo” 242 diz:
“Humana voluntas habet aliquam libertatem ad efficiendam civilem
justitiam et deligendas res rationi subjectas. Sed non habet vim sine
Spiritu Sancto efficiendæ justitiæ Dei, seu justitiæ spiritualis, quia
animalis homo non percepit ea quæ sunt Spiritus Dei (1Cor. 2.14); sed
hæc fit in cordibus, cum per verbum Spiritus Sanctus concipitur. Hæc
totidem verbis dicit Augustinus; 243 est, fatemur, liberum arbitrium
omnibus hominibus; habens quidem judicium rationis, non per quod sit
idoneum, quæ ad Deum pertinent, sine Deo aut inchoare aut certe
peragere: sed tantum in operibus vitæ presentis, tam bonis, quam etiam
malis.”
242
243
I. xviii.; Hase, Libri Symbolici, pp. 14, 15.
Hypomnesticon, seu Hypognosticon, lib. III. iv. 5; Works, edit. Benedictines, vol. x. p. 2209, a.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
354
244
“Formula Concordiæ:”
“Etsi humana ratio seu naturalis
intellectus hominis, obscuram aliquam notitiæ illius scintillulam
reliquam habet, quod sit Deus, et particulam aliquam legis tenet: tamen
adeo ignorans, coeca, et perversa est ratio illa, ut ingeniosissimi homines
in hoc mundo evangelium de Filio Dei et promissiones divinas de æterna
salute legant vel audiant, tamen ea propriis viribus percipere, intelligere,
credere et vera esse, statuere nequeant. Quin potius quanto diligentius in
ea re elaborant, ut spirituales res istas suæ rationis acumine indagent et
comprehendant, tanto minus intelligunt et credunt, et ea omnia pro
stultitia et meris nugis et fabulis habent, priusquam a Spiritu Sancto
illuminentur et doceantur.” Nuevamente, 245 “Natura corrupta viribus suis
coram Deo nihil aliud, nisi peccare possit.”
“Sacræ literæ hominis non renati cor duro lapidi, qui ad tactum non
cedat, sed resistat, idem rudi trunco, interdum etiam feræ in domitæ
comparant, non quod homo post lapsum non amplius sit rationalis
creatura, aut quod absque auditu et meditatione verbi divini ad Deum
convertatur, aut quod in rebus externis et civilibus nihil boni aut mali
intelligere possit, aut libere aliquid agere vel omittere queat.” 246
“Antequam homo per Spiritum Sanctum illuminatur, convertitur,
regeneratur et trahitur, ex sese, et propriis naturalibus suis viribus in
rebus spiritualibus, et ad conversionem aut regenerationem suam nihil
inchoare, operari, aut coöperari potest, nec plus, quam lapis, truncus, aut
limus.” 247
A doutrina das igrejas reformadas é neste mesmo sentido. 248
“Confessio Helvetica II.:” “Non sublatus est quidem homini intellectus,
non erepta ei voluntas, et prorsus in lapidem vel truncum est
commutatus: cæterum illa ita sunt immutata et inminuta in homine, ut
244
II. 9; Hase, p. 657.
I. 25; Ibid. p. 643.
246
II. 19; Ibid. p. 661.
247
II. 24; Ibid. p. 662.
248
IX.; Niemeyer, Collectio Confessionum, p. 479.
245
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
355
non possint amplius, quod potuerunt ante lapsum. Intellectus enim
obscuratus est: voluntas vero ex libera, facta est voluntas serva. Nam
servit peccato, non nolens, sed volens. Etenim voluntas, non noluntas
dicitur. . . . .
“Quantum vero ad bonum et ad virtutes, intellectus hominis, non
recte judicat de divinis ex semetipso. . . . Constat vero mentem vel
intellectum ducem esse voluntatis, cum autem coecus sit dux, claret
quousque et voluntas pertingat. Proinde nullum est ad bonum homini
arbitrium liberum, nondum renato; vires nullæ ad perficiendum bonum. .
. . . 249 Cæterum nemo negat in externis, et regenitos et non regenitos
habere liberum arbitrium. . . . . Damnamus in hac causa Manichæos, qui
negant homini bono, ex libero arbitrio fuisse initium mali. Damnamus
etiam Pelagianos, qui dicunt hominem malum sufficienter habere
liberum arbitrium, ad faciendum præceptum bonum.”
“Confessio Gallicana:” “Etsi enim nonnullam habet boni et mali
discretionem: affirmamus tamen quicquid habet lucis mox fieri tenebras,
cum de quærendo Deo agitur, adeo ut sua intelligentia et ratione nullo
modo possit ad eum accedere: item quamvis voluntate sit præditus, qua
ad hoc vel illud movetur, tamen quum ea sit penitus sub peccato captiva,
nullam prorsus habet ad bonum appetendum libertatem, nisi quam ex
gratia et Dei dono acceperit.” 250
“Articuli XXXIX:” “Ea est hominis post lapsum Adæ conditio, ut
sese naturalibus suis viribus et bonis operibus ad fidem et invocationem
Dei convertere ac præparare non possit. Quare absque gratia Dei quæ per
Christum est nos præveniente, ut velimus et cooperante dum volumus, ad
pietatis opera facienda, quæ Deo grata sunt ac accepta, nihil valemus.” 251
249
Niemeyer, p. 481.
ix.; Ibid. p. 331.
251
x.; Ibid. p. 603.
250
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
356
“Opera quæ fiunt ante gratiam Christi, et Spiritus ejus afflatum,
cum ex fide Christi non prodeant minime Deo grata sunt. . . . . Immo,
cum non sint facta ut Deus illa fieri voluit et præcepit, peccati rationem
habere non dubitamus.” 252
Cânones de Dort: 253 «Todos os homens são concebidos em pecado
e, ao nascer como filhos da ira, incapazes de algum bem saudável ou
salvífico, e inclinados ao mal, mortos em pecados e escravos do pecado;
e não querem nem podem voltar para Deus, nem corrigir sua natureza
corrompida, nem por eles mesmos melhorar a mesma, sem a graça do
Espírito Santo, que é quem regenera.» «É bem verdade que depois da
Queda ficou ainda no homem alguma luz da natureza, mediante a qual
conserva algum conhecimento de Deus, das coisas naturais, da distinção
entre o que é lícito e ilícito, e também mostra alguma prática rumo à
virtude e a disciplina externa. Mas está por ver que o homem, por esta
luz da natureza, poderia chegar ao conhecimento salvífico de Deus, e
converter-se a Ele quando, nem ainda em assuntos naturais e cívicos,
tampouco usa retamente esta luz; antes bem, seja como for, a empatia
totalmente de diversas maneiras, e a subjuga em injustiça; e visto que ele
faz isto, portanto se priva de toda desculpa diante de Deus.» 254
Na Confissão de Westminster 255 declara-se nas seções segunda e
terceira que o pecado original inclui a perda da retidão original e uma
natureza corrompida, «pela qual», declara-se na quarta seção, «estamos
completamente impedidos, incapazes e opostos a todo bem e
inteiramente inclinados a todo mal».
«A capacidade que os crentes têm para fazer boas obras, não é deles
de maneira nenhuma, mas completamente do Espírito de Cristo.» 256 A
252
xiii.; Ibid. p. 604.
III. iii.; Ibid. p. 709.
254
III. iv.; Niemeyer.
255
Capítulo vi.
256
Ibid. ch. XV. i. § 3.
253
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
357
chamada eficaz «provém somente da livre e especial graça de Deus, e
não de qualquer outra coisa prevista no homem, o qual é nisto
inteiramente passivo, mesmo sendo vivificado e renovado pelo Espírito
Santo é capacitado para assim responder a esta chamada, e para receber a
graça oferecida e transmitida nele». 257
A natureza da incapacidade do pecador
É evidente com base nas declarações autorizadas desta doutrina, tal
como é dada nos livros simbólicos das igrejas Luterana e Reformada,
que a incapacidade sob a qual se afirma que trabalha o homem, desde a
Queda, não surge:
A incapacidade não surge da perda de nenhuma
faculdade da alma
1. Da perda de nenhuma faculdade de sua mente ou de nenhum
atributo original e essencial de sua natureza. Retém sua razão, vontade e
consciência. Tem o poder intelectual de cognição, a capacidade de
autodeterminação e a faculdade de discernir entre o bem e o mal morais.
Sua consciência, como diz o Apóstolo, aprova ou desaprova seus atos
morais.
Nem da perda do livre-arbítrio.
2. A doutrina da incapacidade do homem, assim, não supõe que o
homem tenha deixado de ser um agente moral livre. É livre porquanto
determina suas próprias ações. Cada volição é um ato de livre
autodeterminação. É um agente moral porquanto tem a consciência de
obrigação moral, e sempre que peca age contra as convicções da
consciência ou dos preceitos da lei moral. Que o homem esteja em tal
estado que prefere e escolhe uniformemente o mal em lugar do bem,
como sucede com os anjos caídos, não é mais inconsequente com seu
257
Ibid. ch. x. § 2.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
358
livre-arbítrio que o fato de estar em tal estado que prefere e escolhe o
bem com a mesma uniformidade que os santos anjos.
A incapacidade não é mera ausência de inclinação
3. A incapacidade dos pecadores, segundo a anterior exposição da
doutrina, não é uma mera ausência de inclinação ao bem. Existe esta
ausência de inclinação, mas não é a realidade final. Deve haver alguma
causa ou razão para ela. Como Deus e Cristo são imensamente
maravilhosos, o fato de que os pecadores não os amem não se pode
explicar dizendo que não estão inclinados a deleitar-se na infinita
excelência. Isto só seria dizer o mesmo com palavras diferentes. Se
alguém não percebe a beleza de uma obra de arte, ou de uma produção
literária, não se explica o fato dizendo que a pessoa não tem inclinação
para tais formas de beleza. A que se deve que o que é belo por si mesmo,
e na opinião de todos os competentes para julgar, não tem aparência nem
beleza para ele? A que se deve que a suprema excelência de Deus e tudo
o que faz com que Cristo seja distinguido entre dez mil e o
absolutamente deleitoso à vista de santos e anjos, não suscite os
correspondentes sentimentos no coração irregenerado? Assim, a
incapacidade do pecador não consiste nem em sua ausência de inclinação
ao bem, nem surge exclusivamente desta fonte.
Surge da carência de discernimento escriturístico.
4. Segundo as Escrituras e as normas de doutrina acima assinaladas,
consiste na carência de capacidade de discernir retamente as coisas
espirituais, e a conseguinte carência de todos os afetos retos com relação
a eles. E esta carência de capacidade para o discernimento espiritual
surge da corrupção de toda nossa natureza, devido à que a razão ou o
entendimento ficam cegados, e o gosto e os sentimentos ficam
pervertidos. E como este estado mental é inato, porquanto é o estado ou
condição de nossa natureza, encontra-se atrás da vontade, e além de seu
poder, controlando tanto nossos afetos como nossas volições. É
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
359
certamente um fato conhecido da experiência que os juízos do homem
com relação ao que é verdadeiro ou falso, correto ou incorreto, ficam em
muitos casos determinados por seus interesses ou sentimentos. Alguns,
em suas filosofias, generalizaram este fato, dando-lhe a posição de lei, e
ensinam que quanto a todos os temas estéticos e morais, os juízos e as
apreensões do entendimento ficam determinados pelo estado dos
sentimentos. Ao aplicar esta lei às questões religiosas, insistem em que
só os afetos ficam sujeitos à corrupção moral, e que se estes são
purificados ou renovados, o entendimento compreende e julga retamente
então já por si só. Seria fácil ver que isto, como teoria física é totalmente
insatisfatório. Os afetos supõem um objeto. Só podem ser suscitados à
vista de um objeto. Se amamos, temos que amar algo. O amor é
complacência e delícia na coisa amada, e necessariamente supõe uma
apreensão do mesmo como bom e desejável. É evidentemente impossível
que amemos a Deus a não ser que compreendamos Sua natureza e
perfeições; e por isso é necessário, para que o amor seja exercido, que a
mente compreenda a Deus tal como Ele realmente é. Em outro caso, os
afetos não seriam nem racionais nem santos. Mas isto é de importância
subordinada. A filosofia de um homem não tem autoridade para outros
homens. Só somos chamados a nos submeter sem vacilação alguma à
filosofia da Bíblia, àquela que se pressupõe nas declarações doutrinais da
Palavra de Deus. Em todo lugar nas Escrituras se declara ou se assume
que os sentimentos seguem ao entendimento; que a iluminação da mente
na devida apreensão dos objetos espirituais é a necessária condição
preliminar de todo sentimento reto e conduta deste modo reta. Temos
que conhecer a Deus a fim de amá-lo. Isto o declara o Apóstolo de
maneira expressa em 1Co 2:14. Ali diz ele: (1) Que o homem natural ou
irregenerado não recebe as coisas do Espírito. (2) Declara-se que a razão
pela qual não as recebe é que se discernem espiritualmente. A razão ou
causa da incredulidade é a ignorância, a ausência de discernimento da
beleza, excelência e propriedade das coisas do Espírito (isto é, das
verdades que o Espírito revelou). Assim, por exemplo, em Ef 4:18, onde
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
360
diz que os gentios (os inconversos) estão «excluídos da vida de Deus
pela ignorância que há neles». Por esta razão ele ora tão frequentemente
pela iluminação de seus leitores; e também a súplica do Salmista para
que seus olhos fossem abertos. Daí também que a verdadeira conversão
tenha lugar mediante uma revelação. Paulo foi mudado instantaneamente
de perseguidor a adorador de Cristo, quando a Deus teve por bem revelar
o Seu Filho nele. Aqueles que perecem, perecem porque o deus deste
mundo cegou seus olhos de maneira que não chegam a ver a glória de
Deus na face de Jesus Cristo. É em conformidade com este princípio que
é essencial o conhecimento para a santidade, que se diz que a verdadeira
religião e a vida eterna consistem no conhecimento de Deus (Jo 17:3), e
que dos homens diz-se que são salvos e santificados pela verdade.
Assim, é a clara doutrina da Bíblia que a incapacidade dos homens
não consiste na mera ausência de inclinação ou oposição de sentimentos
às coisas de Deus, mas que esta ausência de inclinação ou exclusão,
como a chama o Apóstolo, surge da cegueira de suas mentes. Entretanto,
não devemos ir ao extremo oposto, e adaptar o que foi chamado «o
sistema da luz», que ensina que os homens são regenerados pela luz ou
pelo conhecimento, e que tudo o que é preciso é que sejam abertos os
olhos do entendimento. Como é toda a alma que está sujeita ao pecado
original, toda a alma é sujeita da regeneração. Um cego não pode
desfrutar nas belezas da natureza ou da arte até que a vista lhe seja
restaurada. Mas, se não é cultivada, a mera restauração da vista não lhe
dará a percepção da beleza. Toda a sua natureza tem que ser elevada e
cultivada. Da mesma maneira é toda a natureza do homem apóstata a que
tem que ser renovada pelo Espírito Santo; então, com seus olhos abertos
à glória de Deus em Cristo, se alegrará nEle com uma alegria inefável e
cheia de glória. Mas a iluminação da mente é indispensável para
sentimentos santos, e é a causa imediata dos mesmos. Sendo esta a
doutrina da Bíblia, segue-se disso que a incapacidade do pecador não
consiste meramente numa ausência de inclinação à santidade.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
361
A incapacidade, declarada só com referência às «Coisas do
Espírito»
5. Esta incapacidade se declara só com referência às coisas do
Espírito». Admite-se em todas as Confissões anteriormente citadas que
desde a Queda o homem tem não apenas a liberdade de eleição ou poder
de autodeterminação, mas também é capaz de executar atos morais, bons
assim como maus. Pode ser amável e justo, e cumprir seus deveres
sociais de um modo que mereça a aprovação de seus semelhantes. Não
se significa que o estado mental pelo qual estes atos são executados, nem
os motivos pelos quais são determinados, sejam tais que mereçam a
aprovação de um Deus imensamente santo; mas simplesmente que estas
ações quanto à sua forma, estão prescritas pela lei moral. Os teólogos,
como vimos, designam a classe de ações para as quais o homem caído
retém sua capacidade como «justitia civilis», ou «coisas externas». E a
classe para a qual se declara sua incapacidade é designada como «as
coisas de Deus» «as coisas do Espírito», «coisas que acompanham
salvação». A diferença entre estas duas classes de atos, embora não
possa ser fácil declará-lo em palavras, é universalmente reconhecida. Há
uma evidente diferença entre moralidade e religião; e entre aqueles
afetos religiosos da reverência e gratidão que todos os homens
experimentam mais ou menos e a verdadeira piedade. A diferença reside
no estado da mente, os motivos, e a apreensão dos objetos destes afetos.
É a diferença entre a santidade e o mero sentimento natural. O que a
Bíblia e todas as Confissões das Igrejas da Reforma declaram é que o
homem, desde a Queda, não pode mudar seu próprio coração; não pode
regenerar sua alma; não pode arrepender-se com dor segundo a piedade,
nem exercer a fé que é para salvação. Não pode, em resumo, executar
nenhum exercício santo nem efetuar nenhuma ação de tal maneira que
mereça a aprovação de Deus. O pecado impregna tudo o que faz, e não
pode libertar-se do domínio do pecado.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
362
Num sentido, sua incapacidade é natural.
6. Esta incapacidade é natural num sentido familiar e importante da
palavra. Não é natural no mesmo sentido que o são a razão, a vontade e a
consciência. Estas constituem nossa natureza, e sem elas ou sem
qualquer delas, deixaríamos de ser homens. Em segundo lugar, não é
natural como surgindo das necessárias limitações de nossa natureza e
pertencendo a nossa condição original e normal. Surge da natureza do
homem como criatura que ele não pode criar, e não pode produzir
nenhum efeito de si mesmo por mera volição. Adão, em seu estado de
perfeição, não podia, por sua simples vontade, fazer com que uma pedra
se movesse, nem que uma planta crescesse. É evidente que uma
incapacidade surgindo de qualquer das fontes anteriormente
mencionadas, isto é, da ausência de quaisquer das faculdades essenciais
de nossa natureza, ou das limitações originais e normais de nosso ser,
envolve liberdade de obrigação. Neste sentido nada é mais verdadeiro
que o fato de que a capacidade limita a obrigação. Não se poderia
demandar com justiça a nenhuma criatura que fizesse o que ultrapassa
suas capacidades como criatura.
Por outro lado, embora a incapacidade dos pecadores não seja
natural em nenhum dos sentidos anteriormente expostos, é natural no
sentido de que surge do presente estado de sua natureza. É natural no
mesmo sentido que o egoísmo, a soberba e a mundanalidade são
naturais. Não é adquirida nem induzida por nenhuma influência ab extra
[externa], mas surge da condição em que existe a natureza humana desde
a queda de Adão.
Em outro sentido é moral
7. Esta incapacidade, embora natural no sentido recém-assinalado, é
entretanto moral, porquanto surge do estado moral da alma, em sua
relação com a atividade moral, e porquanto é eliminada por uma
mudança moral, isto é, pela regeneração.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
363
Objeções à distinção popular entre capacidade moral e
natural
Neste país se pôs muita tensão sobre a distinção entre capacidade
moral e natural. Foi considerada como uma das grandes melhoras
americanas em teologia, e como estabelecendo um importante
adiantamento nesta ciência. Afirma-se que o homem, desde a Queda, tem
a capacidade natural para fazer tudo o que lhe é pedido, e que é sobre
esta base que se exige dele a responsabilidade; mas se admite que é
moralmente incapaz de voltar a Deus, ou de guardar de maneira perfeita
os Seus mandamentos. Pensa-se que com esta distinção podemos
salvaguardar o grande princípio de que a capacidade limita a obrigação,
de que um homem não pode ficar preso ao que não pode fazer, e ao
mesmo tempo apegar-se à doutrina escriturística que ensina que o
pecador não pode, por si mesmo, arrepender-se nem mudar seu próprio
coração. Com relação a esta distinção, tal como se apresenta comum e
popularmente, pode-se observar:
1. Que os termos natural e moral não são antitéticos. Uma coisa
pode ser ao mesmo tempo natural e moral. A incapacidade dos
pecadores, tal como se observou com antecedência, embora moral, é
natural num sentido de grande importância. E, portanto, é errôneo dizer
que é simplesmente moral, e não natural.
2. Os termos são suscetíveis de objeção, não só porque carecem de
precisão, mas também porque são ambíguos. Um homem significa por
capacidade natural só a posse de razão, vontade e consciência. Outro
significa capacidade plenária, tudo o que é preciso para produzir um
efeito determinado. E este é o sentido próprio das palavras. Capacidade é
o poder para fazer algo. Se alguém tem capacidade natural para amar a
Deus tem uma capacidade plena para fazê-lo. E se tem capacidade para
amá-Lo tem tudo o que é preciso para exercer este amor. E porquanto
este é o sentido próprio dos termos, é o sentido usualmente unido aos
mesmos. Os que insistem na capacidade natural do pecador, afirmam
geralmente que tem pleno poder, sem ajuda divina, para fazer tudo o que
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
364
lhe é demandado: amar a Deus com toda a sua alma, e sua mente e suas
forças, e a seu próximo como a si mesmo. Tudo o que se interpõe para
que ele possa agir assim não é sua incapacidade, mas meramente
ausência de inclinação, ou a ausência de vontade. Uma capacidade que
não seja adequada para o fim contemplado não é capacidade. Por isso,
constitui uma objeção séria ao uso desta distinção, tal como usada
geralmente, o fato de que envolve um grande erro. Afirma que o pecador
pode fazer o que de fato não pode fazer.
3. Uma objeção adicional a esta maneira de enunciar a doutrina é
que tende a dificultar ou a enganar. Deve dificultar as pessoas dizer-lhes
que podem e que não podem arrepender-se e crer. Uma ou outra de
ambas as proposições, no sentido comum e próprio dos termos, deve ser
falsa. E qualquer sentido esotérico e metafísico que o teólogo possa
tentar para conciliá-los não encontrará nem avaliação nem respeito por
parte do povo. É uma objeção muito mais séria que se tende a enganar os
homens ao lhes dizer que podem mudar seus próprios corações, que
podem arrepender-se, e que podem crer. Isto não é certo, e a consciência
de cada um lhe diz que não é certo. De nada vale que o pregador diga
que o que ele significa por capacidade é que todos os homens têm as
faculdades de seres humanos, e que estas são as únicas faculdades a
exercer ao voltar-se para Deus ou ao fazer Sua vontade. Do mesmo
modo, poderíamos razoavelmente dizer a um homem não educado que
pode compreender e apreciar a Ilíada, porque tem todas as faculdades
que possui o acadêmico. E menos ainda servirá dizer-lhe que a única
dificuldade reside em sua vontade. Por isso, quando dizemos que os
homens podem amar a Deus, significamos que podem amá-Lo se
quiserem. Se a palavra querer se toma aqui no sentido comum de
capacidade de autodeterminação, a proposição de que alguém pode amar
a Deus se quiser não é certa; porque é notório que os afetos não estão sob
o poder da vontade. Se a palavra se tomar num sentido amplo incluindo
os afetos, a proposição é um truísmo. Equivale a dizer que podemos
amar a Deus se O amamos.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
365
4. A distinção entre capacidade natural e moral, tal como se faz
usualmente, é antiescriturística. Já se admitiu que há uma evidente e
muito importante distinção entre uma incapacidade surgindo das
limitações de nosso ser como criaturas, e uma incapacidade surgindo do
estado apóstata de nossas naturezas desde a queda de Adão. Mas não é
isto o que usualmente querem dizer aqueles que afirmam a capacidade
natural dos homens para fazer tudo o que Deus demanda deles.
Significam e declaram de maneira expressa que o homem, tal como é
agora sua natureza, é perfeitamente capaz de mudar seu próprio coração,
arrepender-se e viver uma vida santa; que a única dificuldade em seu
caminho para isso é sua ausência de inclinação, controlável por seu
próprio poder. É esta descrição a é antiescriturística. As Escrituras nunca
se dirigem assim ao homem caído, no sentido de lhes assegurar de sua
capacidade de libertar-se a si mesmos do poder do pecado.
5. Toda a tendência e o efeito deste modo de pensar são daninhos e
perigosos. Se um pecador precisa ser convencido de sua culpa antes de
poder confiar na justiça de Cristo para sua justificação, precisa estar
convencido de sua impotência antes de poder olhar a Deus para ser
libertado. Aqueles que são levados a crer que podem salvar-se a si
mesmos são, na dispensação divina, usualmente abandonados a seus
próprios recursos.
Em oposição, portanto, à doutrina Pelagiana da capacidade plenária
do pecador, à doutrina Semipelagiana ou Arminiana do que se chama
«uma capacidade em graça», isto é, uma capacidade concedida a todos
os que ouvem o evangelho mediante a graça comum e suficiente do
Espírito Santo, e a doutrina de que a única incapacidade do pecador é sua
ausência de inclinação ao bem, os Agostinianos sempre ensinaram que
esta incapacidade é absoluta e total. É natural assim como moral. É tão
completa, embora diferente em gênero, como a incapacidade do cego
para ver, do surdo para ouvir, ou dos mortos para restaurar a vida a si
mesmos.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
366
Prova da doutrina
1. O primeiro e mais evidente argumento em favor da posição
Agostiniana ou Ortodoxa a respeito desta questão é o argumento
negativo. Isto é, o fato de que as Escrituras não atribuem em nenhum
lugar aos homens caídos a capacidade de mudar seus próprios corações
nem de voltar-se a si mesmos a Deus. Como sua salvação depende de
sua regeneração, se esta obra estivesse ao alcance de suas próprias
capacidades, seria incrível que a Bíblia nunca deposita a obrigação de
levar o cabo sobre a capacidade do pecador. Se ele tivesse a capacidade
de regenerar-se a si mesmo, deveríamos esperar nas Escrituras a
afirmação da posse desta capacidade da parte dele, e que o chamasse a
exercê-la. Certamente, poderia dizer-se que o próprio mandamento para
arrepender-se e crer implica a posse de tudo o que é preciso para a
obediência ao mandamento. O que implica é que aqueles a quem se
dirige são criaturas racionais, capazes de obrigações morais, e que são
agentes morais livres. Não implica nada mais. O mandamento não é nada
mais que a declaração autoritativa do que é obrigatório para aqueles a
quem se dirige; demanda que sejamos perfeitos como nosso Pai no céu é
perfeito. A obrigação é imperativa e constante. Mas ninguém em seu são
juízo pode afirmar sua própria capacidade para tornar-se perfeito desta
maneira. Por isso, apesar dos repetidos mandamentos dados na Bíblia
aos pecadores para que amem a Deus com todo o coração, a que se
arrependam e creiam no evangelho, e que vivam sem pecar, mantém-se a
verdade de que as Escrituras em nenhum lugar afirmam nem reconhecem
a capacidade do homem caído para cumprir estas demandas do dever.
Declarações expressas das Escrituras
2. Além deste testemunho negativo das Escrituras, temos as
repetidas e explícitas declarações da Palavra de Deus a respeito deste
assunto. Nosso Senhor compara a relação entre Si mesmo e Seu povo
com a que existe entre a videira e seus ramos. O ponto da analogia é a
total dependência comum a ambas as relações. «Como não pode o ramo
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
367
produzir fruto de si mesmo, se não permanecer na videira, assim, nem
vós o podeis dar, se não permanecerdes em mim. … sem mim, nada
podeis fazer» (Jo 15:4,5). Aqui nos ensina que Cristo é a única fonte da
vida espiritual; que os que estão fora dEle estão destituídos daquela vida
e de toda capacidade para produzir seus frutos próprios; e inclusive com
relação aos que estão com Ele, esta capacidade não pertence a si
mesmos, mas antes, deriva-se por inteiro dEle, de maneira semelhante, o
Apóstolo afirma sua insuficiência (ou incapacidade) para fazer qualquer
coisa por si mesmo.· «Nossa suficiência», diz ele, «vem Deus» (2Co
3:5). Cristo diz aos judeus (Jo 6:44): «Ninguém pode vir a mim se o Pai,
que me enviou, não o trouxer». Isto não fica debilitado nem desvirtuado
pelo fato de que Ele diga, em outro lugar, «e não quereis vir a mim, para
terdes vida». A alma arrependida e crente acode, crendo em Cristo. Quer
vir. Mas isto não implica que possa, por si mesma, produzir aquela
disposição de acudir. O pecador quer não vir; mas isto não demonstra
que vir esteja na capacidade de sua vontade. Não pode ter a vontade de ir
para salvação de sua alma, a não ser que tenha um verdadeiro sentimento
de pecado, e uma apropriada compreensão da pessoa, do caráter e da
obra de Cristo, e afetos corretos para com Ele. Como vai consegui-los?
Estão todos estes complexos estados mentais, este conhecimento, estas
apreensões e estes afetos sujeitos ao poder imperativo da vontade? Em
Rm 8:7-8 o Apóstolo diz: «O pendor da carne é inimizade contra Deus,
pois não está sujeito à lei de Deus, nem mesmo pode estar. Portanto, os
que estão na carne não podem agradar a Deus.» Os que estão «na carne»
se distinguem dos que estão «no Espírito». Os primeiros são os
irregenerados, homens que estão em estado natural, e deles afirma-se que
não podem agradar a Deus. Da fé afirma-se que é um dom de Deus, e
entretanto, sem fé nos é dito que é impossível agradar a Deus (Hb 11:6).
Em 1Co 2:14 afirma-se: «O homem natural não aceita as coisas do
Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque
elas se discernem espiritualmente.» O homem natural é distinto do
homem espiritual. Este último é alguém em quem o Espírito Santo é o
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
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princípio de vida e atividade, ou que está sob o controle do Espírito; o
primeiro é aquele que está sob o controle de sua própria natureza caída,
em quem não há princípio de vida e ação, mas o que lhe pertence como
criatura caída. De tal homem diz o Apóstolo, primeiro, que não recebe as
coisas do Espírito, isto é, as verdades que o Espírito revelou; segundo,
que são loucura para ele; terceiro, que não as pode conhecer; e quarto,
que a razão de sua incapacidade é sua falta de discernimento espiritual,
isto é, daquela apreensão da natureza e verdade de coisas divinas que se
deve ao ensino interno ou iluminação do Espírito Santo. Portanto, esta
passagem não só afirma o fato da incapacidade do pecador, mas também
que ensina a base ou fonte da mesma. Não é uma mera aversão ou
carência de inclinação, mas sim a ausência de um verdadeiro
conhecimento. Ninguém pode ver a beleza de uma obra de arte sem um
verdadeiro discernimento estético. Esta é a constante exposição da
Escritura. Os homens são mencionados e considerados em todo lugar não
só como culpados e contaminados, mas também como impotentes.
Envolto na doutrina do Pecado Original
3. A doutrina da incapacidade do pecador está envolta na doutrina
escriturística do pecado original. Por sua apostasia de Deus o homem
não só perdeu a imagem e o favor divinos, mas também se afundou num
estado de morte espiritual. A Bíblia e a razão igualmente ensinam que
Deus é a vida da alma; Seu favor e a comunhão com Ele, são essenciais
não só para a vida, mas também para a santidade. Aqueles que estão
debaixo da Sua ira e maldição estão excluídos de Sua presença, e estão
nas trevas exteriores. Não possuem verdadeiro conhecimento, nem
desejo de comunhão com um Ser que para eles é fogo consumidor. Ao
Apóstolo parece o maior absurdo e a maior impossibilidade que uma
alma fora do favor de Deus seja santa. Esta é a ideia fundamental de sua
doutrina da santificação. Os que estão debaixo da lei estão debaixo da
maldição, e os que estão debaixo da maldição estão totalmente perdidos.
Por isso, é essencial para a santidade que sejamos libertados da lei e
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
369
restaurados ao favor de Deus antes de podermos efetuar ou experimentar
algum exercício de amor ou algum ato de verdadeira obediência por
nossa parte. Somos livres do pecado só porque não estamos debaixo da
lei, mas debaixo da graça. A totalidade dos capítulos 6 e 7 de Romanos
estão dedicados à exposição deste princípio. Para o Apóstolo, a doutrina
de que o pecador tem a capacidade por sua própria parte de voltar-se
para Deus, restaurar em sua alma a imagem de Deus, e viver uma vida
santa, deve ter-lhe parecido como uma rejeição tão absoluta de sua
doutrina da salvação como no caso da doutrina de que somos justificados
pelas obras. Todo o seu sistema está baseado no princípio de que, sendo
culpados, estamos condenados, e podemos ser justificados só na base da
justiça de Cristo; e, estando espiritualmente mortos, nenhuma
apresentação objetiva da verdade, nem declarações autoritativas da lei,
nenhum esforço nosso, podem originar a vida espiritual, nem suscitar
algum exercício espiritual. Sendo justificados livremente e restaurados
ao favor divino, somos então, e só então, capazes de produzir fruto para
Deus. «Assim, meus irmãos, também vós morrestes relativamente à lei,
por meio do corpo de Cristo, para pertencerdes a outro, a saber, aquele
que ressuscitou dentre os mortos, a fim de que frutifiquemos para Deus.
Porque, quando vivíamos segundo a carne, as paixões pecaminosas
postas em realce pela lei operavam em nossos membros, a fim de
frutificarem para a morte. Agora, porém, libertados da lei, estamos
mortos para aquilo a que estávamos sujeitos, de modo que servimos em
novidade de espírito e não na caducidade da letra.» (Rm 7:4-6). Esta
postura da questão implica necessariamente que o estado natural dos
homens caídos como de total impotência e incapacidade. Estão
«completamente impedidos, incapazes e opostos a todo o bem». Assim, a
Bíblia, como já vimos, descreve de maneira uniforme os homens em seu
estado natural desde a Queda como cegos, surdos, e espiritualmente
mortos; e deste estado eles não se podem livrar mais que um cego de
nascimento pode abrir os seus próprios olhos, ou que um apodrecendo-se
na tumba possa restaurar à vida a si mesmo.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
370
A necessidade da influência do Espírito
4. O seguinte argumento a respeito desta questão se deriva do que
as Escrituras ensinam a respeito da necessidade e natureza da influência
do Espírito em regeneração e santificação. Se se toma uma Concordância
Grega do Novo Testamento, e se busca com que frequência são
empregadas as palavras Πνεῦμα - Pneuma e Τὸ Πνεῦμα τὸ ἅγιον - To
Pneuma to hagion, descobrir-se-á o importante papel do Espírito Santo
na salvação dos homens, e quão desesperado é o caso dos que são
deixados a si mesmos. O que as Escrituras ensinam claramente a respeito
desta questão é: (1) Que o Espírito Santo é a fonte da vida espiritual e de
todos os seus exercícios; que sem esta influência sobrenatural não
podemos efetuar ações santas da mesma maneira que um ramo morto ou
arrancado da videira não pode produzir fruto. (2) Que no primeiro caso
(isto é, na regeneração) a alma é o sujeito, e não o agente, da mudança
produzida. O Espírito dá vida, e logo e orienta todas as suas operações;
assim como no mundo natural Deus dá vista aos cegos, e logo luz
mediante a qual poder ver, e objetos que poder contemplar, e guia e
sustenta todos os exercícios do poder da visão que Ele outorgou. (3) Que
a natureza da influência pela qual se produz a regeneração, que deve
preceder a todos os exercícios santos, exclui a possibilidade de
preparação ou cooperação por parte do pecador. Alguns efeitos são
produzidos por causas naturais, outros pela simples volição ou eficiência
imediata de Deus. A esta última classe pertencem a criação, os milagres
e a regeneração. (4) Daí que o efeito produzido se chame uma nova
criatura, uma ressurreição, um novo nascimento. Estas descrições têm o
propósito de ensinar a total impotência e inteira dependência do pecador.
A salvação não é de quem quer nem de quem corre, mas sim de Deus
que mostra misericórdia, e que opera em nós tanto o querer como o
efetuar, por Sua boa vontade. Estas são questões que deverão ser tratadas
mais adiante com maior detalhe. Para esta discussão é suficiente dizer
que as doutrinas da Bíblia a respeito da absoluta necessidade da graça,
ou da influência sobrenatural do Espírito, e da natureza e dos efeitos
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
371
desta influência, são totalmente inconsistentes com a doutrina de que o
pecador possa por si mesmo levar a cabo qualquer ação santa.
O argumento com base na experiência
5. Esta é uma questão muito prática. O que um homem é capaz de
fazer não se determina da melhor maneira mediante um raciocínio a
priori nem por deduções lógicas com base na natureza de suas
faculdades, mas pondo à prova sua capacidade. O que se deve fazer é
passar do pecado à santidade; amar a Deus de maneira perfeita, e ao
próximo como a nós mesmos; efetuar cada dever sem defeito nem
omissão, e guardar-nos de todo pecado em pensamento, palavra ou obra,
tanto de coração como de vida. Pode alguém fazer isto? Acaso alguém
necessita argumentos para lhe demonstrar que não pode? Ele sabe duas
coisas tão clara e certamente quanto conhece sua própria existência:
primeiro, que está obrigado a ser moralmente perfeito, guardar todos os
mandamentos de Deus, ter todos os sentimentos corretos em constante
exercício segundo a ocasião os demande, e evitar todo pecado em
sentimento assim como em obra; e segundo, que ninguém pode fazer isto
como tampouco ressuscitar os mortos. O metafísico pode tentar
demonstrar às pessoas que não há mundo externo, que a matéria é
pensamento; e pode ser que o metafísico creia nisso, mas a pessoa, cuja
fé está determinada pelos instintos e pelas leis divinamente constituídas
de sua natureza, reterão suas convicções intuitivas. De maneira similar, o
teólogo metafísico pode dizer aos pecadores que se podem regenerar,
que podem arrepender-se e crer, e amar a Deus perfeitamente, e pode
dizer, mediante uma figura de linguagem, que o teólogo o crê. Mas os
pobres pecadores sabem que isso não é verdade. Tentaram-no mil vezes,
e dariam mil mundos para realizar a tarefa, e fazer-se santos e herdeiros
da gloria por uma volição, ou mediante o exercício de seus próprios
poderes, sejam estes fugazes ou persistentes.
Admite-se de maneira universal, porquanto é um fato universal da
consciência humana, que os sentimentos e os afetos não estão sob o
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
372
controle da vontade. Ninguém pode amar aquilo que ele aborrece, ou
odiar aquilo em que se deleita, por nenhum exercício de sua capacidade
de autodeterminação. Por isso, os filósofos, com Kant, denunciam o
mandamento para amar como algo absurdo. Mas a insensatez dos
homens é a sabedoria de Deus. É correto que sejamos ordenados amar a
Deus e que creiamos em Sua palavra, tanto se o exercício do amor e da
fé está ou não sob o controle de nossa vontade. A única maneira em que
se pode evadir a este argumento baseado na comum consciência dos
homens é negar que os sentimentos têm algum caráter moral; ou supor
que as demandas da lei acomodam-se à capacidade do agente. Se não
pode amar a santidade, não está obrigado a amá-la. Se não pode crer em
todo o evangelho, é-lhe apenas exigido que creia o que pode crer, o que
pode aceitar como verdade à luz de sua própria razão. Entretanto, estas
duas hipóteses são contrárias às convicções intuitivas de todos os
homens, e às expressas declarações da Palavra de Deus. Todos os
homens sabem que o caráter moral acompanha os sentimentos assim
como os propósitos e volições; que a benevolência como sentimento é
certo, e que a malícia como sentimento é errado. Sabem com a mesma
certeza que as exigências do direito são imutáveis, que a lei de Deus não
pode ser rebaixada à medida da capacidade das criaturas caídas. Não
demanda delas nada que exceda à limitação de suas naturezas como
criaturas; mas que demanda delas o pleno e constante, e por isso perfeito,
exercício destas capacidades no serviço de Deus e em conformidade com
Sua vontade. E isto é precisamente o que todo ser humano racional caído
está totalmente convencido de que não pode fazer. A convicção de
incapacidade, portanto, é tão universal e indestrutível como a crença da
existência, e todos os sofismas dos teólogos metafísicos são tão
impotentes como todas as sutilezas do idealista ou do panteísta. Qualquer
homem ou grupo de homens, qualquer sistema de filosofia ou de
teologia, que tratem de deter a grande corrente da consciência humana
acabarão com toda certeza no abismo do esquecimento ou da destruição.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
373
A convicção do pecado.
Há outro aspecto deste argumento que merece ser considerado. O
que é convicção do pecado? Quais são as experiências daqueles a quem
o Espírito de Deus traz sob tal convicção? A resposta a estas perguntas
pode achar-se na Bíblia, como por exemplo no sétimo capítulo da
Epístola aos Romanos, nos registros da vida interior do povo de Deus ao
longo de todas as idades, e na experiência religiosa de cada crente.
Mediante todas estas fontes pode-se demonstrar que cada alma
convencida de pecado é levada a sentir e a reconhecer: (1) Que é culpado
diante de Deus, e justamente exposto à sentença de sua lei quebrantada.
(2) Que está totalmente poluído e contaminado pelo pecado; que seus
pensamentos, sentimentos e ações não são o que nem a consciência nem
a lei divina podem aprovar; e que não são apenas alguns atos separados e
fugazes os que estão assim contaminados, mas também que o coração
não é reto, que o pecado existe nele como poder ou lei que opera nele
toda forma de maldade. E (3) Que não pode expiar sua culpa, e que não
se pode libertar do poder do pecado; de maneira que se vê obrigado a
clamar: Miserável homem que sou!; quem me livrará do corpo dessa
morte? Esta sensação de absoluta impotência, de total incapacidade, é
tanto um elemento universal de convicção genuína como uma sensação
de culpa ou de consciência de contaminação. É uma grande misericórdia
que a teologia do coração seja frequentemente melhor que a teologia da
cabeça.
6. O testemunho da consciência de cada pessoa fica confirmada
pela consciência comum da Igreja e por toda a história de nossa raça.
Pode-se apelar com toda confiança às orações, aos hinos e a outros
escritos devocionais do povo de Deus como prova de que nenhuma
convicção está mais profundamente marcada nos corações de todos os
verdadeiros cristãos que sua absoluta impotência e total dependência da
graça de Deus. Lamentam sua incapacidade de amar a seu Redentor,
guardar-se do pecado, viver uma vida santa adequada em qualquer grau a
suas próprias convicções a respeito de suas obrigações. E se humilham
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
374
sob esta incapacidade. Nunca a apresentam como uma desculpa nem
como um atenuante; reconhecem-na como o fruto e evidência da
corrupção de sua natureza derivada como triste herança de seus
primeiros pais. Atribuem, unânimes, todo o bem que possa haver neles
não à sua capacidade, mas ao Espírito Santo. Cada um adota, como
expressando a convicção mais interior de seu coração, a linguagem do
Apóstolo: «Não eu, mas a graça de Deus comigo» [1Co 15:10]. Como
este é o testemunho da Igreja, é também o testemunho de toda a história.
O mundo não provê nenhum exemplo de um homem que se tenha
regenerado a si mesmo. Não existe nem existiu jamais tal homem; e
ninguém jamais creu ter sido regenerado por seu próprio poder. Se o que
os homens podem fazer pode ser determinado pelo que os homens têm
feito, pode-se supor sem medo de errar que ninguém pode mudar seu
próprio coração, nem levar-se a si mesmo ao arrependimento para com
Deus e à fé no Senhor Jesus Cristo. Não vale a pena lutar por uma
capacidade que nunca chegou a alcançar, nos milhares de milhões de
nossa raça, seus fins desejados. Dificilmente se há uma doutrina nas
Escrituras que se ensine com maior clareza ou que esteja mais
abundantemente confirmada pela comum consciência dos homens, sejam
santos ou pecadores, que a de que o homem caído está privado de toda
capacidade para converter-se a si mesmo ou de realizar algum ato santo
até que esteja renovado pelo poder onipotente do Espírito de Deus.
Objeções
1. A objeção mais evidente e plausível a esta doutrina é a antiga e já
tão considerada, isto é, que é inconsistente com a obrigação moral. Não
se pode, segundo se diz, exigir de ninguém com justiça que faça algo
para o que não tem a capacidade necessária. A falácia desta objeção
reside na aplicação deste princípio. Em sua própria esfera é uma verdade
axiomática, mas em outra é absolutamente falsa. É verdade que ao cego
não se lhe pode exigir com justiça que veja, nem ao surdo que ouça. A
uma criança não se pode exigir que compreenda cálculo, nem a um
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
375
homem sem instrução que leia os clássicos. Estas coisas pertencem à
esfera da natureza. O princípio de que tratamos não é de aplicação à
esfera da moral ou da religião, quando a incapacidade não surge da
limitação, mas da corrupção moral de nossa natureza. Inclusive na esfera
da religião há um limite à obrigação com base na capacidade do agente.
Não se pode esperar de uma criança, não se pode exigir dela, que exiba a
medida dos santos afetos que enchem a alma dos justos feitos perfeitos.
É só quando a incapacidade surge do pecado e é eliminada pela
eliminação do pecado, que é consistente com uma obrigação permanente.
E foi mostrado, com base nas Escrituras, que a incapacidade do pecador
para arrepender-se e crer, para amar a Deus e levar uma vida de
santidade, não surge das limitações de sua natureza como criatura (como
no caso dos idiotas ou dos brutos); nem pela ausência das faculdades ou
capacidades precisas, mas simplesmente da corrupção de nossa natureza;
disso segue-se que isso não o exonera da obrigação de ser e fazer tudo o
que Deus demanda. Esta, como se observou mais acima, é a doutrina da
Bíblia, e fica confirmada pela universal consciência dos homens, e
especialmente pela experiência de todo o povo de Deus. Todos a uma só
voz lamentam sua impotência e sua total incapacidade para viver sem
pecado, e entretanto reconhecem sua obrigação de ser perfeitamente
santos.
Somos responsáveis por nossas ações externas, porquanto
dependem de nossas volições. Somos responsáveis por nossas volições
porquanto dependem de nossos princípios e sentimentos; e somos
responsáveis por nossos sentimentos e daqueles estados da mente que
constituem o caráter, porquanto (dentro da esfera da moral e da religião)
são retos ou perversos em sua própria natureza. O fato de que os afetos e
que os estados permanentes e inclusive imanentes da mente estejam fora
do poder da vontade não os exclui (como se mostrou repetidamente
nestas páginas) da esfera da obrigação moral. Porquanto isto está
testemunhado pelas Escrituras e pelo juízo geral dos homens, é
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
376
inadmissível o suposto axioma de que a capacidade limita a obrigação na
esfera da moral.
Sendo que a obrigação moral está baseada na posse dos atributos de
um agente moral, a razão, a consciência e a vontade, permanece em
vigor enquanto que estes atributos subsistam. Se se perde a razão, perdese toda responsabilidade pelo caráter ou a conduta. Se não existe na
criatura a consciência da diferença entre o bem e o mal, a capacidade de
perceber as distinções morais, ou não pertence à sua natureza, esta
criatura não está sujeita a obrigações morais; e de maneira semelhante,
se não é um agente, não está investida com a faculdade de atividade
espontânea como ser pessoal, deixa, pelo que respeita a seus estados
conscientes, de ser responsável pelo que é ou faz. Porquanto a doutrina
escriturística e Agostiniana admite que o homem retém, desde a Queda,
sua razão, consciência e vontade, isso deixa incólume a base da
responsabilidade pelo caráter e a conduta.
Não debilita os motivos para o esforço
2. Outra objeção popular à doutrina escriturística a respeito desta
questão é que destrói toda base racional sobre a qual repousa o uso dos
meios da graça. Se não podemos chegar a um fim determinado, para que
deveríamos empregar os meios para alcançá-lo? Assim poderia dizer o
granjeiro: Se não posso assegurar a colheita, para que vou cultivar meus
campos? Em cada área de atividade humana o resultado depende da
cooperação de causas sobre as quais o homem não tem controle algum.
Espera-se que empregue os meios adaptados ao fim desejado, e confie na
cooperação de outras agências sem as quais seus próprios esforços de
nada servem. As bases escriturísticas sobre as que estamos obrigados a
empregar os meios da graça são: (1) O mandamento de Deus. Isto, por si
mesmo, já é suficiente. Se não houvesse uma evidente adaptação dos
meios ao fim, e nenhuma conexão que pudéssemos descobrir entre eles,
o mandamento de Deus seria uma suficiente razão e motivo para seu
diligente uso. Não havia nenhuma propriedade natural nas águas do
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
377
Jordão para curar a lepra, nem nas do lago de Siloé para restaurar a vista
aos cegos. Entretanto, teria sido uma insensatez fatal da parte de Naamã
recusar por isso obedecer o mandamento de banhar-se sete vezes ali; e
por parte do cego recusar lavar-se no lago, tal como Jesus lhe mandou.
(2) Se o mandamento de Deus é suficiente inclusive quando não há
aparente relação entre os meios e o fim, é muito mais suficiente quando
os meios têm uma adaptação natural ao fim. Podemos ver esta adaptação
no âmbito da natureza, e é não menos evidente no da graça. Há uma
estreita relação entre a verdade e a santidade, como entre a semeadura do
grão e a colheita da safra. O homem semeia, mas Deus dá o crescimento,
tanto em um caso como em outro. (3) Não só há esta adaptação natural
dos meios da graça ao fim a alcançar, mas também em todos os casos
comuns só se chega a obter o fim mediante o emprego destes meios. Os
homens não são salvos sem a verdade. Os que não buscam não
encontrarão. Os que recusam pedir não receberão. Este é tanto o curso
comum da administração divina do reino da graça como do da natureza.
(4) Não só há esta conexão visível entre os meios da graça e a salvação
da alma, como fato da experiência, mas também a promessa expressa de
Deus de que os que busquem encontrarão, que os que pedem recebem, e
que aos que chamem abrir-se-lhes-á. Mais que isto não se pode pedir de
uma maneira racional. Aos homens do mundo são dadas mais que sobras
para estimulá-los em seus esforços após riqueza ou conhecimento.
Portanto, a doutrina da incapacidade não danifica a força de nenhum dos
motivos que deveriam estimular os pecadores a empregar toda diligência
em buscar sua própria salvação da maneira que Deus estabeleceu.
A doutrina não incentiva a demora
3. Há ainda outra objeção que se apresenta em todo lugar contra
esta doutrina. Diz-se que incentiva a demora. Se alguém crê que não
pode mudar seu coração, que não se pode arrepender e crer no
evangelho, dirá então: «Tenho que esperar o tempo de Deus. Porquanto
Ele dá aos homens um novo coração, porquanto a fé e o arrependimento
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
378
são Seus dons, tenho que esperar até que Ele queira dar-me estes dons.»
É indubitável que Satanás prova os homens para que argumentem assim,
da mesma maneira em que os prova com outras formas de soberba
insensatez. Entretanto, a tendência natural da doutrina em questão é
precisamente o inverso. Quando um homem está convencido de que o
logro de um fim desejado está além de suas próprias capacidades,
instintivamente busca ajuda. Se está doente, se sabe que não se pode
curar a si mesmo, manda buscar um médico. Se está persuadido de que a
doença está totalmente sob o seu controle, e especialmente se qualquer
metafísico pudesse persuadi-lo de que sua doença é uma ideia que pode
ser eliminada mediante um ato de vontade, então seria uma insensatez
por sua vez buscar ajuda externa. Os cegos, os surdos, os leprosos, e os
mutilados que estavam na terra quando Cristo esteve presente na carne,
sabiam que não podiam ajudar-se a si mesmos, e por isso iam após Ele
em busca de ajuda. Não se teria podido inventar uma doutrina mais
destruidora das almas que a doutrina de que os pecadores podem
regenerar-se a si mesmos, e arrepender-se e crer quando quiserem. Os
que realmente abraçam tal doutrina nunca iriam buscar ajuda à única
fonte em que na realidade podem obter estas bênçãos. Seriam
impulsionados a esperar o último momento da vida para efetuar uma
obra que está totalmente em suas mãos e que pode realizar-se num
momento. Um avarento, em seu leito de morte, pode mediante um ato de
vontade entregar todas as suas riquezas. Se um pecador pudesse mudar
de maneira tão fácil seu próprio coração, bem poderia querer apegar-se
ao mundo como o avarento a suas riquezas, até o último momento. Toda
a verdade tende à piedade; todo erro, ao pecado e à morte. Como é uma
verdade tanto da Escritura e da experiência que o homem irregenerado
não pode fazer nada por si mesmo para assegurar sua salvação, é
essencial que seja levado a uma convicção prática desta verdade. Quando
ficar convencido dela, buscará ajuda da única fonte onde pode ser
achada.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
CAPÍTULO IX
379
LIVRE-ARBÍTRIO
EM todas as discussões a respeito do pecado e da graça, está
necessariamente envolvida a questão a respeito da natureza e as
necessárias condições do livre-arbítrio. Esta é uma das questões em que
a teologia e a psicologia entram em contato imediato. Há uma teoria do
livre-arbítrio com a qual são totalmente irreconciliáveis as doutrinas do
pecado original e da graça eficaz, e há outra teoria com a qual são
perfeitamente congruentes. Assim em todas as eras da Igreja, os que
adotaram as primeiras destas teorias rejeitam estas doutrinas; e, por outro
lado, os que estão constrangidos a crer nestas doutrinas estão não menos
constrangidos a adotar a outra teoria concordante do livre-arbítrio. Os
Pelagianos, os Semipelagianos e os Remonstrantes não mostram
diferenças mais manifestas com relação aos Agostinianos, Luteranos e
Calvinistas a respeito das doutrinas do pecado e da graça que a que
mostram a respeito da questão metafísica e moral da liberdade humana.
Assim, em cada sistema de teologia há um capítulo dedicado a De libero
arbitrio. Esta é uma questão que cada teólogo encontra em seu caminho,
e que tem que confrontar; e sua teologia depende da forma em que seja
determinada, e naturalmente sua religião, até onde sua teologia lhe seja
uma verdade e uma realidade.
Pode parecer absurdo abordar, no espaço de umas poucas páginas,
uma questão a respeito da qual se têm escrito tantos volumes. Entretanto,
há esta importante diferença entre todas as questões que tratam da alma,
ou do mundo interior, e as que têm que ver com o mundo exterior; com
relação ao anterior, sendo que todos os materiais do conhecimento são
realidades da consciência, já os temos em nossa posse, enquanto que,
com relação aos últimos, os fatos devem ser primeiro recolhidos. Assim,
em questões que tenham que ver com a mente, com frequência tudo o
que se exige, e tudo o que se pode dar, é um mero enunciado da questão.
Se este enunciado é correto, os atos da consciência se dispõem
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
380
espontaneamente em ordem ao seu redor; se for incorreto, recusam
obstinadamente ficar dispostos assim. Se este for o caso, a que se deve
que os homens difiram tanto a respeito desta questão? A isto se pode
responder:
1. Que não diferem tanto como parecem. Quando a mente é deixada
sem perturbações, e se permite que aja com base em suas próprias leis,
os homens, na grande maioria dos casos, pensam de maneira semelhante
a respeito de todas as grandes questões que dividem os filósofos. É só
quando agitam o plácido lago, e tentam sondar suas profundidades,
analisar suas águas, determinar as leis de suas correntes e determinar o
que contêm, que veem e pensam de maneira tão diferente. Por muito que
os homens difiram em suas opiniões especulativas a respeito da natureza
última da matéria, todos eles, na prática, sentem e agem da mesma
maneira em tudo o que concerne à sua aplicação e uso. E por muito que
possam diferir quanto à questão da liberdade ou da necessidade,
concordam quanto a considerar-se a si mesmos ou a outros como agentes
responsáveis.
2. Em nenhuma questão é a ambiguidade da linguagem um
impedimento mais sério, para chegar a um acordo consciente, que com
referência a toda esta questão, e especialmente no que respeita à questão
do livre-arbítrio. A mesma declaração frequentemente aparece como
certa para uma mente, e falsa para outra, porque é entendida de maneira
diferente. Esta ambiguidade surge em parte da imperfeição inerente à
linguagem humana. As palavras têm e devem ter mais de um sentido; e
embora definamos nossos termos, e digamos em qual de seus vários
distintos significados estamos empregando uma palavra, entretanto as
exigências da linguagem, ou a falta de atenção, conduzem quase
indefectivelmente a que seja empregado em algum de seus outros
legítimos significados. Além disso, os estados da mente que estas
palavras querem descrever são por si mesmos tão complexos que
nenhuma palavra os pode descrever com precisão. Temos termos para
expressar as operações do intelecto, outros para designar os sentimentos,
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
381
e ainda outros para ações da vontade; mas milhares de nossas ações
incluem o exercício do intelecto, da sensibilidade e da vontade, e é
absolutamente impossível encontrar palavras para todos estes complexos
e variáveis estados da mente. Portanto, não é nada assombroso que os
homens interpretem mal uns aos outros, e que fracassem em seus mais
intensos esforços por expressar o que querem dizer de maneira que
outros deem precisamente o mesmo sentido às palavras que eles
empregam.
3. Há outra razão da diversidade de opinião que sempre prevaleceu
em todas as questões relacionadas com o livre-arbítrio. Embora os fatos
que deveriam determinar a questão que se discute são realidades da
consciência comuns a todos os homens, entretanto são tão numerosos, e
de classes tão diferentes, que é difícil atribuir a cada um seu devido lugar
e importância. Pelo hábito, ou pela instrução mental, ou pelo estado
moral da mente, algumas pessoas admitem muito peso para uma classe
destes fatos, e muito pouco a outros. Alguns são governados por seu
entendimento, outros por seus sentimentos morais. Em alguns, as
sensibilidades morais estão muito mais ativas e aportam mais informação
que em outros. Alguns adotam certos princípios como axiomas, aos
quais obrigam que se amoldem todos os seus juízos. Assim, é em vão
esperar que jamais encontremos unânimes a todos os homens, inclusive
nas questões mais claras e importantes que tratam da constituição e leis
de sua própria natureza. Há só um guia seguro, e só um caminho tanto à
verdade como à unidade, o Espírito e a Palavra de Deus; felizes os que se
sujeitam a ser conduzidos por este guia, e a caminhar neste caminho.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
§ 1. Diferentes teorias da vontade
382
Todas as diferentes teorias da vontade podem ser incluídas sob as
três classes de Necessidade, Contingência e Certeza.
Necessidade.
À primeira destas classes pertencem:
1. A doutrina do Fatalismo, que ensina que todos os acontecimentos
são determinados por uma necessidade cega. Esta necessidade não surge
da vontade de um Ser inteligente que governa a todas as Suas criaturas e
as ações das mesmas com base em sua natureza, e com propósitos sábios
e bondosos; mas por uma lei de sequência à qual estão sujeitos tanto
Deus (ou antes, os deuses) como os homens. Exclui a ideia de previsão
ou de plano, ou de seleção voluntária de um fim, e a adoção dos meios
para seu cumprimento. As coisas são como são, e devem ser como são, e
têm que ser, sem causa racional. Esta teoria ignora qualquer distinção
entre as leis físicas e o livre-arbítrio: As ações dos homens e as
operações da natureza ficam determinadas por uma necessidade do
mesmo tipo. Os acontecimentos são como uma corrente poderosa levada
adiante por uma força irresistível, – uma força exterior a eles mesmos,
incontrolável e imodificável. Tudo o que se deve fazer é permitir ser
levados assim. E não há diferença alguma tanto se se assentir como se
não. Um homem que caia num precipício não pode, mediante um ato de
volição, rebater a lei da gravidade; tampouco pode mediante um ato de
volição controlar ou modificar a ação da fatalidade. Suas circunstâncias
exteriores e suas ações interiores ficam todas igualmente determinadas
por uma lei ou influência inexorável que existe fora dele mesmo. Esta é
ao menos uma forma do fatalismo. Esta visão da doutrina da necessidade
pode descansar na pressuposição de que o universo tem a base de sua
existência em si mesmo, e que está governado em todas as suas
operações por leis fixas, as quais determinam a sequência de todos os
acontecimentos no reino mineral, vegetal e animal, por uma necessidade
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
383
semelhante. Ou pode admitir que o mundo deve sua existência a uma
primeira causa inteligente, mas pressupondo que seu autor nunca teve o
propósito de criar agentes livres, mas que decidiu pôr em marcha certas
causas que deveriam dar determinados resultados. Por muito que os
fatalistas difiram a respeito da causa da necessidade que governa todos
os acontecimentos, concordam quanto à sua natureza. Pode ser que surja
da influência das estrelas, como mantinham os antigos caldeus; ou da
operação de segundas causas, ou da constituição original das coisas; ou
do decreto de Deus. Exclui-se de maneira manifesta toda liberdade de
ação, e se reduzem os atos dos homens à mesma categoria que os dos
animais irracionais. Entretanto, propriamente falando, o fatalismo atribui
esta necessidade à fatalidade, uma causa não inteligente.
2. Uma segunda forma da doutrina da necessidade é a teoria
mecânica. Esta nega que o homem seja a causa eficiente de suas próprias
ações. Apresenta-o como passivo, ou como não dotado de outra forma
mais elevada de atividade que a espontaneidade. Exclui de maneira
manifesta a ideia da responsabilidade. Dá por sentado que o estado
interior do homem, e consequentemente seus atos, está tudo isso
determinado por suas circunstâncias externas. Esta doutrina está como
está relacionada com o materialismo do Hobbes, Hartley, Priestley,
Belsham, e especialmente tal como foi plenamente desenvolvida pelos
enciclopedistas franceses, supõe que a partir da constituição de nossa
natureza há algumas coisas que nos dão dor e outras que nos dão prazer.
Algumas excitam o desejo, e outras aversão; e que esta suscetibilidade
de receber ações é toda a atividade que pertence ao homem, que é tão
puramente um mecanismo vivente como os animais irracionais. Um
certo objeto externo produz uma impressão correspondente sobre os
nervos, esta é transmitida ao cérebro, e um impulso de resposta é voltado
para enviar aos músculos; ou o efeito se gasta no mesmo cérebro em
forma de pensamento ou sentimento, estimulado ou desenvolvido pelo
tal impulso. As características gerais desta teoria são as mesmas até o
ponto em que seus defensores ignoram toda distinção entre necessidade
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
384
física e moral, e rejeitam a doutrina do livre-arbítrio e da
responsabilidade, por muito que possam diferir em outras questões.
3. Uma terceira forma de necessidade inclui todas aquelas teorias
que substituem a eficiência das segundas causas, atribuindo todos os
acontecimentos à agência imediata da primeira causa. Isto, naturalmente,
faz o Panteísmo em todas suas formas, tanto se meramente faz de Deus a
alma do mundo, e atribui todas as operações da natureza e todas as ações
dos homens à sua atividade imediata, como se contempla o mundo
mesmo como Deus, como se faz de Deus a única substância da qual a
natureza e a mente são os fenômenos. Segundo todas estas posturas,
Deus é o único agente; todas as atividades são só modos diferentes em
que se manifesta a atividade de Deus.
A teoria da causa ocasional leva ao mesmo resultado. Segundo esta
doutrina, toda eficiência está em Deus. Em segundo lugar as causas só
são as ocasiões em que se exerce é eficiência. Embora este sistema
permita uma existência real à matéria e a mente, e admita que estão
dotadas de certas qualidades e atributos, mas estes não são mais que
suscetibilidades, ou receptividades para a manifestação da eficiência
divina. Proporcionam as ocasiões para o exercício do Poder onipresente
de Deus. A matéria e a mente são da mesma maneira passivas: todas as
mudanças numa e todo o aspecto da atividade na outra, são provocados
por uma operação imediata de Deus.
Sob o mesmo cabeçalho corresponde a doutrina de que a ação de
Deus na preservação do mundo é uma criação continuada. Este tipo de
descrição é certamente adotado frequentemente como figura retórica por
teólogos ortodoxos; mas se for tomado literalmente implica a total
ineficiência de todas as segundas causas. Se Deus cria o mundo exterior
em cada momento sucessivo, Ele deve ser o autor imediato de todos as
susa mudanças. Não há conexão entre o que precede e o que segue, entre
o antecedente e o consequente, entre causa e efeito, mas sim sucessão no
tempo; e quando se aplica ao mundo interior, ou à alma, necessariamente
temos a mesma consequência. A alma, em qualquer momento
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
385
determinado, existe só num certo estado; e se é criada neste estado, então
a energia criativa é a causa imediata de todos os seus sentimentos,
cognições e ações. A alma não é um agente; é só algo que Deus cria
numa forma determinada. Toda continuidade de ser, toda identidade e
toda eficiência ficam perdidos; e o universo da matéria e da mente deve
ser só a continuada pulsação da vida de Deus.
Estreitamente relacionada com a doutrina de uma criação contínua é
o «esquema do exercício». Segundo esta teoria a alma é uma série de
exercícios criados por Deus. A alma como tal não existe, nem o eu, mas
apenas certas percepções que se sucedem umas a outras com assombrosa
rapidez. Hume nega toda causa real. Tudo o que sabemos é que estas
percepções existem, e que existem em sucessão. Emmons diz que Deus
as cria. Naturalmente, é em vão falar da liberdade do homem em
produzir os atos criadores de Deus. Se Ele cria nossas volições em vista
de motivos, trata-se de Suas ações, e não das nossas. A diferença entre
este sistema e o Panteísmo é pouco mais que nominal.
Contingência.
Diretamente oposta a todos estes esquemas de necessidade se
levanta a doutrina da contingência, que foi mantida sob diferentes nomes
e variadamente modificada. Às vezes é chamada a liberdade da
indiferença, pelo que se significa que a vontade, no momento da decisão,
está situada espontaneamente entre motivos em conflito, e que se decide
em um ou outro sentido não devido à maior influência de um motivo
sobre o outro, mas sim devido ao fato de que é indiferente ou
indeterminável, capaz de agir de acordo com o motivo mais fraco contra
o mais forte, ou inclusive sem motivo alguém absolutamente. Às vezes
esta doutrina é expressa mediante a frase «a capacidade
autodeterminadora da vontade». Por esta trata-se de negar que a vontade
está determinada por motivos, e afirmar que a razão de suas decisões
deve ser buscada nela mesma. É uma causa e não um efeito, e por isso
não precisa de nada fora dela mesma para explicar suas ações. Às vezes
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
386
esta doutrina recebe o nome da eleição contrária: isto é, que em cada
volição há e deve haver a capacidade do contrário. Inclusive supondo
que todos os antecedentes externos e internos tenham sido precisamente
os mesmos, a decisão teria podido ser diferente da qual realmente foi.
Por isso, a contingência é necessária para a liberdade. Esta é uma ideia
essencial para a teoria em todas as suas formas. Um acontecimento
contingente é aquele que pode ou não suceder. Por isso, a contingência
está oposta não meramente à necessidade, mas também à certeza. Se
alguém agir em oposição a todos os motivos, externos e internos, e
apesar de toda a influência que se possa exercer sobre ele, que não
signifique a destruição de sua liberdade, então deve permanecer para
sempre inseguro como vai agir. Assim, os proponentes desta teoria da
liberdade mantêm que a vontade é independente da razão, dos
sentimentos e de Deus. Não há, dizem eles, um meio-termo entre a
contingência (isto é, a incerteza) e o fatalismo; entre a independência da
vontade e do agente e a negação do livre-arbítrio.
Embora os proponentes da liberdade de contingência dirigem em
geral seus argumentos contra a doutrina da necessidade, entretanto é
evidente que consideram a certeza não menos que a necessidade como
inconsequentes com a liberdade. Isto fica claro: (1) Com base nas
designações que dão à sua teoria, como liberdade de indiferença, a
capacidade autodeterminante da vontade, o poder para o contrário. (2)
Por sua definição formal da liberdade, como a capacidade para decidirnos a favor ou contra, ou sem motivos; ou é o poder de «querer o que
quisermos». Diz Reid: «Se em cada ação voluntária a determinação da
vontade do agente é a consequência necessária de algo involuntário no
estado da mente do agente, ou de algo nas circunstâncias externas do
mesmo, o agente não é livre.» 258 Diz Cousin: «A vontade é minha, e eu
disponho de maneira absoluta da mesma dentro dos limites do mundo
258
Active Powers, Essay IV, cap. 1; Works, p. ,599, Sir W. Hamilton, editor, Edinburgh, 1849.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
387
259
espiritual.» Os Escotistas da Idade Média, Molina, e os Jesuítas como
grupo, e todos os opositores do Agostinianismo, definem a liberdade
como consistente em indiferença, ou na independência da vontade do
anterior estado da mente, e fazem com que exclua tanto a certeza como a
necessidade. (3) Pelos argumentos com que tratam de sustentar sua
teoria, que se dirigem com tanta frequência contra a certeza como contra
a necessidade. (4) Por suas respostas aos argumentos contrários, e
especialmente ao que se deriva da presciência de Deus. Porquanto o
conhecimento antecipado de uma ação pressupõe a certeza de seu
acontecimento, se os atos livres são conhecidos, devem ser certos. A isto
os proponentes da teoria sob exame dão algumas respostas que
demonstram que é à certeza que se enfrentam. Dizem que não temos
direito a arguir a respeito desta questão com base nos atributos de Deus;
trata-se simplesmente de uma questão que tem que ver com a
consciência; ou dizem que a presciência de Deus pode estar limitada, da
mesma maneira que Seu poder está limitado pelas impossibilidades. Se é
impossível conhecer antecipadamente atos livres, os tais não são objetos
de conhecimento, e, portanto, não conhecê-los antecipadamente não
constitui uma limitação do conhecimento divino. Por estas e outras
considerações fica patente que a teoria da contingência em todas as suas
formas opõe-se à doutrina da certeza, não menos que a da necessidade,
no sentido próprio do termo. Entretanto, por isso não se significa que os
proponentes da contingência sejam coerentes quanto a este ponto.
Arguindo contra a necessidade, frequentemente não discriminam entre a
necessidade física e a moral. Classificam a Hobbes, Hartley, Priestley,
Belsham, Collins, Edwards e aos Enciclopedistas Franceses, e a todos os
que empregam a palavra necessidade, sob a mesma categoria; e
entretanto não podem evitar admitir que em muitos casos os atos livres
podem ser certos. Com muita frequência dizem que os argumentos
particulares demonstram certeza, mas não necessidade, quando
259
Elements of Psychology, p. 357, Henry’s translation. 4th edit., New York, 1856.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
388
precisamente o ponto debatido é a certeza, e é precisamente o que eles
negam. Esta é uma das inevitáveis incongruências de seu erro.
Entretanto, ninguém, apesar destas admissões, discutirá que a doutrina
da contingência, tanto se for chamada indiferença, capacidade
autodeterminante da vontade, poder da eleição contrária, ou qualquer
outro nome, é de fato, e tem a intenção de ser, contraditória à da certeza.
Certeza.
A terceira teoria geral a respeito desta questão equidista da doutrina
da necessidade, por um lado, e da da contingência por outro. Ensina que
o homem é livre não só quando suas ações externas ficam determinadas
por sua vontade, mas também quando suas volições são verdadeira e
propriamente suas, determinadas por nada fora de si mesmo, mas
procedendo de suas próprias posturas, sentimentos e disposições
imanentes, de maneira que sejam a expressão real, inteligente e
consciente de seu caráter, ou do que está em sua mente.
Esta teoria recebe frequentemente o nome de necessidade moral ou
filosófica, em distinção de necessidade física. Esta é uma designação
muito desafortunada e inapropriada: (1) Porque a liberdade e a
necessidade estão diretamente enfrentadas. É uma contradição dizer que
um ato seja livre e, entretanto, necessário; que o homem é um agente
livre, e entretanto que todas suas ações estão determinadas por uma lei
da necessidade. Como todos os proponentes da teoria mencionada
professam crer na liberdade da vontade humana, ou que o homem é um
agente livre, é certamente lamentável que empreguem um termo que em
seu sentido comum e próprio ensina precisamente o contrário. (2) A
certeza e a necessidade não são o mesmo, e portanto não deveriam
expressar-se com a mesma palavra. A necessidade com que uma pedra
cai ao solo, e a certeza com que um ser perfeitamente santo, ficando
confirmado num estado de graça, agirá com santidade, são tão diferentes
como o dia e a noite. A aplicação do mesmo termo para expressar coisas
essencialmente distintas tende a confundir as próprias coisas. Um
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
389
homem pode ver-se obrigado a fazer algo contra sua vontade, mas dizer
que pode ver-se obrigado a querer contra sua vontade é uma contradição.
Uma volição necessária não é volição, como tampouco branco é negro.
Devido ao fato de que em linguagem popular com frequência falamos de
uma coisa como necessária quando é totalmente certa, e embora as
Escrituras, escritas na linguagem da vida comum, com frequência fazem
o mesmo, não há razão pela qual em discussões filosóficas se empregue
esta palavra de maneira que inevitavelmente conduza à confusão. (3) O
uso da palavra necessidade para expressar a ideia da certeza lança
vitupério sobre a verdade. Reveste-a com a roupagem do erro. Faz com
que Edwards empregue a linguagem de Hobbes. Põe a Lutero na mesma
categoria que Espinoza; a todos os Agostinianos na mesma classe que
aos materialistas franceses. Todos eles empregam a mesma linguagem,
embora seu sentido seja tão diverso quanto possível. Todos dizem que os
atos dos homens são necessários. Quando chega o momento de explicarse, uma classe diz que são verdadeira e propriamente necessários no
sentido de que não são livres, e que excluem a possibilidade de caráter
ou responsabilidade morais. A outra classe diz que são necessários, mas
no sentido de que são entretanto livres e perfeitamente consequentes com
a responsabilidade moral do agente. É certamente um grande mal que
teorias diametralmente opostas entre si, que a doutrina de santos e a
doutrina de demônios (para empregar a linguagem de Paulo) expresse-se
nas mesmas palavras. E assim nos encontramos com os mais respeitáveis
escritores, como Reid e Stewart, argumentando contra Edwards como se
este sustentasse a doutrina de Belsham.
Os antigos escritores latinos designavam usualmente a teoria da
certeza moral com o nome de Lubentia Rattionalis, ou Espontaneidade
Racional. Esta é uma designação muito mais apropriada. Implica que em
cada volição há elementos de racionalidade e de ação espontânea. Nos
brutos há espontaneidade, mas não razão, e por isso não são agentes
livres no sentido de que sejam objetos de aprovação ou de desaprovação.
Nos maníacos há também autodeterminação, mas é irracional, e portanto
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
390
não livre. Mas onde se combinam num agente a razão e a capacidade de
autodeterminação, ele é livre e responsável por seus atos exteriores e por
suas volições. Esta descrição satisfaria a Reid, que diz: «Vemos
evidentemente que assim como a razão sem poder ativo nada pode fazer,
da mesma maneira o poder sem razão não tem guia para dirigi-lo a
nenhum fim. As duas coisas coordenadas estabelecem a liberdade
mora1.» 260
Os antigos escritores, ao desenvolver sua doutrina da
espontaneidade racional, estavam acostumados a dizer que a vontade vai
determinada pelo juízo último do entendimento. Isto é certo ou falso
segundo se interprete a linguagem. Se por juízo último do entendimento
se significa a apreensão intelectual e convicção do razoável e excelente
do objeto da eleição, então nada senão o perfeitamente razoável e bom
fica assim sempre determinado. Os homens, numa multidão de ocasiões,
escolhem aquilo que seu entendimento condena como ímpio, profano ou
destrutivo. Ou se o sentido é que cada ação livre é o resultado de uma
deliberação consciente e de uma conseguinte decisão da mente quanto ao
desejável de uma certa ação, contudo não se pode dizer que a vontade
siga os ditados do entendimento. É provavelmente com referência a uma
ou ambas destas interpretações da língua em questão que Leibnitz diz:
“Non semper sequimur judicium ultimum intellectus practici, dum ad
volendum nos determinamus; at ubi volumus, semper sequimur
collectionem omnium inclinationum, tam a parte rationum, tam
passionum, profectarum; id quod sæpenumero sine expresso intellectus
judicio contingit.” 261 Mas o que realmente se significa por esta expressão
é que as posturas ou os sentimentos que determinam a vontade estão,
eles mesmos, determinados pelo entendimento. Se eu desejo algo, é
devido ao fato de que o apreendo como apropriado para satisfazer algum
anelo de minha natureza. Se eu desejo algo porque está correto, o fato de
260
261
Active Powers, Essay iv. cap. 5; Works, Edinburgh, 1849, p. 615.
Works, edit. Geneva, 1768, vol. i. p. 156.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
391
que seja correto é algo que o entendimento deve discernir. Em outras
palavras, todos os desejos, afetos, ou sentimentos que determinam que a
vontade aja deve ter um objeto e esse objeto através do qual o sentimento
é animado e para o qual tende, deve ser discernido pelo entendimento. É
isto que lhes confere o caráter racional, e torna racional as determinações
da vontade. Qualquer volição que não siga ao ditado último do
entendimento é, neste sentido da palavra, a ação de um idiota. Pode ser
que seja espontânea, assim como o são as ações dos brutos, mas não
pode ser livre no sentido de que seja a ação de uma pessoa responsável.
Outra forma sob a qual esta doutrina se expressa com frequência é
que a vontade é segundo o maior bem aparente. Esta é uma maneira
muito comum de expressar a doutrina, derivada de Leibnitz, o pai do
otimismo, cuja inteira «Theodicée» está baseada na pressuposição de que
o pecado é o meio necessário para o summum bonum [maior bem]. Por
«bem», os escritores desta classe significam geralmente «adaptado para
produzir felicidade» a qual é considerada como o sumo bem. A doutrina
deles é que a vontade sempre se decide por aquilo que promete a maior
felicidade. Não é, diz-se, o maior bem real, mas sim o maior bem
aparente aquele que determina a volição. Um só gole de uma taça pode
lhe parecer com um alcoólico, na intensidade de seu desejo, um maior
bem: isto é, como mais apropriado para libertá-lo e satisfazê-lo, que seu
próprio bem-estar ou o bem-estar de sua família para toda a vida. Esta
teoria inteira está baseada na hipótese de que a felicidade é o mais alto
bem, e que o desejo de felicidade é a mola última de toda ação
voluntária. Porquanto estes dois princípios são aborrecíveis a grande
massa das mentes cultivadas, especialmente das cristãs, e porquanto os
homens agem por outros e mais elevados motivos que um desejo de
potencializar sua própria felicidade, são poucos os que, em nossos
tempos, adotarão a doutrina de que a vontade é, segundo o maior bem
aparente, assim exposta. Não obstante, se a palavra bem se tomar num
sentido mais amplo, incluindo tudo o que é desejável, seja o reto, o
apropriado, ou o útil, assim como o apropriado para dar felicidade, então
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
392
é indubitável que a doutrina é certa. De fato a vontade fica sempre
determinada em favor daquilo que, sob algum aspecto, ou por alguma
razão, considera-se bom. De outra maneira os homens poderiam escolher
o mal como mal, o que violada uma lei fundamental de todas as
naturezas racionais e sensoriais.
É ainda coisa mais comum, ao menos neste país, dizer que a
vontade fica sempre determinada pelo motivo mais poderoso. A esta
forma de enunciado se apresentam duas evidentes objeções. (1) A
ambiguidade da palavra motivo. Se esta palavra for tomada num sentido,
o enunciado é certo; se for tomada em outro, é falso. (2) A
impossibilidade de estabelecer alguma prova a respeito da força relativa
dos motivos. Se a prova é feita sobre a vivacidade dos sentimentos, então
não é verdade que sempre prevaleça o motivo mais poderoso. Se a prova
é feita sobre o efeito, então quer dizer que o motivo mais forte é aquele
que determinou a vontade, o que equivale a dizer que a vontade fica
determinada por aquilo que a determina.
É melhor manter-se na declaração geral. A vontade não fica
decidida por nenhuma lei de necessidade; não é independente,
indiferente nem autodeterminada, mas fica sempre determinada pelo
anterior estado da mente; de modo que um homem é livre sempre que
suas volições sejam a consciente expressão de sua própria mente; ou
enquanto que sua atividade seja determinada e controlada por sua razão e
sentimentos.
§ 2. Definição de termos.
Antes de passar a dar um esboço dos argumentos usuais em apoio
desta doutrina, é importante determinar o sentido das palavras a
empregar. Ninguém que esteja minimamente familiarizado com
discussões desta natureza pode ter deixado de observar quanta
dificuldade se suscita pela ambiguidade dos termos empregados, e com
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
393
que frequência as pessoas diferem na doutrina, quando na realidade só
diferem na linguagem.
Vontade.
Primeiro, a própria palavra vontade é um daqueles termos
ambíguos. Às vezes emprega-se num sentido amplo, incluindo todos os
desejos, afetos e inclusive as emoções. Tem este sentido amplo quando
se diz de todas as faculdades da alma que estão incluídas sob as duas
categorias de entendimento e vontade. Assim que tudo aquilo que
pertence à alma e que não pertence ao primeiro é atribuído à segunda.
Todo gosto e repugnância, toda preferência, toda inclinação e falta de
inclinação, são neste sentido atos da vontade. Em outras ocasiões,
emprega-se esta palavra para denotar a capacidade de autodeterminação,
ou aquela faculdade pela qual decidimos nossas próprias ações. Neste
sentido, só os propósitos e as volições imperativas são ações da vontade.
É evidente que se um escritor afirma a liberdade da vontade neste último
sentido, e seu leitor toma suas palavras no primeiro sentido, um jamais
entenderá o outro. Ou se o mesmo escritor usa às vezes a palavra em seu
sentido amplo e às vezes em seu sentido restringido, inevitavelmente se
confundirá ele mesmo e confundirá a outros. Dizer que temos poder
sobre nossas volições, e dizer que temos poder sobre nossos desejos, são
coisas totalmente diferentes. Uma destas proposições pode ser mantida e
a outra pode ser negada; mas se se confundem a vontade e o desejo, a
distinção entre estas duas proposições fica eliminada. Tem-se com
frequência observado que a confusão destes dois significados da palavra
vontade é o grande defeito da célebre obra do Presidente Edwards.
Começa com uma definição do termo que faz com que inclua toda
preferência, eleição, complacência ou desagrado, gosto e desgosto, e
advoga por uma teoria que é certa e aplicável só à vontade no sentido
restringido da palavra.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
394
Motivo.
Em segundo lugar, a palavra motivo se toma com frequência num
sentido diferente. Define-se como sendo qualquer coisa que tenha
tendência a mover a mente. Considera-se um motivo qualquer objeto
adaptado para despertar o desejo ou o afeto; qualquer verdade ou
conceito que seja apropriado para influenciar um ser racional e sensível à
tomada de uma decisão. É a isto que se chama o sentido objetivo do
termo. Neste sentido está muito longe de ser certo que a vontade é
sempre movida pelo motivo mais poderoso. As verdades mais
importantes, as considerações de maior peso, os objetos mais atraentes,
são com frequência impotentes, pelo que concerne ao estado interior da
mente. Entretanto, esta palavra é com frequência empregada no sentido
objetivo para designar aquelas convicções interiores, aqueles
sentimentos, inclinações e princípios que estão na própria mente, e que
empurram ou influenciam o homem a decidir-se de uma forma em lugar
de em outra. É só neste sentido do termo que a vontade fica determinada
pelo motivo mais poderoso. Mas inclusive neste caso deve admitir-se,
como já antes se observou, que não temos critério nem norma mediante a
que determinar a força relativa dos motivos, além de seu efeito real. De
maneira que dizer que a vontade fica determinada pelo motivo mais
poderoso equivale só a dizer que não está autodeterminada, mas sim em
cada volição racional o homem fica influenciado para decidir-se de uma
maneira em lugar de em outra forma, por algo dentro dele, de modo que
a volição é uma revelação do que ele mesmo é.
Causa.
Em terceiro lugar, a palavra causa não é menos ambígua. Às vezes
significa a mera ocasião; às vezes o instrumento pelo qual se leva algo a
cabo; às vezes a eficiência a que se deve o efeito; às vezes ao fim pelo
qual se faz algo, como quando falamos de causas finais; às vezes da base
ou razão pela qual o efeito ou a ação da causa eficiente é assim e não de
outra maneira. Dizer que os motivos são as causas ocasionais da volição
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
395
é coerente com qualquer teoria de atividade, seja de necessidade ou de
indiferença; dizer que são causas eficientes é transferir a eficiência do
agente aos motivos; mas dizer que são a base ou razão pela qual as
volições são o que são é só dizer que cada ser racional, em cada ação
voluntária, tem que ter uma razão, boa ou não, para agir como o faz. A
maior parte dos argumentos contra a declaração de que os motivos são a
causa das volições se baseiam na pressuposição de que são enunciadas
como causas produtoras, e que se quer negar que o agente seja a causa
eficiente de suas próprias ações, enquanto que o significado é
simplesmente que os motivos são as razões que determinam que o agente
afirme sua eficiência de uma maneira em lugar de em outra. Entretanto,
trata-se verdadeiramente de causas, até onde determinam que o efeito
seja assim, e não de outra maneira. O amor materno pode induzir uma
mãe a vigiar uma criança doente, e é neste sentido a causa de sua
dedicação, mas ela não nada menos que a causa eficiente de todos os
seus atos de ternura. Diz Reid: «Ou o homem é a causa da ação, e então
é uma ação livre, e se lhe imputa de maneira justa, ou tem que ter outra
causa, e não se lhe pode imputar com justiça ao homem.» 262 Isto supõe
que a palavra causa tem só um sentido. No caso recém-suposto, a mãe é
a causa eficiente, e seu amor a causa racional ou razão de suas ações. É
acaso uma negação do livre-arbítrio dizer que seu amor determinou sua
vontade em favor da atenção em lugar de em favor da negligência?
Liberdade.
Quarto: Não é pouca a ambiguidade que surge de confundir a
liberdade da vontade com a liberdade do agente. Estas formas de
expressão se empregam frequentemente como equivalentes. Talvez seja
o mesmo o que se designa ao dizer: «A vontade é livre», e «o agente é
livre». Se admite que o mesmo conceito pode ser expresso de maneira
apropriada com estas frases. Ao falar de liberdade de consciência,
262
Active Powers, Essay iv. ch. ix.; Works, Edinburgh, 1849, p. 625.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
396
quando queremos dizer que o homem é livre quanto a sua consciência,
do mesmo modo falamos da liberdade da vontade, ou livre-arbítrio,
quando tudo o que significamos é que o homem é livre ao querer algo.
Mas o uso que faz sinônimas estas expressões é suscetível às seguintes
objeções: (1) Atribuir liberdade à vontade pode levar a conceber a
vontade como separada do agente; como um poder distinto, autônomo,
na alma. Ou, se for evitado este extremo, o que nem sempre sucede, a
vontade é contemplada como muito separada das outras faculdades da
alma, e como fora de sintonia com ela em seus vários estados. A vontade
é só a alma querendo. A alma, naturalmente, é uma unidade. Uma
autodeterminação é uma determinação da vontade, e tudo o que leve a
uma decisão própria conduz a uma decisão da vontade. (2) Uma segunda
objeção contra confundir estas expressões é que não são realmente
equivalentes. O homem pode ser que seja livre, quando sua vontade está
cativa. É um fato correto e estabelecido da linguagem, expressando uma
realidade da consciência, o falar de uma vontade escravizada num agente
livre. Não se trata de uma mera metáfora, mas de uma verdade filosófica.
Aquele que comete pecado, é escravo do pecado. Alguns hábitos mentais
ou corporais longamente continuados podem levar a vontade a uma
escravidão, enquanto que o homem segue sendo um agente livre. Um
homem que durante anos tenha sido um pão-duro tem sua vontade em
estado de escravidão, e entretanto o homem é perfeitamente livre. Está
autocontrolado, autodeterminado. Sua avareza é ele mesmo. É seu
próprio amado e abrigado sentimento. (3) De nada serve ter duas
expressões para o mesmo, a primeira apropriada, e a segunda ambígua.
O que realmente significamos é que o agente é livre. Este é o único
ponto ao que se lhe presta interesse algum. O homem é o sujeito
responsável. Se é livre para ser justamente responsável por seu caráter e
conduta, pouco importa quais sejam as leis que determinam as operações
de sua razão, consciência ou vontade; ou se a liberdade pode pregar-se
daquelas faculdades consideradas separadamente. Mantemos que o
homem é livre; mas negamos que a vontade seja livre no sentido de ser
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
397
independente da razão, da consciência e dos sentimentos. Em outras
palavras, um homem não pode ser independente de si mesmo nem
nenhuma de suas faculdades independentes de todo o resto.
Liberdade e capacidade.
Quinto: Outra fonte frutífera de confusão a respeito desta questão é
a de confundir a liberdade com a capacidade. O uso que liga o mesmo
significado a estes termos é muito antigo. Agostinho negou o livrearbítrio do homem desde a Queda. Pelágio afirmou o livre-arbítrio como
essencial à nossa natureza. O primeiro tinha simplesmente a intenção de
negar a capacidade do homem caído de voltar-se por si mesmo a Deus. O
último definia a liberdade como a capacidade em qualquer momento de
determinar-se a si mesmo para o bem ou para o mal. A controvérsia entre
Lutero e Erasmo foi realmente a respeito da capacidade, embora
nominalmente foi a respeito do livre-arbítrio. O livro de Lutero se
intitula De Servo Arbitrio, e o de Erasmo, De Libero Arbitrio. Este uso
impregna todos os símbolos da Reforma, e foi seguido pelos teólogos do
século dezesseis. Todos atribuem livre-arbítrio ao homem no verdadeiro
sentido das palavras, mas lhe negam liberdade de vontade. E esta
confusão continua sendo mantida em grande parte. Muitas das definições
dominantes da liberdade são definições de capacidade; e muito do que se
propõe usualmente para demonstrar a liberdade da vontade tem
realmente o desígnio de sustentar e só tem força para sustentar a doutrina
da capacidade. Jacobi define a liberdade como o poder de decidir-se em
favor dos ditados da razão em oposição às solicitações dos sentidos.
Bretschneider diz que é a capacidade de decidir-se segundo a razão.
Agostinho e muitos dos Agostinianos depois dele, distinguiram: (1) A
liberdade do homem, antes da Queda, que era uma capacidade de pecar
ou não pecar. (2) O estado do homem depois da Queda, quando tem a
liberdade de pecar, mas não para o bem. (3) O estado do homem no céu
quando terá liberdade para o bem, mas não para o mal. Esta última é a
mais elevada forma de liberdade, a felix necessitas boni. Esta é a
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
398
liberdade que pertence a Deus. Na mente popular talvez a ideia comum
da liberdade é a capacidade de decidir-se entre o bem e o mal, pelo
pecado ou a santidade. Esta ideia impregna mais ou menos todas as
disquisições em favor da liberdade da indiferença, ou do poder para o
contrário. A essência da liberdade num ser moral responsável, segundo
Reid, é a capacidade de fazer aquilo do que é responsável. Assim
Cousin, Jouffroy, Tappan, e toda esta classe de escritores, identificam a
liberdade com a capacidade. Este último autor, ao falar da distinção entre
a incapacidade natural e a moral, diz: «Quando negamos a liberdade ao
negar um poder de autodeterminação, estas definições, em ordem de
conseguir uma quase liberdade e capacidade, não são nada mais que
engenhosas insensatezes e plausíveis enganos.» 263 Aqui a liberdade e a
capacidade se empregam explicitamente como termos sinônimos.
Outros escritores que não ignoram a distinção entre liberdade e
capacidade, distinguem-nas, entretanto, só como diferentes formas de
liberdade. Este é o caso com muitos dos autores alemães. Pode-se dar o
exemplo do Müller, que distingue a Formale Freiheit [liberdade formal],
ou capacidade, da Reale Freiheit [liberdade real], ou liberdade tal como
existe na realidade. A primeira é só necessária como condição da
segunda. Isto é, ele admite que se as ações de um homem são certamente
determinadas por seu caráter, é realmente livre. Mas a fim de fazê-lo
justamente responsável por seu caráter, este tem que ser adquirido por
ele mesmo. 264
Com isto se confundem coisas que não só são distintas, mas
também são claramente distintas. Esta classe de escritores admite, como
certamente o admite todo mundo cristão, que desde a Queda os homens
não têm poder para fazer-se santos a si mesmos; muito menos levar a
cabo esta transformação mediante uma volição. admite-se que os santos
263
Review of Edwards, edit. New York, 1839, pp. 164, 165.
«Frei ist ein Wessen inwiefern die innere Mine seines Lebens aus der heraus es wirkt und thätig ist,
durch Selbstbestimmung bedingt ist.» Lehre von der Sünde, vol. II. pág. 72. En otra parte define la
libertad como siendo la capacidad de autodesarrollo. «Freiheit ist Macht aus sich zu werden», p. 62.
264
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
399
em glória ficam infalivelmente determinados por seu caráter à santidade,
mas se admite que os homens caídos e os santos são livres. A capacidade
pode haver-se perdido, mas permanecer a libertado A primeira fica
perdida desde a Queda. Uma vez é restaurada pela graça, como dizem
eles, deve perder-se de novo naquela liberdade para o bem que é idêntica
com a necessidade. Se a liberdade e a capacidade são assim distintas, por
que teriam que confundir-se? Estamos conscientes de nosso libertado
Sabemos que somos livres em todas nossas volições. Elas nos revelam
no mais íntimo de nossa consciência como atos de autodeterminação.
Não podemos as rejeitar nem escapar a nossa responsabilidade a respeito
delas, embora o tentemos. E ninguém, entretanto, está consciente de uma
capacidade para mudar seu próprio coração. O livre-arbítrio pertence a
Deus, aos anjos, aos santos glorificados, aos homens caídos, e a Satanás;
e é o mesmo em todos. E entretanto Deus não pode, no sentido mais
estrito da palavra, fazer o mal; nem tampouco pode Satanás, por uma
volição, recuperar sua herança perdida de santidade. É um grande mal
confundir assim coisas tão essencialmente distintas, que produz uma
confusão sem fim. Agostinho diz que o homem não é livre desde a
Queda, porque não pode mas sim pecar; os santos são livres porque não
podem pecar. No primeiro caso, a incapacidade destrói a liberdade; e no
segundo constitui a perfeição da liberdade! A necessidade é o
precisamente contrário à liberdade, e entretanto diz-se que ambas as
coisas são idênticas. Um homem, ao afirmar o livre-arbítrio, tem a
intenção de afirmar a livre ação, enquanto que nega a capacidade; outro
significa por isso uma plena capacidade. Certamente, é importante não
empregar as mesmas palavras para expressar ideias contrárias.
Entretanto, a confusão de pensamento e de linguagem não é o
principal mal que surge de tornar idênticas a liberdade e a capacidade.
Necessariamente nos leva a um conflito com a verdade, e com os juízos
morais dos homens. Há três verdades das quais cada homem está
convencido pela própria constituição de sua natureza. (1) Que é um
agente livre. (2) Que ninguém senão os agentes livres são responsáveis
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
400
por seu caráter e conduta. (3) Que não possui a capacidade para mudar
seu estado moral mediante um ato da vontade. Agora, se para expressar o
fato de sua incapacidade dizemos que não é um agente livre,
contradizemos sua consciência; ou, se ele crê o que lhe dizemos,
destruímos seu sentido de responsabilidade. Ou, se lhe dizemos que
porquanto é um agente livre tem poder para mudar seu coração à vontade
de novo entramos em conflito com suas convicções. Ele sabe que é um
agente livre, e entretanto sabe que não tem capacidade para se fazer
santo a si mesmo. O livre-arbítrio é o poder de decidir segundo nosso
caráter; a capacidade é o poder para mudar nosso caráter mediante uma
volição. Do primeiro tanto a Bíblia como a consciência afirmam que
pertence ao homem em cada condição de seu ser; do último, tanto a
Bíblia como a consciência afirmam do mesmo modo explicitamente que
não pertencem ao homem caído. Por isso, não deveria haver confusão
entre ambas as coisas.
Autodeterminação e autodeterminação da vontade
Sexto: Outra fonte de confusão é não discriminar entre a
autodeterminação e a autodeterminação da vontade. Os que empregam
esta última expressão dizem que têm a intenção de negar que a vontade
esteja determinada por um estado anterior da mente, e afirmar que tem
um poder autodeterminante, independente de qualquer coisa preexistente
ou coexistente. Eles dizem que os que ensinam que quando o estado da
mente é o mesmo, a volição será inevitavelmente a mesma, ensinam por
isso necessidade e fatalismo, reduzindo a vontade a uma máquina.
«Não conheço», diz Reid, «nada que se possa desejar mais para
estabelecer o fatalismo por todo o universo. Quando se demonstrar que,
em toda a natureza, as mesmas circunstâncias levam invariavelmente às
mesmas consequências, se deverá abandonar a doutrina da liberdade.» 265
265
Valerá a pena observar, de passagem, quão uniformemente os escritores da escola a que pertence
Reid identificam a certeza com a necessidade, enquanto arguam com um oponente. Na passagem
citada acima não é porque a vontade fique determinada pela necessidade, nem por uma causa fora da
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
401
A doutrina oposta é que a vontade é «automovida; faz seu nisus dela
mesma, e dela mesma suporta fazê-lo, e tem capacidade, dentro da esfera
de sua atividade, e com relação a seus objetos, para selecionar, por uma
ação meramente arbitrária, qualquer objeto determinado. É uma causa
cujos atos todos, assim como qualquer ato em particular, considerados
como fenômenos que demandam uma causa, ficam explicados por ela
mesma». 266 Assim, se se pergunta por que a vontade decide de uma
forma e não de outra, deve-se buscar a razão em sua capacidade de
autodeterminação. Pode, mediante um ato arbitrário, escolher ou não
escolher, escolher de uma forma ou de outra, sem um motivo ou com ele,
por ou contra quaisquer ou todas as influências que incidam sobre ela.
Mas quando estes escritores passam a provar sua postura, resulta que não
era isto absolutamente o que significavam. Não é o poder
autodeterminante da vontade o que eles defendem, mas o poder
autodeterminante do agente. Diz Reid que tudo o que é envolvido no
livre-arbítrio é que o homem é um agente, autor de suas próprias ações,
ou que somos «causas eficazes em nossas ações deliberadas e
voluntárias». 267 «Dizer que o homem é um agente livre não é mais que
dizer que, em alguns casos, é verdadeiramente um agente e uma causa, e
que não se exerce ação sobre ele meramente como sobre um instrumento
passivo.» 268 O doutor Samuel Clarke, em sua controvérsia com Leibnitz,
diz: «A capacidade de automovimento, ou ação, que, em todos os
agentes animados, é espontaneidade, é, nos agentes morais ou racionais,
o que chamamos propriamente liberdade.» Novamente, diz: «a
verdadeira definição de liberdade é a capacidade de agir». Agora,
porquanto todos os proponentes da doutrina da certeza moral admitem a
autodeterminação do agente, e negam a capacidade autodeterminante da
mente, mas simplesmente que se moteja de fatalismo a que as mesmas decisões tenham lugar
«invariavelmente» nas mesmas circunstâncias.
266
Tappan’s Review of Edwards, edit. New York, 1839, p. 223.
267
Active Powers, Essay v. ch. 2; Works, Edinburgh, 1849, p. 603.
268
Active Powers, Essay iv. ch. 3; Works, p. 607.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
402
vontade, tem que seguir a maior das confusões pela confusão destas duas
coisas; e, além disso, dá-lhe então uma vantagem indevida à doutrina da
capacidade autodeterminante da vontade, mediante argumentos que
demonstram só autodeterminação, o que todo homem admite. Por outro
lado, cria-se um injusto preconceito contra a verdade ao enunciá-la como
negadora da capacidade de autodeterminação, quando a única coisa que
nega é a capacidade autodeterminante da vontade. Assim, apresenta-se o
Presidente Edwards como negando repetidamente que as volições sejam
autodeterminações, ou que a mente seja a causa eficiente de suas
próprias ações, ou que o homem seja um agente, porque escreveu contra
o poder autodeterminante da vontade, tal como o ensinaram Clarke e
Whitby. Estas duas coisas não deveriam ser confundidas, porque são
verdadeiramente distintas.
Quando dizemos que um agente é autodeterminado, dizemos duas
coisas: (1) Que ele é o autor ou causa eficiente de sua própria ação. (2)
Que as bases ou razões para sua determinação estão dentro dele mesmo.
Está determinado pelo que o constitui naquele momento num indivíduo
particular, por seus sentimentos, princípios, caráter e disposições, e não
por alguma influência ab extra, ou coercitiva. Mas quando dizemos que
a vontade é autodeterminada, separamo-la dos outros elementos
constitutivos do homem, como um poder independente, e, por um lado,
negamos que seja determinada por algo no homem; por outro, afirmamos
que se determina a si mesma por um poder inerente, que se move por
seus próprios meios, arbitrário. Neste caso, a volição deixa de ser uma
decisão do agente, porque pode ser contrária a todo o caráter, princípios,
inclinações, sentimentos e convicções do agente, ou qualquer outra coisa
que o constitua no que ele é.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
§ 3. A certeza é consistente com a liberdade.
403
Embora a doutrina da necessidade seja subversiva do fundamento
de toda moralidade e religião, o que agora ocupa nossa atenção é a
doutrina da contingência. Desejamos simplesmente enunciar a questão
como entre certeza e incerteza. A doutrina da necessidade, no sentido
próprio da palavra, é anticristã; mas o mundo cristão está dividido, e
sempre o esteve, entre os proponentes e os oponentes da doutrina da
contingência. Todos os Agostinianos mantêm que um ato livre pode ser
inevitavelmente certo quanto a seu acontecimento. Todos os antiagostinianos, sejam Pelagianos, ou Semipelagianos, ou Arminianos, e a
maioria dos filósofos morais e metafísicos adotam a posição contrária.
Ensinam que como a vontade tem um poder autodeterminante, pode
decidir-se contra todos os motivos, internos ou externos, contra todas as
influências, divinas ou humanas, de maneira que suas decisões não
podem resultar inevitáveis sem a destruição de sua liberdade. A mesma
essência da liberdade, dizem eles, é o poder para o contrário. Em outras
palavras, um ato livre é aquele executado com a consciência de que sob
circunstâncias exatamente idênticas, isto é, tanto no mesmo estado
interno como externo da mente, poderia ter havido a decisão oposta.
Segundo a primeira doutrina, a vontade está determinada; segundo a
outra, determina-se a si mesma. No primeiro caso, nossos atos são ou
podem ser inevitavelmente certos, e entretanto livres. No segundo, para
que sejam livres devem ser incertos. Já demonstramos que esta é uma
apresentação correta da questão; que os proponentes da necessidade
moral significam pela mesma certeza; que os proponentes da
contingência significam pela mesma incerteza. Admitimos que o uso da
palavra necessidade, inclusive quando qualificada, dizendo
negativamente que não é «absoluta, física nem mecânica», mas que é
meramente filosófica ou moral, é infeliz e inapropriada. E se algum
oponente de Agostinho ou de Edwards diz que tudo o que nega é uma
necessidade absoluta ou física, e que não tem objeções à doutrina da
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
404
certeza, então a diferença entre ele e Edwards é meramente semântica.
Mas a verdadeira controvérsia jaz mais profundamente. Não é a palavra
a que sofre oposição, mas o próprio conceito. Há uma verdadeira
diferença quanto à natureza do livre-arbítrio, e esta diferença se
concentra neste ponto concreto: Podem os atos dos agentes livres resultar
inevitavelmente certos, sem com isso destruir a liberdade dos mesmos?
Pontos de concordância.
Será bom, antes de prosseguir, enunciar aqueles pontos nos quais
concordam as partes desta controvérsia.
1. Concordam em que o homem é um agente livre, em tal sentido
que é responsável por seu caráter e por suas ações. A disputa não é a
respeito da realidade do livre-arbítrio, mas a respeito de sua natureza. Se
alguém nega que os homens são agentes morais responsáveis, pertence
então à escola da necessidade, e não é interlocutor na discussão que
agora se considera.
2. Está-se de acordo quanto à natureza do livre-arbítrio, que supõe
tanto razão como poder ativo. A mera espontaneidade não constitui o
livre-arbítrio, porque se acha nos brutos, nos idiotas e nos maníacos. Não
há controvérsia quanto ao que se significa em razão como um dos
elementos do livre-arbítrio; e pelo que respeita ao poder ativo, que é seu
segundo elemento, concorda-se que significa ou inclui a eficiência. Em
outras palavras, concorda-se em que um agente livre é a causa eficiente
de suas próprias ações.
3. Admite-se, por ambos os lados, que em todos os casos
importantes, os homens agem influenciados por motivações. Reid,
certamente, tenta mostrar que em muitos casos a vontade decide sem
motivo algum. Quando não há base para uma preferência, diz ele que
este deve ser o caso, como no caso em que um homem decide qual
moeda de cinquenta xelins vai dar. Admite, entretanto, que estas
decisões arbitrárias têm que ver só com coisas irrelevantes. Outros da
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
405
mesma escola reconhecem que nunca se chega a uma volição racional,
exceto sob a influência de motivos.
4. Concorda-se além em que a vontade não está determinada com
certeza por motivos externos. Todos os Agostinianos negam que o estado
interno da mente que determina a vontade seja mesmo determinado certa
ou necessariamente por nada externo à própria mente.
5. Também se pode assumir que as partes concordam em que a
palavra vontade deva ser tomada em seu sentido próprio, restringido.
Não se trata se os homens têm poder sobre seus próprios afetos, sobre o
que lhes agrada ou desagrada. Ninguém leva a capacidade da vontade tão
longe para dizer que podemos, mediante uma volição, mudar nossos
sentimentos. O que tratamos só trata de nossas volições. É a base ou
razão dos atos de autodeterminação o que está sob discussão. E, por isso,
o que temos à vista é a vontade considerada como a faculdade da
autodeterminação, e não como a sede dos afetos. A pergunta de por que
um homem é levado a amar a Deus, ou a Cristo, ou a seus semelhantes,
ou a verdade e a bondade; e outro levado a amar o mundo, o pecado, é
muito diferente da pergunta do que é que o determina a efetuar este ou
aquele ato em particular. A vontade é aquela faculdade mediante a qual
decidimos fazer algo que consideramos que está em nosso poder fazer. A
questão quanto a se alguém tem capacidade para mudar seu próprio
caráter em qualquer momento, ou dar-se a si mesmo o que na linguagem
da Escritura é um novo coração, tem que ver com a magnitude de sua
capacidade. Isto é, trata-se de uma questão que concerne à capacidade ou
incapacidade do pecador: e é uma questão de suma importância; mas não
devesse ser confundida com a questão do livre-arbítrio, que é o que
estamos agora considerando.
Assim, tudo o que estamos considerando é se, quando alguém
decide fazer algo, sua vontade está determinada pelo estado prévio de
sua mente; ou se, com precisamente as mesmas posturas e sentimentos,
suas decisões podem ser num sentido determinado num momento, e em
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
406
outro em outro momento distinto. Isto é, se a vontade, ou antes dito, se o
agente deve ser indeterminável para poder ser livre.
O argumento de que a certeza é idônea para todos os
agentes livres
É certamente um forte argumento em favor da perspectiva do livrearbítrio que o faz consequente com a certeza, ou que supõe que um
agente pode estar determinado com certeza inevitável quanto a suas
ações enquanto que estas suas ações permanecem sendo livres, o fato de
que concorde com todas as classes ou condições dos agentes livres.
Negar a Deus o livre-arbítrio seria negar-Lhe a personalidade, e reduzi-lo
a um mero poder ou princípio. E entretanto, há algo no universo que seja
mais seguro que o fato de que Deus agirá com retidão? Mas se se diz que
as condições de existência num ser infinito são tão diferentes do que são
nas criaturas que não é justo arguir de um ao outro, podemos referir-nos
ao caso de nosso bendito Senhor. Ele tinha um verdadeiro corpo e uma
alma racional. Ele tinha uma vontade humana; uma mente regrada pelas
mesmas leis que as que determinam as ações intelectuais e voluntárias do
comum dos homens. Entretanto, em Seu caso, embora tivesse podido
existir a possibilidade metafísica de mal (embora inclusive esta seja uma
hipótese lastimosa), contudo era mais seguro que Ele estivesse sem
pecado que o sol e a lua permanecessem. Nenhuma lei física poderia ser
mais confiável quanto à produção de seus efeitos que aquele que Sua
vontade se decidisse sempre pelo reto. Mas se se objetasse que inclusive
neste caso que a união das naturezas divina e humana na pessoa de nosso
Senhor O coloca numa categoria diferente da nossa, fazendo injusto
supor que o que era certo em Seu caso deve ser certo no nosso, embora
não admitamos a força desta objeção, podemos referir-nos à condição
dos santos no céu. Eles, sem lugar a dúvida, seguem sendo agentes
livres; e entretanto suas ações são, e serão eternamente, determinadas
com uma certeza absoluta e inevitável rumo ao bem. Portanto, a certeza
deve ser consequente com o livre-arbítrio. O que pode dizer um cristão
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
407
em face disso? Negará acaso que os santos em glória são livres, ou
negará acaso a total certeza de sua perseverança em santidade? Ficaria
com isso exaltado seu conceito da bem-aventurança do céu? Ou elevaria
com isso suas ideias da dignidade dos redimidos para crer que seja
inseguro se cairão em pecado ou permanecerão santos? Entretanto,
podemos descer ao estado atual de nossa existência. Sem assumir nada
quanto à corrupção de nossa natureza, nem dar assumir nada que Pelágio
pudesse negar, é um fato certo que todos os homens pecam. Nunca
existiu um mero homem na face da terra que não pecasse. Quando
contemplamos um recém-nascido, sabemos que, por incerto que seja seu
futuro, é absoluta e inevitavelmente certo que, se viver, pecará. Por isso,
seja qual for o aspecto em que contemplemos o livre-arbítrio, seja em
Deus, na natureza humana de Cristo, nos redimidos no céu, ou no
homem aqui na terra, observamos que é compatível com a absoluta
certeza.
Argumentos derivados da Escritura.
Um segundo argumento a respeito desta questão se deriva daquelas
doutrinas da Escritura que supõem necessariamente que as ações livres
podem ser certas quanto ao seu acontecimento.
1. A primeira e mais evidente destas doutrinas é o conhecimento
antecipado de Deus. Seja qual for a explicação metafísica que se dê a
este atributo; por muito que ignoremos a distinção entre conhecimento e
conhecimento antecipado, ou por muito que disputemos que porquanto
Deus habita a eternidade, e não está absolutamente submetido às
limitações do tempo, e que para Ele nada é sucessivo, segue-se
entretanto persistindo o fato de que nós habitamos no tempo, e que para
nós há um futuro, assim como um presente. Persiste, por isso, o fato de
que as ações humanas são conhecidas antes de que aconteçam no tempo,
e que, por isso mesmo, são conhecidas antecipadamente. Mas se são
conhecidas como futuras então devem ser certas; não porque o
conhecimento antecipado faça com que seu acontecimento seja certo,
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
408
mas sim porque o supõe certo. É uma contradição de termos dizer que
um acontecimento incerto pode ser conhecido antecipadamente como
certo. Negar a Deus o conhecimento antecipado das coisas, dizer que as
ações livres, porquanto são necessariamente incertas quanto ao seu
acontecimento, não são objetos da presciência, do conhecimento
antecipado de Deus, como tampouco os sons são o objeto da vista, nem
as verdades matemáticas objetos dos afetos, é destruir o próprio conceito
de Deus. O futuro deve ser tão ignoto a Ele como a nós, e Ele tem que
estar recebendo em cada instante enormes quantidades de conhecimento.
Ele não pode ser um Ser eterno, impregnando toda duração com uma
existência simultânea, e muito menos um Ser onisciente, para quem não
há nada novo. Portanto, é impossível crer em Deus tal como é revelado
na Bíblia, a não ser que creiamos que Ele conhece todas as coisas desde
o princípio. Mas se todas as coisas são conhecidas, todas as coisas, sejam
fortuitas ou livres, são certas; consequentemente, a certeza deve ser
consistente com a liberdade. Não estamos mais seguros de nossa
existência de que o estamos de nosso livre-arbítrio. Dizer que isto é um
engano é negar a veracidade de nossa consciência, o que não apenas
envolve necessariamente a negação da veracidade de Deus, mas também
subverte deste modo a base de todo conhecimento, e nos afunda num
cepticismo absoluto. Do mesmo modo poderíamos dizer que nossa
existência é um engano como qualquer outro fato da consciência seja um
engano. Não temos mais nem melhor evidência para um que para o
outro. Os homens podem especular tanto como quiserem, mas devem
crer e agir com base nas leis impostas sobre nossa natureza por nosso
Criador. Portanto, temos que crer em nossa existência e em nosso livrearbítrio; e por uma necessidade dificilmente menos imperativa temos que
crer que todas as coisas são conhecidas por Deus desde a eternidade, e
que se são conhecidas antecipadamente, e seu acontecimento é certo, não
podemos negar que a certeza é consequente com o livre-arbítrio sem
envolver-nos em contradições palpáveis. Este argumento é tão
concludente que a maioria dos proponentes teístas da doutrina da
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
409
contingência, quando passam a tratar isso, abandonam a questão, e
reconhecem que uma ação pode ser certa quanto à sua ocorrência, e
entretanto livre. Contentam-se por agora em negar que seja necessária,
embora possa ser certa. Mas esquecem que por «necessidade moral» não
se significa nada mais que certeza, e que é precisamente a certeza o que,
em outras ocasiões, eles apresentam como oposto à liberdade. Se desde
toda a eternidade está determinado como agirá cada homem; se dos
mesmos antecedentes seguirem inevitavelmente as mesmas
consequências; se os atos dos homens são inevitáveis, isto é designado
como fatalismo. Entretanto, se for realmente verdade que os proponentes
da indiferença, da capacidade autodeterminante da vontade, do poder
para a eleição contrária, ou de qualquer outro nome que se lhe aplique à
teoria da contingência, não têm realmente intenção de opor-se à doutrina
da certeza, mas estão simplesmente combatendo o fatalismo ou a
necessidade física, então a controvérsia desaparece.
Que mais poderiam pedir Leibnitz ou Edwards que o que admite
Reid na seguinte passagem?: «Deve-se admitir que assim como tudo o
que foi, certamente foi, e que tudo o que é, certamente é, da mesma
maneira o que será, certamente será. Estas são proposições idênticas, e
não podem ser postas em dúvida pelos que as concebam distintamente.
Mas não sei de nenhuma norma de raciocínio pelo qual se possa inferir
que devido ao fato de que um acontecimento vá ser com certeza, que por
isso sua produção tenha que ser necessária. O modo de sua produção,
seja livre ou necessário, não pode ser deduzido com base no tempo de
sua produção, seja passado, presente ou futuro. O fato de que será não
implica mais que será necessariamente que o fato de que será livremente
produzido; porque nem o presente, nem o passado nem o futuro, têm
nenhuma conexão maior com a necessidade que a que têm com a
liberdade. Concedo, portanto, que do fato de que os acontecimentos
sejam previstos pode-se concluir com justiça que são certamente futuros;
mas do fato de que sejam certamente futuros não se segue que sejam
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
410
269
necessários.» Porquanto todas as coisas estão previstas, todas as coisas
são inevitáveis quanto à sua ocorrência. Isto é conceder tudo o que deve
demandar todo Agostiniano.
2. Outra doutrina sustentada por uma grande parte do mundo cristão
em todas as eras e que necessariamente exclui a doutrina da contingência
é a da preordenação de acontecimentos futuros. Os que creem que Deus
ordena previamente tudo o que deve ocorrer devem crer que o
acontecimento de todos os acontecimentos está determinado com uma
certeza inalterável. Não é nosso propósito demonstrar nenhuma destas
doutrinas, mas simplesmente arguir com base nas mesmas como
verdadeiras. Além disso, pode-se remarcar que não há dificuldade na
doutrina da preordenação que não esteja incluída na da presciência. O
último supõe a certeza das ações livres, e o primeiro assegura sua
certeza. Se o fato de que sejam certos é consequente com a liberdade,
que sejam atos certos não pode ser incompatível com a mesma. Tudo o
que faz a preordenação é assegurar que ocorram certas ações livres. Toda
a dificuldade reside em que sejam certos, e isto deve ser admitido por
todo teísta consequente. A questão que agora confrontamos é que os que
creem que a Bíblia ensina a doutrina da preordenação ficam
comprometidos com a conclusão de que um acontecimento pode ser livre
e, entretanto, seguro e por isso que a teoria da contingência que supõe
que uma ação deve ser incerta para ser livre é antiescriturística e falsa.
3. A doutrina da divina providência envolve as mesmas conclusões.
Esta doutrina ensina que Deus governa a todas suas criaturas e todas as
ações das mesmas. Isto é, que Ele conduz a administração de Seu
governo com o fim de levar a cabo Seus propósitos. Aqui nos
encontramos outra vez com a mesma dificuldade, e não é mais velho que
antes. O prévio conhecimento pressupõe certeza; a preordenação a
assegura; e a providência a leva a cabo. O último não faz mais que o que
pressupõe o primeiro. Se a certeza for compatível com a liberdade, a
269
Active Powers, Essay iv. ch. 10; Works, edit. Edinburgh, 1849, p. 629.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
411
providência, que só assegura a certeza, não pode ser incompatível com a
liberdade. Quem, por qualquer dificuldade metafísica, quem, porque não
pode compreender como Deus pode efetivamente governar os agentes
livres sem destruir sua natureza, abandonaria a doutrina da providência?
Quem desejaria ver cair as rédeas do império universal das mãos da
sabedoria e amor infinitos, para que fossem arrebatadas pelo acaso ou a
fatalidade? Quem não preferiria ser governado por um Pai que por um
tornado? Se Deus não pode governar eficazmente as ações dos agentes
livres, não pode haver profecia, nem oração, nem ação de graças, nem
promessas, nem segurança da salvação, nem certeza se no final Deus
triunfará ou Satanás, se a consumação será o céu ou o inferno. Dá-nos
certeza a segura convicção de que não pode cair o pardal, nem um
pecador mover um dedo, senão segundo Deus o permite e ordena. Temos
que ter o governo de Deus ou de Satanás. E se Deus tem uma
providência, Ele deve ter a incapacidade de fazer certos os atos de Suas
criaturas; e por isso a incerteza deve ser consistente com a liberdade.
Acaso não era coisa certa que Cristo devia ser, segundo as Escrituras,
crucificado por mãos de ímpios, e morto? E não foram, entretanto, livres
os Seus inimigos em tudo o que fizeram? Lembremos que em todas estas
doutrinas da providência, da preordenação e da presciência, não se
assume nada além do que Reid, um dos mais capazes oponentes de
Leibnitz e Edwards, admite bem disposto. Ele admite a presciência dos
acontecimentos futuros; admite também que a presciência supõe certeza,
e isto é tudo o que a preordenação ou a providência asseguram. Se uma
ação pode ser livre, embora conhecida antecipadamente de maneira
certa, pode ser livre embora seja preordenada e assegurada mediante o
grande plano da providência.
4. Todo mundo cristão crê que Deus pode converter os homens.
Creem que Ele pode eficazmente levá-los ao arrependimento e à fé; e
que Ele pode assegurá-los no céu para que jamais caiam em pecado. Isto
é, eles creem que Ele pode fazer as ações livres deles totalmente certas.
Quando dizemos que esta é a fé de todo o mundo cristão, não queremos
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
412
dizer que nenhum cristão individual ou teólogo cristão não haja jamais
negado esta doutrina da graça; mas queremos dizer por isso que a
doutrina, até onde a enunciamos, está incluída nas confissões de todas as
grandes igrejas históricas da Cristandade em todas as idades. Constitui
tanto uma parte da fé estabelecida dos cristãos como a divindade de
nosso Redentor. Sendo este o caso, a doutrina de que a contingência é
necessária para a liberdade não pode ser conciliada com a doutrina cristã.
Certamente, foi extensamente sustentada por cristãos; mas nosso
objetivo é mostrar que entra em conflito com doutrinas que eles mesmos,
como cristãos, devem admitir. Se Deus pode cumprir Sua promessa de
dar aos homens um novo coração; se pode trasladá-los do reino das
trevas ao reino de Seu amado Filho; se pode dar-lhes arrependimento
para vida; se não é impróprio orar a Ele para que os preserve de cair e
para que lhes dê a segura posse da vida eterna, então Ele pode controlar
suas ações livres. Ele pode, por Sua graça e sem violar a liberdade deles,
fazer absolutamente certo que se arrependerão e crerão, e que
perseverarão na santidade. Se estas coisas são assim, então é evidente
que qualquer teoria que faça da contingência ou incerteza de um
elemento vital da liberdade deve ser irreconciliável com algumas das
mais claras e mais preciosas doutrinas das Escrituras.
O argumento baseado na consciência.
Um terceiro argumento a respeito desta questão se deriva da
consciência. Admite-se que todo homem tem consciência da liberdade
em seus atos voluntários. Admite-se, ademais, que esta consciência
demonstra a realidade do livre-arbítrio. A validez deste argumento que
os proponentes do livre-arbítrio enfatizam contra a doutrina da
necessidade em quaisquer daquelas formas que envolvam uma negação
desta realidade da consciência a admitimos plenamente. A doutrina a que
se opõem Reid e Stewart, assim como muitos escritores continentais, era
realmente uma doutrina que negava ao mesmo tempo a liberdade e a
responsabilidade do homem. Esta não é a doutrina Agostiniana nem
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
413
Edwardiana, embora infelizmente ambas são expressas com os mesmos
termos. A primeira é a doutrina da necessidade física ou mecânica; a
outra, a da certeza. Como entre os proponentes desta última teoria e os
defensores da contingência há concordância em que o homem é um
agente livre; como ademais há concordância em que está incluído na
consciência do livre-arbítrio o fato de que somos causas eficientes e
responsáveis por nossas próprias ações, e que temos a capacidade de
executar ou não executar qualquer ação voluntária da qual fomos
autores. Mas mantemos que não somos menos conscientes de que esta
convicção íntima de que tínhamos capacidade de não executar a ação é
condicional. Isto é, somos conscientes que a ação teria sido diferente se
tivéssemos tido em nossas mentes outras atitudes ou sentimentos, ou se
fosse permitido que agissem em sua verdadeira magnitude. Ninguém
está consciente de uma capacidade de querer contra sua vontade; isto é, a
vontade, no sentido restringido do termo, não pode ir contra a vontade no
sentido mais amplo do mesmo. Isto só equivale a dizer que ninguém
pode preferir contra sua preferência nem escolher contra sua eleição.
Uma volição é uma preferência que resulta numa decisão. Um homem
pode ter uma preferência num momento, e outra em outro. Pode ser que
tenha vários sentimentos em conflito ou princípios em ação ao mesmo
tempo; mas não pode ter uma coexistência de preferências opostas. O
que nos ensina a consciência a respeito desta questão parece ser
simplesmente o que segue: que em cada ação voluntária tivemos alguma
razão para agir como o fizemos; que na ausência daquela razão, ou na
presença das outras, que outros podem pensar que deveriam ter estado
presentes, tivéssemos tido que agir ou podido agir de maneira distinta.
Sob as razões para uma ação inclui-se tudo o que se significa com o
termo motivos, no sentido subjetivo do termo, isto é, princípios,
intenções, sentimentos, etc. Não podemos conceber que alguém possa
estar consciente de que, com seus princípios, sentimentos e inclinações
em sentido determinado, sua vontade possa ir em direção contrária. Um
homem cheio do temor de Deus, ou com o amor de Cristo, não pode
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
414
querer blasfemar de seu Deus ou Salvador. Aquele temor ou amor
constituem para aquele tempo o homem. É um homem que existe
naquele estado, e se seus atos não expressam aquele estado, não são seus.
Argumentos com base no caráter moral das volições.
Isto sugere um quarto argumento a respeito desta questão. A não ser
que a vontade fique determinada pelo anterior estado da mente, em
oposição a ficar autodeterminada, não pode haver moralidade em nossas
ações. Um homem é responsável por suas ações externas porque são
decididas por sua vontade; é responsável por seus volições, porque estas
ficam determinadas por seus princípios e sentimentos; é responsável por
seus princípios e sentimentos pela inerente natureza dos mesmos como
bons ou maus, e porque são seus próprios, constituindo seu caráter. Se o
ato externo é separado da vontade, deixa de ter todo caráter moral. Se eu
mato um homem, a não ser que a ação fosse intencional, isto é, o ato
resultado de uma volição de matar ou danificar, não há moralidade na
ação. Se eu queria dar-lhe morte, então o caráter do ato depende dos
motivos que determinaram a volição. Se estes motivos eram um respeito
pela vontade de Deus, ou as demandas da justiça expressas legalmente, a
volição seria correta. Se o motivo era a malícia ou a cobiça, a volição e a
ação consequente seriam más. É evidente que se a vontade fosse
autodeterminada, independente do anterior estado da mente, não teria
mais caráter que o ato exterior separado da volição, – não revela nem
expressa nada na mente. Se um homem, quando está cheio de
sentimentos piedosos, pode querer as ações mais ímpias; ou, quando está
cheio de inimizade contra Deus, pode ter as volições de um santo, então
suas volições e ações não têm nada que ver com ele mesmo. Não
constituem expressão de seu caráter e não pode ser responsável por elas.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
415
Argumento com base na natureza racional do homem
A doutrina de que a vontade é determinada e não autodeterminada
está além disso envolta no caráter racional de nossas ações. Uma ação
racional não é meramente aquela ação realizada por um ser racional, mas
uma ação que foi executada com uma razão, boa ou má. Uma ação
efetuada sem razão alguma, sem intenção ou objetivo, para a qual não se
possa dar outra razão além da mera capacidade de agir, é tão irracional
como as ações de um bruto ou de um idiota. Por isso, se a vontade nunca
agir independentemente do entendimento e dos sentimentos, suas
volições não são as ações de um ser racional como tampouco o seriam se
a razão fosse totalmente anulada. A única verdadeira ideia da liberdade é
aquela de um ser que age de acordo com as leis de sua natureza.
Contanto que se permita a um animal agir sob o controle de sua própria
natureza, determinado em tudo o que faz para o que está dentro dele
mesmo, tem toda a liberdade da qual é capaz. Contanto que um homem
fique determinado em suas volições e ações por sua própria razão e
sentimentos, tem toda a liberdade de que é capaz. Mas se as ações de um
animal são separadas de seu estado interior, sua liberdade se desvanece.
Fica possuído. E se as ações de um homem não ficam determinadas por
sua razão e sentimentos, é uma marionete ou um maníaco.
A doutrina de que a vontade age com independência do anterior
estado da mente supõe que nossas volições são átomos isolados surgindo
do abismo da caprichosa autodeterminação da vontade, procedente de
uma fonte fora do controle ou alcance da razão. São puramente casuais,
arbitrárias ou caprichosas. Não têm relação com o passado, e não dão
promessa a respeito do futuro. Com base nesta hipótese, o caráter não
pode existir. Entretanto, é um fato experimental universalmente admitido
que existem princípios ou disposições que regem a vontade. Sentimo-nos
seguros de que um homem honesto agirá com honestidade, e que um
homem benevolente agirá com benevolência. Além disso, temos a
certeza de que estes princípios podem ser tão fortes e estar tão fixados
que tornem as volições absolutamente certas. «Os seres racionais», diz
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
416
Reid, «agem com os melhores motivos em conformidade com aquela
proporção em que sejam sábios e bons; e cada ser racional que aja de
maneira diferente abusa de sua liberdade. O ser mais perfeito, em tudo
aquilo em que há um bem e um mal, um melhor e um pior, sempre age
de maneira invariável com base nos melhores motivos. Isto, certamente,
é pouco menos que uma proposição idêntica; porque seria contradição
dizer que um ser perfeito pratica o mal e o irrazoável. Mas dizer que não
age livremente, porque sempre faz o melhor, é dizer que o uso
apropriado da liberdade destrói a liberdade, e que a liberdade consiste só
em seu abuso». 270 Isto é, o caráter determina a ação; e dizer que a certeza
infalível das ações destrói sua liberdade é fazer com que a liberdade
destrua a liberdade». Embora Reid e Stewart escreveram contra Leibnitz
e Edwards assim como contra Hobbes e Belsham, as sentenças acima
citadas contêm toda a doutrina dos dois e primeiros distinguidos homens,
assim como de seus inumeráveis predecessores, associados e seguidores.
É a doutrina de que a certeza infalível é consistente com a liberdade.
Esta convicção está tão arraigada nas mentes dos homens que agem
uniformemente, assim como conscientemente, com base nela. Assumem
que as volições dos homens estão determinadas pelos motivos. Dão por
sentado que o caráter é algo que existe; e por isso tratam de moldar o
caráter daqueles sob sua influência, seguros de que se fizerem boa a
árvore, o fruto será bom. Não agem com base no princípio de que as
ações dos homens são caprichosas, de que a vontade está
autodeterminada, agindo sem ou contra os motivos assim como com
eles, de maneira que sempre seja incerta a maneira em que irão decidir
se.
270
Active Powers, Essay iv. ch. 4; Works, p. 609.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
417
Argumento com base na doutrina de uma causa suficiente.
O axioma de que cada efeito deve ter uma causa, ou a doutrina de
uma razão suficiente, aplica-se ao mundo interior assim como ao
exterior. Governa toda a esfera de nossa experiência, interior e exterior.
Cada volição é um efeito, e por isso deve ter tido uma causa. Tem que
existir uma razão suficiente pela que foi assim, e não de outra maneira.
Aquela razão não foi o mero poder do agente para agir, porque isto só dá
conta para sua ação, não de sua ação de uma maneira e não de outra. A
força da gravidade explica que uma pedra caia na terra, mas não que caia
aqui em lugar dali. O poder para caminhar explica que um homem
caminhe, mas não que se dirija a leste em lugar de a oeste. Entretanto, énos dito, e isso da parte de inclusive os mais distinguidos escritores, que
a eficiência do agente é tudo o que é preciso para dar satisfação à
demanda instintiva de que consigamos uma razão suficiente, no caso de
nossas volições. Reid, como citamos antes, pergunta: «Houve uma causa
da ação? Indubitavelmente que sim. Para cada acontecimento tem que
haver uma causa que tivesse um poder suficiente para produzi-lo, e que
exercesse o poder com este propósito. No caso que nos ocupa, ou o
homem foi a causa da ação, e então se tratava de uma ação livre, e lhe é
justamente imputada; ou deve ter tido outra causa, e não pode ser
imputada com justiça ao homem. Por isso, neste sentido admite--se que
houve uma razão suficiente para a ação; mas a questão a respeito da
liberdade não fica absolutamente afetada por esta concessão.» 271 Outra
vez, ele pergunta: «Por que não se pode definir uma causa eficiente
como um ser que tem poder e vontade para produzir o efeito? A
produção de um efeito precisa de um poder ativo, e o poder ativo, ao ser
uma qualidade, deve estar num ser dotado deste poder. O poder sem
vontade não produz efeito algum; mas onde agem ao mesmo tempo, o
efeito deve ficar produzido». 272 A anotação do Sir William Hamilton na
271
272
Active Powers, Essay iv. ch. 9; Works, edit. Edinburgh, 1849, p. 625.
Ibid. p. 627.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
418
primeira destas passagens é «que para um acontecimento hiperfísico,
assim como físico, temos sempre que supor, por uma lei mental
necessária, uma razão suficiente de por que é, e é como é». Assim, a
eficiência do agente não é uma razão suficiente para que a volição seja
como é. É inconcebível que uma causa indeterminável aja de uma forma
em lugar de em outra; e se agir assim sem uma razão suficiente, sua ação
não pode ser nem racional nem moral.
Outro método comum de dar resposta a este argumento é assumir
que devido ao fato de que os advogados da certeza dizem que a vontade
fica determinada pelos motivos, e por isso que os motivos são a causa de
que a volição seja como é, que significam que a eficiência a que se deve
a volição reside nos motivos, e não no agente. Assim, Stewart diz: «A
questão não é a respeito da influência dos motivos, mas sim a respeito da
natureza de tal influência. Os proponentes da necessidade [certeza]
descrevem-na como a influência de uma causa ao produzir seu efeito. Os
proponentes da liberdade reconhecem que o motivo é a ocasião para a
ação, ou a razão para a mesma; mas mantêm que está tão longe de ser a
causa eficiente da mesma que supõe que a eficiência reside em outro
lugar, isto é, na mente do agente.» 273 Esta exposição já foi
suficientemente respondida mais acima. Os motivos não são a causa
eficiente da volição; esta eficiência reside no agente; mas o que nós
devemos demandar, «por uma lei mental necessária», é uma razão
suficiente pela qual o agente exerce sua eficiência de uma maneira e não
de outra. Atribuir esta simplesmente à sua eficiência é deixar totalmente
sem satisfazer a demanda de uma razão suficiente; em outras palavras, é
assumir que possa haver um efeito sem causa; isso é impossível.
Portanto, a doutrina do livre-arbítrio, que subjaz à Bíblia, que está
envolvida na consciência de cada ser racional, e que é dada por suposta
por todos os homens, agindo todos com base na mesma está à mesma
273
Philosophy of the Moral Powers, II. Appendix (§ 4); Works, Hamilton’s edition, Edinburgh, 1855,
vol. vi. p. 370.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
419
distância, por um lado, da doutrina da necessidade física ou mecânica,
que exclui a possibilidade da liberdade e da responsabilidade; e da
doutrina da contingência, por outro lado, que supõe que uma ação, para
poder ser livre, deve ser incerta; ou que a vontade se autodetermina,
agindo com independência da razão, da consciência dos inclinações e
dos sentimentos. Ensina que um homem é um agente livre e responsável,
porque ele é o autor de suas próprias ações, e porque não está
determinado para agir por nada fora de si mesmo, mas por suas próprias
posturas, convicções, inclinações, sentimentos e disposições, de maneira
que suas ações são os verdadeiros produtos do homem, e representam ou
revelam de maneira real a que ele é. Os mais profundos dos autores
modernos admitem que esta é a verdadeira teoria da liberdade; mas
alguns deles, como por exemplo Müller, em sua elaborada obra a
respeito do «Pecado», mantêm que a fim de que o homem seja feito
justamente responsável por suas ações que ficam assim determinados por
seu estado ou caráter internos, que este estado tem que ser ele mesmo
autoproduzido. Esta doutrina já foi suficientemente tratada ao considerar
o pecado original. Entretanto, pode-se observar aqui, para concluir nossa
presente discussão, que o princípio suposto é contrário ao juízo comum
dos homens. Este juízo é que as disposições e sentimentos que
constituem o caráter derivam sua moralidade ou imoralidade por sua
natureza, e não por sua origem. A malignidade é um mal, e o amor é um
bem, tanto se for concriado como se é inato, ou adquirido ou infundido.
Pode ser que seja difícil conciliar a doutrina das disposições más inatas
com a justiça e a bondade de Deus, mas esta é uma dificuldade que não
pertence a esta questão. Um ser maligno é um ser mau, se está dotado de
razão, tanto se foi feito assim como se nasceu assim. E um ser racional
benevolente é bom no juízo universal dos homens, tanto se foi assim
criado, ou se nasceu assim. Admitimos que é repugnante aos nossos
juízos morais o conceito de que Deus fosse criar um ser mau; ou que
qualquer ser nasça em estado de pecado, a não ser que o fato de que
nasça assim seja a consequência de um justo juízo. Mas isto não tem
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
420
nada que ver com a questão quanto a se as disposições morais não devem
seu caráter à sua natureza. O juízo comum dos homens é que sim a
devem a ela. Se um homem é realmente humilde, benevolente e santo,
assim é considerado, com independência de toda indagação a respeito de
como chegou a ser assim.
Uma segunda observação a respeito do princípio enunciado mais
acima é que não só é oposto ao juízo comum dos homens, mas também é
contrário à fé de toda a Igreja Cristã. Confiamos que esta linguagem não
será atribuída a um espírito de autoconfiança ou de dogmatismo. Não
reconhecemos nenhuma norma mais elevada de fato, à parte da infalível
palavra de Deus, que os ensinos do Espírito Santo como se revelam na fé
do povo de Deus. Está fora de toda discussão que é a doutrina da Igreja
universal que Adão foi criado reto; que seu caráter moral não foi autoadquirido. Não é menos a doutrina da Igreja universal que os homens,
desde a Queda, nascem ímpios; e também está incluído na fé de todas as
Igrejas Cristãs, que na regeneração os homens são feitos santos, não por
sua própria ação, mas por ato de Deus. Em outras palavras, as doutrinas
da retidão original, do pecado original, e da regeneração pelo Espírito de
Deus, são, e sempre foram, as doutrinas reconhecidas das Igrejas Grega,
Latina e Protestante: e se estas doutrinas estão contidas, como creem
todas estas Igrejas, na palavra de Deus, então não pode ser certo que o
caráter moral, para que possa ser objeto de aprovação ou desaprovação,
tenha que ser auto-adquirido. Portanto, o homem pode ser justamente
responsável por ações que estão determinadas por seu caráter, seja que
este caráter ou estado interior tenha sido herdado, adquirido, ou induzido
pela graça de Deus.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
421
PARTE III: SOTERIOLOGIA
SOB este cabeçalho se incluem o propósito e plano de Deus com
relação à salvação dos homens; a pessoa e a obra do Redentor; e a
aplicação desta obra pelo Espírito Santo para a salvação real do povo de
Deus.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
CAPÍTULO I
422
O PLANO DA SALVAÇÃO
§1. Deus tem este plano.
AS Escrituras falam de uma Economia de Redenção; o plano ou
propósito de Deus com relação à salvação dos homens. Chamam-no,
com referência a sua plena revelação na época do advento, a οἰκονομία
τοῦ πληρώματος τῶν καιρῶν - oikonomia tou pleroomatos ton kairon,
«A economia da plenitude dos tempos». Declara-se que é o plano de
Deus com relação à Sua ação reunir num só corpo harmônico a todos os
objetos da redenção, seja no céu ou na terra, em Cristo (Ef 1:10).
Também recebe o nome de οἰκονομία τοῦ μυστηρίου - oikonomia tou
musterion, o misterioso propósito ou plano que tinha sido escondido
durante as idades em Deus, e cuja revelação foi o grande desígnio do
Evangelho, e que tinha como intenção dar a conhecer os principados e às
potestades, por meio da Igreja, a multiforme sabedoria de Deus (Ef 3:9).
Um plano pressupõe: (1) A seleção de algum fim ou objeto
concreto a ser realizado. (2) A eleição dos meios apropriados. (3) Pelo
menos no caso de Deus, a aplicação efetiva destes meios para alcançar o
fim proposto.
Porquanto Deus está operando com base em um plano concreto no
mundo externo, é justo inferir que o mesmo sucede com referência ao
mundo moral e espiritual. Para o olhar de um homem sem instrução, os
céus são um caos de estrelas. O astrônomo vê ordem e sistema nesta
confusão; todos aqueles resplandecentes e distantes luzeiros têm seus
lugares designados e órbitas fixas; estão todos eles dispostos de modo
que nenhuma interfere com a outra, mas cada uma é dirigida segundo
uma concepção ampla e majestosa. As inumeráveis formas de vida
vegetal não são uma massa em confusão, mas para o olhar da ciência se
dispõem numa regularidade de classes, ordens, gêneros e espécies,
exibindo uma unidade de desígnio que impregna o todo. O zoólogo vê
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
423
nos centenas de milhares de animais que habitam em nosso globo quatro
e só quatro formas típicas primitivas, das quais todas as outras são seu
desenvolvimento num ordem ascendente, nunca passando um ao outro,
mas todos eles apresentando um grande sistema inclusivo desenvolvido
em todos os seus detalhes. À cabeça destas inumeráveis formas de vida
animal ergue-se o homem, dotado de capacidades que o elevam acima da
classe de meros animais, levando-o à comunhão com os anjos e com o
próprio Deus. Porquanto nestes departamentos inferiores de Suas obras
Deus age com base em um plano preestabelecido, não se deve supor que
nas esferas mais elevadas de Suas operações, que tocam o destino do
homem, tudo seja deixado ao acaso, permitindo-se que tome seu curso
não dirigido para chegar a um fim indeterminável. De acordo com isso
encontramos que as Escrituras afirmam expressamente com referência às
dispensações da graça não apenas que Deus vê o fim desde o princípio,
mas também que Ele opera todas as coisas segundo o conselho de Sua
vontade, ou, com base em Seu propósito eterno.
A importância do conhecimento deste Plano.
Se existe tal plano referente à redenção do homem, é evidentemente
da maior importância que seja conhecido e compreendido corretamente.
Se ao contemplar uma complicada máquina desconhecemos o fim para o
qual foi designada, ou a relação de suas distintas partes, seremos
incapazes de compreendê-la ou aplicá-la com utilidade. De maneira
semelhante, se ignoramos o grande fim a que se dirige o plano da
redenção, ou as relações das diferentes partes do plano, ou se temos uma
falsa concepção do fim e daquela relação, todas as nossas ideias serão
confusas e errôneas. Seremos incapazes de exibi-lo a outros ou de nos
aplicar isso a nós mesmos. Se o fim da redenção assim como o da
criação e da providência é a produção da maior quantidade de felicidade,
então o cristianismo será uma coisa; se seu fim é a glória de Deus, então
o cristianismo será outra coisa. Todo o caráter de nossa teologia e
religião depende da resposta a esta pergunta. De maneira semelhante, se
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
424
o desígnio especial e imediato da redenção é assegurar a salvação do
povo de Deus, então segue todo o sistema Agostiniano por uma
necessidade lógica; se seu desígnio é simplesmente fazer possível a
salvação de todos os homens, deverá receber-se o sistema oposto como
verdadeiro. A ordem dos decretos divinos ou, em outras palavras, a
relação que sustentam mutuamente as várias partes do plano divino, está
então muito longe de ser uma questão de especulações ociosas. Deve
determinar nossa teologia, e nossa teologia é determinante de nossa
religião.
Como se pode conhecer o plano de Deus.
Se há um esquema assim preconcebido relacionado com a salvação
dos homens, e se é por isso importante a apropriada compreensão deste
esquema, a seguinte pergunta é: como se pode determinar? A primeira
resposta a esta pergunta é que em cada sistema de fatos mutuamente
relacionados, a relação revela-se na natureza dos fatos. O astrônomo, o
geólogo e o zoólogo logo descobrem que os fatos de suas várias ciências
sustentam uma certa relação entre si, e que não admitem outra distinta.
Se não se admitir a relação, negam-se ou se distorcem os próprios fatos.
A única fonte de erro está bem numa indução incompleta dos atos, bem
em deixar de lhes permitir sua devida importância relativa. Um sistema
de astronomia deu lugar a outro, só porque os astrônomos anteriores não
estavam familiarizados com alguns fatos que seus sucessores
descobriram. Esta ciência chegou, por fim, a um estado que demanda o
assentimento de todas as mentes competentes, e que não pode a partir de
agora ser modificada de maneira radical. O mesmo, até certo ponto, é
certo em todos os departamentos das ciências naturais. E não pode ser
menos certo em teologia. O que são os fatos da natureza para o
naturalista assim são os fatos da Bíblia e de nossa consciência moral e
religiosa para o teólogo. Se, por exemplo, a Bíblia e a experiência
ensinam a total incapacidade dos homens caídos a algo espiritualmente
bom, este fato recusa de maneira tenaz harmonizar com qualquer sistema
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
425
que negue a graça eficaz ou a eleição soberana. E assim sucede com
todos os grandes fatos escriturísticos. Dispõem-se a si mesmos num certa
ordem mediante uma lei interna, com a mesma certeza e de maneira tão
clara como as partículas de matéria no processo da cristalização, ou na
unidade orgânica do corpo de um animal. É certo aqui como na ciência
natural que é só mediante uma indução imperfeita dos fatos, ou mediante
seu negação ou perversão, que se pode duvidar ou que possa haver
diversidade de opiniões a respeito de sua posição relativa no esquema da
salvação. Mas além disso temos em teologia um guia que o homem de
ciência não possui. Temos nas Escrituras não só a revelação do magno
desígnio de Deus em todas as Suas obras de criação, de providência e de
redenção, que é declarado como Sua própria glória, mas sim temos
declarada de maneira expressa, em muitos casos, a relação que tem cada
parte deste esquema com as outras partes. Assim, por exemplo, diz-se
que Cristo morreu para salvar o Seu povo de seus pecados. Somos
escolhidos para santidade. Por isso, a eleição precede à santificação.
Somos escolhidos para ser santificados, e não porque sejamos santos.
Estas revelações a respeito da relação das partes subordinadas do
esquema da redenção determinam de maneira necessária a natureza do
plano íntegro. Isto ficará claro pelo que segue.
Assim como as pessoas diferem em seu entendimento dos fatos da
Escritura, e assim como alguns são mais cuidadosos que outros para
reunir todos os fatos que devem ser considerados, ou mais fiéis em
submeter-se à autoridade dos mesmos, assim diferem em suas
perspectivas do plano que Deus dispôs para a salvação dos homens. As
posições mais importantes que se adotaram a respeito desta questão são:
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
§ 2. O Supralapsarianismo.
426
Primeiro, o esquema supralapsariano. Segundo esta posição, Deus,
para manifestar sua graça e justiça, selecionou dentre os homens criáveis
(isto é, dentre os homens a criar) a certo número como vasos de
misericórdia, e a outros como vasos de ira. Na ordem do pensamento, a
eleição e a reprovação precedem ao propósito de criar e de permitir a
Queda. A criação tem como fim a redenção. Deus cria uns para ser
salvos, e outros para ser perdidos.
Este esquema recebe o nome de supralapsariano porque supõe que
os homem como não caídos, ou antes da Queda, são objetos de eleição
para vida eterna e de predestinação à morte eterna. Esta postura foi
introduzida entre certa classe de Agostinianos inclusive antes da
Reforma, mas não foi geralmente recebida. O próprio Agostinho, e após
dele a maioria dos que adotam seu sistema doutrinal, foram, e seguem
sendo, infralapsarianos. Isto é, mantêm eles que é da massa de homens
caídos que alguns foram escolhidos para vida eterna, e alguns, para justo
castigo de seus pecados, predestinados à morte eterna. A postura do
próprio Calvino quanto a este extremo foi discutida. Porquanto não era
em seu tempo um ponto especial de debate, podem-se citar de suas
escritas certas passagens que sustentam a postura supralapsariana, e
outras passagens que favorecem a postura infralapsariana. No
«Consensus Genevensis», escrito por ele, há uma afirmação explícita da
doutrina infralapsariana. O «Consensus Genevensis» escrito por ele, não
é uma afirmação explícita da doutrina infralapsariana. Depois de dizer
que havia muito pouco benefício em especular sobre a predestinação da
queda do homem, ele acrescenta: “Quod ex damnata Adæ sobole Deus
quos visum est eligit, quos vult reprobat, sicuti ad fidem exercendam
longe aptior est, ita majore fructu tractatur.” 274
274
Niemeyer, Collectio Confessionum, p. 269.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
427
Na «Formula Consensus Helvetica», redigida como o testemunho
das igrejas suíças em 1675, e cujos principais autores foram Heidegger e
Turretino, há um repúdio formal da postura supralapsariana. No Sínodo
de Dort, que incluiu delegados de todas as igrejas Reformadas no
Continente e na Grã-Bretanha, uma grande maioria de seus membros
eram infralapsarianos, sendo Gomarus e Voetius os principais
proponentes da postura oposta. Os cânones daquele Sínodo, embora
evitando toda declaração extrema, foram redigidos de tal maneira que se
desse uma autoridade simbólica à doutrina infralapsariana. Dizem: 275
“Cum omnes homines in Adamo peccaverint et rei sint facti
maledictionis et mortis æteternæ, Deus nemini fecisset injuriam, si
universum genus humanum in peccato et maledictione relinquere, ac
propter peccatum damnare voluisset.” A mesma observação aplica-se à
Assembleia de Westminster. Twiss, o porta-voz daquela venerável
corporação, era um zeloso supralapsariano; mas a grande maioria de seus
membros militavam no campo oposto. Os Símbolos daquela Assembleia,
embora impliquem claramente a postura infralapsariana, foram
entretanto redigidos de tal maneira que evitassem constituir uma ofensa
para os que abraçavam a teoria supralapsariana. Na «Confissão de
Westminster» 276 diz-se que Deus designou os escolhidos para vida
eterna, e que «[quanto a] o resto da humanidade, prouve a Deus, segundo
o inescrutável conselho de Sua própria vontade, mediante o qual Ele
estende ou retém a misericórdia como quer, para a glória de Seu poder
soberano sobre Suas criaturas, passá-los por alto, e destiná-los à desonra
e ira por seus pecados, para louvor de Sua gloriosa justiça.» Aqui se nos
ensina que aqueles que Deus passa por alto são «o resto da
humanidade»; não o resto de homens ideais ou possíveis, mas sim o resto
daqueles seres humanos que constituem a humanidade, ou a raça
humana. Em segundo lugar, a passagem citada ensina que os não
275
276
Caput I. art. 1; Acta Synodi, edit. Dort., 1620, p. 241.
Chapter iii. sections §§ 6, 7.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
428
escolhidos são passados por alto e ordenados à ira «por seus pecados».
Isto implica que foram contemplados como pecaminosos antes desta
predestinação a juízo. A postura infralapsariana continua sendo mais
evidentemente assumida nas respostas às perguntas 19 e 20 no
«Catecismo Breve». Se ensina nele que toda a humanidade perdeu pela
Queda a comunhão com Deus, e que estão debaixo da Sua ira e
maldição, e que Deus, por Seu mero beneplácito, escolheu a alguns (a
alguns daqueles que estavam de baixo da Sua ira e maldição) para a vida
eterna. Esta foi a doutrina da grande maioria dos Agostinianos do tempo
de Agostinho até o presente.
Objeções ao Supralapsarianismo.
As objeções mais evidentes à teoria supralapsariana são: (1) Que
parece envolver uma contradição. De um Non Ens, como diz Turretino,
não se pode determinar nada. O propósito de salvar ou condenar deve
seguir de maneira necessária, na ordem do pensamento, ao propósito de
criar. O último fica assumido no primeiro. (2) É um princípio
escriturístico claramente revelado que onde não há pecado não há
condenação. Por isso, não pode haver predestinação à morte que não
contemple a seu objeto como já pecaminoso. (3) Parece claro com base
em todo o argumento do Apóstolo em Rm 9:9-21 que a «multidão» da
qual alguns são escolhidos e outros são deixados é a massa de homens
caídos. O desígnio do escritor sagrado é o de vindicar a soberania de
Deus na dispensação de Sua graça. Ele tem misericórdia de uns e não de
outros, em conformidade com Seu beneplácito, porquanto todos são
igualmente indignos e culpados. A vindicação é exposta não só pela
relação de Deus com Suas criaturas como seu Criador, mas por Sua
relação com elas como um soberano cuja lei elas violaram. Esta
descrição impregna todas as Escrituras. Dos crentes afirma-se que são
escolhidos «do mundo», isto é, da massa dos homens caídos. E em todas
as partes, como em Rm 1:24, 26, 28, declara-se a reprovação como
judicial, baseada na pecaminosidade de seus objetos. De outra maneira
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
429
não poderia ser uma manifestação da justiça de Deus. (4) A criação
nunca é exposta na Bíblia como um meio para a execução do propósito
da eleição e da reprovação. Isto, como se observou com justiça, não pode
ser assim. Os objetos da eleição são indivíduos concretos, como se
admite nesta controvérsia. Mas a única coisa que distingue entre meros
homens possíveis ou «criáveis» e indivíduos concretos, que com certeza
seriam criados e salvos ou perdidos, é o propósito divino de que serão
criados. De maneira que o propósito de criar necessariamente precede,
na ordem da natureza, ao propósito de redimir. Por isso em Rm 8:29, 30
se declara que πρόγνωσις - prognosis precede a προορισμός proorismos. «Aos que de antemão conheceu, também os predestinou.»
Mas o conhecimento antecipado implica a existência certa de seus
objetos; e a certeza da existência pressupõe da parte de Deus o propósito
de criar. Nada é ou deve ser exceto em virtude do decreto dAquele que
ordena previamente o que deve suceder. Toda futuridade, por isso,
depende da prévia ordenação; e o conhecimento antecipado pressupõe
futuridade. Temos, portanto, a autoridade do Apóstolo para dizer que o
conhecimento antecipado, baseado no propósito de criar, precede à
predestinação. E, portanto, a criação não é um meio para executar o
propósito da predestinação, porque o fim deve preceder os meios; e,
segundo Paulo, o propósito de criar precede o propósito de redimir, e por
isso não pode ser um meio para tal fim. Nosso Senhor, é-nos dito, foi
entregue à morte «pelo determinado desígnio e prévio conhecimento de
Deus». Mas Sua morte, de maneira necessária, supunha Sua encarnação,
e por isso, na ordem do pensamento, ou no plano de Deus, o propósito de
preparar-lhe corpo precedeu ao propósito de entregá-lo por ocasião da
morte da cruz. A única passagem da Bíblia que parece ensinar de
maneira explícita que a criação é um meio para a execução do propósito
da predestinação é Ef 3:9, 10. Ali, segundo alguns, diz-se que Deus criou
todas as coisas a fim de que ((ἵνα - hina) Sua multiforme sabedoria fosse
dada a conhecer por meio da Igreja. Se esta é a relação entre as várias
cláusulas destes versículos, o Apóstolo ensina que o universo foi criado a
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
430
fim de que por meio de homens redimidos (a Igreja) fosse revelada a
glória de Deus a todas as criaturas racionais. Neste sentido e neste caso
declara-se da criação que é um meio para a redenção; e por isso o
propósito de redimir tem que preceder ao propósito de criar. Entretanto,
não é esta a conexão lógica das cláusulas nesta passagem. Paulo não diz
que Deus criou todas as coisas a fim de que. Não está referindo-se ao
desígnio da criação, mas ao desígnio do evangelho e de sua própria
vocação ao apostolado. A mim, diz ele, foi-me dada esta graça de que eu
pregue entre os gentios as inescrutáveis riquezas de Cristo, e iluminar a
todos os homens no conhecimento do mistério (da redenção) a fim de
que por meio da Igreja seja dada a conhecer a multiforme sabedoria de
Deus. Esta é a conexão natural desta passagem, e esta é a interpretação
adotada pelos modernos comentaristas, com independência total da
relação que tenha a passagem com a controvérsia supralapsariana. (5)
Uma adicional objeção ao sistema supralapsariano é que não é
consequente com a exibição escriturística do caráter de Deus. É
declarado como Deus de misericórdia e de justiça. Mas não é compatível
com estes atributos divinos que os homens sejam predestinados à
desgraça e à morte eterna como inocentes, isto é, antes de terem
apostatado de Deus. Se são deixados de lado e predestinados à morte por
seus pecados, isso se deve a que na predestinação são considerados como
criaturas culpadas e caídas.
§ 3. Infralapsarianismo.
Segundo a doutrina infralapsariana, Deus, com o desígnio de
revelar Sua própria glória, isto é, as perfeições de Sua própria natureza,
decidiu criar o mundo; em segundo lugar, permitir a queda do homem;
em terceiro, escolher dentre a massa de homens caídos uma multidão que
nenhum homem poderia contar como «vasos de misericórdia; em quarto
lugar, enviar o Seu Filho para a redenção dos mesmos; e em quinto
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
431
lugar, deixar o resto da humanidade, como tinha deixado os anjos caídos,
para que sofressem o justo castigo por seus pecados.
Os argumentos em favor deste ponto de vista a respeito do plano
divino já foram apresentados em forma de objeções à teoria
supralapsariana. Entretanto, pode-se também observar adicionalmente:
1. Que esta teoria é coerente e harmônica. Porquanto todos os
decretos de Deus constituem um propósito inclusivo, não se pode admitir
nenhuma postura da relação dos detalhes que abrange este propósito que
não se possam reduzir a uma unidade. Em todo grande mecanismo, seja
qual for a quantidade ou complexidade das partes que o constituem, tem
que existir unidade de desígnio. Cada parte tem uma relação determinada
com cada outra parte, e é necessária a percepção desta relação para uma
compreensão adequada do todo. Do mesmo modo, como os decretos de
Deus são eternos e imutáveis, nenhuma postura a respeito de Seu plano
de ação que suponha que primeiro Ele se propõe uma coisa e logo outra
pode ser coerente com a natureza dos mesmos. E como Deus é
absolutamente soberano e independente, todos os Seus propósitos devem
ser determinados de dentro, ou segundo o conselho de Sua própria
vontade. Não se pode supor que sejam contingentes ou suspensos com
base na ação de Suas criaturas, nem com base em nada externo ao
mesmo. O esquema infralapsariano, tal como o mantêm a maioria de
Agostinianos, cumpre todas estas condições. Todos os particulares
constituem um todo inclusivo. Todos seguem uma ordem que não supõe
mudança alguma de propósito. Todos dependem da vontade
imensamente sábia, santa e justa de Deus. É para este fim que Ele cria o
mundo, que permite a Queda; dentre todos os homens Ele escolhe a
alguns para vida eterna, e deixa o resto para a justa retribuição que
merecem seus pecados. Aos que Ele escolhe os chama, justifica e
glorifica. Esta é a cadeia de ouro cujos elos não podem ser separados
nem transpostos. Esta é a forma em que o esquema da redenção aparecia
na mente do Apóstolo tal como somos ensinados em Rm 8:29, 30.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
432
Diferentes significados que se atribuem à palavra
predestinação.
2. A palavra predestinação é ambígua. Pode-se empregar primeiro
no sentido geral de preordenação. Neste sentido tem uma idêntica
referência a todos os acontecimentos; porque Deus ordena
antecipadamente tudo o que sucede. Segundo, pode referir-se ao
propósito geral da redenção sem referência específica a indivíduos
concretos. Deus predeterminou revelar Seus atributos na redenção dos
pecadores, como predeterminou criar os céus e a terra para manifestar
Seu poder, sabedoria e benevolência. Em terceiro lugar, emprega-se em
teologia de maneira geral para expressar o propósito de Deus com
relação à salvação das pessoas individuais. Inclui a seleção de uma
porção da raça para salvação, deixando o resto para que morram em seus
pecados. É empregado neste sentido pelos supralapsarianos, que ensinam
que Deus selecionou um certo número de pessoas individuais para que
fossem criados para salvação, e outro número para serem criados como
vasos de ira. É desta maneira que subordinam a criação à predestinação
como um meio para um fim. É a isto que os infralapsarianos objetam
como algo inconcebível, repugnante à natureza de Deus, e
antiescriturístico. Mas se a palavra predestinação for tomada no segundo
dos sentidos que se menciona acima, pode-se admitir que em ordem de
pensamento precede o propósito de criar. Esta postura é perfeitamente
consequente com a doutrina que faz do homem criado e caído o objeto
da predestinação no terceiro e usualmente recebido sentido da palavra. O
Apóstolo ensina em Cl 1:16 que todas as coisas, visíveis e invisíveis,
foram criadas por e para Aquele que é a imagem do Deus invisível, que é
antes de todas as coisas, por quem todas as coisas consistem, e que é a
Cabeça do corpo, a Igreja. O propósito da criação, assim, não é
meramente a glória de Deus, mas sim a manifestação desta glória na
pessoa e obra de Cristo. Assim como Ele é o Alfa, também é o Ômega; o
Princípio e o Fim. Tendo este grande objetivo em vista, a auto-revelação
na pessoa de Seu Filho, propôs-se a criar, permitir a Queda, escolher
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
433
alguns para que fossem objetos de Sua graça, e deixar outros em seu
pecado. Esta postura parece concordar com as descrições das Escrituras,
e evita as dificuldades relacionadas com a doutrina supralapsariana
estrita. Deve-se ter presente que o propósito destas especulações não é
imiscuir-se no funcionamento da mente divina, mas simplesmente
elucidar e expor a relação que têm entre si as várias verdades reveladas
na Escritura a respeito do plano da redenção.
§ 4. Redenção hipotética
De acordo com a doutrina comum dos agostinianos, tal como se
expressa no Catecismo de Westminster, “Deus, havendo. . . . eleito uns
para vida eterna, entrou numa aliança de graça, para livrar os da massa
de pecado e miséria, e levá-los a um estado de salvação pelo Redentor.”
Em oposição a esta postura alguns dos teólogos reformados do século
XVII apresentam o esquema que se conhece na história da teologia como
a doutrina da redenção hipotética. O principal defensor desta doutrina foi
Amyraut (morto em 1664), Professor no Seminário protestante francês
em Saumur. Ele ensinou, (1.) Que o motivo que impulsiona Deus a
redimir os homens fosse a benevolência, ou o amor aos homens em
geral. (2.) A partir deste motivo enviou o Seu Filho para a salvação de
todos os homens possíveis. (3.) Deus, em virtude de um decretum
universale hypotheticum, oferece a salvação a todos os homens, se creem
em Cristo. (4.) Todos os homens têm uma capacidade natural para
arrepender-se e crer. (5.) Mas, como esta habilidade natural foi rebatida
por uma incapacidade moral, Deus decidiu dar sua graça eficaz a um
número determinado da raça humana, e assim assegurar sua salvação.
Este esquema é às vezes designado como “universalismus
hypotheticus.” Foi desenhado para ter um meio-termo entre o
Agostinismo e o Arminianismo. É responsável pelas objeções que
pressionam em ambos os sistemas. Não elimina as dificuldades próprias
do Agostinismo, visto que afirma a soberania de Deus nas eleições.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
434
Além disso, deixa fora de vista o caso dos pagãos. Eles, ao não ter
conhecimento de Cristo, não podiam fazer uso deste decretum
hypotheticum, e portanto deve ser considerado como passado por alto por
um decretum absolutum. Estava-se contra esta doutrina do Amyraut e
outras separações das normas da Igreja Reformada que, em 1675, a
“Fórmula de Consenso Helvética” foi adotada pelas igrejas da Suíça.
Esta teoria dos teólogos franceses logo faleceu quanto se refere às igrejas
reformadas na Europa. Seus defensores ou voltaram para a velha
doutrina, ou passaram ao sistema mais avançado dos arminianos. Neste
país se reavivou e adotou amplamente.
À primeira vista poderia parecer um assunto sem importância se
dissermos que a eleição precede à redenção ou que a redenção precede à
eleição. De fato, entretanto, é uma questão de grande importância. A
relação das verdades da Bíblia está determinada por sua própria natureza.
Se mudar sua relação deve mudar sua natureza. Se o que se refere ao Sol
como um planeta em lugar de como o centro de nosso sistema deve crerse que é algo muito diferente em sua constituição do que realmente é.
Assim que num esquema de pensamento, se a causa final é feita um
meio, ou um meio a causa final, nada mais que confusão será o
resultado. Como a relação da eleição à redenção depende da natureza da
redenção, o exame completo desta questão deve ser reservada até que a
obra de Cristo tenha sido considerada. No momento basta dizer que o
esquema proposto pelos teólogos franceses é objeto das seguintes
objeções.
Argumentos contra este esquema
1. Supõe a mutabilidade dos propósitos divinos, ou que o propósito
de Deus pode falhar em realizar. Segundo este esquema, Deus, por
benevolência ou filantropia, propôs a salvação de todos os homens, e
enviou o Seu Filho pela redenção deles. Mas ao ver que tal finalidade
não se poderia levar a cabo, Ele determinou por Sua graça eficaz
assegurar a salvação de uma parte determinada da raça humana. Mas esta
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
435
dificuldade do esquema envolve o que se pode afirmar. Entretanto, não
se pode supor que Deus quer o que nunca se obtém; que Ele propõe o
que Ele não tem intenção de realizar; que Ele adota meios para um fim
que nunca se deve alcançar. Isto não se pode afirmar de qualquer ser
racional que tem a sabedoria e o poder para garantir o cumprimento de
seus fins. Muito menos pode-se dizer dEle, cujo poder e sabedoria são
infinitos. Se todos os homens não são salvos, Deus nunca propôs sua
salvação, e nunca ideou e pôs em funcionamento os meios designados
para cumprir esse fim. Devemos assumir que o resultado é a
interpretação dos propósitos de Deus. Se Ele preordena que algo chega a
suceder, então, os eventos correspondem aos Seus propósitos, e é contra
a razão e a Escritura supor que exista uma contradição ou falta de
correspondência entre o que Ele Se propôs e o que realmente ocorre. A
teoria, portanto, que assume que Deus propôs a salvação de todos os
homens, e enviou o Seu Filho para morrer como um meio para obter esse
fim, e logo ver, ou prever que não pôde ou não se alcançaria, escolheu
uma parte da raça para ser os objetos da graça eficaz, não pode
considerar-se como das Escrituras.
2. A Bíblia ensina claramente que a obra de Cristo é certamente
eficaz. Faz-se de que a obtenção dos fins foi designado para levar-se a
cabo. Seu objetivo era salvar o Seu povo, e não simplesmente chegar à
salvação de todos os homens possíveis. Foi uma satisfação real à justiça,
e, portanto, necessariamente livres da condenação. Foi um resgate pago e
aceito, pelo que sem dúvida redime. Se, pois, igualmente designado para
todos os homens, deve assegurar a salvação de todos. Se tiver sido
designado especialmente para os escolhidos, confere sua salvação certa,
e portanto a eleição precede à redenção. Deus, como ensina o Catecismo
de Westminster, depois de ter eleito uns para vida eterna, enviou o Seu
Filho para redimi-los.
3. As Escrituras ensinam que o maior dom de Cristo assegura o
dom de todas as outras bênçãos salvadoras. (Rom. 8.32). Daí eles são
certamente salvos para quem Deus entregou o Seu Filho. Os escolhidos
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
436
só se salvam, pelo que foi entregue especialmente para eles, e portanto a
eleição deve preceder à redenção. A relação, portanto, da redenção para
com a eleição está tão claramente determinado pela natureza da redenção
como a relação do sol para com os planetas está determinada pela
natureza do sol.
4. A Bíblia em numerosas passagens, diretamente afirma que Cristo
deveu redimir o Seu povo, para salvá-los de seus pecados, e para levá-los
a Deus. Ele se entregou por Sua Igreja, Ele deu Sua vida por Suas
ovelhas. Como o fim precede os meios, se Deus enviou o Seu Filho para
salvar o Seu povo, se Cristo Se entregou por Sua Igreja, então o Seu
povo foi selecionado e apresentado à mente divina, na ordem do
pensamento, antes que o dom de Cristo.
5. Se, como ensina Paulo (Rm 8:29, 30), a presciência precede à
predestinação, e se a missão de Cristo é o meio para obter o fim da
predestinação, então a necessidade da predestinação à vida eterna
precede ao dom de Cristo. Tendo predestinado à adoção de filhos, como
nos ensina Ef. 1:4, 5, Deus nos escolheu antes da fundação do mundo, e
enviou o Seu Filho em propiciação pelos nossos pecados. Esta é a ordem
dos propósitos divinos, ou a relação mútua das verdades da redenção
como se apresentam nas Escrituras.
6. O motivo (por assim dizer) de Deus ao enviar o Seu Filho não é,
como esta teoria assume, a benevolência geral ou esse amor do qual
todos os homens são igualmente objetos, mas esse amor peculiar,
misterioso, infinito em que Deus, ao dar o Seu Filho, dá a Si mesmo e
todos bens imagináveis e possíveis. Todos estes pontos, entretanto, como
antes foi dito, demandam sua ulterior consideração quando chegar o
momento para tratar da natureza e o propósito da obra de Cristo.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
437
§ 5. A doutrina luterana quanto ao plano da salvação
Não é fácil expor a doutrina luterana a este respeito, porque se dá de
uma maneira nos primeiros livros simbólicos desta igreja, e de uma
maneira um pouco diferente na «Fórmula de Concórdia» e nos escritos
de teólogos luteranos normativos. O próprio Lutero ensinou a doutrina
Agostiniana estrita, como também Melâncton na primeira edição de sua
obra «Loci Communes». Em edições posteriores daquela obra,
Melâncton ensina que os homens cooperam com a graça de Deus na
conversão, e que a razão de que um homem seja regenerado e outro não
o seja deve encontrar-se nesta cooperação. Isto deu origem à prolongada
e avivada controvérsia sinergista, que por longo tempo perturbou
seriamente a paz da Igreja Luterana. Esta controvérsia ficou por um
tempo solucionada de maneira autoritativa mediante a «Fórmula de
Concórdia», que foi adotada e estabelecida pelos Luteranos como norma
de ortodoxia. Neste documento rejeitaram-se tanto a doutrina da
cooperação como a da predestinação absoluta. Ensinava-se ali a total
incapacidade do homem em nada espiritualmente bom, e negava-se por
isso que pudesse preparar-se para a regeneração nem cooperar com a
graça de Deus nesta obra. Atribui a regeneração do pecador de maneira
exclusiva à ação sobrenatural do Espírito Santo. É a obra de Deus, e não
é em sentido algum nem em nenhum grau a obra do homem. Mas ensina
que a graça de Deus pode ser resistida eficazmente, e que a razão pela
qual nem todos os que ouvem o Evangelho são salvos é porque alguns
resistem a influência que se lhes aplica, e outros não. Assim, conquanto a
regeneração é exclusivamente a obra do Espírito, o fracasso quanto à
salvação deve ser atribuído à resistência voluntária contra a graça
oferecida. Porquanto este sistema era ilógico e contrário às claras
declarações das Escrituras, não pôde manter-se muito tempo. A não
resistência à graça de Deus, o dar-se passivamente à sua influência, é
algo bom. É algo pelo qual uma classe distingue-se de maneira favorável
com relação a outra, e por isso a razão pela qual eles, e não outros, são
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
438
salvos, deve ser atribuída a eles mesmos e não a Deus, que dá a mesma
graça a todos. Por isso, os teólogos luteranos posteriores abandonaram o
terreno da «Fórmula de Concórdia», e ensinam que os objetos da eleição
são aqueles que Deus previu que creriam e que perseverariam na fé até o
fim.
Segundo este esquema, Deus: (1) Com base na benevolência geral
ou amor à raça caída dos homens, quer a salvação dos mesmos com uma
intenção e propósito sinceros. Holaz diz: “Benevolentia Dei universalis
non est inane votum, non sterilis velleitas, non otiosa complacentia, qua
quis rem, quæ sibi placet, et quam in se amat, non cupit efficere aut
consequi adeoque mediis ad hunc finem ducentibus non vult uti; sed est
voluntas efficax, qua Deus salutem hominum, ardentissime amatam,
etiam efficere atque per media sufficientia et efficacia consequi serio
intendit.” 277 (2) Para pôr em ação este propósito geral de benevolência e
misericórdia de maneira indiscriminada para com todos os homens, Deus
determinou enviar o Seu Filho para que fizesse uma plena satisfação por
seus pecados. (3) A isto segue (na ordem do pensamento) o propósito de
dar a todos os homens os meios da salvação e a capacidade de servir-se
da misericórdia oferecida. Isto se descreve como um “destinatio
mediorum, quibus tum æterna salus satisfactione Christi parta, turn vires
credendi omnibus hominibus offeruntur, ut satisfactionem Christi ad
salutem acceptare et sibi applicare queant.” 278 (4) Além desta voluntas
generalis (quanto à relacionada com todos os homens) e antecedens,
como indo antes de qualquer ação contemplada dos homens, há uma
voluntas specialis, relacionada com certas pessoas individuais, e
consequens, como seguindo a previsão das ações das mesmas. Esta
voluntas specialis é definida como essa «quæ peccatores oblata salutis
media amplectentes æterna salute donare constituit». 279 Assim Hutter
277
Examen Theologicum Acroamaticum, Leipzig, 1763, p. 599.
Hollaz, Examen, III.; cap. i. qu. 6; ed. Teller, Holmiæ et Lipsiæ, 1750, p. 589.
279
Ibid. III. i. 1, 3; p. 586.
278
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
439
280
diz:
«Quia (Deus) prævidit ac præscivit maximam mundi partem
mediis salutis locum minime relicturam ac proinde in Christum non
credituram, ideo Deus de illis tantum salvandis fecit decretum, quos actu
in Christum credituros prævidit.» Hollaz expressa o mesmo ponto de
vista: 281 “Electio hominum, peccato corruptorum, ad vitam æternam a
Deo misericordissimo facta est intuitu fidei in Christum ad finem usque
vitæ perseverantis.” Novamente: “Simpliciter quippe et categorice
decrevit Deus hunc, ilium, istum hominem salvare, quia perseverantem
ipsius in Christum fidem certo prævidit.”282
Assim, a doutrina Luterana responde a pergunta de Por que se
salvam uns e não outros? dizendo: Porque uns creem e os outros não. A
pergunta de por que Deus escolhe a uns e não a outros, e os predestina à
vida eterna é respondida dizendo: Porque Ele vê antecipadamente que
alguns crerão até o final, e outros não. Se se pergunta: Por que uns
creem, e outros não?, a resposta é: Não porque uns cooperem com a
graça de Deus e outros não, mas sim alguns resistem e rejeitam a graça
que se oferece a todos, e outros não. A dificuldade que surge da doutrina
luterana da total corrupção de nossa natureza caída, e da total
incapacidade do pecador para fazer algo espiritualmente bom é
confrontada dizendo que o pecador tem capacidade para usar os meios da
graça, que pode ouvir a palavra e receber os sacramentos, e como estes
meios da graça têm um poder divino sobrenatural, produzem um efeito
salvador sobre todos os que não resistem à sua influência de maneira
voluntária e persistente. O batismo [no sistema luterano], no caso dos
pequenos, vai acompanhado da regeneração da alma, e por isso todos os
que são batizados na infância recebem a implantação de um princípio de
graça que, se é abrigado, ou não apagado voluntariamente, assegura sua
salvação. No sistema luterano, a predestinação se limita aos escolhidos.
280
Hutter, Loci Communes, Tract. Artic. Præscient Prov. Decr., etc., vii.; Wittenburg, 1619, p. 793, b.
Hollaz, Examen, ed. 1750, ut supra, p. 619.
282
Hollaz, Ibid. III. i. 2, 12, prob. c.; ut supra, p. 631.
281
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
440
Deus predestina aqueles que Ele prevê que perseverarão na fé para
salvação. Não há predestinação dos incrédulos para morte.
§ 6. A doutrina Remonstrante
A começos do século dezessete, Armínio introduziu um novo
sistema de doutrina nas igrejas Reformadas da Holanda, sistema que foi
formalmente condenado pelo Sínodo de Dort que esteve em sessão desde
novembro de 1618 até maio de 1619. Os proponentes desta doutrina
apresentaram uma repreensão [remonstrance], e por isso foram no
princípio chamados Remonstrantes, mas em anos posteriores a
designação mais comum para eles foi a de Arminianos. O Arminianismo
é uma forma de doutrina muito inferior à do Luteranismo. Em todos os
temas incluídos sob Antropologia e Soteriologia constitui uma separação
muito mais grave do sistema do Agostinianismo que foi em todas as eras
a vida da igreja. Os Arminianos ensinaram:
1. Que todos os homens derivam de Adão uma natureza corrompida
que os inclina ao pecado. Mas negam que esta corrupção seja da natureza
de pecado. Os homens são responsáveis só por seus atos voluntários e
pelas consequências de tais atos. “Peccatum originale nec habent
(Remonstrantes) pro peccato proprie dicto . . . . nec pro malo, quod per
modum proprie dictæ poenæ ab Adamo in posteros dimanet, sed pro
malo infirmitate.” 283 Limborch 284 diz: “Atqui illa physica est impuritas
(namely, the deterioration of our nature derived from Adam), non
moralis: et tantum abest ut sit vere ac proprie dictum peccatum.”
2. Negam eles que o homem, pela Queda, tenha perdido sua
capacidade de fazer o bem. Esta capacidade, ou liberdade, conforme a
chamam eles, é essencial à nossa natureza, e não se pode perder sem
perda de humanidade. “Innatam arbitrii humani libertatem (quer dizer,
283
284
Apologia pro Confessione Remonstrantum, edit. Leyden, 1630, p. 84.
Theologia Christiana, V. xv. 15, edit. Amsterdam, 1715, p. 439.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
441
capacidade) olim semel in creatione datam, nunquam . . . . tollit
(Deus).” 285
3. Esta capacidade, entretanto, não é em si mesmo suficiente para
assegurar que a alma vá voltar a Deus. Os homens necessitam a graça
preveniente, energizante e auxiliadora de Deus para sua conversão e vida
em santidade. “Gratiam Dei statuimus esse principium, progressum et
complementum omnis boni: adeo ut ne ipse quidem regenitus absque
præcedente ista, sive præveniente, excitante, prosequente et cooperante
gratia, bonum ullum salutare cogitare, velle, aut peragere possit.” 286
4. Esta graça divina é outorgada a todos os homens numa suficiente
medida para capacitá-los ao arrependimento, a crer e para guardar todos
os mandamentos de Deus. “Gratia efficax vocatur ex eventu. Ut statuatur
gratia habere ex se sufficientem vim, ad producendum consensum in
voluntate, sed quia vis illa partialis est, non posse exire in actum sive
effectum sortiri sine coöperatione liberæ voluntatis humanæ, ac proinde
ut effectum habeat, . . . . pendere a libera voluntate.” 287 Esta graça, diz
Limborch: “incitat, exstimulat, adjuvat et cerroborat, quantum satis est,
ut homo reipsa Deo obediat et ad fineni in obedientia perseveret.” E
outra vez: 288 “Sufficiens vocatio, quando per cooperationem liberi
arbitrii sortitur suum effectum, vocatur efficax.”
5. Os que por sua própria vontade e no exercício desta capacidade
que lhes pertence desde a Queda, cooperam com esta graça divina, são
convertidos e salvos. “Etsi vero maxima est gratiæ disparitas, pro
liberrima scilicet voluntatis divinæ dispensatione tamen Spiritus Sanctus
omnibus et singulis, quibus verbum fidei ordinarie prædicatur, tantum
gratiæ confert, aut saltem conferre paratus est, quantum ad fidem
ingenerandum, et ad promovendum suis gradibus salutarem ipsorum
285
Confessio Remonstratum, vi. 6; Episcopii Opera, edit. Rotterdam, 1665, vol. ii. part 2, p. 80.
Ibid. xvii. 6; ut supra, p. 88.
287
Apologia pro Confessione Remonstrantium, p. 162.
288
Theologia, IV. xii. 8; p. 352.
286
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
442
289
conversionem sufficit.” A Apologia dos Remonstrantes, especialmente
dos Teólogos Remonstrantes, como Episcópio e Limborch, vão além
disso. Em lugar de limitar esta graça suficiente aos que ouvem o
Evangelho, estendem-na a toda a humanidade.
6. Os que creem assim são predestinados para vida eterna, não
entretanto a nível individual, mas como classe. O decreto da eleição não
concerne às pessoas, mas que se refere simplesmente ao propósito de
Deus de salvar a crentes. “Decretum vocant Remonstrantes decretum
prædestinationis ad salutem, quia eo decernitur, qua ratione et conditione
Deus peccatores saluti destinet. Enunciatur autem hoc decretum Dei hac
formula: Deus decrevit salvare credentes, non quasi credentes quidam re
ipsa jam sint, qui objiciantur Deo salvare volenti, sive prædestinanti;
nihil minus; sed, ut quid in iis, circa quos Deus prædestinans versatur,
requiratur, ista enunciatione clare significetur. Tantundem enim valet
atqui si diceres, Deus decrevit homines salvare sub conditione fidei. . . . .
Etiamsi hujusmodi prædestinatio non sit prædestinatio certarum
personarum, est tamen omnium hominum prædestinatio, si modo credant
et in virtute prædestinatio certarum personarum, quæ et quando
credunt.” 290
§ 7. O Arminianismo Wesleyano
O sistema Arminiano foi modificado tão profundamente pelo
Wesley e seus partidários e seguidores, que lhe dão a designação de
Arminianismo Evangélico, e reivindicam para o mesmo originalidade e
globalidade. Difere do sistema dos Remonstrantes:
1. Em que admite que desde a Queda o homem está num estado de
absoluta ou total contaminação e depravação. O pecado original não é
289
290
Confessio Remonstrantium, xvii. 8; p. 89.
Works, pp. 284, 285.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
443
uma mera deterioração de nossa natureza, mas uma total depravação
moral.
2. Ao negar que os homens, neste estado de natureza, tenham algum
poder para cooperar com a graça de Deus. Os proponentes deste sistema
consideram a doutrina da capacidade natural, ou da capacidade do
homem natural para cooperar com Deus, como semipelagiana, e a
doutrina de que os homens tenham por natureza a capacidade de guardar
com perfeição os mandamentos de Deus, como Pelagianismo puro. 291
3. Ao afirmar que a culpa que recai em todos os homens pelo
pecado de Adão é tirada pela justificação que veio a todos os homens
pela justiça de Cristo.
4. Que a capacidade do homem de poder jamais cooperar com o
Espírito de Deus não se deve a nada inerente em seu estado natural
caído, mas sim à influência universal da redenção de Cristo. Por isso,
cada recém-nascido chega ao mundo livre de condenação com base na
justiça de Cristo, e com uma semente de graça divina ou um princípio de
uma nova vida implantada no coração. «É uma verdade indubitável que
pelo delito de um», afirma Wesley, 292 «veio o juízo sobre todos os
homens (todos os que nascem no mundo) para condenação, e afeta a
cada criança assim como a cada pessoa adulta. Mas é igualmente
verdade que pela justiça de um, veio sobre todos os homens o livre dom
(isto é, para todos os nascidos no mundo, tanto crianças como adultos)
para justificação.» E Fletcher 293 diz: «Assim como Adão atraiu uma
condenação universal e uma semente de morte sobre todas as crianças,
assim Cristo traz sobre eles uma justificação geral e uma semente
universal de vida.» «Cada ser humano», diz Warren, «tem uma medida
de graça (a não ser que a tenha descartado), e os que empregam
fielmente este dom de graça serão aceitos por Deus no dia do juízo,
sejam judeus ou gregos, cristãos ou pagãos. Em virtude da mediação de
291
W. F. Warren, System. Theologie. Erste Lieferung, Hamburg, p. 145.
Works, vii. p. 97.
293
Works, pp. 284, 285.
292
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
444
Jesus Cristo entre Deus e nossa raça caída, todos os homens da promessa
de Gn 3:15 estão sob uma economia de graça, e a única diferença entre
eles como sujeitos ao governo moral de Deus é que enquanto que todos
têm graça e luz suficiente para alcançar a salvação, alguns, sobre e acima
disto, têm mais e outros menos.» 294 Diz Wesley: «Nenhuma pessoa viva
deixa de ter algo de graça preveniente, e cada grau de graça é um grau de
vida.» E em outro lugar: «Eu digo que há uma medida de liberdade
sobrenaturalmente restaurada para cada pessoa, junto com aquela luz
sobrenatural que ilumina a cada homem que vem ao mundo.» 295
Segundo esta visão do plano de Deus, Ele decretou ou se propôs:
(1) Permitir a queda do homem. (2) Enviar o Seu Filho para que fizesse
uma plena satisfação pelos pecados de todo o mundo. (3) Sobre a base
desta satisfação, remeter a culpa da primeira transgressão de Adão e do
pecado original, e comunicar tal quantidade de graça e de luz a todos e a
cada um dos homens para permitir a todos alcançar a vida eterna. (4) Os
que diariamente melhoram aquela graça e perseveram até o fim, são
ordenados para salvação; Deus Se propõe desde a eternidade salvar
àqueles que Ele prevê que perseverarão assim na fé e na santidade.
É evidente que o principal ponto de diferença entre os esquemas
posteriores Luterano, Arminiano e Wesleyano e o dos Agostinianos é
que, segundo este último, é Deus, e segundo os outros é o homem, quem
determina aqueles que devem ser salvos. Agostinho ensinou que da
família caída dos homens, todos os que poderiam ter sido deixados em
justiça para que perecessem em sua apostasia, Deus, meramente por Seu
beneplácito, escolheu a uns para vida eterna, enviou o Seu Filho para a
redenção dos mesmos, e lhes dá o Espírito Santo para assegurar seu
arrependimento, fé e santidade até o fim. «Cur autem non omnibus detur
[donum fidei], fidelem movere non debet, qui credit ex uno omnes isse
in condemnationem, sine dubio justissimam: ita ut nulla Dei esset justa
294
295
Warren, p. 146.
Works, vii. p. 97; vi. p. 42. Fletcher, i. p. 137, ff. etc.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
445
reprehensio, etiamsi nullus inde liberaretur. Unde constat, magnam esse
gratiam, quod plurimi liberantur.» 296 Assim, é Deus e não o homem
quem decide aqueles que devem ser salvos. Embora se possa dizer que
esta é a questão crucial entre estes grandes sistemas, que dividiram a
Igreja em todas as épocas, entretanto esta questão envolve
necessariamente a todas as outras diferenças, como a natureza do pecado
original; o motivo de Deus ao prover a redenção; a natureza e o desígnio
da obra de Cristo; e a natureza da graça divina, ou a obra do Espírito
Santo. Assim, em grande medida, todo o sistema de teologia, e
necessariamente o caráter de nossa religião, depende da postura que se
adote diante desta questão concreta. Por isso, trata-se de um tema da
maior importância prática, e não de um assunto de especulação ociosa.
§ 8. O esquema Agostiniano.
Observações preliminares
Deve-se lembrar que não se trata de qual seja a perspectiva do plano
de Deus mais livre de dificuldades, nem o mais de acordo com os nossos
sentimentos naturais, e por esta razão o mais plausível para a mente
humana. Pode-se admitir que nos pareceria mais consequente com o
caráter de Deus que se tivesse dado provisão para a salvação de todos os
homens, e que se teria concedido um suficiente conhecimento e graça a
cada ser humano para obter sua salvação. E também seria mais
consistente com o entendimento e os sentimentos naturais se tivesse sido
feito uma similar provisão para os anjos caídos, ou que Deus tivesse
impedido a entrada do pecado e da desgraça no universo; ou se, quando
entraram, houvesse provido para sua total erradicação do sistema, de
modo que todas as criaturas racionais pudessem ter chegado a ser
perfeitamente santas e ditosas por toda a eternidade. Não haveria fim
para tais tipos de planos se cada um tivesse a liberdade para erigir um
296
Augustine, De Prædestinatione Sanctorum, VIII. 16; Works, edit. Benedictines, vol. ii. p. 1861, c.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
446
esquema de operação divina segundo seus próprios pontos de vista a
respeito do que seria mais prudente e melhor. Estamos limitados pelos
fatos: os fatos da providência, da Bíblia e da experiência religiosa. Estes
fatos devem determinar nossa teoria. Não podemos dizer que a bondade
de Deus impede que se permitam o pecado e a desgraça se realmente
existirem o pecado e a desgraça. Não podemos dizer que a justiça exige
que todas as criaturas racionais deveriam ser tratadas da mesma maneira,
que tivessem as mesmas vantagens e a mesma oportunidade de alcançar
o conhecimento, a santidade e a felicidade, se, sob o governo de um
Deus de infinita justiça existe na realidade a maior disparidade. Entre
todos os cristãos se são admitidos certos princípios, e é com base neles
que se devem interpretar os fatos da história e das Escrituras.
1. Admite-se que Deus reina; que Sua providência se estende a
todos os acontecimentos, tanto aos grandes como aos pequenos, de
maneira que nada ocorre nem pode ocorrer contra Sua vontade, ou que
Ele ou não efetue com Seu próprio poder, ou por Sua permissão que
outros agentes o executem. Esta é uma verdade da religião natural assim
como da revelação. Reconhece-se (na prática) de maneira universal. As
orações de ação de graças que os homens dirigem a Deus por uma lei de
sua natureza assumem que Ele controla todos os acontecimentos. A
guerra, a pestilência e a fome são lamentadas como exibição de Seu
desagrado. E a Ele se voltam todos os homens para ser libertados de
todos estes males. A paz, a saúde e a abundância são universalmente
reconhecidos como Seus dons. Esta verdade subjaz na base de toda
religião, e não pode ser posta em tela de juízo por nenhum Teísta, e
muito menos por nenhum cristão.
2. Não menos claro ou universalmente admitido é o princípio de
que Deus pode controlar as ações livres das criaturas racionais sem
destruir sua liberdade nem sua responsabilidade. Universalmente, os
homens oram pedindo ser libertados da ira de seus inimigos, para que a
inimizade destes se desvaneça, ou que o estado de suas mentes seja
mudado. Todos os cristãos oram para que Deus mude os corações dos
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
447
homens, para que lhes dê arrependimento e fé, e controle de tal maneira
as ações dos mesmos que possa ser impulsionada Sua glória e o bem dos
demais. Esta é de novo uma daquelas verdades simples, profundas e de
grande alcance, que os homens dão por supostas, e com base nas quais
agem e não podem deixar de fazê-lo, sejam quais forem as dúvidas dos
filósofos, ou as dificuldades especulativas que possam acompanhar estas
verdades.
3. Todos os cristãos admitem que Deus tem um plano ou propósito
no governo do mundo. Há um objetivo a cumprir. É inconcebível que um
Ser imensamente santo crie, sustente e controle o universo sem
contemplar nenhum fim a alcançar mediante esta maravilhosa exibição
de Seu poder e recursos. Assim, a Bíblia nos ensina que Deus opera
todas as coisas segundo o conselho por Sua própria vontade. E esta
verdade está incorporada em todos os sistemas de fé adotados entre os
cristãos, e é assumida em toda a adoração e experiência cristã.
4. Constitui um corolário necessário com base nos princípios
anteriores que os fatos da história são a interpretação dos eternos
propósitos de Deus. Tudo o que realmente acontece entrou neste
propósito. Por isso, podemos aprender o desígnio ou a intenção de Deus
com base na evolução ou desenvolvimento de Seu plano na história do
mundo e de cada homem individual. Tudo aquilo que ocorre, Ele o
permite por sábias razões. Ele pode impedir tudo aquilo que considere
oportuno impedir. Por isso, se ocorre um pecado, é porque era o desígnio
de Deus que ocorresse assim. Se vier a desgraça como consequência do
pecado, este era o propósito de Deus. Se só alguns homens são salvos,
enquanto que outros perecem, tudo isto deve ter formado parte do
íntegro propósito de Deus. Não é possível que nenhuma mente finita
possa abranger os desígnios de Deus, ou que veja as razões de Suas
dispensações. Mas nós não podemos, devido a isto, negar que Ele
governa todas as coisas, nem que Ele as governa com base no conselho
por Sua própria vontade.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
448
O sistema Agostiniano de doutrina não é nada mais que a aplicação
ao caso especial da salvação do homem destes princípios gerais e
reconhecidos de maneira quase universal.
Exposição da doutrina
O esquema Agostiniano inclui os seguintes pontos: (1) Que a glória
de Deus, ou a manifestação de Suas perfeições, é o fim mais alto e
último de todas as coisas. (2) Para este fim Deus Se propôs a criação do
universo e todo o plano da providência e da redenção. (3) Que Ele pôs o
homem num estado de prova, fazendo de Adão, o primeiro pai da raça,
sua cabeça e representante. (4) Que a queda de Adão arrastou a toda sua
posteridade a um estado de condenação, de pecado e de desgraça, do que
são absolutamente incapazes de livrar-se a si mesmos. (5) Dentre a
multidão de homens perdidos, Deus escolheu a uma quantidade
inumerável para vida eterna, deixando ao resto da humanidade para a
justa retribuição por seus pecados. (6) Que a base desta eleição não é a
previsão de nada na primeira classe para distingui-los favoravelmente
dentre os membros da outra classe, mas sim o beneplácito de Deus. (7)
Que Deus, para a salvação dos escolhidos assim para vida eterna, deu o
Seu Filho unigênito, para que se fizesse homem, e para que obedecesse e
padecesse por Seu povo, fazendo assim uma plena satisfação pelo
pecado, e introduzindo a justiça eterna, fazendo a salvação definitiva dos
escolhidos totalmente certa. (8) Que enquanto que o Espírito Santo, em
Suas operações comuns, está presente com cada homem enquanto vive,
reprimindo o mal e induzindo ao bem, Seu poder certamente eficaz e
salvador é exercitado só em favor dos escolhidos. (9) Que todos aqueles
aos quais Deus escolheu assim para vida, e pelos quais Cristo Se deu a Si
mesmo de maneira específica na aliança da redenção, serão certamente
levados (a não ser que morram na infância) ao conhecimento da verdade,
ao exercício da fé, e à perseverança na santidade até o fim.
Este é o grande esquema doutrinal conhecido historicamente como
Paulino, Agostiniano ou Calvinista, ensinado, como cremos, nas
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
449
Escrituras, desenvolvido por Agostinho, sancionado formalmente pela
Igreja Latina, ao qual aderiram as testemunhas da verdade durante a
Idade Média, repudiado pela Igreja de Roma no Concílio de Trento,
avivado nesta mesma igreja pelos Jansenitas, adotado por todos os
Reformadores, incorporado nos credos das Igrejas Protestantes da Suíça,
do Palatinado, da França, Holanda, Inglaterra e Escócia, e desenvolvido
na Confissão redigida pela Assembleia de Westminster, representante
comum dos Presbiterianos na Europa e América.
É um fato histórico de que este esquema de doutrina foi a força
motriz na Igreja, que em grande medida a que se refere o vigor
intelectual e espiritual da vida dos heróis e dos confessores que foram
estabelecidos no curso das idades; que foi a fonte fecunda das boas
obras, da liberdade civil e religiosa, e do progresso humano. Sua verdade
pode ser evidenciada a partir de muitas fontes diferentes.
Prova da doutrina
Em primeiro lugar, trata-se de um esquema singelo, harmônico e
coerente. Não supõe propósitos contraditórios na mente divina; que
primeiro se propusesse uma coisa, e logo outra; nem que se propusesse
fins que logo não são levados a cabo; nem a declaração de princípios em
conflito com outros que sejam inegáveis. Todas as partes deste imenso
plano admitem sua redução a um propósito todo inclusivo tal como
esteve oculto durante eras na mente divina. O propósito de criar, permitir
a Queda, escolher alguns para vida eterna, enquanto que outros são
passados por alto, de enviar a Seu Filho para redimir o Seu povo, e dar o
Espírito para aplicar esta redenção, são propósitos que harmonizam entre
si, constituindo um plano coerente. As partes deste esquema não são
simplesmente harmônicas, mas estão relacionadas de tal maneira que
umas envolvem as outras, de maneira que se uma fica demonstrada,
implica-se a verdade do resto. Se Cristo foi entregue para a redenção do
Seu povo, então a redenção do Seu povo resulta segura, e então as
operações do Espírito devem, no caso deles, ser certamente eficazes; e se
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
450
tal é o desígnio da obra de Cristo e da natureza da influência do Espírito,
então os que são objetos da primeira e sujeitos da outra, devem
perseverar em santidade até o fim. Ou se começarmos com quaisquer dos
outros princípios já mencionados, segue-se o mesmo resultado. Se for
demonstrado ou admitido que a Queda arrastou a humanidade a um
estado de pecado e miséria do qual nada podiam fazer para sair, então
disso segue que a salvação tem que ser por graça; que é de Deus e não de
nós o fato de estarmos em Cristo; que a chamada é eficaz; que a eleição é
pelo beneplácito de Deus; que o sacrifício de Cristo assegura a salvação
do Seu povo; e que não podem apartar-se fatalmente de Deus. E assim
com todo o resto. Admita-se que a morte de Cristo assegura a salvação
de Seu povo, e todo o resto segue disso. Admita-se que a eleição não é
por obras, e todo o plano tem que ser admitido como verdadeiro.
Admita-se que nada sucede contrário aos propósitos de Deus, e de novo
deve-se admitir todo o esquema Agostiniano. Dificilmente pode haver
uma prova mais clara de que compreendemos uma máquina complicada
que o fato de que possamos pôr em seu lugar todas as suas peças de
maneira que cada uma esteja exatamente em seu lugar, sendo que
nenhuma delas admite sua substituição por outra, e que toda ela fica
completa e disposta para funcionar. Tal é a ordem das obras de Deus que
se for dado a um naturalista um só osso, pode construir todo o esqueleto
do qual faz parte; e tal é a ordem de Seu plano de redenção que se for
admitida uma das grandes verdades que inclui, deve-se aceitar todo o
resto. Este é o primeiro grande argumento em apoio do esquema
doutrinal Paulino ou Agostiniano.
Argumento com base nos fatos da Providência.
Em segundo lugar, só este esquema é consistente com os fatos da
providência de Deus. Por evidente que seja esta verdade, deve ser
repetida vez após vez que é inútil enfrentar-se aos fatos. Se uma coisa é,
é em vão ignorá-la ou negar sua relevância. Temos que amoldar nossas
teorias aos fatos, e não fazer com que os fatos se amoldem a nossas
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
451
teorias. Por isso, será correta aquela visão da verdade divina que esteja
de acordo com os fatos da providência divina; e será falsa aquela
perspectiva que entre em conflito com estes fatos. Outro princípio não
menos simples, e não menos suscetível de ser esquecido, é aquele que
antes já se assumiu que o admitem todos os cristãos, isto é, que Deus tem
um plano, e que todos os eventos de Sua providência correspondem com
este plano. Em outras palavras, que aconteça o que acontecer, Deus teve
a intenção que suceda; que para Ele nada há que seja inesperado, nem
nada contrário aos Seus propósitos. Se é assim, então podemos aprender
com certeza qual é o plano de Deus, o que Ele Se propôs fazer ou
permitir, com base no que realmente vem a suceder. Se uma proporção
dos habitantes de um determinado país morrem na infância e outra parte
chega à idade amadurecida, este foi por razões sábias o propósito de
Deus. Se alguns são prósperos e outros miseráveis, também é em
conformidade com Sua santa vontade. Se numa estação houver
abundância e em outra o inverso, é assim segundo Ele o dispôs. Assim o
dita inclusive a religião natural. E inclusive os pagãos creem isto.
Dificilmente se pode duvidar que, se forem aceitos estes simples
princípios, deve admitir-se a verdade do esquema Agostiniano. É um
fato que Deus criou o homem; é um fato que a queda de Adão envolveu
a toda nossa raça no pecado e na desgraça; é um fato que desta família
caída alguns se salvam e outros se perdem; é um fato que a salvação dos
que realmente alcançam a vida eterna fica assegurada pela mediação de
Cristo e pela obra do Espírito Santo. Estes são fatos providenciais
admitidos por todos os cristãos. Tudo o que ensina o Agostinianismo é
que estes fatos não foram inesperados para a mente divina, mas que Deus
conhecia antecipadamente que sucederiam, e tinha disposto que
sucedessem. Isto é tudo. Tudo aquilo que realmente sucede é porque
Deus dispôs que sucedesse. Embora Seus propósitos ou intenções não
podem fracassar, Ele não emprega influências para o cumprimento dos
mesmos que sejam incompatíveis com a perfeita liberdade e inteira
responsabilidade das criaturas racionais. Porquanto Deus é infinito em
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
452
poder e sabedoria, Ele pode controlar todos os acontecimentos, e por isso
o curso dos acontecimentos deve estar em conformidade com Sua
vontade, porque Ele pode moldá-los ou dirigi-los conforme o Seu
beneplácito. Por isso, é evidente, primeiro, que os acontecimentos devem
ser a interpretação dos propósitos, ou seja, daquilo que Ele Se propõe
que suceda; e segundo, que não se pode apresentar objeção alguma
contra o propósito ou os decretos de Deus que não militem também
contra Sua providência. Se é justo que Deus permita que suceda um
acontecimento, deve ser justo que Ele Se proponha, permiti-lo, isto é,
que decrete que vai suceder. Poderíamos supor certa a concepção Deísta
ou Racionalista da relação de Deus com o mundo: que Deus criou os
homens, e que os deixou sem nenhuma guia providencial nem
influências sobrenaturais, que os abandonou ao exercício sem restrições
de suas próprias faculdades, e à atuação das leis naturais e sociais. Se
assim fosse, dar-se-ia de uma maneira real um certo curso de
acontecimentos em sucessão regular e em todas as possíveis
combinações. Neste caso não se poderia pretender que Deus fosse
responsável pelo resultado. Ele teria criado o homem, dotando-o de todas
as faculdades, e o cercando de todas as circunstâncias necessárias para
seu maior bem. Se ele escolhesse abusar de suas faculdades e descuidar
suas oportunidades seria sua própria culpa. Não poderia queixar-se
contra o seu Criador. Poderíamos também fazer a hipótese de que Deus,
olhando e prevendo como iam agir os homens deixados a si mesmos, e
qual seria o resultado de um universo levado desta maneira, decidisse,
por sábias razões, que chegasse a ser real; que realmente devesse existir
um universo assim com aquele curso de eventos naquele ordem. Seria
isto injusto? Ou, que diferença haveria se o propósito de Deus quanto à
futuridade de tal mundo, em lugar de seguir à previsão do mundo, o
precedesse? Em todo caso Deus Se proporia precisamente o mesmo
mundo, o mesmo curso de acontecimentos. O Agostinianismo supõe que
Deus, para Sua própria glória, e por isso pelo mais excelso e benéfico de
tais fins, Se propôs tal mundo e tal série de acontecimentos como os que
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
453
teriam ocorrido na hipótese deísta, com duas importantes exceções.
Primeiro, Ele Se interpõe para reprimir e conduzir a maldade do homem
de modo que previne a produção de um mal sem mitigações, e para fazer
com que leve à produção de bem. E segundo, Ele intervém mediante Sua
providência, e mediante a obra de Cristo e do Espírito Santo, para salvar
a inumeráveis almas do dilúvio de destruição. Por isso, o sistema
Agostiniano é tão somente a aceitação do que Deus dispôs na eternidade
o que realmente efetua no tempo. Por isso, este sistema está de acordo
com todos os fatos da divina providência, e está por isso situado sobre
uma base inamovível.
A soberania de Deus nas dispensações de Sua providência
Há entretanto outro ponto de vista que se deve tomar a respeito
desta questão. O Agostinianismo está baseado na hipótese da soberania
de Deus. Supõe que corresponde a Ele, em virtude de Sua própria
perfeição, em virtude de Sua relação com o universo como seu Criador e
Preservador, e em virtude de Sua relação com o mundo de pecadores
como Seu Governante e Juiz, tratar com eles com base em Seu
beneplácito; que Ele pode, por direito, perdoar a uns e condenar a outros;
que pode com direito dar Sua graça salvadora a um e não a outro; e por
isso que corresponde a Ele, e não ao homem, que um, e não outro, seja
feito partícipe da vida eterna. Por outro lado, todos os sistemas antiagostinianos supõem que Deus está obrigado a prover a salvação para
todos; a dar graça suficiente a todos; e a deixar a decisão da salvação ou
perdição à vontade de cada um por si mesmo. Não somos criminosos
condenados dentre os quais a soberania possa perdoar a uns e não a
outros, mas criaturas racionais, tendo todos o mesmo e válido direito
sobre nosso Criador a receber todo o necessário para nossa salvação.
Mas a questão não é qual destas teorias é a mais agradável, mas qual é a
verdadeira. E para decidir esta questão, um método é determinar qual
concorda melhor com os fatos providenciais. Age Deus em Seus
procedimentos providenciais com os homens com base nos princípios de
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
454
soberania, distribuindo Seus favores com base no beneplácito de Sua
vontade; ou sobre a base da justiça imparcial, tratando com todos os
homens sobre uma base de igualdade? Esta pergunta só admite uma
resposta. Pode ser que minimizemos muito as meras circunstâncias
externas, e que engrandeçamos tanto como possamos as compensações
da providência que tendem a nivelar a condição dos homens. Podemos
enfatizar até o extremo o princípio de que muito se demandará dos que
muito receberam, e menos dos que menos. Além destas qualificações e
limitações, é evidente o fato de que existem certamente as maiores
desigualdades entre os homens; que Deus trata de maneira muito mais
favorável a uns que a outros; que Ele distribui as Suas bênçãos
providenciais, que incluem não apenas o bem temporal, mas também
vantagens e oportunidades religiosas, como soberano absoluto segundo o
Seu próprio beneplácito, e não como um juiz imparcial. O tempo para o
juízo ainda não chegou.
Esta soberania de Deus na dispensação de Sua providência fica
evidenciada em Seus procedimentos tanto com as nações como com os
indivíduos. Não se pode crer que a sorte dos ladrões seja tão favorável
como a dos moradores da zona temperada; nem que os hotentotes
tenham uma posição tão desejável como a dos europeus; nem que as
pessoas da Tartária estejam com tanto bem-estar como as dos Estados
Unidos. A desigualdade é muito patente para podê-la negar; como
tampouco se pode duvidar de que a norma que Deus adota na
determinação da sorte das nações é Seu próprio beneplácito, e não as
demandas relativas das pessoas afetadas por Sua providência. Este
mesmo fato não é menos evidente com relação aos indivíduos. Alguns
são ditosos, outros são desgraçados. Alguns têm uma saúde de ferro;
outros são vítimas de doenças e sofrimentos. Alguns têm todas as suas
faculdades, enquanto que outros nascem cegos ou surdos. Alguns são
ricos, outros estão afundados na desgraça e degradação da mais abjeta
pobreza. Alguns nasceram no meio da sociedade civilizada e no seio de
famílias virtuosas, mas outros estão rodeados de vícios e maldade desde
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
455
o próprio começo de sua existência. Estas são realidades inegáveis.
Como tampouco se pode negar que a sorte de cada indivíduo fica
determinada pelo soberano beneplácito de Deus.
O mesmo princípio é aquele que se leva a cabo com relação à
comunicação do conhecimento e vantagens da religião. Deus escolheu os
judeus dentre todas as famílias da terra para que fossem os receptores
dos Seus oráculos e das ordenanças divinamente instituídas da religião.
O resto do mundo ficou durante séculos numa total escuridão. Podemos
dizer que será mais passível no dia do juízo para os pagãos que para os
judeus incrédulos; e que Deus não deixou sequer os gentios sem
testemunho. Tudo isto pode admitir-se, e entretanto fica em pé o que diz
o Apóstolo: As vantagens do judeu eram sumamente grandes. Seria
estultícia e ingratidão da parte dos moradores da Cristandade não
reconhecer sua posição como indescritivelmente mais desejável que a
dos pagãos. Nenhum cristão americano pode persuadir-se a si mesmo de
que teria sido melhor se tivesse nascido na África; e tampouco pode dar
resposta a esta pergunta: Por que nasci aqui, e não ali? além de: «Sim,
Pai, porque assim te agradou».
Por isso, de nada serve adotar uma teoria que não concorde com
estes fatos. É em vão que neguemos que Deus é soberano na distribuição
de Seus favores se é inegável que em Sua providência Ele age como
soberano. O Agostinianismo concorda com estas fatos da providência, e
por isso deve ser verdadeiro. Só pressupõe que Deus age na dispensação
de Sua graça precisamente como age na distribuição de Seus outros
favores; e todos os sistemas anti-agostinianos que estejam baseados no
princípio de que esta soberania de Deus é inconsequente com sua justiça
e com sua relação paterna com os filhos dos homens está em evidente
conflito com os fatos de Sua providência.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
456
Argumento com base nos fatos da Escritura
A terceira fonte de prova a respeito desta questão encontra-se nos
fatos da Bíblia, ou nas verdades que se revelam sinceramente nela. O
Agostinianismo é o único sistema consequente com estes fatos ou
verdades.
1. Isto se evidencia primeiro com base na clara revelação que a
Escritura faz de Deus como imensamente exaltado acima de todas as
Suas criaturas, e como o fim último assim como a fonte de todas as
coisas. É porquanto Ele é imensamente grande e bom que Sua glória é o
fim de todas as coisas, e que Seu beneplácito é a mais elevada razão de
tudo o que vem a suceder. O que é o homem para que brigue com Deus,
ou que mantenha que são seus interesses antes que os de Deus os que
devem ser o fim último? As Escrituras não só afirmam a absoluta
soberania de Deus, mas também ensinam que está baseada, primeiro, em
Sua infinita superioridade sobre todas as criaturas; segundo, sobre Sua
relação com o mundo e tudo o que contém, como Criador e Preservador,
e por isso como dono absoluto; e, em terceiro lugar, pelo que respeita a
nós os homens, em nossa total perda de todo direito quanto à Sua
misericórdia, por nossa apostasia. O argumento é que o Agostinianismo
é o único sistema que concorda com o caráter de Deus e com Sua relação
com as Suas criaturas tal como se revela na Bíblia.
2. É um fato que os homens são uma raça caída; que por sua
alienação de Deus estão envoltos num estado de culpa e de
contaminação, do qual não se podem libertar a si mesmos. Pela culpa
que contraíram perderam todo direito perante a justiça de Deus; com
toda justiça poderiam ser deixados em perdição; e por sua depravação
fizeram-se totalmente incapazes de voltar a Deus, ou para não fazer nada
espiritualmente bom. Estes são alguns fatos já demonstrados. O
sentimento de culpa é universal e indestrutível. Todos os pecadores
conhecem o justo juízo de Deus, e que são dignos de morte. A
incapacidade dos pecadores não é só declarada clara e repetidamente nas
Escrituras, mas é demonstrada por toda a experiência, pela comum
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
457
consciência dos homens, e, naturalmente, pela consciência de cada
pessoa individual, e especialmente de cada homem que tenha sido ou que
seja verdadeiramente convencido do pecado. Mas se os homens são
assim incapazes de mudar seus próprios corações, para preparar-se a si
mesmos para esta mudança, ou para cooperar em sua produção, então
devem ser falsos todos aqueles sistemas que pressupõem a capacidade do
pecador e que mantêm que a distinção entre os que se salvam e os que se
perdem radica no emprego feito desta capacidade. São contrários aos
fatos. São inconsequentes com o que cada homem, no mais profundo de
seu coração, sabe ser certo. O que se quer ilustrar quando as Escrituras
comparam os pecadores com mortos, e inclusive com ossos secos, é sua
total impotência. A este respeito, todos são iguais. Se Cristo passasse por
um cemitério, e dissesse a um ou a outro que saísse, a razão pela qual
alguém seria restaurado à vida e outro não, só poderia encontrar-se em
Seu beneplácito. Pela própria natureza do caso, não se poderia encontrar
nos próprios mortos. Por isso, se as Escrituras, a observação e a
consciência nos ensinam que os homens são incapazes de restaurar-se a
si mesmos à vida espiritual, o fato de que sejam vivificados tem que ser
atribuído ao beneplácito de Deus.
Pela obra do Espírito
3. Isto fica confirmado por outro evidente fato ou verdade da
Escritura. A regeneração do coração humano, a conversão de um
pecador a Deus é a obra, não daquele que recebe essa mudança, mas do
Espírito de Deus. Isto fica claro, primeiro porque a Bíblia sempre o
atribui ao Espírito Santo. Diz-se que nascemos não da vontade do
homem, mas de Deus; que somos nascidos do Espírito; que somos
sujeitos da renovação do Espírito Santo; que somos vivificados, ou
ressuscitados dentre os mortos pelo Espírito do Senhor; os ossos secos
vivem só quando o Espírito sopra sobre eles. Esta é a descrição que
impregna as Escrituras do princípio ao fim, Segundo, a Igreja, portanto,
em sua capacidade coletiva, e cada membro vivo da Igreja, reconhecem
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
458
esta verdade em suas orações em petição do poder renovador do Espírito
Santo. Nos mais antigos e reconhecidos credos da Igreja, o Espírito é
designado como τὸ ζωοποιόν - to zoopoion, o doador da vida; o autor de
toda vida espiritual. A soberania envolvida nesta influência regeneradora
do Espírito Santo fica claramente implicada na natureza do poder que se
exerce. Declara-se que é o grande poder de Deus; a sobrepujante
grandeza de Seu poder; o poder que operou em Cristo, ressuscitando-O
dentre os mortos. Apresenta-se como análogo ao poder com aquele que
fez os cegos verem, os surdos ouvirem, e com aquele que foram limpos
os leprosos. É bem verdade que o Espírito ilumina, ensina, convence,
persuade e, numa palavra, governa a alma segundo sua natureza como
criatura racional. Mas tudo isto se relaciona com o que se faz no caso dos
filhos de Deus depois de sua regeneração. A repartição de vida espiritual
é uma coisa; o sustento, controle e abrigo desta vida é outra. Se a Bíblia
nos ensina que a regeneração, ou ressurreição espiritual, é a obra do
poder onipotente de Deus, análogo ao que exercitou Cristo quando disse:
«Quero, sê limpo», então, segue-se necessariamente que a regeneração é
um ato de soberania. Depende de Deus, o doador da vida, e não dos que
estão espiritualmente mortos, decidir quem são os que devem viver, e os
que permanecem em seus pecados. A convicção íntima do povo de Deus
em todas as eras foi e é que a regeneração, ou infusão de vida espiritual,
é um ato do poder de Deus exercido segundo o Seu beneplácito, e por
isso é o dom pelo qual a Igreja ora de maneira especial. Mas este fato
envolve a verdade do Agostinianismo, que simplesmente ensina que a
razão pela qual um homem é regenerado e outro não, e por conseguinte
um é salvo e outro não, é o beneplácito de Deus. Ele tem misericórdia de
quem quer ter misericórdia. É verdade que Ele manda a todos os homens
que busquem Sua graça, e promete que os que buscam, acharão. Mas,
por que um busca, e o outro não? Por que um fica impressionado diante
da importância da salvação, enquanto que outros permanecem
indiferentes? Se é verdade que não só a regeneração vem de Deus, mas
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
459
também todos os pensamentos retos e propósitos justos, é dEle e não de
nós que buscamos e achamos o Seu favor.
A Eleição é para a Santidade
4. Outro fato claramente revelado é o de que somos escolhidos para
a santidade; que somos criados para boas obras; em outras palavras, que
todo o bem em nós é o fruto, e por isso que não pode ser a base da
eleição. No Ef 1:3-6 diz o Apóstolo: «Bendito o Deus e Pai de nosso
Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado com toda sorte de bênção
espiritual nas regiões celestiais em Cristo, assim como nos escolheu nele
antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis
perante ele; e em amor nos predestinou para ele, para a adoção de filhos,
por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade, para
louvor da glória de sua graça, que ele nos concedeu gratuitamente no
Amado.» Nesta passagem se expõe a doutrina Agostiniana da eleição de
uma maneira tão clara e inclusiva como jamais tenha sido apresentada na
linguagem humana. O Apóstolo ensina: (1) Que o fim ou desígnio de
todo o esquema da redenção é o louvor da glória da graça de Deus, isto
é, a exibição perante a admiração das criaturas inteligentes dos gloriosos
atributos da graça divina, ou o amor de um Deus imensamente santo e
justo para com pecadores contaminados e culpados. (2) A este fim, por
Seu mero beneplácito, Ele predestinou àqueles que eram os objetos de
Seu amor à exaltada dignidade de ser os filhos de Deus. (3) Que para
prepará-los para este sublime estado, escolheu-os, antes da fundação do
mundo, para que fossem santos e sem mancha em amor. (4) Que em
consequência desta eleição, ou na execução deste propósito, Ele confere
sobre eles todas as bênçãos espirituais, regeneração, fé, arrependimento e
a morada do Espírito. É totalmente incompatível com este fato que a
base da eleição seja o prévio conhecimento da fé e do arrependimento.
Os homens, segundo o Apóstolo, arrependem-se e creem porque são
escolhidos; Deus os escolheu para que sejam santos, e por isso sua
santidade ou bondade em forma ou medida alguma não podem ser a
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
460
razão de que tenham sido escolhidos. Do mesmo modo diz o apóstolo
Pedro que os crentes foram escolhidos «para a obediência e a aspersão
do sangue de Jesus Cristo» (1Pe 1:2). Esta é a clara doutrina da Bíblia:
os homens são escolhidos para que sejam santos. O fato de que Deus os
tenha destinado para a salvação é a razão pela qual são levados ao
arrependimento e a uma vida santa, «Devemos sempre dar sempre graças
a Deus por vós,» diz Paulo aos Tessalonicenses (2Ts 2:13), «porque
Deus vos escolheu desde o princípio para a salvação, pela [não, devido
a] santificação do Espírito e fé na verdade.» «Damos, sempre, graças a
por todos vós, mencionando-vos em nossas orações e, sem cessar,
recordando-nos, diante do nosso Deus e Pai, da operosidade da vossa fé,
da abnegação do vosso amor e da firmeza da vossa esperança em nosso
Senhor Jesus Cristo, reconhecendo, irmãos, amados de Deus, a vossa
eleição» (1Ts 1:2-4). Ele reconhece a eleição deles como a fonte de sua
fé e amor.
Pela natureza gratuita da salvação.
5. Outro fato decisivo é que a salvação é pela graça. As duas ideias
de graça e obras; de dom e dívida; de favor imerecido e o que é
merecido; do que se deve atribuir ao beneplácito do doador e o que se
deve atribuir ao caráter ou estado do receptor, são mutuamente
contraditórias. Uma exclui a outra. «E, se é pela graça, já não é pelas
obras; do contrário, a graça já não é graça» (Rm 11:6). Nada a respeito
do plano de salvação é mais claramente revelado, nem sobre nada se
enfatiza de maneira mais intensa, que a respeito de sua gratuidade, do
princípio ao fim. «Pela graça sois salvos» está sobrecarregado em quase
cada página da Bíblia, e nos corações de todos os crentes. (1) Foi questão
de graça que se dispusesse um plano de salvação para o homem caído, e
não para os anjos caídos. (2) Foi pela graça que este plano foi revelado a
umas partes de nossa raça e não a outras. (3) A aceitação ou justificação
de cada herdeiro individual da salvação é assunto de graça. (4) A obra da
santificação é uma obra de graça, isto é, uma obra efetuada pelo poder
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
461
imerecido, sobrenatural, do Espírito Santo. (5) É pela graça que dos que
ouvem o evangelho alguns aceitem a graça que lhes é oferecida,
enquanto que outros a rejeitam. Todos estes pontos estão tão claramente
ensinados na Bíblia que são praticamente reconhecidos por todos os
cristãos. Embora se negam para dar satisfação ao entendimento, são
aceitos pelo coração, tal como fica evidente nas orações e louvores da
Igreja em todas as eras e em todas as suas divisões. Que a chamada ou
regeneração do crente é pela graça, isto é, que o fato de sua chamada
deve ser atribuído a Deus, e não a nada nele mesmo, é algo a respeito do
que o Apóstolo Paulo insiste de maneira especial em quase todas as suas
epístolas. Por exemplo, em 1Co 1:17-31. Tinha-lhe sido objetado que
não pregava «com sabedoria de palavras». Ele se vindicou mostrando,
primeiro, que a sabedoria dos homens de nada lhe havia valido para
alcançar o conhecimento salvador de Deus; e segundo, que quando o
evangelho da salvação foi revelado, não foram os sábios os que o
aceitaram. Como prova deste último ponto, apelou à própria experiência
deles. Referiu-se ao fato que dentre eles Deus não tinha escolhido os
sábios, os grandes ou os nobres, mas os insensatos, os fracos e os
menosprezados. Deus o fez. Era Ele que tinha decidido quem deveria ser
levado a aceitar o Evangelho, e quais seriam deixados entregues a si
mesmos. Ele tinha um propósito nisto, e este propósito era que aqueles
que se gloriam, gloriem-se no Senhor, isto é, que ninguém pudesse
atribuir sua salvação (o fato de que esteja salvo, enquanto que outro não
o está) a si mesmo. Porque, acrescenta o Apóstolo, é por Ele que estamos
em Cristo Jesus. Nossa união com Cristo, o fato de que somos crentes,
deve ser atribuído a Ele, e não a nós mesmos.
O argumento do Apóstolo em Romanos 9
Este é também o propósito do Apóstolo na totalidade do nono
capítulo de sua Epístola aos Romanos. Ele tinha afirmado, em
concordância com as predições dos antigos profetas, que os judeus,
como nação, seriam desprezados, enquanto que as bênçãos da verdadeira
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
462
religião seriam estendidas aos gentios. Para provar este ponto, mostra
primeiro que Deus não estava ligado por Sua promessa a Abraão a salvar
a todos os descendentes naturais do patriarca. Ao contrário, que era uma
prerrogativa que Deus, como soberano, reivindicava e exercia, ter
misericórdia de quem quisesse, e de rejeitar a quem quisesse. Escolheu a
Isaque em lugar da Ismael, a Jacó e não a Esaú, e, neste caso, para
demonstrar que a eleição era perfeitamente soberana, foi anunciada antes
do nascimento dos crianças, antes que tivessem feito bem ou mal.
Endureceu a faraó. Deixou-o a si mesmo para que fosse um monumento
de Sua justiça. Este direito, que Deus reivindica e exerce, de escolher a
quem Ele quer para ser receptor de Sua misericórdia, não envolve
injustiça alguma, como nos ensina o Apóstolo. Ninguém tem direito a
queixar-se se, para manifestação de Sua misericórdia, salva a alguns da
culpada família humana; e para mostrar Sua justiça, deixa a outros que
levem a justa retribuição de seus pecados. Deus, como nos diz Paulo,
agiu com base neste principio com os judeus. A nação como nação foi
desprezada, mas foi salvo um remanescente. E este remanescente foi
mesmo uma «eleição da graça», isto é, pessoas escolhidas gratuitamente.
O próprio Paulo era uma ilustração desta eleição, e uma prova de sua
natureza totalmente gratuita. Ele era um perseguidor e blasfemo, e
enquanto estava lançado precisamente à atividade de sua maligna
oposição, foi repentina e milagrosamente convertido. Aqui, se não em
nenhum outro caso, a eleição foi pela graça. Não havia nada em Paulo
que o distinguisse favoravelmente com relação a outros fariseus
incrédulos. Não podia ser o prévio conhecimento de sua fé e
arrependimento a base de sua eleição, porque foi levado à fé e ao
arrependimento pela soberana e irresistível intervenção de Deus.
Entretanto, o que foi certo de Paulo é certo de todos os outros crentes.
Todo aquele que é levado a Cristo é levado de tal maneira que lhe é
revelado à sua própria consciência, e é abertamente confessado com a
boca, que seu conversão é de Deus e não dele mesmo; que ele é um
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
463
monumento da eleição de graça; que ele, ao menos, não foi escolhido
devido aos seus merecimentos.
O argumento da experiência.
Toda a história da Igreja, e a diária observação dos cristãos,
demonstra a soberania de Deus na dispensação de bênçãos salvadoras,
soberania pela qual disputam os Agostinianos. É certo, e certamente
primordial, que Deus é um Deus que guarda a aliança, e que Sua
promessa é para o Seu povo e para sua descendência após eles até a
terceira e quarta geração. Por isso, é verdade que Sua graça é dispensada,
embora não de maneira exclusiva, mas de maneira conspícua, na linha de
seus descendentes. Segundo, também é verdade que Deus prometeu que
Seu bênção acompanhará o ensino fiel. Ele manda aos pais que criem a
seus filhos na disciplina e admoestação do Senhor; e lhes promete que se
forem instruídos no caminho em que devem ir, embora sejam velhos não
se apartarão dele. Mas não é verdade que a regeneração seja produto da
cultura. Os homens não podem ser transformados em cristãos pela
educação, como podem ser instruídos para receber conhecimento ou
moral. A conversão não é o resultado do desenvolvimento de um germe
de vida espiritual comunicado no batismo nem derivado por
descendência de pais piedosos. Tudo está em mãos de Deus. Assim
como quando Cristo estava na terra curou a um e a outro mediante uma
palavra, assim agora mediante Seu Espírito Ele cura a quem quer. Este
fato está demonstrado por toda a história. Alguns períodos da Igreja
foram notáveis por estas exibições de Seus poderes, enquanto que outros
passaram com poucas manifestações incidentais de Sua graça salvadora.
Na era Apostólica houve milhares de conversões; muitos eram
acrescentados diariamente à Igreja dos que deviam ser salvos. Logo, na
era Agostiniana houve uma ampla difusão da influência salvadora do
Espírito. Ainda mais conspícuo foi este caso na Reforma. Depois de uma
longa decadência na Grã-Bretanha veio o maravilhoso avivamento da
verdadeira religião sob Wesley e Whitefield. Contemporaneamente se
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deu um grande despertar por todo este país. E assim, de tempos em
tempos, e em todas as partes da Igreja, vemos as evidências das
intervenções especiais e soberanas de Deus. A soberania destas
dispensações é igualmente manifesta como a exibida nos sete anos de
abundância e os sete anos de escassez na época de José. Cada pastor,
quase cada pai, podem dar testemunho da mesma verdade. Oram e
trabalham durante longo tempo, e aparentemente sem êxito; e logo,
frequentemente quando não o esperam, vem o derramamento do Espírito.
Têm lugar mudanças no estado e caráter dos homens que ninguém pode
produzir nos demais; e que ninguém pode produzir em si mesmo;
mudanças que devem ser atribuídos à ação imediata do Espírito de Deus.
Estes são fatos. Não podem ser negados razoavelmente. Não podem ser
racionalizados. Demonstram que Deus age como soberano na
distribuição de Sua graça. E com esta realidade não se pode reconciliar
outro esquema mais que o Agostiniano. Se a salvação é pela graça, como
as Escrituras ensinam claramente, então não é por obras, tanto se forem
reais como se são vistas antecipadamente.
As declarações expressas da Escritura
6. As Escrituras declaram claramente que Deus tem misericórdia de
quem quer ter misericórdia, e compaixão de quem Ele quer ter
compaixão. Ensinam, em sentido negativo, que a eleição para a salvação
não é por obras; que não depende do caráter ou esforço de seus objetos;
e, afirmativamente, que depende de Deus. Atribui-se a Seu beneplácito.
declara-se que é dEle, que é de graça. Já se citaram passagens nas quais
se fazem estas declarações negativas e afirmativas. Em Rm 9 diz-se que
a eleição não é em virtude das obras, «mas daquele que chama». «Assim
que não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus que tem
compaixão». Como no tempo de Elias, em meio de uma apostasia geral,
Deus disse: «Reservei-me sete mil homens, que não dobraram o joelho
perante Baal» (Rm 11:4, cf. 1Rs 19:18). «Assim, pois, também agora, no
tempo de hoje, sobrevive um remanescente segundo a eleição da graça.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
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E, se é pela graça, já não é pelas obras; do contrário, a graça já não é
graça.» (Rm 11:5,6). Assim diz-se em Rm 8:30: «E aos que predestinou,
a esses também chamou», isto é, regenerou e santificou. A regeneração
segue a predestinação à vida, e é o dom de Deus. Paulo diz de si mesmo:
«Quando aprouve a Deus, que me separou desde o ventre de minha mãe
e me chamou pela sua graça, revelar seu Filho em mim» (Gl 1:15, 16,
TB). Diz aos Efésios que os que obtêm a herança são aqueles que foram
«predestinados conforme o propósito daquele que faz tudo segundo o
conselho da sua vontade» (Ef 1:11). Em 2Tm 1:9 [TB] diz que somos
salvos «segundo o seu propósito e segundo a graça que nos foi dada em
Cristo Jesus antes dos tempos eternos». O Apóstolo Tiago diz (Tg 1:18):
«Segundo o seu querer, ele nos gerou pela palavra da verdade, para que
fôssemos como que primícias das suas criaturas.» O Apóstolo Pedro fala
daqueles que «tropeçam na palavra, sendo desobedientes; para o que
também foram destinados» (1Pe 2:8, RC). E Judas refere-se a certos
homens que «se introduziram com dissimulação, os quais, desde muito,
foram antecipadamente pronunciados para esta condenação» (Jd 4). Esta
predestinação para condenação é certamente uma ação judicial, como se
ensina em Rm 9:22. Deus não condena a ninguém nem predestina a
ninguém para condenação, exceto devido ao pecado. Mas o fato de
deixar de lado a tais homens, abandonando-os a sua própria sorte, e não a
outros igualmente culpados, para sofrer a pena de seus pecados, é
declarado de maneira distintiva como um ato soberano.
As palavras de Jesus
De todos os mestres enviados por Deus para revelar Sua vontade,
nenhum declara de maneira mais frequente a divina soberania que nosso
próprio bendito Senhor. Ele fala daqueles que o Pai lhe tinha «dado» (Jo
17:2). A estes Ele lhes dá vida eterna (Jo 17:2,24). É por esses que ora;
por eles que Se santificou (Jo 17:19). Deles diz Ele que é a vontade do
Pai que não se perca nenhum, mas que os ressuscite no dia último (Jo
6:39). Por isso, estão em perfeita segurança. «As minhas ovelhas ouvem
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
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a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou a vida
eterna; jamais perecerão, e ninguém as arrebatará da minha mão. Aquilo
que meu Pai me deu é maior do que tudo; e da mão do Pai ninguém pode
arrebatar» (Jo 10:27-29). Assim como as ovelhas de Cristo são
escolhidas dentre o mundo e Lhe são dadas, é Deus quem escolhe. Elas
não O escolhem a Ele, mas Ele a elas. Ninguém pode ser acrescentado ao
número delas, e este número será certamente completado. «Todo aquele
que o Pai me dá, esse virá a mim; e o que vem a mim, de modo nenhum
o lançarei fora» (Jo 6:37). «Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me
enviou, não o trouxer; e eu o ressuscitarei no último dia» (Jo 6:44).
«Portanto, todo aquele que da parte do Pai tem ouvido e aprendido, esse
vem a mim» (Jo 6:45). «Ninguém poderá vir a mim, se, pelo Pai, não lhe
for concedido» (Jo 6:65). A Deus pertence quem vai ser trazido ao
conhecimento salvador da verdade. «A vós outros é dado conhecer os
mistérios do reino dos céus, mas àqueles não lhes é isso concedido» (Mt
13:11). «Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste
estas coisas aos sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos» (Mt
11:25). Em At 13:48 diz-se: «e creram todos os que haviam sido
destinados para a vida eterna». Assim, as Escrituras dizem que o
arrependimento, a fé e a renovação do Espírito Santo são dons de Deus.
Cristo foi exaltado à direita de Deus para dar arrependimento e perdão de
pecados. Mas se a fé e o arrependimento são dons de Deus, devem ser
resultado da eleição. É impossível que sejam seu motivo.
Se o papel do teólogo, como é tão geralmente admitido, é tomar os
fatos das Escrituras como o homem de ciência os da natureza, e
encontrar neles suas doutrinas, em lugar de deduzir suas doutrinas dos
princípios ou verdades primárias de sua filosofia, parece impossível
resistir à conclusão de que a doutrina de Agostinho é a doutrina da
Bíblia. Segundo esta doutrina, Deus é absolutamente soberano. Faz o que
parece bem aos Seus olhos. Envia a verdade a uma nação e não a outra.
Dá um poder salvador àquela verdade numa mente, e não em outra. É
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dele, e não de nós, que qualquer homem está em Cristo Jesus, e que é
herdeiro da vida eterna.
Isto, como se viu, declara-se em termos expressos, com grande
frequência e clareza nas Escrituras. É sustentado por todos os fatos da
providência e da revelação. Não se atribui a Deus nada senão o que está
demonstrado, por meio de Seu real governo do mundo, como sendo Sua
prerrogativa de direito. Só ensina que Deus Se propõe aquilo que vemos
com nossos próprios olhos que Ele faz verdadeiramente, e que sempre
tem feito, nas dispensações de Sua providência. Por isso, o oponente
consequente desta doutrina tem que rejeitar inclusive as verdades da
religião natural. Porquanto o Agostinianismo concorda com os fatos da
providência, concorda naturalmente com os fatos da Escritura. A
Escritura declara que a salvação dos pecadores é uma questão de graça; e
que o grande desígnio de todo o esquema da redenção é exibir a glória
daquele atributo divino, exibir perante a admiração do universo
inteligente, e para sua edificação, o imerecido amor de Deus e Sua
ilimitada beneficência para com algumas criaturas culpadas e
contaminadas. Por isso, os homens ficam descritos como mergulhados
em estado de pecado e de miséria; não podem libertar-se a si mesmos
deste estado; para a redenção deles, Deus enviou o Seu Filho eterno para
que assumisse a natureza deles, obedecesse, e sofresse em lugar deles; e
a Seu Espírito Santo para que aplicasse a redenção adquirida pelo Filho.
A introdução do elemento de mérito em nenhuma parte deste esquema
vicia sua natureza e frustra seus desígnios. A não ser que nossa salvação
seja de graça do princípio ao fim, não é uma exibição de graça. A Bíblia,
entretanto, ensina-nos que foi pela graça que se fez a provisão da
salvação; que foi revelada a uma nação, e não a outra; e que foi aplicada
a uma pessoa e não a outra. Ensina que toda bondade do homem deve-se
à natureza do Espírito Santo, e que todas as bênçãos espirituais são o
fruto da eleição; que somos escolhidos para santidade, e criados para
boas obras, porquanto estamos predestinados para ser filhos de Deus.
Com estes fatos da Escritura concorda a experiência dos cristãos. É a
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
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íntima convicção de cada crente, baseada no testemunho de sua própria
consciência, assim como sobre o fato das Escrituras, que sua salvação
provém de Deus; que é dEle, e não de si mesmo, que foi levado a exercer
fé e arrependimento. Enquanto que olha em seu interior, o crente está
satisfeito a respeito da veracidade destas doutrinas. É só quando olha
fora, e tenta conciliar estas verdades com os ditados de seu próprio
entendimento, que fica confundido e se torna cético. Mas porquanto
nossa fé não está baseada na sabedoria dos homens, mas no poder de
Deus, como a insensatez de Deus é mais sábia que os homens, o sábio,
assim como nosso caminho de dever e de segurança, é receber como
verdadeiro o que Deus revelou, quer possamos compreender de maneira
perfeita os Seus caminhos, ou não.
§ 9. Objeções ao esquema Agostiniano
Não se pode negar que existem objeções consideráveis à doutrina
Agostiniana da soberania divina. Impactam ainda mais poderosamente os
sentimentos e à imaginação que ao entendimento. Por isso, apresentamse geralmente de umas formas tão distorcidas e exageradas para produzir
a mais intensa repugnância e desgosto. Entretanto, isso é devido em parte
à distorção da verdade, e em parte à oposição de nossa natureza
imperfeitamente ou nada santificada às coisas do Espírito, das quais fala
o Apóstolo em 1Co 2:14.
Entretanto, pode-se observar em geral, a respeito destas objeções,
que não militam exclusivamente contra esta doutrina. Um dos usos
injustos da controvérsia é apresentar dificuldades que têm a mesma força
contra alguma doutrina admitida como válida só contra a doutrina que
rechaça o impedimento. Assim, as objeções contra o Agostinianismo,
nas quais descansa de maneira particular, também podem-se usar no
mesmo sentido contra os decretos de Deus em geral; ou, se estes forem
negados, contra a presciência de Deus; contra a permissão do pecado e
da desgraça, e especialmente contra a doutrina da pecaminosidade e
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desgraça eterna de muitas das criaturas inteligentes de Deus. Estas são
doutrinas admitidas por todos os cristãos, e que são apresentadas pelos
incrédulos e ateus com umas cores tão chocantes para a imaginação e os
sentimentos como o fazem os anti-agostinianos ao descrever a soberania
de Deus. É igualmente difícil reconciliar com nossas ideias naturais de
Deus que Ele, com um controle absoluto sobre todas as criaturas,
permitisse que tantas delas se percam eternamente que o fato de que Ele
salve a uns e não a outros. A dificuldade é, em ambos os casos, a mesma.
Deus não impede a perdição daqueles aos que, sem dúvida de nenhuma
classe, Ele tem poder para salvar. Se os que admitem a providência de
Deus dizem que Ele tem sábias razões para permitir que pereçam tantos
de nossa raça, os defensores de Sua soberania dizem que Ele tem razões
adequadas para salvar a alguns e não a outros. É irrazoável e injusto, por
isso, enfatizar dificuldades que também militam contra verdades
admitidas como se fossem fatais a doutrinas controvertidas. Quando uma
objeção prova demais, fica por isso mesmo refutada racionalmente.
As mesmas objeções militam contra a Providência de Deus
Uma observação geral a respeito destas objeções é que militam
contra a providência de Deus. Isto já se viu. É inútil e irracional
argumentar contra fatos. De nada servirá dizer que é injusto em Deus
tratar uma nação mais favoravelmente que a outra, a um indivíduo que a
outro, se de fato Ele age como soberano na distribuição de seus favores.
Que Ele age de tal maneira é inegável pelo que concerne às bênçãos
providenciais e às vantagens religiosas. E isto é tudo o que afirma o
Agostinianismo com relação às dispensações de Sua graça. Por isso, se
for demonstrado ser falso o princípio sobre o qual se baseiam estas
objeções por meio dos fatos verdadeiros da providência, as objeções não
podem ser válidas contra o esquema Agostiniano.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
470
Baseadas em nossa ignorância.
Uma terceira e evidente observação é que estas objeções são
subjetivas, isto é, derivam toda sua força da limitação de nossos poderes
e da estreiteza de nossas perspectivas. Supõem que somos aptos para
sentar-nos a julgar o governo de Deus do universo; que podemos
determinar que fim Ele tem em vista, e avaliar de maneira correta a
sabedoria e a justiça dos meios adotados para sua execução. Esta é
evidentemente uma pressuposição absurda, não só devido à nossa total
incapacidade para compreender os caminhos de Deus, mas também
porque necessariamente devemos julgar antes da consumação de Seu
plano, e também porque temos que julgar pelas aparências. Inclusive
quando julgamos a respeito dos planos de um mortal como nós, é justo
que esperemos até que estejam totalmente desenvolvidos, e também é
justo que não deveríamos julgar até que estejamos seguros de conhecer
suas verdadeiras intenções, e a relação dos meios com o fim.
Além disso, deve-se observar que estas dificuldades surgem de
nossa contemplação, por assim dizer, de um só aspecto do caso.
Observamos só a soberania de Deus e a natureza absoluta de Seu
controle sobre Suas criaturas. Perdemos de vista, ou somos incapazes de
compreender a perfeita consistência desta soberania e controle com o
livre-arbítrio e a responsabilidade de Suas criaturas racionais. É
perfeitamente verdadeiro, num aspecto, que Deus decide com base em
Seu beneplácito qual seja o destino de cada ser humano; e é igualmente
certo, em outro aspecto, que cada homem determina seu próprio destino.
Estas verdades podem ficar estabelecidas, cada uma delas, sobre a mais
firme base. Por isso, a consistência das mesmas pode ser admitida como
um fato, inclusive embora não possamos ser capazes de descobri-la. Das
multidões que se lançam à perseguição da fama, da riqueza ou do poder,
alguns triunfam, outros fracassam. O êxito e o fracasso, em todo caso,
ficam determinados pelo Senhor. Isto é claramente expresso na Bíblia:
«A um abate, a outro exalta», diz o Salmista (Sl 75:7). «O SENHOR
empobrece e enriquece» (1Sm 2:7). «O SENHOR o deu e o SENHOR o
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
471
tomou; bendito seja o nome do SENHOR!» (Jó 1:21). «É ele o que te dá
força para adquirires riquezas» (Dt 8:18). «Ele dá sabedoria aos sábios e
entendimento aos inteligentes» (Dn 2:21). «O Altíssimo tem domínio
sobre o reino dos homens; e o dá a quem quer» (Dn 4:17). Esta é uma
verdade da religião natural. Todos os homens, cristãos ou não cristãos,
oram pedindo o êxito de suas empresas. Reconhecem o controle
providencial de Deus sobre os assuntos dos homens. Não obstante, eles
estão plenamente conscientes da consistência deste controle com seu
próprio livre-arbítrio e responsabilidade. Cada homem que faz da
aquisição da riqueza seu fim na vida está consciente que é sua livre
eleição. Ele faz seus próprios planos; adota seus próprios meios; e age
com tanta liberdade e tão de acordo com os ditames de sua própria
vontade como se não existisse a providência. E isto não é um engano.
Ele é perfeitamente livre. Seu caráter se expressa na escolha que faz do
fim que quer alcançar. Não pode deixar de reconhecer sua
responsabilidade por esta escolha, e por todos os meios que adota para
levar seus propósitos a bom fim. Tudo isto é certo na esfera da religião.
Deus põe a vida e a morte diante de cada homem que ouve o evangelho.
Adverte-o das consequências de uma má escolha. Apresenta-lhe e
enfatiza todas as considerações que deveriam levá-lo a uma decisão
correta. Assegura ao pecador que se deixar seu pecado e voltar ao
Senhor, será perdoado e aceito. Promete que se pedir, receberá; que se
buscar, achará. Assegura-lhe que Ele está mais disposto a dar Seu Santo
Espírito que os pais a dar pão a seus filhos. Mas se apesar de tudo isso
prefere deliberadamente o mundo, recusa buscar a salvação de sua alma
da maneira assinalada, e finalmente perece, ele é totalmente responsável
por seu caráter e conduta, e pela perdição de sua alma, do mesmo modo
que o homem do mundo é responsável por sua perseguição das riquezas.
Em ambos os casos, e igualmente em ambos, a disposição soberana de
Deus é consistente com a liberdade e a responsabilidade dos agentes. Por
isso, é só ao contemplar a metade da verdade que se aumentam as
dificuldades em questão até tal ponto. Os homens agem tão livremente
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
472
em religião como em qualquer outra área da vida; e quando perecem,
isso é a obra de suas próprias mãos.
Estas objeções foram levantadas contra os ensinos do
Apóstolo Paulo
Outra observação a respeito destas objeções não deveriam ser
passadas por alto. Foram apresentadas pelos judeus contra a doutrina do
Apóstolo. Isto demonstra ao menos que sua doutrina é nossa doutrina. Se
ele não tivesse ensinado tudo o que os Agostinianos mantêm como
verdadeiro, não teria havido lugar para tais objeções. Se ele tivesse
negado que Deus dispensa a salvação segundo Seu beneplácito, tendo
misericórdia de quem quer ter misericórdia, por que deviam enfatizar os
judeus que Deus era injusto, e que se estava destruindo a
responsabilidade do homem? Que aparência de injustiça teria existido se
Paulo tivesse ensinado que Deus escolhe aqueles que Ele conhece
antecipadamente que vão arrepender-se e crer, e que a eleição é devido a
este conhecimento antecipado? É só porque Ele afirma claramente a
soberania de Deus que se dá ocasião às objeções. As respostas que dá
Paulo a estas dificuldades deveriam satisfazer-nos por duas razões;
primeiro, porque são as respostas ditadas pelo Espírito de Deus; e
segundo, porque são, em si mesmas, satisfatórias para toda mente
retamente constituída.
A primeira destas objeções é que é inconsistente com a justiça de
Deus salvar a um e não a outro, segundo o Seu beneplácito. A isto
replica Paulo: (1) Que Deus reivindica Sua prerrogativa. (2) Que a
exerce realmente. É inútil negar os fatos; e dizer que o que Deus
realmente faz é inconsistente com a Sua natureza. (3) Que é uma
prerrogativa justa, baseada não só na infinita superioridade de Deus e em
que Ele é dono de todas as Suas criaturas, mas também em Sua relação
de Governador moral da raça de pecadores. Se inclusive um soberano
humano tem o direito a exercer sua autoridade para perdoar a um
criminoso e não a outro, certamente que não se pode negar esta
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
473
prerrogativa a Deus. Não pode haver injustiça em permitir que se
execute a sentença de uma lei justa contra um delinquente. E isto é tudo
o que Deus faz com relação aos pecadores.
Outra dificuldade relacionada com esta questão que surge da
preordenação do pecado pertence à questão dos decretos, e já foi
considerada. O mesmo aplica-se à objeção de que a doutrina em questão
destrói todo motivo para o esforço e para o uso dos meios da graça, e que
reduz a doutrina das Escrituras a um sistema meramente fatalista.
A tendência prática de qualquer doutrina deve ser decidida com
base em sua natureza e por seus efeitos. O efeito natural da convicção de
que perdemos todo direito diante da justiça de Deus, de que estamos à
Sua mercê, e de que Ele poderia com justiça deixar-nos para que
perecêssemos em nossos pecados, é levar-nos a buscar aquela
misericórdia com ardor e importunidade. E a experiência da Igreja em
todas as idades demonstra que este é o efeito da doutrina em questão.
Não levou à negligência, nem a uma impassível indiferença, nem a uma
rebelde oposição a Deus, mas antes, à submissão, ao reconhecimento da
verdade, e a uma confiança certa em Cristo como o Salvador designado
dos que merecem a perdição.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
CAPÍTULO II
474
A ALIANÇA DA GRAÇA
§ 1. O plano da salvação é uma Aliança.
O plano da salvação apresenta-se sob a forma de uma aliança. Isto
se faz evidente:
Primeiro, pelo constante uso das palavras ּ‫ בּ ְִרית‬- berite e διαθήκη diathêkê com referência ao mesmo. Com relação à primeira destas
palavras, embora às vezes emprega-se para denotar uma lei, de um
arranjo ou disposição em geral, em que estão ausentes os elementos de
uma aliança num sentido estrito, não pode entretanto duvidar-se de que
com base nos usos prevalecentes do Antigo Testamento denota um
contrato mútuo entre duas ou mais partes. Com frequência emprega-se
de acordos entre indivíduos, e especialmente entre reis e governantes.
Abraão e Abimeleque fizeram uma aliança (Gn 21:27). Josué fez uma
aliança com o povo (Js 24:25). Jônatas e Davi fizeram uma aliança (1Sm
18:3). Jônatas fez uma aliança com a casa de Davi (1Sm 20:16). Acabe
fez uma aliança com Ben-Hadade (1Rs 20:34). E assim o vemos
constantemente. Por isso, não se pode duvidar de que o termo ּ‫ בּ ְִרית‬berite, quando se emprega de transações entre homem e homem,
significa um acordo mútuo. Não temos direito a dar-lhe nenhum outro
sentido quando se aplica das transações entre Deus e o homem Faz-se
menção repetida da aliança de Deus com Abraão, como em Gn 15:18;
17:13, e depois com Isaque e Jacó. Logo com os israelitas no Monte
Sinai. O Antigo Testamento está fundado nesta ideia de uma relação de
aliança entre Deus e o povo teocrático.
O significado da palavra διαθήκη - diathêkê nas Escrituras Gregas é
igualmente seguro e uniforme. Deriva-se do verbo διατίθημι - diatithemi,
dispor, e por isso emprega-se em grego comum para denotar qualquer
acerto ou disposição. Nas Escrituras emprega-se de modo quase
uniforme no sentido de aliança. Na Septuaginta usa-se como tradução de
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
475
ּ‫ בּ ְִרית‬- berite em todos os casos que se mencionaram anteriormente. É o
termo que sempre se emprega no Novo Testamento para designar a
aliança com Abraão, com os israelitas e com os crentes. A velha aliança
e a nova são apresentadas em contraste. Ambas eram alianças. Se a
palavra tem significado quando se aplica à transação com Abraão e com
os hebreus, deve ter o mesmo significado quando se aplica ao plano de
salvação revelado no evangelho.
Segundo, que o plano de salvação apresenta-se na Bíblia sob a
forma de uma aliança fica demonstrado não só com base no significado e
uso das palavras anteriormente mencionadas anteriormente, mas também
e de maneira mais decisiva do fato de que neste plano estão incluídos os
elementos de uma aliança. Há partes, promessas ou estipulações mútuas
e condições. Assim que, de fato, trata-se de uma aliança, seja como for
que se chame. Como esta é a descrição escriturística, é de grande
importância retê-la em teologia. Nossa única segurança para reter as
verdades da Bíblia é aderir-se às Escrituras de maneira tão estreita como
é possível em nossa maneira de expor as doutrinas que nela se revelam.
§ 2. Diferentes pontos de vista da natureza desta aliança
Muitos assumem que as partes da aliança da graça são Deus e o
homem caído. Tendo o homem perdido, por sua apostasia, o favor de
Deus, e perdido a imagem divina, e tendo ficado envolto em pecado e
miséria, teria perecido neste estado se Deus não tivesse provido um
plano de salvação. Movido de compaixão para com Suas criaturas
caídas, Deus decidiu enviar o Seu Filho ao mundo, para que tomasse a
natureza deles, e para que fizesse e padecesse o que fosse necessário para
sua salvação. Sobre a base desta obra redentora de Cristo, Deus promete
a salvação a todos os que se submetam a estes termos com base na qual
se oferecem. Esta declaração geral abrange formas de opinião que
diferem muito entre si.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
476
1. Inclui até a perspectiva Pelagiana do plano de salvação, que
supõe que não há diferença entre a aliança das obras sob a qual Adão foi
posto e a aliança da graça, sob a qual estão agora os homens, exceto
quanto à magnitude da obediência necessária. Deus prometeu vida a
Adão sob a condição de uma perfeita obediência, porque estava em
condição de prestar esta obediência. Ele promete a salvação aos homens
agora sob a condição daquela obediência que podem render, quer judeus,
pagãos ou cristãos. Com base nesta postura, as partes da aliança são
Deus e o homem; a promessa é a vida; a condição é a obediência, aquela
que o homem, no uso de suas capacidades naturais pode render.
2. O sistema Remonstrante [Arminiano] não difere essencialmente
do Pelagiano, quanto às partes, a promessa e a condição da aliança. Os
Remonstrantes também apresentam a Deus e ao homem como as partes,
a vida como a promessa, e a obediência como a condição. Mas eles
consideram os homens caídos como num estado de pecado por natureza,
como necessitando uma graça sobrenatural que é provida a todos, e que a
obediência demandada é a obediência da fé, ou fides obsequiosa, fé que
inclui e assegura a obediência evangélica. A salvação sob o evangelho é
tão verdadeiramente pelas obras como sob a lei; mas a obediência
exigida não é a justiça perfeita exigida de Adão, mas sim aquela que o
homem caído pode agora levar a cabo com a ajuda do Espírito.
3. O Arminianismo Wesleyano exalta grandemente a obra de
Cristo, a importância da influência do Espírito e a graça do Evangelho
acima da norma adotada pelos Remonstrantes. Entretanto, os dois
sistemas são essencialmente idênticos. A obra de Cristo tem uma
referência igual a todos os homens. Assegura para todos a promessa da
salvação incondicionada à obediência evangélica; e obtém para todos,
judeus e gentios, uma medida suficiente da graça divina para tornar
viável esta obediência. A salvação de cada homem individual depende
do uso que faça desta graça suficiente.
4. Os Luteranos mantêm deste modo que Deus teve o sério
propósito de salvar todos os homens; que Cristo morreu igualmente por
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
477
todos; que a salvação é oferecida a todos os que ouvem o Evangelho,
com a condição não de obras ou de obediência evangélica, mas da fé
somente; entretanto, a fé é dom de Deus; os homens não têm o poder de
crer, mas têm poder para resistir eficazmente; e sob o evangelho os que
perecem são aqueles, e só aqueles, que resistem teimosamente, e isso por
esta razão. Com base em todas estas posturas, que foram enunciadas
mais plenamente no capítulo anterior, a aliança da graça é um acordo
entre Deus e o homem caído, em que Deus oferece a salvação com base
no submissão às demandas do Evangelho. Quais são estas demandas,
como já vimos, explica-se de maneira diferente.
As distinções essenciais entre as posturas anteriormente
mencionadas a respeito do plano de salvação, ou aliança da graça, e a
postura do sistema agostiniano, são: (1) Que, com base no anterior, suas
provisões têm a mesma referência com relação a toda a humanidade,
enquanto que segundo este segundo têm referência específica com
aquela parte da nossa raça que são realmente salvos; e (2) Que o
Agostinianismo diz que é Deus e não o homem quem decide aqueles que
devem salvar-se. Como já se observou frequentemente, a questão de
quais destes sistemas sejam certos não deve ser decidida determinando
qual é o mais grato aos nossos sentimentos, ou o mais plausível ao nosso
entendimento, mas qual é consistente com as doutrinas da Bíblia e com
os fatos da experiência. Este ponto já foi discutido. Nosso atual propósito
é simplesmente expor o que os Agostinianos significam pela aliança da
graça.
A palavra graça emprega-se nas Escrituras e nos escritos religiosos
em três sentidos. (1) Para denotar um amor imerecido, isto é, um amor
exercido para com os imerecedores do mesmo. (2) Para denotar qualquer
favor imerecido, especialmente bênçãos espirituais. Por isso, todos os
frutos do Espírito nos crentes são chamados graças, ou dons imerecidos
provenientes de Deus. (3) A palavra graça denota frequentemente a
influência sobrenatural do Espírito Santo. Esta é uma graça preeminente,
sendo o grande dom obtido pela obra de Cristo, e sem a qual Sua
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
478
redenção não serviria para nossa salvação. Em todos os sentidos da
palavra o plano de salvação é propriamente chamado uma aliança da
graça. É de graça porque se originou no misterioso amor de Deus para
com os pecadores que mereciam só Sua ira e maldição. Segundo, porque
promete a salvação não sob a condição das obras nem de nada meritório
do nosso lado, mas sim como um dom imerecido. E, em terceiro lugar,
porque seus benefícios são assegurados e são aplicados não no curso da
natureza nem no exercício das capacidades naturais do pecador, mas pela
influência sobrenatural do Espírito Santo, que lhe é concedida como um
dom imerecido.
§ 3. As partes da Aliança.
À primeira vista parece haver uma certa confusão nas declarações
da Escritura a respeito das partes desta aliança. Às vezes é Cristo
apresentado como uma das partes; em outras Ele é apresentado não como
uma das partes, mas sim como mediador e objeto da aliança, enquanto
que as partes apresentadas são Deus e Seu povo. Assim como a Velha
Aliança foi concertada entre Deus e os hebreus, agindo Moisés como
mediador, assim a nova aliança é usualmente exposta na Bíblia como
concertada entre Deus e Seu povo, agindo Cristo como mediador. Por
isso, Ele é chamado o mediador de uma melhor aliança, baseada em
melhores promessas.
Alguns teólogos propõem conciliar estas distintas descrições,
dizendo que assim como a aliança das obras foi concertada com Adão
como representante de sua raça, e por isso nele com toda a humanidade
procedendo dele por geração comum, que igualmente foi a aliança da
graça concertada com Cristo como cabeça e representante de Seu povo, e
nEle com todos os que Lhe são dados pelo Pai. Isto simplifica a questão,
e concorda com o paralelismo que faz o Apóstolo entre Adão e Cristo em
Rm 5:12-21 e em 1Co 15:21, 22, 27-49. Contudo, não se elimina com
isso a incongruência de que Cristo seja ao mesmo tempo apresentado
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
479
como parte e como mediador da mesma aliança. De fato, há duas
alianças que têm que ver com a salvação do homem caído, uma entre
Deus e Cristo, e outra entre Deus e Seu povo. Estes alianças diferem não
só quanto às partes, mas também em suas promessas e condições. Ambas
são apresentados de maneira tão clara na Bíblia que não deveriam ser
confundidas. A última, a aliança da graça, baseia-se na primeira, a
aliança da redenção. De uma Cristo é mediador e objeto; da outra Ele é
uma das partes concertantes.
Esta é uma questão que só tem que ver com a clareza da posição.
Não há diferenças doutrinais entre os que preferem o primeiro enunciado
e os que preferem o segundo; entre os que incluem todos os fatos da
Escritura relacionados com o tema numa só aliança entre Deus e Cristo
como representante de Seu povo, e os que as distribuem em duas. A
confissão de Westminster parece às vezes adotar um modo de descrição,
às vezes a outra.
Na Confissão de Fé 297 diz-se: “O homem, por sua queda, fazendose a si mesmo incapaz de viver por aquela aliança [quer dizer, pela
aliança das obras], o Senhor teve por bem fazer uma segunda,
usualmente chamada a aliança da graça, em que Ele gratuitamente
oferece a vida aos pecadores e a salvação por Jesus Cristo, requerendo
deles a fé nEle, para que sejam salvos, e promete a dar a todos os que são
ordenados para a vida, o Seu Espírito Santo, para que sejam dispostos e
capazes de crer.” Aqui a implicação é que Deus e Seu povo são os
partidos, porque numa aliança as promessas fazem-se para uma das
partes, e aqui se diz que a vida e a salvação se promete aos pecadores, e
que se exige deles a fé. O mesmo ponto de vista apresenta-se no
Catecismo Menor, de acordo com a interpretação natural da resposta à
pergunta XX. É onde disse: “Deus, por Sua boa vontade, desde toda a
eternidade, escolheu uns para vida eterna, entrou numa aliança de graça,
297
Capítulo. vii. § 3.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
480
para livrá-los do estado de pecado e miséria, e para pô-los num estado de
salvação mediante o Redentor.”
No Catecismo Maior, entretanto, a opinião de outros é
expressamente adotada. Na resposta à pergunta, 298 “Com quem foi feita a
aliança da graça?,” diz-se, “A aliança da graça foi feito com Cristo como
o segundo Adão, e nEle com todos os escolhidos como sua semente.”
Duas Alianças que se devem distinguir.
Esta confusão se evita mediante a distinção entre a aliança da
redenção entre o Pai e o Filho, e a aliança da graça entre Deus e Seu
povo. Esta última supõe o primeira, e se baseia nela. As duas, entretanto,
não devem ser confundidas, visto que ambas são claramente reveladas
nas Escrituras, e, além disso, que diferem quanto às partes, quanto às
promessas, e quanto às condições. A este respeito diz Turrettin: 299
“Atque hic superfluum videtur quærere, An foedus hoc contractum fuerit
cum Christo, tanquam altera parte contrahente, et in ipso cum toto ejus
semine, ut primum foedus cum Adamo pactum fuerat, et in Adamo cum
tota ejus posteritate: quod non paucis placet, quia promissiones ipsi
dicuntur factæ, Gal. 3.16, et quia, ut Caput et Princeps populi sui, in
omnibus primas tenet, ut nihil nisi in ipso et ab ipso obtineri possit: An
vero foedus contractum sit in Christo cum toto semine, ut non tam habeat
rationem partis contrahentis, quam partis mediæ, quæ inter dissidentes
stat ad eos reconciliandos, ut aliis satius videtur. Superfiuum, inquam,
est de eo disceptare, quia res eodem redit; et certum est duplex hic
pactum necessario attendendum esse, vel unius ejusdem pacti duas partes
et gradus. Prius pactum est, quod inter Patrem et Filium intercedit, ad
opus redemptionis exequendum. Posterius est, quod Deus cum electis in
Christo contrahit, de illis per et propter Christum salvandis sub
298
299
Pregunta 31.
XII. ii. 12; edit. Edinburgh, 1847, vol. ii. pp. 157, 158.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
481
conditione fidei et resipiscentiæ. Prius fit cum Sponsore et capite ad
salutem membrorum: Posterius fit cum membris in capite et sponsore.”
A mesma opinião é tomada de Witsius: 300 “Ut Foederis gratiæ
natura penitius perspecta sit, duo imprimis distincte consideranda sunt.
(1.) Pactum, quod inter Deum Patrem et mediatorem Christum intercedit.
(2.) Testamentaria illa dispositio, qua Deus electis salutem æternam, et
omnia eo pertinentia, immutabili foedere addicit. Prior conventio Dei
cum mediatore est: posterior Dei cum electis. Hæc illam supponit, et in
illa fundatur.”
§ 4. A Aliança da Redenção.
Por isto se significa a aliança entre o Pai e o Filho com referência à
salvação do homem. Esta é uma questão que, por sua natureza, está
totalmente além de nossa compreensão. Devemos receber os ensinos da
Escritura com relação a isso sem pretender penetrar o mistério que
naturalmente lhe pertence. Há só um Deus, um Ser divino, a quem
pertencem todos os atributos da divindade. Mas na Deidade subsistem
três pessoas, as mesmas em substância e iguais em poder e glória.
Pertence à natureza da personalidade que uma pessoa é objetiva a outra.
Por isso, se o Pai e o Filho são pessoas distintas, uma pode ser objeto dos
atos da outra. Uma pode amar, dirigir-se e comunicar-se com a outra. O
Pai pode enviar o Filho, pode dar-Lhe uma obra a fazer, e prometer-Lhe
uma recompensa. Tudo isto certamente nos é incompreensível, mas ao
estar claramente ensinado na Escritura, tem que entrar na fé cristã.
A fim de demonstrar que há uma aliança entre o Pai e o Filho,
formado na eternidade e revelado no tempo, não é necessário aduzir
passagens da Escritura nas quais esta verdade seja declarada de maneira
explícita. Há, certamente, passagens que são equivalentes a estas
asserções diretas. Isso é implicado nas frequentes e recorrentes
300
De OEconomia Foederum, lib. II. ii. 1, edit. 1712, p. 130.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
482
declarações da Escritura de que o plano de Deus com relação à salvação
dos homens teve a natureza de aliança, e que foi concertada na
eternidade. Paulo nos diz que esteve oculto pelos séculos na mente
divina; que já existia antes da fundação do mundo. Cristo fala de
promessas que lhe foram feitas antes de Sua vinda; e que tinha vindo ao
mundo para levar a cabo uma comissão que tinha vindo do Pai. O
paralelo tão distintivo que se faz entre Adão e Cristo é deste modo prova
do que estamos tratando. Como Adão foi o cabeça e representante de sua
posteridade, assim Cristo é o cabeça e representante de Seu povo. E
como Deus entrou em aliança com Adão, assim Ele entrou em aliança
com Cristo. Isto é exposto em Rm 5:12-21 como a ideia fundamental de
todos os procedimentos de Deus com os homens, tanto na queda dos
mesmos como em sua redenção.
A prova da doutrina tem, entretanto, uma base muito mais ampla.
Quando uma pessoa atribui uma obra estipulada a outra pessoa com a
promessa de uma recompensa com base no cumprimento daquela obra,
há uma aliança. Nada pode ser mais claro que tudo isto é assim com
relação ao Pai e o Filho. O Pai deu ao Filho uma obra a fazer; Ele O
enviou ao mundo para que a realizasse, e Lhe prometeu uma grande
recompensa quando a obra fosse cumprida. Esta é a constante descrição
das Escrituras. Por isso, temos as partes da aliança, a promessa, e a
condição. Estes são os elementos essenciais de uma aliança. Sendo esta a
descrição que nos dá a Escritura, esta deve ser sua verdade à qual
devemos aderir. Não se trata de uma mera figura, mas de uma verdadeira
transação, e deve ser considerada e tratada como tal se queremos
compreender corretamente o plano da salvação. No Salmo 40 [vv. 7-8],
exposto pelo Apóstolo como referindo-se ao Messias, diz-se: «Eis aqui
estou, no rolo do livro está escrito a meu respeito; agrada-me fazer a tua
vontade», isto é, a execução do Teu propósito, o cumprir o Teu plano.
«Nessa vontade», diz o Apóstolo, «é que temos sido santificados [isto é,
limpos da culpa do pecado], mediante a oferta do corpo de Jesus Cristo,
uma vez por todas» [Hb 10:10]. Por isso, Cristo veio para cumprir o
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
483
propósito de Deus, para realizar uma obra que Lhe tinha sido atribuída.
Por isso, diz Ele em João 17:4 [AV]: «Eu terminei a obra que me deste
para fazer.» Isso foi dito no final de Seu trajeto terrestre. No começo,
quando ainda era criança, disse aos Seus pais: «Não sabíeis que me
cumpria estar na casa de meu Pai?» (Lc 2:49). Nosso Senhor fala de Si
mesmo, e faz-se referência a Ele, como enviado ao mundo. Ele diz que
assim como o Pai O havia enviado ao mundo, que assim também Ele
tinha enviado a Seus discípulos ao mundo (Jo 17:18). «Vindo, porém, a
plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher» (Gl 4:4).
«Deus enviou seu Filho unigênito ao mundo» (1Jo 4:9). Deus «enviou o
seu Filho como propiciação pelos nossos pecados» (v. 10).
Por isso, é claro que Cristo veio para efetuar uma obra, que Ele foi
enviado pelo Pai para cumprir um plano, ou um desígnio preconcebido.
Não está menos claro que o Pai fez promessas especiais ao Filho, que
dependiam do cumprimento da obra que Lhe tinha sido atribuída. Isto
pode parecer um modo antropológico de descrição para uma transação
entre as pessoas da adorável Trindade. Mas deve ser recebido como uma
verdade substancial. O Pai deu ao Filho uma obra, e Lhe prometeu uma
recompensa quando fosse levada a cabo. A transação, por isso, teve a
natureza de uma aliança. O Filho assumiu uma obrigação de realizar a
obra que lhe tinha sido atribuída; e o Pai assumiu a obrigação de Lhe
conceder a recompensa estipulada. A infinitude de Deus não impede que
estas coisas sejam possíveis.
Como a exposição da obra de Cristo na redenção do homem
constitui uma grande parte da tarefa do teólogo, tudo o que é apropriado
nesta seção é uma simples referência às declarações escriturísticas a
respeito desta questão.
A obra atribuída ao Redentor.
(1) Devia assumir nossa natureza, humilhando-se a Si mesmo ao
nascer de uma mulher e ao ser achado como homem. Devia ser uma
verdadeira encarnação, não uma mera teofania como sucedeu em
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
484
repetidas ocasiões na velha dispensação. Devia fazer-se carne; tomar
carne e corpo; ser osso de nossos ossos e carne de nossa carne, feito em
tudo semelhante a Seus irmãos, excluindo o pecado, para que pudesse ter
compaixão de nossas fraquezas, e poder simpatizar com os que são
tentados, tendo sido Ele também tentado. (2) Devia ser feito sob a lei,
assumindo voluntariamente o cumprimento de toda justiça pela
obediência da lei de Deus perfeitamente em todas as formas em que
tinha sido feito obrigatória para o homem. (3) Devia levar nossos
pecados, ser maldição por nós, oferecendo-Se a Si mesmo como
sacrifício, ou propiciação a Deus em expiação pelos pecados dos
homens. Isso envolveu toda a Sua vida de humilhação e de dor e
sofrimentos, e Sua ignominiosa morte na cruz, onde o Pai ocultou dEle o
rosto. O que teria que fazer após isso pertence à Sua exaltação e
recompensa.
As promessas feitas ao Redentor.
Esta foi, em termos gerais, a obra que o Filho de Deus Se
comprometeu a cumprir. As promessas do Pai ao Filho condicionadas ao
cumprimento desta obra eram: (1) Que Lhe prepararia um corpo, um
tabernáculo apropriado para Ele, formado como foi o de Adão pela ação
imediata de Deus, incontaminado e sem mancha nem mácula. (2) Que
Ele Lhe daria o Espírito sem medida, para que toda Sua natureza humana
ficasse cheia de graça e fortaleza, e tão adornada pela beleza da
santidade que fosse todo ele atraente. (3) Que estaria sempre à Sua
direita para sustentá-Lo e confortá-Lo nas horas mais tenebrosas de
conflito com os poderes das trevas, e que finalmente esmagaria a Satanás
debaixo de Seus pés. (4) Que O livraria do poder da morte, e O exaltaria
à Sua direita no céu, e que Lhe seria dado todo o poder nos céus e na
terra. (5) Que Ele, o Teantropo e cabeça da Igreja, teria o Espírito para
enviar a quem Ele quisesse, para renovar os seus corações, para lhes dar
satisfação e consolo, e para qualificá-los para o serviço em Seu reino. (6)
Que todos os que o Pai Lhe desse viriam a Ele, e seriam por Ele
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
485
guardados, de maneira que nenhum deles se perderia. (7) Que uma
multidão que ninguém pode contar seria assim feita partícipe de Sua
redenção, e que finalmente o reino do Messias abrangeria todas as
nações da terra. (8) Que por meio de Cristo, nEle, e em Sua Igreja
redimida, far-se-ia a mais sublime manifestação das perfeições divinas a
todas as ordens de santas inteligências por toda a eternidade. O Filho de
Deus verá assim o trabalho de Sua alma, e ficará satisfeito.
§ 5. A Aliança da graça.
Em virtude do que o Filho de Deus concordou realizar por meio da
aliança, e do que realmente realizou na plenitude do tempo, em
conformidade com as estipulações da aliança com o Pai, seguem-se duas
coisas: Primeiro, a salvação é oferecida a todos os homens sob a
condição da fé em Cristo. Nosso Senhor ordenou a Seus discípulos que
fossem a todo o mundo e que pregassem o evangelho a toda a criatura.
Entretanto, o evangelho é a oferta de salvação com base nas condições
da aliança da graça. Neste sentido, a aliança da graça se estende a toda a
humanidade. E por isso, Turretino 301 diz: “Foedus hoc gratiæ est pactum
gratuitum inter Deum offensum et hominem offendentem in Christo
initum, in quo Deus homini gratis propter Christum remissionem
peccatorum et salutem pollicetur, homo vero eadem gratia fretus
pollicetur fidem et obedientiam.” E a Confissão de Westminster diz: 302
«Ao o homem ter-se feito por sua queda, incapaz da vida por aquela
aliança [isto é, pela aliança das obras], o Senhor teve por bem fazer uma
segunda aliança, usualmente chamada aliança da graça, aliança pela qual
oferece livremente aos pecadores [e a todos os pecadores] vida e
salvação por Jesus Cristo, demandando deles fé nEle, para que possam
ser salvos, e prometendo dar Seu Espírito a todos os que estão destinados
301
302
XII. ii. 5, edit. Edinburgh, 1847, vol. ii. p. 156.
Cap. VII. § 3.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
486
à vida eterna, para capacitá-los a crer.» Assim, se isto fosse tudo o que
significassem aqueles que fazem com que as partes da aliança da graça
sejam Deus e a humanidade em geral e a toda a humanidade igualmente,
não haveria objeção à doutrina. Porque é indubitavelmente certo que
Deus oferece a todos e a cada um a vida eterna condicionada à fé em
Jesus Cristo. Mas como é não menos verdadeiro que todo o esquema da
redenção tem uma referência especial àqueles que são dados pelo Pai ao
Filho, e dos quais nosso Senhor diz: «Todo aquele que o Pai me dá, esse
virá a mim; e o que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora» (Jo
6:37), disso se segue, em segundo lugar, pela natureza da aliança entre o
Pai e o Filho, que a aliança da graça tem uma especial referência aos
escolhidos. A eles Deus prometeu dar Seu Espírito para que creiam; e só
a pertencem todas as promessas feitas aos crentes. Os que ignoram a
distinção entre as alianças da redenção e da graça, misturando a última
com a primeira, descrevem naturalmente as partes da aliança como Deus
e Cristo como cabeça e representante de Seu próprio povo. E por isso, a
humanidade como tal não é uma parte em sentido algum. Tudo o que é
importante é que adotemos aquela descrição que inclua os vários fatos
reconhecidos nas Escrituras. É um destes fatos que a salvação se oferece
a todos os homens com a condição da fé em Cristo. E, portanto, nessa
medida, ou, num sentido que é responsável por esse fato, a aliança da
graça é feita com todos os homens. O grande pecado dos que ouvem o
evangelho é que recusam aceitar esta aliança, e que por isso se situam
fora de seu âmbito.
Cristo como Mediador da Aliança.
Como Cristo é uma parte da aliança da redenção, também é
constantemente apresentado como o mediador da aliança da graça, e não
só em sentido de um internuncius, como Moisés foi mediador entre Deus
e o povo de Israel, mas no sentido: (1) De que foi por Sua intervenção e
só com base no que Ele fez, ou prometeu fazer, que Deus entrou nesta
nova aliança com os homens caídos. E, (2) no sentido de uma garantia.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
487
Ele garante o cumprimento de todas as promessas e condições da
aliança. Seu sangue foi o sangue da aliança. Isto é, Sua morte teve todos
os efeitos de um sacrifício federal, não só vinculando as partes do
contrato, mas também assegurando o cumprimento de todas as suas
estipulações. Por isso, é chamado não só Μεσίτης - Mesites, mas
também Ἔγγυος - Eguos (Hb 7:22), um patrocinador, ou fiador. Ao
cumprir as condições das quais dependiam as promessas da aliança da
redenção, a veracidade e a justiça de Deus ficam comprometidas para
assegurar a salvação de Seu povo; e isto assegura a fidelidade de Seu
povo. De maneira que Deus responde tanto por Deus como pelo homem.
Sua obra assegura os dons da graça de Deus, e a perseverança de Seu
povo na fé e na obediência. Por isso, Ele é, em todos os sentidos, nossa
salvação.
A condição da Aliança.
A condição da aliança da graça, pelo que respeita aos adultos, é a fé
em Cristo. Isto é, a fim de participar nos benefícios desta aliança temos
que receber o Senhor Jesus Cristo como o Filho de Deus, em quem e por
causa de quem se outorgam Suas bênçãos aos filhos dos homens. Até
que não creiamos assim, somos estranhos e alheios à aliança da
promessa, sem Deus e sem Cristo. Temos que assentir a esta aliança,
renunciando a qualquer outro método de salvação, e consentindo em ser
salvos com base nos termos que nos propõe, antes de sermos partícipes
de seus benefícios. A palavra «condição», entretanto, emprega-se em
dois sentidos. Às vezes significa a consideração meritória com base na
qual se outorgam certos benefícios. Neste sentido, a condição da aliança
originalmente concertada com Adão foi a obediência perfeita. Se ele
tivesse retido sua integridade, teria merecido a bênção prometida. Porque
para aquele que trabalha, a recompensa não é graça, mas sim dívida. Da
mesma maneira, a obra de Cristo é a condição da aliança da redenção.
Foi a base meritória, estabelecendo um fundamento com justiça para o
cumprimento das promessas que o Pai Lhe fez. Mas em outros casos, por
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
488
condição simplesmente nos referimos a um sine qua non. Uma bênção
pode estar prometida sob a condição que seja pedida; ou que haja
disposição ao recebê-la. Não há mérito em pedir, nem mérito na
disposição a receber, que é a base de que se dê o dom. Continua sendo
um dom gratuito; mas entretanto, está condicionado ao ato de pedir. É
neste último sentido que a fé é a condição da aliança da graça. Não há
mérito em crer. É só o ato de receber um favor oferecido. Em todo caso,
a necessidade é igualmente absoluta. Sem a obra de Cristo não teria
havido salvação; e sem fé não há salvação. Aquele que crê no Filho, tem
a vida eterna. Aquele que não crê, não verá a vida, mas a ira de Deus
permanece sobre ele.
As promessas da aliança.
As promessas da aliança estão todas incluídas na fórmula inclusiva,
que aparece tão frequentemente nas Escrituras: «Eu serei o vosso Deus, e
vós sereis o meu povo.» Isto envolve a total restauração de nossa relação
normal com Deus. Fica eliminada toda base de alienação, toda barreira à
comunhão. Ele se comunica em Sua plenitude com o Seu povo; e eles se
tornam Seus mediante uma total conformidade com Sua vontade e
devoção ao Seu serviço, e são os objetos especiais de Seu favor.
Diz-se de Deus que é nosso Deus não apenas porque Ele é o Deus a
quem reconhecemos e a quem professamos adorar e obedecer, como Ele
era o Deus dos hebreus em distinção dos gentios que não reconheciam
sua existência nem professavam ser seus adoradores; mas Ele é nosso
Deus, – nossa porção infinita; a fonte para nós de tudo o que é Deus para
aqueles que são os objetos de Seu amor. Suas perfeições são-nos
reveladas como o mais sublime conhecimento; todas elas são-nos
comprometidas para nossa proteção, bem-aventurança e glória. O fato de
que Ele seja nosso Deus implica também que Ele nos assegura de Seu
amor, e que nos admite à comunhão Consigo mesmo. Porquanto Seu
favor é vida, e Sua misericórdia melhor que a vida; porquanto a visão de
Deus, e o gozo de Seu amor e a comunhão com Ele nos asseguram a
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
489
mais sublime exaltação e beatificação possíveis de Suas criaturas, está
claro que a promessa de ser nosso Deus, no sentido escriturístico do
termo, inclui todo o bem concebível e possível.
Quando se diz que temos que ser Seu povo, significa-se com isso:
(1) Que somos Sua peculiar possessão. Seus deleites são para os filhos
dos homens. Dentre as várias ordens de criaturas racionais, Ele escolheu
ao homem para que seja o objeto especial de Seu favor, e o meio especial
através do qual e por meio de quem manifestar Sua glória. E dentre a
massa de homens caídos Ele escolheu, por Seu beneplácito, uma
multidão inumerável para que sejam Sua herança, como Ele condescende
a chamá-los; sobre eles Ele derrama a plenitude de Sua graça, e lhes
revela Sua glória para admiração de todas as santas inteligências. (2)
Que sendo assim escolhidos para o especial amor de Deus e para a mais
alta manifestação da glória, são em todas as coisas feitos aptos para este
sublime destino. São justificados, santificados e glorificados. São feitos
perfeitamente conformes à Sua imagem, dedicados ao Seu serviço, e
obedientes à Sua vontade.
§ 6. A identidade da Aliança da Graça sob todas as
Dispensações.
Por isto se significa que o plano de salvação foi o mesmo sob todas
as dispensações, a Patriarcal, a Mosaica e a Cristã. A respeito desta
questão prevaleceu uma grande diversidade de opiniões, e ainda mais
maneiras de expô-la. Os socinianos dizem que sob a antiga economia
não havia promessa de vida eterna; e que a condição da salvação não era
a fé em Cristo. Os Remonstrantes admitiam que os patriarcas foram
salvos, e que foram salvos por meio de Cristo, isto é, em virtude da obra
que o Redentor ia cumprir; mas também questionavam se foi dada
alguma promessa direta de vida eterna no Antigo Testamento, ou se a fé
no Redentor era a condição da aceitação para com Deus. Sobre este tema
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
490
303
a respeito da
a “Apology for the Confession of the Remonstrants” diz
fé em Jesus Cristo: “Et certum esse locum nullum esse unde appareat
fidem istam sub V. T. præceptam fuisse, aut viguisse.” E Episcópio 304
diz: “Ex his facile colligere est, quid statuendum sit de quæstione illa
famosa, An vitæ æternæ promissio etiam in Veteri foedere locum
habuerit, vel potius in foedere ipso comprehensa fuerit. Si enim speciales
promissiones in foedere ipso veteri expressæ videantur, fatendum est,
nullam vitæ æternæ promissionem disertam in illis reperiri. Si quis
contra sentiat, ejus est locum dare ubi illa exstat: quod puto impossibile
esse. Sed vero, si promissiones Dei generales videantur, fatendum ex
altera parte est, eas tales esse, ut promissio vitæ æternæ non subesse
tantum videatur, sed ex Dei intentione eam eis subfuisse etiam
credidebeat.”
Os Batistas, especialmente os da época da Reforma, não sustentam
a doutrina comum a respeito deste tema. Os Anabatistas não só se
referiram em termos muito menos apreciativos à antiga dispensação e ao
estado dos judeus naquela dispensação, mas era necessário para seu
peculiar sistema que negassem que a aliança feita com Abraão incluía a
aliança da graça. Os batistas mantêm que as crianças não podem ser
membros da igreja, e que o sinal de tal membresia não pode ser
administrada corretamente a ninguém que não tenha conhecimento nem
fé. Mas não se pode negar que as crianças foram incluídas na aliança
feita com Abraão, e que eles recebiam a circuncisão, seu selo e sinal. Por
isso, é essencial para a teoria deles de que a aliança Abraâmica seja
considerada como uma mera aliança nacional totalmente distinta da
aliança da graça.
Os romanistas, ao supor que a graça salvadora é comunicada
mediante os sacramentos, e vendo que a massa dos antigos israelitas, ao
menos em muitas ocasiões, foi rejeitada por Deus, apesar da participação
303
304
Edit. Leyden, 1630, p. 91.
Institutiones Theologicæ, III. iv. 1; Works, Amsterdam, 1650, vol. i. p. 156.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
491
dos mesmos nos sacramentos então assinalados, foram empurrados a
supor uma diferença radical entre os sacramentos do Antigo Testamento
e os do Novo. Os primeiros só significavam a graça, os segundos
realmente a comunicam. Disso segue-se que os que viviam antes da
instituição dos sacramentos cristãos não foram realmente salvos. Seus
pecados não eram remetidos, mas sim pretermitidos, passados por alto.
Na morte não eram admitidos no céu, mas sim levados a um lugar e
estado chamado limbus patrum, onde ficavam numa condição negativa
até a vinda de Cristo, que a derrama após Sua morte desceu aos infernos,
o sheol, para sua libertação.
Em oposição a estas posturas diferentes, a doutrina comum da
Igreja sempre foi que o plano de salvação foi o mesmo desde o princípio.
Há a mesma promessa de libertação dos males da apostasia, o mesmo
Redentor, a mesma condição necessária para a participação nas bênçãos
da redenção, e a mesma salvação completa para todos os que abracem as
ofertas da misericórdia divina.
Ao determinar o grau de conhecimento possuído pelo antigo povo
de Deus, não devemos ser governados por nossa própria capacidade de
descobrir nas Escrituras do Antigo Testamento as doutrinas da graça.
Não podemos saber que quantidade de instrução suplementar recebeu o
povo da parte dos profetas, nem que grau de iluminação foi concedido.
Entretanto, fica claro pelos escritos do Novo Testamento que o
conhecimento do plano da salvação existente entre os judeus para o
tempo do advento era muito maior que aquele que nos pareceria possível
pela mera leitura do Antigo Testamento. Eles não só esperavam em geral
e com confiança o Messias, que devia ser um mestre além de um
libertador, mas que os judeus devotos esperavam a salvação de Israel.
Falavam com tanta familiaridade do Espírito Santo e do batismo que Ele
ia realizar como nós os cristãos fazemos hoje. É principalmente com
base nas declarações dos escritores do Novo Testamento e de suas
exposições das antigas Escrituras que aprendemos a extensão da verdade
revelada aos que viveram antes da vinda de Cristo.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
492
Assim, com base nas Escrituras como um todo, do Novo
Testamento, e do Antigo interpretado por uma autoridade infalível pelo
Novo, aprendemos que o plano da salvação sempre foi um e o mesmo,
tendo a mesma promessa, o mesmo Salvador, a mesma condição e a
mesma salvação.
A promessa da vida eterna dada antes do Advento.
Fica claro que a promessa foi a mesma para os que viveram antes
do advento que para nós. Imediatamente depois da Queda, Deus deu a
Adão a promessa da redenção. Aquela promessa estava contida na
predição de que a semente da mulher esmagaria a cabeça da serpente.
Nesta passagem fica claro que a serpente é Satanás. Ele foi o tentador, e
é sobre ele que estava disposto que caísse a maldição pronunciada. O
esmagamento de sua cabeça significa uma ferida mortal, uma derrota
absoluta. O príncipe das trevas, que tinha triunfado sobre nossos
primeiros pais, seria derrubado, e sua vitória lhe seria arrebatada. Esta
demolição seria levada a cabo pela semente da mulher. Esta frase
poderia significar a posteridade da mulher, e neste sentido comunicaria
uma importante verdade: o homem ia triunfar sobre Satanás. Mas é
evidente que tinha uma referência mais específica. Refere-se a um
indivíduo que, num sentido peculiar, seria a semente da mulher. Isto fica
claro pela analogia da profecia. Quando foi prometido a Abraão que em
sua semente seriam benditas todas as nações da terra, seria muito natural
entender sua posteridade como sua semente, o povo hebreu. Mas
sabemos com certeza, pela declaração direta do Apóstolo (Gl 3:10), que
era um indivíduo o designado, isto é, Cristo. Assim, quando Isaías
predisse que «o servo do Senhor» ia sofrer, triunfar e ser a fonte de
bênçãos para todo o povo, muitos entenderam, e muitos seguem
entendendo ainda, como referindo-se à nação judaica, porque Deus com
frequência refere-se ao Seu servo Israel. Entretanto, o servo designado
era o Messias, e o povo não estava mais incluído na predição que quando
se diz que «a salvação vem dos judeus». Em todos estes e outros casos
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
493
similares temos dois guias quanto ao verdadeiro significado que o
Espírito quer comunicar. A primeira guia encontra-se nas posteriores
declarações explicativas da Escritura e a outra no cumprimento destas
predições. Sabemos pelo acontecimento quem é a semente da mulher;
quem é a semente de Abraão; quem é Siló; quem é o Filho de Davi;
quem é o Servo do Senhor: porque em Cristo e por Cristo se cumpriu
tudo o que foi predito destes. A semente da mulher devia esmagar a
cabeça da serpente. Mas foi Cristo, e só Cristo, quem veio ao mundo
para destruir as obras do Diabo. E este, tal como Ele disse foi o propósito
de Sua missão. Satanás era o homem forte armado a quem Cristo veio
desapropriar e livrar dele aqueles que estavam cativos à vontade dele.
Temos então a promessa da redenção feita a nossos primeiros pais
imediatamente depois da Queda, que eles comunicariam a seus
descendentes para mantê-la em lembrança constante. Esta promessa foi
repetida, e de vez em quando ampliada, até que finalmente veio o
Redentor. Nestas predições adicionais e mais detalhadas, expõe-se a
natureza desta redenção com uma clareza sempre crescente. Esta
promessa geral incluía muitas promessas específicas. Assim achamos a
Deus prometendo a Seu povo fiel o perdão de seus pecados, a
restauração ao Seu favor, a renovação de seus corações, e o dom de Seu
Espírito. Não se oferecem na dispensação cristã bênçãos mais sublimes
que estas. E após estas bênçãos o antigo povo de Deus anelou e orou. O
Antigo Testamento, e especialmente os Salmos e outras partes
devocionais das Escrituras antigas, está cheio do registro de tais orações
e anelos. Nada pode ser mais claro que o perdão e o favor de Deus foram
prometidos aos santos antes da vinda de Cristo, e que estas são as
bênçãos que agora nos são prometidas.
O Apóstolo nos ensina em Hebreus 11 que as esperanças dos
patriarcas não estavam limitadas à vida presente, mas antes, estavam
fixadas num estado futuro de existência. Por isso, um estado assim deve
ter-lhes sido revelado, e deve ter-lhes sido prometida a vida eterna.
Assim, ele diz (Hb 11:10) que Abraão «aguardava a cidade que tem
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
494
fundamentos, da qual Deus é o arquiteto e edificador». Que isto é uma
menção do céu fica claro do v. 16, onde diz-se: «Mas, agora, aspiram a
uma pátria superior, isto é, celestial. Por isso, Deus não se envergonha
deles, de ser chamado o seu Deus, porquanto lhes preparou uma cidade.»
Diz-nos que estes antigos dignitários sacrificaram com prazer todo o
bem terrestre, e inclusive a própria vida, «não aceitando o resgate, a fim
de obter uma melhor ressurreição.» O fato de que esta era a fé comum
dos judeus muito antes da vinda de Cristo faz-se evidente em 2Mac 7:9,
onde o moribundo mártir diz a seu atormentador: «Tu, como uma fúria,
arrebata-nos desta vida presente, mas o lei do mundo nos levantará a nós,
que morremos por suas leis, a vida eterna.» Nosso Senhor nos ensina que
Abraão, Isaque e Jacó ainda vivem; e que o lugar em que está Abraão é o
céu. Seu seio era o lugar de repouso dos fiéis.
Cristo, o Redentor, sob ambas as dispensações.
Esta é uma exibição muito imperfeita da evidência que as Escrituras
nos dão de que a promessa da redenção, e de tudo aquilo incluído
naquela redenção, o perdão, a santificação, o favor de Deus e a vida
eterna, deu-se ao povo de Deus desde o princípio. Não é menos claro que
o Redentor é o mesmo sob todas as dispensações. Aquele que foi predito
como a semente da mulher, como a semente de Abraão, o Filho de Davi,
o Renovo, o Servo do Senhor, o Príncipe da Paz, é nosso Senhor, Jesus
Cristo, o Filho de Deus, Deus manifestado em carne. Ele, por isso, foi
desde o princípio exposto como a esperança do mundo, o SALVATOR
HOMINUM. Ele foi exposto em todos os Seus ofícios, como Profeta,
Sacerdote e Rei. Sua obra foi descrita como um sacrifício, assim como
uma redenção. Tudo isto é tão evidente, e tão geralmente admitido, para
fazer desnecessária a citação de textos de prova. É suficiente remeter-se
às declarações gerais do Novo Testamento a esse respeito. Nosso Senhor
mandou os judeus que esquadrinhassem suas Escrituras, porque elas
davam testemunho dEle. Ele disse que Moisés e os profetas tinham
escrito a respeito dEle. Começando por Moisés e por todos os Profetas,
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
495
expôs aos discípulos em todas as Escrituras o referente a Ele. Os
Apóstolos, quando começaram a pregar o Evangelho, não só
demonstravam em todas as partes pelas Escrituras que Jesus era o Cristo,
mas também que se referiam de contínuo a elas em apoio de tudo o que
eles ensinavam a respeito de Sua pessoa e de Sua obra. É com base no
Antigo Testamento que demonstram Sua divindade; Sua encarnação; a
natureza sacrifical de Sua morte; que Ele foi verdadeiramente um
Sacerdote para operar uma reconciliação pelo povo, assim como Profeta
e Rei; e que Ele devia morrer, ressuscitar ao terceiro dia, subir aos céus,
e ser investido de uma potestade absoluta sobre toda a terra, e sobre
todos os ordens de seres criados. Não há uma doutrina a respeito de
Cristo que se ensine no Novo Testamento, que os Apóstolos não
afirmem como revelada em anteriores dispensações. Por isso, eles
declaram de maneira explícita que foi por Ele e pela eficácia de Sua
morte que os homens foram salvos antes, assim como depois, de Sua
vinda. O Apóstolo Paulo diz (Rm 3:25) que Cristo foi posto como
propiciação para a remissão de pecados, não só ἐν τῷ νῦν καιρῷ - en to
nun kairo, mas também dos pecados cometidos antes do presente,
durante a paciência de Deus. E em Hb 9:15 se declara de maneira ainda
mais explícita que Ele morreu para perdão dos pecados sob a primeira
aliança. Ele, portanto, como se diz em Ap 13:8, foi o Cordeiro morto
desde a fundação do mundo. Esta é ao menos a interpretação comum e
mais natural da passagem.
Uma revelação assim do Messias foi indubitavelmente dada no
Antigo Testamento para voltar olhos de toda a nação judaica em
esperança e fé. O que disseram os dois discípulos no caminho a Emaús
[Lc 24:21]: «Nós esperávamos que fosse ele quem havia de redimir a
Israel», revela qual era a expectativa geral e o desejo do povo. Paulo fala
repetidas vezes do Messias como a esperança de Israel. A promessa de
redenção por meio de Cristo, ele declarou ser o grande objeto da
esperança do povo. Quando foi feito comparecer perante os tribunais dos
judeus, e perante Agripa, declarou constantemente que ao pregar a Cristo
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
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e a ressurreição, não se tinha afastado da religião de seus pais, mas sim
que se aferrava a ela, enquanto que os seus inimigos se afastaram da
mesma. Diz ele: «E, agora, estou sendo julgado por causa da esperança
da promessa que por Deus foi feita a nossos pais» (At 26:6). Novamente
diz aos judeus, em Roma, At 28:20: «Porque é pela esperança de Israel
que estou preso com esta cadeia.» Veja-se também At 23:6; 24:15. Em
Ef 1:12 ele designa os judeus como οἱ προηλπικότες ἐν τῷ Χριστῷ - hoi
proelpikotes en to Cristo, aqueles que esperavam no Messias antes de
Sua vinda. Em At 13:27 diz que os governantes dos judeus rejeitaram a
Cristo porque não conheceram «os ensinos dos profetas que se lêem
todos os sábados», e que eles «quando o condenaram, cumpriram as
profecias». NEle era a «promessa feita a nossos pais», diz ele (vv. 32,
33), da qual diz: «Deus a cumpriu plenamente a nós, seus filhos,
ressuscitando a Jesus», o longamente esperado Salvador. É desnecessário
dar voltas a esta questão, porque a doutrina de um Messias pessoal que
devia redimir o povo de Deus não só impregna o AT, mas também em
todas as partes no Novo Testamento é exposta como a grande promessa
cumprida no advento e na obra de nosso Senhor Jesus Cristo.
Desde o princípio a fé é a condição da salvação.
Assim como a mesma promessa foi feita aos que viveram antes da
vinda que a que se nos faz agora a nós no Evangelho, assim como lhes
foi revelado o mesmo Redentor que nos é apresentado a nós como o
objeto da fé, segue-se necessariamente que a condição, ou os termos de
salvação foram os mesmos então como agora. Não se demandavam uma
mera fé ou confiança em Deus, nem simplesmente uma piedade, mas sim
fé no Redentor prometido, ou fé na promessa da redenção por meio do
Messias.
Tudo isto fica claro não só com base nas considerações recémmencionadas, mas também (1) Pelo fato de que o Apóstolo ensina que a
fé, não as obras, foi antes de Cristo, assim como depois dEle a condição
da salvação. E isto não só o afirma ele em sua Epístola aos Romanos,
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
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mas também o demonstra. Ele argui que pela própria natureza da
questão, a justificação dos pecadores mediante as obras é uma
contradição. Se são pecadores, estão sob condenação por suas obras, e
por isso não podem ser justificados por meio das mesmas. Além disso,
demonstra que o Antigo Testamento fala em todo lugar de um perdão
gratuito e da aceitação dos homens da parte de Deus; mas se é gratuita
não pode ser meritória. Argui ele ademais com base no caso de Abraão,
que, segundo a declaração expressa das Escrituras, foi justificado pela fé;
e ele cita dos antigos profetas o grande princípio, verdade então como
agora, que “o justo viverá pela fé”. (2) Em segundo lugar, ele prova que
a fé designada era fé numa promessa, e não uma mera piedade geral ou
confiança em Deus. Diz ele de Abraão que «não duvidou, por
incredulidade, da promessa de Deus; mas, pela fé, se fortaleceu, dando
glória a Deus, estando plenamente convicto de que ele era poderoso para
cumprir o que prometera» (Rm 4:20, 21). (3) O Apóstolo demonstra que
a promessa específica, que era objeto da fé do patriarca, era a promessa
da redenção por meio de Cristo. Eles deviam crer nesta promessa; e o
verdadeiro povo de Deus creu nela. A massa do povo confundiu a
natureza da redenção que tinha sido prometida; mas inclusive no caso
deles era a promessa da redenção a que era o objeto de sua fé. Os
ensinados pelo Espírito sabiam que se tratava da redenção da culpa e do
poder do pecado e do conseguinte afastamento de Deus. Em Gl 3:14 o
Apóstolo diz, portanto, que a bênção prometida a Abraão veio sobre os
gentios. Portanto, aquela bênção foi aquela que por meio do Evangelho é
agora oferecida a todos os homens.
Não só por estas declarações explícitas de que se demandava desde
o princípio a fé no Redentor prometido, mas também com base no fato
reconhecido de que o Antigo Testamento está repleto da doutrina da
redenção por meio do Messias, segue-se que aqueles que receberam a
religião do Antigo Testamento receberam tal doutrina, exercendo a fé na
promessa de Deus a respeito de Seu Filho. A Epístola aos Hebreus tem
em grande parte o desígnio de mostrar que a totalidade do Antigo
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
498
Testamento era um esboço do Novo, e que perde todo o seu valor e
sentido se ignorar-se sua referência a Cristo. Por isso, a negação de que a
fé dos santos do Antigo Testamento era uma fé no Messias e sua
redenção, é negar que tinham algum conhecimento do sentido das
revelações e das promessas que eles haviam recebido.
Paulo diz em Rm 3:21 que o método de salvação revelado no
Evangelho tinha sido já revelado na lei e nos profetas, e seu propósito
concreto, em Gl 3:13-28; é demonstrar que a aliança sob a qual vivemos
e segundo cujos termos devemos ser salvos, é a aliança idêntica feita
com Abraão, em que se fez a promessa de redenção com base na
condição da fé naquele em quem deviam ser benditas todas as nações da
terra. Este é uma aliança anterior à lei de Moisés, aliança que aquela lei
não podia pôr de lado nem invalidar.
Sendo a aliança da graça, ou plano de salvação, o mesmo em todos
os seus elementos desde o princípio, segue-se, primeiro, em oposição aos
Anabatistas, que o povo de Deus antes de Cristo constituía uma Igreja, e
que aquela Igreja foi uma e a mesma sob todas as dispensações. Sempre
teve a mesma promessa, o mesmo Redentor, e a mesma condição para a
membresia, isto é, a fé no Filho de Deus como Salvador do mundo.
Das mesmas premissas segue-se, em oposição aos Romanistas, que
a salvação daqueles do povo de Deus que morreram antes da vinda de
Cristo, foi completa. Tinham sido verdadeiramente perdoados:
santificados e, em sua morte, admitidos àquele estado ao que são agora
recebidos aqueles que morrem na fé cristã. Isto fica confirmado pelo que
ensinam Cristo e os Apóstolos. A salvação que nos é prometida é aquela
em que já entraram os santos do Antigo Testamento. Os crentes gentios
hão de sentar-se com Abraão, Isaque e Jacó. O seio de Abraão era o
lugar de repouso para todos os fiéis. Tudo o que afirma Paulo dos crentes
sob o evangelho é que são filhos de Abraão e partícipes da herança. Se
assim, então tem que ser falsa toda a teoria que pressupõe que a graça e a
salvação são comunicadas só mediante os sacramentos cristãos.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
§ 7. Diferentes Dispensações.
499
A primeira, de Adão a Abraão.
Embora a aliança da graça foi sempre a mesma, as dispensação
daquela aliança mudaram. A primeira dispensação se estendeu desde
Adão até Abraão. Temos tão poucos registros deste período que não
podemos determinar até que ponto tinha sido revelada a verdade, nem
que medidas se adotaram para sua preservação. Tudo o que sabemos é
que se tinham dado as promessas originais a respeito da semente da
mulher, como o Redentor de nossa raça; e que tinha sido instituído o
culto a Deus mediante sacrifícios. O fato de que os sacrifícios eram uma
instituição divina, e designada para ensinar o método da salvação, podese inferir: (1) Pelo fato de que é o método que a comum consciência dos
homens os levou a adotar em todas as partes. Isto é o que demandava sua
relação com Deus como pecadores. É ditame da consciência que a culpa
demanda expiação, e que a expiação é feita com derramamento de
sangue. Assim, sendo que os sacrifícios não são uma instituição
arbitrária, mas que tem o seu fundamento em nossa verdadeira relação
com Deus como pecadores, podemos inferir que era por este mandato,
direto ou direto, que se ofereciam tais sacrifícios. (2) Isto pode também
inferir-se pela aprovação que dá Deus aos mesmos, adotando-os e
incorporando-os nas observâncias religiosas subsequentemente
ordenadas. (3) O fato de que o homem ia ser salvo pelo sacrifício de
Cristo, e que este fosse o grande acontecimento ao que se referem as
instituições de anteriores dispensações, esclarece que esta referência
estava dada por desígnio, e que estava baseada na instituição divina.
A segunda dispensação.
A segunda dispensação se estendeu desde Abraão até Moisés.
Distingue-se da anterior: (1) Pela seleção dos descendentes de Abraão
como o povo peculiar de Deus. Foram escolhidos com o fim de preservar
o conhecimento da verdadeira religião em meio da geral apostasia da
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
500
humanidade. Com este fim foram-lhes dadas revelações especiais, e
Deus fez aliança com eles, prometendo que Ele seria o seu Deus, e que
eles seriam o Seu povo. (2) Além de recolher assim a Sua Igreja fora do
mundo, e fazer de seus membros um povo peculiar, distinto pela
circuncisão dentre os gentios ao redor deles, a promessa da redenção foi
feita mais concreta. O Redentor seria da semente de Abraão. Seria uma
pessoa. A salvação que Ele ia realizar pertenceria a todas as nações. (3)
Posteriormente deu-se a conhecer que o Libertador seria da tribo de
Judá.
A terceira dispensação.
A terceira dispensação desta aliança foi desde Moisés até Cristo.
Tudo o que pertencia aos anteriores períodos foi adotado e incluído
nesta. Ordenaram-se uma multidão de novas ordenanças a respeito de
conduta, culto e religião. Introduziram-se um sacerdócio e um
complicado sistema de sacrifícios. As promessas foram feitas mais
concretas, expondo de maneira mais clara, mediante as instruções dos
profetas, a pessoa e a obra do vindouro Redentor como Profeta,
Sacerdote e Rei de Seu povo. Assim foram revelados com clareza cada
vez maior a natureza da redenção que Ele ia efetuar, e do reino que Ele
ia estabelecer. Temos a autoridade direta do Novo Testamento para crer
que a aliança da graça, ou plano de salvação, subjazia assim a todas as
instituições do período Mosaico, e que seu principal desígnio era ensinar
por meio de tipos e de símbolos o que agora se ensina de maneira
explícita mediante o evangelho. Moisés, é-nos dito (Hb 3:5), foi fiel
como servo para dar testemunho daquelas coisas que iam ser anunciadas
depois.
Além deste caráter evangélico que inquestionavelmente pertence à
Aliança Mosaica, apresenta-se em outros dois aspectos na Palavra de
Deus. Primeiro, era uma aliança nacional com o povo hebreu. Nesta
perspectiva, as partes foram Deus e o povo de Israel; a promessa foi a
segurança e prosperidade nacionais; a condição era a obediência do povo
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
501
como nação à Lei de Moisés; e o mediador foi Moisés. Neste aspecto,
era uma aliança legal. Dizia: «Faze isto, e viverás». Em segundo lugar,
continha, como sucede também com o Novo Testamento, uma
proclamação renovada da original aliança das obras. É tão certo agora
como nos dias de Adão, sempre foi certo e sempre o será, que as
criaturas racionais que obedecem com perfeição a lei de Deus são
benditas no gozo de Seu favor; como as que pecam ficam sujeitas à Sua
ira e maldição. Nosso Senhor assegurou ao jovem que foi a ele pedindo
instrução que se guardava os mandamentos viveria. E Paulo diz (Rm 2:6)
que Deus dará a cada um conforme a suas obras: tribulação e angústia
sobre toda alma humana que faz o mal; mas glória, honra e paz para todo
aquele que faz o bem. Isto surge da relação das criaturas inteligentes com
Deus. De fato, é tão somente uma formulação dos eternos e imutáveis
princípios da justiça. Se o homem rejeita ou negligencia o evangelho,
estes são os princípios, como ensina Paulo nos capítulos iniciais de sua
Epístola aos Romanos, com base nos quais será julgado. Se não quer
estar sob a graça, se não quer aceder ao método da salvação pela graça,
está necessariamente sob a lei.
Estes diferentes aspectos sob os quais se apresenta a economia
Mosaica dão conta da maneira aparentemente inconsistente em que se
apresenta no Novo Testamento: (1) Quando se contempla com relação ao
povo de Deus antes do advento, é apresentada como divina e obrigatória.
(2) Quando se contempla com relação ao estado da Igreja depois do
advento, declara-se obsoleta. Descreve-se como a coberta sem vida da
que se extraiu o núcleo vivo, a semente, como um corpo do qual partiu a
alma. (3) Quando se contempla segundo sua verdadeira pertinência e
desígnio como dispensação preparatória da aliança da graça, é
mencionada como proclamando o mesmo evangelho, o mesmo método
de salvação que aquele que pregavam os próprios apóstolos. (4) Quando
se contempla à luz sob a qual era contemplada pelos que rejeitavam o
evangelho, como um mero sistema legal, é declarada como ministério de
morte e de condenação (2Co 3:6-18). (5) E quando é contrastada com a
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
502
nova economia, a cristã, como modo diferente de revelar a mesma
aliança, é apresentada como uma estado de tutela e de servidão, muito
diferente da liberdade e do espírito filial da dispensação sob a qual
vivemos.
A dispensação do Evangelho.
A dispensação do evangelho é chamada nova com referência à
economia Mosaica, que era velha, e prestes a desvanecer-se. Distinguese da economia antiga:
1. Em que é universal, não limitada a um só povo, mas sim
designada e adaptada a todas as nações e a todas as classes de pessoas.
2. É mais espiritual, não só em que os tipos e as cerimônias do
Antigo Testamento desaparecem, mas em que a própria revelação é mais
interior e espiritual. O que tinha sido dado a conhecer de maneira
objetiva é agora escrito, em maior parte, no coração (Hb 8:8-11). É
incomparavelmente mais clara e explícita em seus ensinos.
4. É mais puramente evangélica. Inclusive o Novo Testamento
como vimos, contém um elemento legal, revela a lei ainda como uma
aliança das obras obrigatória àqueles que rejeitam o evangelho; mas no
Novo Testamento o evangelho prepondera grandemente sobre a lei,
enquanto que no Antigo Testamento a lei preponderava sobre o
evangelho.
5. A economia cristã é especialmente a dispensação do Espírito. A
grande bênção prometida antigamente, como consequência da vinda de
Cristo era o derramamento do Espírito sobre toda a carne, isto é, sobre
todas as nações e classes de pessoas. Esta era uma característica tão
distintiva do período Messiânico que o evangelista diz: «O Espírito até
aquele momento não fora dado, porque Jesus não havia sido ainda
glorificado» (Jo 7:39). Nosso Senhor prometeu que depois de Sua morte
e ascensão Ele enviaria o Consolador, o Espírito da verdade, para que
habitasse com Seu povo, para que os guiasse ao conhecimento da
verdade, e para convencer o mundo do pecado, da justiça, e do juízo
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
503
vindouro. Mandou que os Apóstolos ficassem em Jerusalém até que
tivessem recebido este poder do alto. E numa explicação dos
acontecimentos do dia de Pentecostes o Apóstolo Pedro disse: «A este
Jesus Deus ressuscitou, do que todos nós somos testemunhas. Exaltado,
pois, à destra de Deus, tendo recebido do Pai a promessa do Espírito
Santo, derramou isto que vedes e ouvis» (At 2:32, 33).
6. A antiga dispensação era temporal e preparatória; a nova é
permanente e definitiva. Ao enviar os Seus discípulos para pregar o
evangelho, e ao lhes prometer o dom do Espírito, assegurou-lhes que
estaria com eles naquela obra até o fim do mundo. Esta dispensação,
portanto, é a última antes da restauração de todas as coisas; isto é: a
última designada para a conversão dos homens e para a reunião dos
escolhidos. Depois vem o fim; a ressurreição e o juízo final. No Antigo
Testamento há frequentes indicações de outra e melhor economia, da
qual as instituições mosaicas eram meramente preparatórias. Mas não
temos intimação na Escritura de que a dispensação do Espírito tenha de
dar passagem a uma dispensação nova e melhor para a conversão das
nações. Quando o evangelho tiver sido plenamente pregado, então virá o
fim.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
CAPÍTULO III
504
A PESSOA DE CRISTO
§ 1. Considerações preliminares.
1. O fato mais misterioso e mais familiar da consciência e da
experiência é a união da alma e do corpo na constituição de nossa
natureza. Segundo a fé comum da humanidade e da Igreja, o homem é
constituído por duas substâncias distintas, alma e corpo. Por substância
significa-se aquilo que existe. É a entidade que tem propriedades,
atributos e qualidades inerentes, da qual são manifestações. Por isso,
trata-se de algo mais que de uma mera força. É algo mais que um nome
coletivo para uma certa quantidade de propriedades que aparecem
combinadas. É aquilo que persiste, e que permanece sem mudanças sob
todos os fenômenos cambiantes a que pode estar sujeito. A substância
que designamos como alma é imaterial, isto é, não tem nenhuma das
propriedades da matéria. É espiritual, isto é, tem todas as propriedades
de um espírito. É um agente consciente de si mesmo, inteligente,
voluntário. Por outro lado, a substância que chamamos corpo é material.
Isto é, tem todas as propriedades da matéria, e nenhuma das propriedades
da mente ou do espírito. Este é o primeiro fato universalmente admitido
a respeito da constituição de nossa natureza.
2. O segundo fato tem que ver com a natureza da união entre a alma
e o corpo. É (a) uma união pessoal. A alma e o corpo constituem um
homem individual, ou uma pessoa humana. Há tão somente uma
consciência. É o homem ou a pessoa quem está consciente das sensações
e dos pensamentos, dos afetos do corpo e dos atos da mente. (b) É uma
união sem mistura ou confusão. A alma continua sendo espírito, e o
corpo continua sendo matéria. O cobre e o zinco constituem uma liga de
bronze. Os elementos constitutivos perdem suas características
distintivas e produzem uma terceira substância. Não existe tal mistura na
união da alma e do corpo: Ambas as coisas permanecem distintas. Nem
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
505
há transferência de nenhuma das propriedades da uma à outra ou viceversa. Não se transfere nenhuma das propriedades da mente ao corpo,
nem se transfere nenhuma de suas propriedades do corpo à mente. (c)
Entretanto, a união não é uma mera morada, uma união de contato ou no
espaço. A alma não habita no corpo como um homem habita numa casa
ou em suas vestimentas. O corpo é parte de si mesmo, e necessário para
sua integridade como homem. Ele está em cada parte do mesmo, e é
consciente de uma ligeira alteração no estado de até o menos importante
de seus membros.
3. Em terceiro lugar, as consequências desta união da alma e do
corpo são: (a) Uma κοινωνία ἰδιωμάτων - koinonía idiomaton, ou
comunhão de atributos. Isto é, a pessoa é possuidora de todos os
atributos tanto da alma como do corpo. Podemos afirmar do homem o
que pode ser afirmado do seu corpo, e podemos afirmar dele tudo aquilo
que se possa afirmar de sua alma. Dizemos do homem que é alto ou
baixo; que está doente ou são; que é bonito ou deformado. Da mesma
maneira, podemos dizer que é judicioso, sábio, bom, benevolente ou
erudito. Seja o que for certo de qualquer elemento de sua constituição, é
verdadeiro sobre o homem. Mas o que é certo de um destes elementos
não é certo do outro. Quando o corpo fica ferido ou queimado, não é a
alma que está sujeita a estes acidentes; e quando a alma está arrependida
ou é crente, ou iluminada e informada, não é o corpo de quem se fala.
Cada coisa tem propriedades e mudanças, mas é a pessoa ou homem
quem é o sujeito de todos eles. (b) Por isso, podem-se fazer afirmações
inconsistentes ou aparentemente contraditórias a respeito da mesma
pessoa. Podemos dizer que é fraco e que é forte; que é mortal e imortal;
que é espírito e que é pó e cinzas. (c) Podemos designar o homem com
base em um elemento de sua natureza quando o que afirmamos dele é
certo só do outro elemento. Podemos chamá-lo espírito, e entretanto
dizer que está faminto e sedento. Podemos chamá-lo um verme da terra
quando falamos dele como sujeito da regeneração. Isto é, a pessoa pode
ser designada com base em quaisquer de suas duas naturezas quando o
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
506
afirmado pertence ao outro. (d) Como em virtude da união pessoal da
alma e do corpo todas as propriedades de ambas as partes são as
propriedades do homem, da mesma maneira todos os atos de ambas as
partes são os atos do homem. Alguns de nossos atos são puramente
mentais como pensar, arrepender-se e crer; alguns são puramente
corporais, como o processo da digestão, assimilação e a circulação do
sangue; alguns são mistos, como todos os atos voluntários, entre os que
se podem mencionar andar, falar, escrever. Nestes dá-se uma
concorrência ou cooperação diretas da mente e do corpo. Estas várias
classes de ações são atos humanos. É o homem que pensa; é o homem
que fala e escreve; e é o homem quem digere e assimila seus alimentos.
(e) Uma quinta consequência desta união hipostática é a exaltação do
corpo. A razão pela qual o corpo do homem e sua vida estão tão
grandemente exaltados acima dos de um animal é que estão em união
pessoal com uma alma racional e imortal. É também isto o que dá ao
corpo seu dignidade e beleza. A magnífica plumagem de uma ave, ou a
graciosa simetria do antílope, não são nada em comparação com a figura
ereta e a beleza intelectual do homem. A mente irradia do corpo, e lhe
comunica uma dignidade e um valor que não poderia ser possuído por
nenhuma configuração da matéria. Ao mesmo tempo a alma não fica
degradada por sua união com o corpo. Assim estava revestida antes da
Queda, e tem que estar revestida com um corpo em seu estado
glorificado no céu.
A união da alma e do corpo na constituição do homem é análoga à
união da natureza divina e humana na pessoa de Cristo. Não se espera
que nenhuma analogia dê resposta a todas as questões. Há neste caso
suficientes semelhanças para sustentar a fé e repreender a incredulidade.
Não há nada em um que seja mais misterioso ou inescrutável que no
outro. E como as dificuldades para a compreensão da união de duas
substâncias distintas, matéria e mente, na pessoa do homem, induziram
muitos a negar as realidades mais claras da consciência, assim as
dificuldades do mesmo tipo que acompanham a união de duas naturezas,
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
507
uma humana e a outra divina na pessoa de Cristo, levaram muitos a
rejeitar os fatos mais claros da Escritura.
§ 2. Os fatos escriturísticos a respeito da Pessoa de Cristo
Os fatos que a Bíblia ensina a respeito da pessoa de Cristo são,
primeiro, que Ele era verdadeiramente homem, isto é, que tinha uma
natureza humana perfeita ou completa. Por isso, tudo o que se pode
afirmar do homem (isto é, do homem como homem, e não do homem
como caído) pode-se afirmar de Cristo. Segundo, Ele era
verdadeiramente Deus, ou tinha uma natureza divina perfeita. Por isso,
tudo o que se pode afirmar de Deus pode-se afirmar de Cristo. Terceiro,
Ele era uma pessoa. A mesma pessoa, eu, ou Ego, que disse «tenho
sede», disse: «Antes que Abraão existisse, EU SOU.» Esta é toda a
doutrina da encarnação tal como se encontra nas Escrituras e na fé da
Igreja.
Prova da doutrina.
A prova desta doutrina inclui três classes distintas de passagens da
Escritura, ou pode-se apresentar de três formas diferentes. Primeiro, a
prova dos vários elementos da doutrina separadamente. Segundo, a
linguagem própria das Escrituras que falam de Cristo, do princípio ao
fim, às vezes como homem, às vezes como Deus; e que combinam as
duas formas de descrição, ou que passam de uma a outra com tanta
naturalidade e facilidade como o fazem quando falam do homem como
mortal e imortal, ou como corpóreo e espiritual. Terceiro, há certas
passagens da Escritura em que a doutrina da encarnação é apresentada de
maneira formal e declarada dogmaticamente.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
508
Primeiro argumento: Todos os elementos da doutrina são
ensinados separadamente.
Primeiro, as Escrituras ensinam que Cristo era verdadeiramente
homem, ou, que tinha uma natureza humana completa. Isto é, que Ele
tinha um verdadeiro corpo e uma alma racional.
Cristo tinha um verdadeiro corpo.
Por verdadeiro corpo se significa um corpo material, composto de
carne e sangue, semelhante em tudo o que é essencial aos corpos dos
homens comuns. Não era um fantasma, nem uma mera semelhança de
corpo. Tampouco foi formado de uma substância celestial ou etérea. Isto
está claro, porquanto nasceu de mulher. Foi concebido no corpo da
Virgem Maria, alimentado de sua substância de modo que foi
consubstancial com ela. Seu corpo cresceu em estatura, passando através
do processo comum de infância à idade adulta. Esteve sujeito a tudo o
que afeta um corpo humano. Esteve sujeito à dor, ao prazer, à fome, à
sede, à fadiga, ao sofrimento, e à morte. Podia ser visto, sentido e tocado.
As Escrituras declaram que era de carne e sangue. «Visto, pois, que os
filhos têm participação comum de carne e sangue, destes também ele,
igualmente, participou» (Hb 2:14). Nosso Senhor disse a Seus
aterrorizados discípulos: «Um espírito não tem carne nem ossos, como
vedes que eu tenho» (Lc 24:39). Ele foi anunciado no Antigo
Testamento como a semente da mulher; a semente de Abraão; o Filho de
Davi. Foi declarado como homem, Varão de Dores; o Homem Cristo
Jesus; e Ele Se designou a Si mesmo como o Filho do Homem. Esta
designação aparece umas oitenta vezes no Evangelho. Assim, nada se
revela a respeito de Cristo com maior clareza que o fato de que Ele tinha
um verdadeiro corpo.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
509
Cristo tinha uma alma racional.
Não está menos claro que Ele tinha uma alma racional. Ele pensava,
raciocinava e sentia; sentia alegria e dor; aumentou em sabedoria;
desconhecia quando chegaria o dia do juízo. Portanto, deve ter possuído
uma inteligência humana finita. Estes dois elementos, um verdadeiro
corpo e uma alma racional, constituem uma perfeita natureza humana,
completa, e assim fica demonstrado que formou parte na composição da
pessoa de Cristo.
Cristo é verdadeiramente Deus.
Segundo, as Escrituras declaram, com a mesma clareza, que Cristo
era verdadeiramente Deus. Isto já ficou extensamente demonstrado. A
Ele são aplicados todos os nomes e títulos divinos. Ele é chamado Deus,
o Deus forte, o grande Deus, Deus sobre todas as coisas; Jeová; Senhor;
Senhor dos senhores e Rei dos reis. A Ele são adscritos todos os
atributos divinos. Declara-se dEle que é onipresente, onisciente,
onipotente e imutável, o mesmo ontem, e hoje, e pelos séculos. É
exposto como o Criador e Sustentador e Governador do universo. Todas
as coisas. foram criadas por Ele e para Ele; e nEle todas as coisas
consistem. Ele é o objeto da adoração de todas as criaturas inteligentes,
inclusive das mais exaltadas; manda-se a todos os anjos (isto é, todas as
criaturas entre o homem e Deus) que se prostrem diante dEle. Ele é o
objeto de todos os sentimentos religiosos, de reverência, amor, fé e
devoção. Para Ele os homens e anjos são responsáveis por seu caráter e
conduta. Ele demandou que os homens O honrem como honram ao Pai,
que exerçam a mesma fé nEle que a que exercem em Deus. Declara que
Ele e o Pai são um, que os que viram a Ele viram deste modo o Pai.
Chama a todos os homens a Si mesmo; promete perdoar seus pecados;
enviar-lhes o Espírito Santo; dar-lhes repouse e paz; ressuscitá-los no
último dia, e dar-lhes a vida eterna. Deus não é mais, não pode prometer
mais, nem fazer mais, que o que se diz que Cristo é, que promete e que
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
510
faz. Por isso, Ele foi desde o princípio o Deus do cristão, em todas as
épocas e em todos os lugares.
Cristo é uma Pessoa.
Terceiro, Ele era, embora um homem perfeito e Deus perfeito, uma
só pessoa. Acima de tudo, há uma total ausência de toda evidência de
uma dupla personalidade em Cristo. As Escrituras nos revelam o Pai, o
Filho e o Espírito Santo como pessoas distintas na Deidade, porque
empregam os pronomes pessoais com referência a cada uma das outras.
O Pai diz Tu ao Filho, e o Filho diz Tu ao Pai. O Pai diz ao Filho: «Darte-ei»; e o Filho diz. «Eis aqui, vim para fazer a tua vontade». Além
disso, um é objetivo para o outro. O Pai ama e envia o Filho; o Filho ama
e obedece ao Pai. O mesmo sucede com o Espírito. Nada tem de análogo
a isto no caso de Cristo. A natureza humana nunca se distingue da divina
como pessoa distinta. O Filho de Deus nunca Se dirige ao Filho do
Homem como uma pessoa diferente a Si mesmo. As Escrituras não
revelam mais que um Cristo. Em segundo lugar, além desta prova
negativa, a Bíblia oferece todas as provas da personalidade individual de
nosso Senhor que o caso admite. Ele sempre diz Eu, meu. Sempre é
abordado como Tu, ti, te. As referências a Ele são sempre como Ele, seu,
dEle, a Ele. Foi à mesma pessoa a que se lhe disse: «Ainda não tens
cinquenta anos»; e, «Tu, ó Senhor, no princípio puseste os fundamentos
da terra, e os céus são obra das tuas mãos». A personalidade individual
de Cristo é exposta tão clara e variadamente como a de qualquer outro
personagem cuja história está registrada na Escritura. Ao ensinar que
Cristo tinha uma natureza humana perfeita e uma natureza divina
perfeita, e que é uma pessoa, a Bíblia nos ensina toda a doutrina da
encarnação tal como entrou na fé da Igreja desde o princípio.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
511
Segundo argumento, com base nas exposições próprias
da Escritura.
A linguagem própria da Escritura a respeito de Cristo demonstra
que Ele era ao mesmo tempo divino e humano. No Antigo Testamento
Ele é exposto como a semente de Abraão, da tribo de Judá e da família
de Davi; que nasceria de uma virgem na cidade de Belém; como varão
de dores; como manso e humilde; como portador do castigo de nossos
pecados, e derramando Sua alma até a morte. Em todas as partes é
descrito como homem. Ao mesmo tempo é em todas as partes descrito
como Deus; é chamado o Filho de Deus, Emanuel, o Deus Forte, Jeová
nossa justiça; e fala-se dEle como sendo desde a eternidade; como
entronizado no céu e recebendo a adoração dos anjos.
No Novo Testamento continua a mesma classe de descrição. Nosso
Senhor, referindo-Se a Si mesmo, e os Apóstolos, ao falar dEle, referemse uniformemente a Ele como um homem. O Novo Testamento dá Sua
genealogia para demonstrar que era da família e linhagem de Davi.
Registra Seu nascimento, vida e morte. Chama-O o Filho do Homem, o
homem Cristo Jesus. Mas com a mesma uniformidade nosso Senhor
assume, e os Apóstolos atribuem a Ele, uma natureza divina. Ele declara
ser como o Filho de Deus, existindo desde a eternidade, possuindo todo
poder no céu e na terra, com direito a toda a reverência, amor e
obediência devidos a Deus. Os Apóstolos O adoram; chamam-nO o
grande Deus e Salvador; reconhecem sua dependência dEle e sua
responsabilidade para com Ele; e eles esperam nEle para o perdão,
santificação e vida eterna. Estas descrições conflitivas, esta constante
exposição da mesma pessoa como homem e também como Deus, não
admite solução à parte da doutrina da encarnação. Esta é a chave de toda
a Bíblia. Se esta doutrina é negada, tudo é confusão e contradição. Se é
admitida, tudo é luz, harmonia e poder. Cristo é ao mesmo tempo Deus e
homem, em duas naturezas distintas, e uma pessoa para sempre. Este é o
grande mistério da piedade: Deus manifestado em carne é a doutrina
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
512
distintiva da religião da Bíblia, sem a qual é só um cadáver frio e sem
vida.
Terceiro argumento, com base em passagens
particulares da Escritura.
Embora, pelo que já dissemos, a doutrina da encarnação não
repousa em alguns textos de prova isolados, mas na ampla base de toda a
revelação de Deus a respeito da pessoa e obra de Seu Filho, há entretanto
algumas passagens nas quais esta doutrina fica tão claramente exposta
em todos os seus elementos que não se podem passar por alto ao tratar
esta questão.
A esta classe de passagens pertence:
1. O primeiro capítulo de João, vv. 1-14. Aqui se ensina a respeito
do Logos: (1) Que Ele existia na eternidade. (2) Que estava em íntima
relação com Deus. (3) Que Ele era Deus. (4) Que Ele foi o Criador de
todas as coisas. (5) NEle estava a vida. Tendo vida em Si mesmo, Ele é a
fonte de vida para todos os viventes. Isto é, Ele é a fonte de vida natural,
intelectual e espiritual. (6) Por isso, Ele é a verdadeira luz, isto é, a fonte
de todo conhecimento e de toda santidade. (7) Ele veio ao mundo, e o
mundo, embora feito por Ele, não O reconheceu. (8) Ele veio aos Seus, e
inclusive eles não O receberam. (9) Fez-se carne, isto é, assumiu nossa
natureza, de maneira que habitou entre nós como homem. (10) E, diz o
Apóstolo, vimos a Sua glória, glória que O revelou como o Unigênito do
Pai. Aqui se ensina que uma pessoa verdadeiramente divina, o Verbo
eterno, o Criador do mundo, fez-se homem, habitou entre os homens, e
Se revelou a Si mesmo àqueles que tinham olhos para ver, como o eterno
Filho de Deus. Aqui temos toda a doutrina da encarnação, ensinada nos
termos mais explícitos.
2. Uma segunda passagem no mesmo sentido é aquela que se
encontra em 1Juan 1:1-3. Nela se ensina que o que era desde o princípio,
o que estava com Deus, o que era eterno, o que essencialmente era vida,
apareceu sobre a terra, de modo que pôde ser visto, ouvido, contemplado
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
513
e tocado. Aqui, mais uma vez, diz-se de uma pessoa divina, invisível,
eterna que assumiu nossa natureza, um corpo real e uma alma racional.
Podia ser vista e tocada, além de ouvida. Esta é a principal ideia desta
epístola. A encarnação é declarada como a doutrina característica e
essencial do evangelho. «Todo espírito que confessa que Jesus Cristo
veio em carne é de Deus; e todo espírito que não confessa a Jesus não
procede de Deus; pelo contrário, este é o espírito do anticristo, a respeito
do qual tendes ouvido que vem e, presentemente, já está no mundo.»
3. Em Romanos 1:2-5, o Apóstolo diz que o evangelho trata do
Filho de Deus, que é nosso Senhor Jesus Cristo, que, quanto à Sua
natureza humana, κατὰ σάρκα - kata sarka, é o Filho de Davi, mas que
quanto à Sua natureza divina, κατὰ πνεῦμα - kata pneuma, é o Filho de
Deus. Aqui também se enunciam claramente as duas naturezas e a única
personalidade do Redentor. A passagem paralela a esta é Romanos 9:5,
onde se diz de Cristo que κατὰ σάρκα - kata sarka descende dos pais,
mas que ao mesmo tempo é Deus sobre todas as coisas, e bendito para
sempre. Da mesma pessoa diz-se que é o supremo Deus e filho de
Abraão, membro da nação hebraica por linhagem natural.
4. Em 1 Timóteo 3:16 somos ensinados que Deus foi «manifestado
na carne, justificado no Espírito, visto dos anjos, pregado aos gentios,
crido no mundo, e recebido acima na glória». Nesta passagem é verdade
que há uma variante duvidosa. O texto comum em que aparece Θεός Theos tem o apoio de quase todos os manuscritos cursivos e de alguns
dos unciais, de várias das versões, e de muitos dos pais gregos. Mas
tanto se lemos Θεός - Theos como ὁς - hos o significado é basicamente o
mesmo. Há duas coisas que estão claras; primeiro, que todos os
predicados neste verso pertencem a um só sujeito; e segundo, que o
sujeito é Cristo. Ele, Sua pessoa, é o grande mistério da piedade. Ele foi
manifestado em carne (isto é, em nossa natureza); Ele, assim
manifestado, o Teantropo, foi justificado, isto é, foi demonstrada Sua
justiça, isto é, que Ele era o que afirmava ser (ou seja, o Filho de Deus),
pelo Espírito, bem pela natureza ou majestade divina habitando nEle, ou
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
514
pelo Espírito Santo, cuja função é tomar as coisas de Cristo e no-las
revelar. Ele, este Deus encarnado, foi visto, isto é, reconhecido e servido
por anjos; pregado entre os gentios como o Filho de Deus e Salvador dos
homens; crido como tal; e finalmente recebido na glória. Tudo o que a
Igreja ensina a respeito da pessoa de Cristo é aqui ensinado pelo
Apóstolo.
5. Entretanto, nenhuma passagem é mais clara e explícita a respeito
desta questão que Filipenses 2:6-11. Nesta passagem se ensina, do
mesmo indivíduo ou pessoa: (1) Que Ele era Deus, ou que existia na
forma de Deus. A forma de uma coisa é o modo em que se revela, e é
determinada por sua natureza. Não é necessário supor que μορφή morphé tenha aqui, como sucede em outros casos, o sentido de φύσις phusis; o último é implicado no primeiro. Ninguém pode aparecer, nem
existir à vista dos outros em forma de Deus, isto é, manifestando todas as
perfeições divinas, se não é Deus. (2) Por isso, afirma-se que a pessoa de
quem se fala era igual a Deus. (3) Ele fez-se homem como outros
homens, e assumiu a forma de um servo, isto é, apareceu como servo
entre os homens. (4) Submeteu-se a morrer na cruz. (5) Foi exaltado
sobre todos os seres criados, e investido com uma autoridade universal e
absoluta. Assim, Cristo, de quem trata esta passagem, tem uma natureza
divina e uma natureza humana, e é uma pessoa.
6. Em Hebreus 2:14 ensina-se claramente a mesma doutrina a
respeito da pessoa de Cristo. No primeiro capítulo daquela Epístola,
declara-se do Filho que Ele é o resplendor da glória do Pai e a imagem
expressa de Sua substância (isto é, pelo que o Pai é). O universo foi feito
por Ele. Ele sustenta todas as coisas com a palavra do Seu poder. Ele é
mais sublime que todos os anjos, isto é, que todas as criaturas
inteligentes. Eles devem adorá-Lo. São descritos como meros
instrumentos, mas o Filho como Deus. Ele fez os céus e estabeleceu os
fundamentos da terra; Ele é eterno e imutável. Ele está associado com
Deus em glória e domínio. Ele, a pessoa de quem se diz tudo isto no
primeiro capítulo, é exposto no segundo como homem. NEle se cumpriu
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
515
tudo o que tinha ensinado o escritor sagrado no oitavo salmo a respeito
do domínio universal atribuído ao homem. Os homens são declarados
como Seus irmãos, porque Ele e eles participam da mesma natureza.
Porquanto eles participaram de carne e de sangue, também Ele participou
do mesmo, para poder morrer, e mediante a morte redimir o Seu povo de
todos os males do pecado.
Nada pode estar mais claro que o fato de que as Escrituras ensinam
que Cristo é verdadeiramente Deus, que Ele é verdadeiramente homem,
e que Ele é uma pessoa. Elas afirmam dEle tudo o que se pode ser dito
de Deus, e tudo o que se pode dizer de um homem isento de pecado..
Não entram em dar explicações. Elas assumem como um fato certo que
Cristo é Deus e homem numa pessoa, assim como assumem que o
homem é alma e corpo numa pessoa.
Aqui poderia ser deixada a questão. Todos os fins da vida espiritual
do crente recebem resposta mediante o simples enunciado da doutrina a
respeito da pessoa de Cristo tal como é apresentada na Escritura.
Entretanto, as falsas explicações criam a necessidade de uma explicação
correta. Os hereges de todas as épocas explicaram de tal maneira os fatos
registrados a respeito de Cristo que quer têm negado a verdade a respeito
da natureza divina, ou a integridade de Sua natureza humana, ou a
unidade de Sua pessoa. Por isso, a Igreja se viu constrangida a ensinar o
que está envolvido na doutrina da Bíblia: primeiro, quanto à natureza da
união das duas naturezas em Cristo; e segundo, quanto às consequências
desta união.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
§ 3. A união hipostática.
516
Duas naturezas em Cristo.
Existe uma união. Os elementos unidos são a natureza humana e a
divina. Por natureza, neste contexto, significa-se substância. Em grego,
as palavras correspondentes são φοσις - phusis e οὐσία - ousia; em latim,
natura e substantia. A ideia de substância é necessária. Somos levados a
crer que onde vemos a manifestação de uma força há algo, um ente
objetivo que age, e do que a força é uma manifestação. Es evidente por sí
mismo que un non-ens no puede actuar. Podrá ser bueno aquí recordar
unos pocos principios admitidos que ya han sido repetidamente
observados: (1) É intuitivamente certo que os atributos, as propriedades e
o poder ou a força, implicam necessariamente uma substância da qual
sejam a manifestação. De nada, nada se pode afirmar. Aquilo do que
possamos afirmar os atributos quer da matéria, quer da mente, deve ser
necessariamente uma realidade. (2) Não é menos certo que onde os
atributos sejam incompatíveis, as substâncias devem ser diferentes e
distintas. Aquilo que tem extensão não pode carecer de extensão. O que
é divisível não pode ser indivisível. O que é incapaz de pensamento não
pode pensar. O finito não pode ser infinito. (3) Igualmente é verdade que
os atributos não podem existir distintos e separados da substância. Não
pode haver accidentia sine subjecto; em caso contrário poderia haver
extensão sem nada estendido, e pensamento sem nada que pense. (4) Do
mesmo modo, é intuitivamente certo que os atributos de uma substância
não podem transferir-se a outra. A matéria não pode estar dotada dos
atributos da mente; porque então deixaria de ser matéria. A mente não
pode ser investida com as propriedades da matéria, porque então deixaria
de ser mente; tampouco a humanidade pode ser possuída pelos atributos
da divindade, porque então deixaria de ser humanidade. Isto é só dizer
que o finito não pode ser infinito. Falando em termos gerais, estes
princípios foram reconhecidos como axiomáticos em toda a história do
pensamento humano; e a negação dos mesmos põe fim a toda discussão.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
517
Se são admitidos os princípios anteriores, segue-se com isso que ao
expor o Seu Filho como revestido de todos os atributos da humanidade,
com um corpo nascido de mulher, que aumentou em estatura, que foi
visto, sentido e tocado; e com uma alma que se turvava, que se alegrava
e que aumentava em sabedoria e que desconhecia certas coisas, Deus
quer e demanda que creiamos que era um verdadeiro homem – não um
fantasma, nem uma abstração, – não um complexo de propriedades sem
a substância da humanidade, mas um homem verdadeiro ou real, como
os outros homens, mas isento de pecado. Da mesma maneira, quando é
declarado como Deus sobre todas as coisas, como onisciente, onipotente
e eterno, não é menos evidente que Ele tem uma natureza
verdadeiramente divina; que a substância de Deus nEle é o sujeito em
que são inerentes todos estes atributos divinos. Sendo assim, somos
ensinados que os elementos combinados na constituição de Sua natureza,
isto é, Sua humanidade e divindade, são duas naturezas ou substâncias
distintas. Esta foi a fé da Igreja universal. Naqueles credos antigos que
foram adotados pelas Igrejas Grega, Latina e Protestante, declara-se que
Cristo é, com relação à Sua humanidade, consubstancial conosco, e
quanto à Sua divindade, consubstancial com o Pai. No Concílio de
Calcedônia a Igreja declarou que nosso Senhor era: 305 Θεὸν ἀληθῶς καὶ
ἄνθρωπον ἀληθῶς τὸν αὐτὸν ἐκ ψυχῆς λογικῆς καὶ σώματος, ὀμοούσιον
τῷ πατρὶ κατὰ τὴν θεότητα καὶ ὁμοούσιον τὸν αὐτὸν ἡμῖν κατὰ τὴν
ἀνθρωπότητα - Theon alethos kai anthropon alethos ton auton ek puches
logikes kai somatos, omoousion to patri kata ten theoteta kai
homoousion ton auton hemin kata ten anthropoteta.
Tomás de Aquino diz: 306 “Humana natura in Christo quamvis sit
substantia particularis: qui tamen venit in unionem cujusdam completi,
scilicet totius Christi, prout est Deus et homo, non potest dici hypostasis
vel suppositum: Sed illum completum ad quod concurrit, dicitur esse
305
306
Actio Quinta, Binius, Concilia Generalia, vol. ii. part 1, p. 253, e.
Summa, III. quæst. ii. art 3, edit. Cologne, 1640, p. 5 of fourth set.
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
518
hypostasis vel suppositum.” Em todos os credos da Reforma, a mesma
doutrina apresenta-se. Na “Confissão do Augsburgo” 307 diz-se: “Filius
Dei assumpsit humanam naturam in utero beatæ Mariæ virginis, ut sint
duæ naturæ, divina et humana, in unitate personæ inseparabiliter
conjunctæ, unus Christus, vere Deus et vere homo.” “Natura (φύσις,
οὐσία) in Christo est substantia vel divinitatis vel humanitatis. Persona
(ὑπόστασις, πρόσωπον) Christi est individuum ex utraque natura et
divina et humana, conjuncta, non mixta, concretum.” 308 Na “Segunda
Confissão Helvética” 309 diz-se: “Agnoscimus in uno atque eodem
Domino nostro Jesu Christo, duas naturas (para natura se usa substantia
en otras partes el capítulo), divinam et humanam. . . . . In una persona
unitæ vel conjunctæ [sunt]: ita ut unum Christum Dominum, non duos
veneremur: unum inquam verum Deum, et hominem, juxta divinam
naturam Patri, juxta humanam vero nobis hominibus consubstantialem,
et per omnia similem, peccato excepto.” Portanto, os teólogos
ensinam: 310 “Natura divina est essentia divina, qua Christus Patri et
Spiritui Sancto coessentialis est. Natura humana est essentia seu
substantia humana, qua Christus nobis hominibus coessentialis est.” Ou,
como diz-se nos antigos credos, Cristo não é ἄλλος καὶ ἄλλος - allos kai
allos (uma pessoa e outra pessoa), e sim ἄλλο καὶ ἄλλο - allo kai allo
(uma substância e outra substância).
As duas naturezas estão unidas, mas não misturadas
nem confundidas.
Vimos que o primeiro ponto importante relativo à pessoa de Cristo
é que os elementos unidos ou combinados em Sua pessoa são duas
substâncias distintas, a humanidade e a divindade; que Ele tem em Sua
constituição a mesma essência ou substância que nos constitui homens, e
307
III.; Hase, Libri Symbolici, p. 10.
Hase’s Hutterus Redivivus, sixth edition, p. 224.
309
Cap. XI.; Niemeyer, Collectio Confessionum, p. 484.
310
Polanus, Syntagma Theologiæ, vi. 12, Hanoviæ, 1625, p. 362, a, b.
308
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
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a mesma substância que faz Deus infinito, eterno e imutável em todas as
Suas perfeições. O segundo ponto é que essa união não ocorre por
mistura, de modo que se produz uma nova substância, uma terceira, que
não é nem humanidade nem divindade, mas que possui as propriedades
de ambas. Esta é uma impossibilidade, visto que as propriedades em
questão são incompatíveis. Não podemos misturar mente e matéria a fim
de que uma substância que não é nem mente nem matéria, mas matéria
espiritual, porque isso seria uma contradição. Isso equivaleria à extensão
não estendida, tangível intangibilidade, ou visível invisibilidade.
Tampouco é possível que a natureza divina e humana deve ser tão
misturadas para dar lugar a uma terceira, que não é nem puramente
humana nem puramente divina, mas sim teantrópica. A pessoa de Cristo
é teantrópica, mas não Sua natureza, pois isso faria o finito infinito, e o
infinito finito. Cristo não seria nem Deus nem homem, mas
constantemente as Escrituras declaram que Ele é tanto Deus como
homem. Em todos os credos cristãos, portanto, declara-se que as duas
naturezas em Cristo conservam cada uma suas próprias propriedades e
atributos. Todos eles ensinam que as natureza não se confundem: “Sed
salvis potius et permanentibus naturarum proprietatibus in una persona
unitæ vel conjunctæ.”
Portanto, assim como o corpo humano retém todas as suas
propriedades como matéria; e a alma todos os seus atributos como
espírito em sua união em nossas pessoas, assim a humanidade e a
divindade retêm cada uma suas propriedades peculiares em sua união na
pessoa de Cristo. E assim como a inteligência, a sensibilidade e a
vontade são propriedades da alma humana, segue-se disso que a alma
humana de Cristo reteve sua inteligência, sensibilidade e vontade. Mas a
inteligência e a vontade não são menos as propriedades essenciais da
natureza divina, e por isso ficaram retidas depois de sua união com a
natureza humana em Cristo. Assim, ao ensinar que Cristo era
verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus, as Escrituras ensinam
que Ele tinha uma inteligência e uma vontade finitas, e deste modo uma
Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II
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inteligência infinita. Assim, nEle, como a Igreja sempre manteve, havia e
há duas vontades, dois ἐνέργειαι - energiai ou operações. Seu intelecto
humano cresceu, e Sua inteligência divina era, e é, infinita. Sua vontade
humana tinha só poder humano, mas Seu poder divino era e é onipotente.
Por misterioso e inescrutável que seja tudo isto, não o é mais que a união
dos discordantes elementos da mente e da matéria em nossa própria
constituição.
Não há transferência de atributos de uma natureza
para a outra.
O terceiro ponto com relação à pessoa de Cristo é que nenhum
atributo de uma natureza se transfere à outra. Isto fica virtualmente
incluído no que já se tem dito. Entretanto, há aqueles que admitem que
as duas naturezas de Cristo não se misturam nem se confundem, mas
mantêm que os atributos de uma se transferem à outra. Mas as
propriedades ou atributos de um
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