TEOLOGIA SISTEMÁTICA [Clique en ÍNDICE] VOLUME II CHARLES HODGE, D.D. Tradutor e digitador: Carlos Biagini Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II ÍNDICE PARTE II: ANTROPOLOGIA CAPÍTULO I A ORIGEM DO HOMEM §1. A doutrina escriturística §2. Teorias antiescriturísticas A doutrina pagã da geração espontânea A moderna doutrina da geração espontânea Teorias do desenvolvimento Lamarck Vestígios da Criação Darwin Observações sobre a teoria darwinista O caráter ateu desta teoria É uma mera hipótese Teorias do Universo Darwin J. J. Murphy Owen O reino da teoria da lei Dificuldades admitidas para a teoria darwinista A Esterilidade dos híbridos Distribuição geográfica Pangênese §3. A antiguidade do homem Habitações lacustres Restos fósseis humanos 2 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 3 Ossos humanos achados profundamente sepultados Implementos de pederneira Argumento com base nas raças de homens e monumentos antigos CAPÍTULO II A NATUREZA DO HOMEM §1. A doutrina escriturística Verdades a respeito deste tema assumidas nas Escrituras Relação da alma com o corpo Dualismo realista §2. Tricotomia A Tricotomia é antiescriturística Explicação de passagens duvidosas §3. Realismo Seu caráter geral Humanidade genérica Objeções ao Realismo O Realismo não é apoiado pela consciência O Realismo é contrário aos ensinos da Escritura O Realismo é inconsistente com a doutrina da Trindade O Realismo é inconsistente com o que a Bíblia ensina sobre a pessoa e a obra de Cristo §4. Outra forma da teoria realista CAPÍTULO III A ORIGEM DA ALMA §1. Teoria da Preexistência A doutrina de Orígenes §2. Traducianismo Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II §3. Criacionismo Argumentos com base na natureza da alma §4. Observações finais 4 CAPÍTULO IV A UNIDADE DA RAÇA HUMANA §1. Conceito de Espécie Características gerais das espécies Definições de espécie §2. Evidências da identidade das Espécies Estrutura orgânica O argumento fisiológico O argumento psicológico §3. Aplicação destes critérios ao homem A evidência da raça acumulativa §4. O argumento filológico e moral A relação espiritual dos homens CAPÍTULO V O ESTADO ORIGINAL DO HOMEM §1. A doutrina escriturística §2. O homem criado à imagem de Deus §3. A justiça original Efésios 4:24 §4. O domínio sobre as criaturas §5. A doutrina da Igreja Romana Objeções à doutrina romana §6. A doutrina Pelagiana e Racionalista A consciência demonstra que as disposições, diferente dos atos, podem ter caráter moral Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 5 O argumento do juízo geral dos homens O caráter moral dos atos são determinados pelos princípios de onde fluem O argumento da Escritura A Fé da Igreja sobre este tema O caráter moral das Disposições depende de sua natureza moral e não de sua origem Esta é a Regra Comum de Juízo O testemunho da Escritura A fé da Igreja Objeções consideradas Os Pelagianos ensinam que o homem foi criado mortal Resposta aos argumentos de Pelágio CAPÍTULO VI A ALIANÇA DAS OBRAS §1. Deus fez uma aliança com Adão §2. A promessa §3. A condição §4. A penalidade §5. As partes da aliança das obras §6. A perpetuidade da aliança das obras CAPÍTULO VII A QUEDA O relato escriturístico A árvore da vida A árvore do conhecimento A serpente A natureza da tentação Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II Os efeitos do primeiro pecado CAPÍTULO VIII O PECADO §1. A natureza da questão a ser considerada §2. Teorias filosóficas da natureza do pecado O pecado considerado como uma mera limitação do ser A teoria de Leibnitz sobre a privação O pecado é antagonismo necessário A teoria de Schleiermacher sobre o pecado A teoria sensorial A teoria de que todo pecado consiste em egoísmo §3. A doutrina da Igreja Primitiva §4. A teoria Pelagiana Argumentos contra a doutrina Pelagiana §5. A doutrina de Agostinho O elemento filosófico da doutrina de Agostinho As razões de Agostinho para fazer do pecado uma negação O elemento moral de sua doutrina §6. A doutrina da Igreja de Roma Diversidade de doutrina na Igreja Latina Os Semipelagianos A doutrina de Anselmo A doutrina de Abelardo A doutrina de Tomás de Aquino A doutrina dos Escotistas A doutrina Tridentina a respeito do Pecado Original A verdadeira doutrina da Igreja de Roma §7. A doutrina Protestante a respeito do pecado O pecado é um mal específico O pecado tem relação com a lei 6 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 7 O pecado está relacionado com a lei de Deus Alcance das demandas da Lei O pecado não se limita a atos da vontade Consiste na ausência de conformidade com a Lei de Deus O pecado inclui culpa e contaminação §8. Os efeitos do pecado de Adão sobre sua posteridade §9. Imputação imediata Enunciado da doutrina de imputação imediata A base da imputação do pecado de Adão Adão, a Cabeça Federal de sua raça O princípio representativo nas Escrituras O mesmo princípio envolto em outras doutrinas Argumento com base em Romanos 5:12-21 Argumento com base no consentimento geral Objeções à doutrina §10. Imputação mediata A imputação mediata fora da Igreja Francesa Objeções à doutrina da imputação mediata A imputação mediata aumenta as dificuldades que devem ser explicadas Inconsistente com o argumento do apóstolo em Rm 5:12-21 A doutrina está baseada sobre um princípio falso A teoria da propagação §11. A preexistência §12. A Teoria Realista A teoria da identidade, do Reitor Edwards Objeções à teoria de Edwards A própria teoria Realista Recapitulação das Objeções à teoria realista O Realismo não é solução para o problema do pecado §13 O pecado original A natureza do pecado original Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 8 Enunciado da doutrina Protestante Prova da doutrina da doutrina do pecado original Primeiro argumento com base na universalidade do pecado Segundo argumento com base na total pecaminosidade dos homens A pecaminosidade dos homens é incorrigível Argumento com base na experiência do povo de Deus Terceiro argumento com base na manifestação inicial do pecado Evasões dos argumentos que antecedem As Escrituras ensinam esta doutrina de maneira expressa A Bíblia descreve os homens como espiritualmente mortos Argumento com base na necessidade da Redenção Argumento com base na necessidade da Regeneração Argumento com base na universalidade da morte Argumento com base no consentimento comum dos cristãos Objeções A objeção de que os homens são responsáveis apenas por seus atos voluntários. Objeção baseada na justiça de Deus A doutrina representa a Deus como autor do pecado Diz-se que destrói o livre-arbítrio dos homens §14. O Assento do Pecado Original Toda a alma é o Assento do Pecado Original §15. Incapacidade A doutrina tal como é indicada nos Símbolos Protestantes A natureza da incapacidade do pecador A incapacidade não surge da perda de nenhuma faculdade da alma Nem da perda do livre-arbítrio A incapacidade não é mera ausência de inclinação Surge da carência de discernimento escriturístico Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 9 A incapacidade, declarada só com referência às «Coisas do Espírito» Num sentido, sua capacidade é natural Em outro sentido é moral Objeções à distinção popular entre capacidade moral e natural Prova da doutrina Declarações expressas das Escrituras Envolto na doutrina do Pecado Original A necessidade da influência do Espírito O argumento com base na experiência A convicção do pecado Objeções Não debilita os motivos para o esforço A doutrina não incentiva a demora CAPÍTULO IX LIVRE-ARBÍTRIO §1. Diferentes teorias da vontade Necessidade Contingência Certeza §2. Definição de termos Vontade Motivo Causa Liberdade Liberdade e capacidade Autodeterminação e autodeterminação da vontade §3. A certeza é consistente com a liberdade Pontos de concordância Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II O argumentos de que a certeza é idônea para todos os agentes livres Argumentos derivados da Escritura O argumento baseado na consciência Argumentos com base no caráter moral das volições Argumento com base na natureza racional do homem Argumento com base na doutrina de uma causa suficiente 10 PARTE III: SOTERIOLOGIA CAPÍTULO I O PLANO DA SALVAÇÃO §1. Deus tem este plano. A importância do conhecimento deste Plano Como se pode conhecer o plano de Deus §2. O Supralapsarianismo Objeções ao Supralapsarianismo §3. Infralapsarianismo Diferentes significados que se atribuem à palavra predestinação §4. Redenção hipotética Argumentos contra este esquema §5. A doutrina luterana quanto ao plano da salvação §6. A doutrina Remonstrante §7. O Arminianismo Wesleyano §8. O esquema Agostiniano Observações preliminares Exposição da doutrina Prova da doutrina Argumento com base nos fatos da Providência A soberania de Deus nas dispensações de Sua providência Argumento com base nos fatos da Escritura Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 11 Pela obra do Espírito A Eleição é para a Santidade Pela natureza gratuita da salvação O argumento do Apóstolo em Romanos 9 O argumento da experiência As declarações expressas da Escritura As palavras de Jesus §9. Objeções ao esquema Agostiniano. As mesmas objeções militam contra da Providência de Deus Baseadas em nossa ignorância Estas objeções foram levantadas contra os ensinos do Apóstolo Paulo CAPÍTULO II A ALIANÇA DA GRAÇA §1. O plano da salvação é uma Aliança §2. Diferentes pontos de vista da natureza desta aliança §3. As partes da Aliança Duas Alianças que se devem distinguir §4. A Aliança da Redenção A obra atribuída ao Redentor As promessas feitas ao Redentor §5. A Aliança da graça Cristo como Mediador da Aliança A condição da Aliança As promessas da Aliança §6. Identidade da Aliança da graça sob todas as Dispensações. A promessa da vida eterna dada antes do Advento Cristo, o Redentor, sob ambas as dispensações Desde o princípio a fé é a condição da salvação §7. Diferentes Dispensações. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II A primeira, de Adão a Abraão A segunda dispensação A terceira dispensação A dispensação do Evangelho 12 CAPÍTULO III A PESSOA DE CRISTO §1. Considerações preliminares §2. Os fatos escriturísticos a respeito da Pessoa de Cristo Prova da doutrina Primeiro argumento: Todos os elementos da doutrina são ensinados separadamente Cristo tinha um verdadeiro corpo Cristo tinha uma alma racional Cristo é verdadeiramente Deus Cristo é uma Pessoa Segundo argumento, com base nas exposições próprias da Escritura Terceiro argumento, com base em passagens particulares da Escritura. §3. A união hipostática Duas naturezas em Cristo As duas naturezas estão unidas, mas não misturadas nem confundidas Não há transferência de atributos de uma natureza para a outra A união é uma união pessoal §4. Consequências da União Hipostática. Comunhão de atributos Os atos de Cristo O Homem Cristo Jesus é o objeto da adoração Cristo pode simpatizar com o Seu povo Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 13 O Logos encarnado é a fonte da vida A exaltação da Natureza Humana de Cristo. §5. Doutrinas errôneas e heréticas a respeito da Pessoa de Cristo Os Ebionitas Os Gnósticos A doutrina Apolinária Nestorianismo Eutiquianismo §6. A doutrina das Igrejas Reformadas §7. A doutrina Luterana Diferentes posturas entre os Luteranos Observações a respeito da doutrina luterana §8. Formas posteriores da doutrina. Socinianismo A preexistência da Humanidade de Cristo Swedenborg Isaac Watts Objeções §9. Formas modernas da doutrina. Cristologia panteísta Cristologia teísta Ebrard Gess Observações Schleiermacher A Cristologia de Schleiermacher Objeções a esta teoria Baseado em princípios panteístas Envolve a rejeição da doutrina da Trindade A antropologia de Schleiermacher A teoria de Schleiermacher perverte o plano de salvação Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II CAPÍTULO IV A OBRA MEDIADORA DE CRISTO §1. Cristo o único Mediador §2. Qualificações para a obra §3. O tríplice ofício de Cristo CAPÍTULO V O OFÍCIO PROFÉTICO §1. A natureza do ofício profético §2. Como Cristo executa o ofício de Profeta CAPÍTULO VI O OFÍCIO SACERDOTAL §1. Cristo é verdadeiramente Sacerdote, não em sentido figurado §2. Cristo nosso único Sacerdote §3. Definição de termos A palavra expiação Satisfação Penalidade Vicário Culpa Redenção Expiação e Propiciação CAPÍTULO VII A SATISFAÇÃO DE CRISTO §1. Enunciado da doutrina §2. O valor intrínseco da satisfação de Cristo 14 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 15 A doutrina Romanista da Satisfação §3. A doutrina dos Escotistas e dos Remonstrantes §4. A satisfação dada à justiça §5. A obra de Cristo satisfaz as demandas da Lei Prova da imutabilidade da Lei §6. Prova da doutrina Cristo nos salva como nosso Sacerdote Cristo nos salva como un Sacrificio Prova da doutrina comum a respeito dos sacrifícios pelo pecado Os sacrifícios expiatórios do Antigo Testamento O capítulo 53 de Isaías Passagens do Novo Testamento em que a obra de Cristo é exposta como Sacrifício Cristo nosso Redentor Redenção da pena da Lei Redenção da Lei Redenção do poder do pecado. Redenção do poder de Satanás Redenção Final de todo o mal Argumento com base em doutrinas relacionadas Argumento com base na experiência religiosa dos crentes. §7. Objeções. Objeções morais Objeções populares Não há justiça vindicatória em Deus Não pode haver antagonismo em Deus É impossível a transferência de culpa ou de justiça A expiação é um conceito pagão A satisfação da justiça é desnecessária Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II CAPÍTULO VIII POR QUEM CRISTO MORREU? 16 §1. Estado da questão §2. Prova da doutrina Agostiniana. Argumento com base na doutrina da Eleição As declarações expressas da Escritura Argumento com base no especial amor de Deus Argumento com base na união do crente com Cristo Argumento com base na intercessão de Cristo A doutrina da Igreja inclui todos os fatos do caso Se a expiação é limitada no desígnio, deve ser limitada na oferta Certas passagens da Escritura consideradas CAPÍTILO IX TEORIAS SOBRE A EXPIAÇÃO §1. A postura ortodoxa §2. A doutrina de alguns dos Pais §3. A teoria moral Objeções a esta teoria §4. A teoria governamental Remonstrantes Os sobrenaturalistas Teólogos americanos Objeções à teoria §5. A teoria mística. Teoria mística ao tempo da Reforma Osiander Schwenkfeld Oetinger As posturas modernas Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II §6. Observações finais CAPÍTULO X A INTERCESSÃO DE CRISTO §1. Cristo nosso Intercessor §2. Sua natureza §3. Seus objetos §4. A intercessão dos santos CAPÍTULO XI O OFÍCIO RÉGIO DE CRISTO §1. A Igreja, o Reino de Deus §2. Cristo é o único Rei §3. A natureza do Reino de Cristo O domínio de Cristo sobre o universo O reino espiritual de Cristo O reino visível de Cristo A natureza deste reino §4. O Reino da glória CAPÍTULO XII A HUMILHAÇÃO DE CRISTO §1. Inclui Sua Encarnação Cristo nasceu numa condição humilde §2. Ele foi feito sujeito à Lei §3. Seus sofrimentos e morte §4. Ele suportou a ira de Deus §5. Sua morte e sepultura A doutrina romana do “Descensus ad Inferos” 17 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II As posturas dos Luteranos e de Teólogos Modernos a respeito da Humilhação de Cristo CAPÍTULO XIII A EXALTAÇÃO DE CRISTO §1. A Ressurreição de Cristo A natureza do corpo da Ressurreição de Cristo O Agente eficiente da Ressurreição de Cristo §2. A Ascensão de Cristo §3. Sentado à direita de Deus §4. A vinda de Cristo para julgar o mundo CAPÍTULO XIV A VOCAÇÃO §1. Uso escriturístico do termo §2. A chamada externa Não é inconsistente com a doutrina da Predestinação É consistente com a sinceridade de Deus A doutrina luterana A chamada à salvação é só por meio do Evangelho Por que o Evangelho dirige-se a todos os homens? §3. A graça comum A doutrina Luterana da graça comum A postura racionalista Há uma influência do Espírito distinta da Verdade A influência do Espírito pode ser sem a Palavra A obra do Espírito é diferente da eficiência providencial As influências do Espírito, concedidas a todos os homens O argumento da experiência Os efeitos da graça comum 18 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II §4. A graça eficaz Por que é chamada eficaz Congruidade A doutrina Agostiniana da graça eficaz O principal princípio envolvido A graça eficaz é misteriosa e peculiar Não é persuasão moral A graça eficaz age imediatamente O uso da palavra física A graça eficaz é irresistível A alma é passiva na regeneração A regeneração é instantânea Um ato da graça soberana §5. Prova da doutrina O consentimento comum Argumento da analogia Argumento com base em Efésios 1:17-19 Argumento com base no ensino da Escritura Argumento com base na natureza da regeneração Argumento com base nas doutrinas relacionadas Argumento com base na experiência §6. Objeções §7. História da doutrina da graça A doutrina pelagiana O Semipelagianismo Período Escolástico A doutrina tridentina A controvérsia dos sinérgicos A Igreja Reformada Universalismo Hipotético O Sobrenaturalismo e o Racionalismo 19 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 20 PARTE II ANTROPOLOGIA TENDO considerado as doutrinas que tratam da natureza de Deus e sua relação com o mundo, passamos agora às que tratam do homem: de sua origem, natureza, estado primitivo, prova, e apostasia; tema este último que inclui a questão a respeito da natureza do pecado; e os efeitos do primeiro pecado de Adão sobre si mesmo e sobre sua posteridade. Estes temas constituem a seção de Antropologia. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II CAPÍTULO I 21 A ORIGEM DO HOMEM § 1. A doutrina escriturística O relato escriturístico da origem do homem está contido em Gênesis 1:26,27: «Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra. Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou». E Gênesis 2:7: «Então, formou o SENHOR Deus ao homem do pó da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente». Incluem-se duas coisas neste relato; primeiro, que o corpo do homem foi formado pela imediata intervenção de Deus. Não cresceu; não foi produzido por nenhum processo de desenvolvimento. Segundo, a alma foi derivada de Deus. Ele soprou no homem «fôlego de vida», isto é, aquela vida que lhe constituía em homem, uma criatura vivente, portadora da imagem de Deus. Muitos inferiram com base nesta linguagem que a alma é uma emanação da essência divina, uma partícula spiritus divini in corpore inclusa. Esta ideia foi intensamente resistida pelos pais cristãos e rejeitada pela Igreja como inconsistente com a natureza de Deus. Pressupõe que a essência divina é suscetível de ser dividida; que sua essência pode ser comunicada sem seus atributos, e que pode ser degradada tal como estão degradadas as almas dos homens caídos. (See Delitzsch’s “Biblical Psychology” in T. and T. Clark’s “Foreign Library,” and Auberlen in Herzog’s “Encyclopädie,” article “Geist der Menschen.”) Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II § 2. Teorias antiescriturísticas. 22 A doutrina pagã da geração espontânea. A doutrina escriturística opõe-se à doutrina sustentada por muitos dos antigos, de que o homem é uma produção espontânea da terra. Muitos deles afirmavam ser gegeneis, autochthones, terrigena. Supunhase que a terra estava fertilizada com os germes de todos os organismos vivos, que eram trazidos à vida sob circunstâncias favoráveis; ou eram considerados como o instinto de uma vida produtiva a que se refere a origem de todas as plantas e animais que vivem em sua superfície. A esta primitiva doutrina da antiguidade tornaram a filosofia e a ciência modernas em algumas de suas formas. Os que negam a existência de um Deus pessoal, distinto do mundo, têm naturalmente que negar a doutrina de uma criação ex-nihilo e, por conseguinte, a criação do homem. A perspectiva teológica quanto à origem do homem, diz Strauss, «rechaça a perspectiva da filosofia natural e da ciência em geral. Estas não admitem a intervenção imediata da causação divina. Deus criou o homem, não como tal, ou, ‘quatenus infinitus est, sed quatenus per elementa nascentis telluris explicatur.’ Esta é a postura que apresentaram os filósofos gregos e romanos, certamente de uma maneira muito rudimentar, e contra a qual os pais da Igreja Cristã lutaram intensamente, mas que é agora o juízo unânime da ciência natural assim como da filosofia». 1 À objeção de que a terra já não mais produz de forma espontânea homens e animais irracionais, responde-se que passaram muitas coisas antes que não ocorrem no estado atual do mundo. À objeção ainda mais evidente que um homem infantil deve ter morrido sem o cuidado de uma mãe, responde-se que o menino flutuava no oceano de seu nascimento, envolto numa coberta, até que chegou o desenvolvimento de um menino de dois anos de idade; ou se diz que a filosofia só pode estabelecer o fato 1 Dogmatik. vol. I, pág. 680. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 23 geral quanto à forma em que a raça humana se originou, mas não pode ser obrigada a explicar todos os detalhes. A moderna doutrina da geração espontânea. Embora Strauss exagere muito quando diz que os homens de ciência de nossos dias são unânimes em dar seu apoio à doutrina da geração espontânea, é indubitavelmente certo que uma numerosa classe de naturalistas, especialmente do continente da Europa, estão a favor desta doutrina. O Professor Huxley, em seu discurso a respeito da «Base Física da Vida», dá-lhe todo o peso de sua autoridade. Certamente, não ensina de uma maneira expressa que a matéria inerte se torne ativa sem ficar sujeita à ação de uma matéria anteriormente viva, mas todo o seu artigo tem o propósito de mostrar que a vida é o resultado da peculiar disposição das moléculas da matéria. Sua doutrina é que «a matéria da vida está composta de matéria comum, diferindo dela só na forma em que seus átomos estão dispostos». 2 Diz ele: «Se as propriedades da água podem-se considerar de maneira apropriada como o resultado da natureza e disposição de suas moléculas componentes, não posso achar nenhuma base inteligível para recusar dizer que as propriedades do protoplasma resultam da natureza e disposição de suas moléculas». 3 Em seu discurso perante a Associação Britânica diz que se pudéssemos olhar o suficientemente longe retrospectivamente, ele esperaria poder ver «a evolução do protoplasma vivo procedente de matéria não viva». E embora aquele discurso estava dedicado a expor que a geração 2 Lay Sermons and Addresses, Londres, 1870, pág. 144. Ibid., pág. 151. Mas aqui se envolve uma enorme falácia. A questão real não é a que se devam as propriedades do protoplasma. É certo o que diz Huxley que se devem à natureza e disposição de suas moléculas componentes. A pergunta crucial é como chegaram a dispor as moléculas do «protoplasma» (isto é, da matéria viva) da maneira em que estão dispostas. Por acaso, ou por desígnio? O estudo da complexidade da disposição das moléculas nos distintos mecanismos da célula leva a toda pessoa com uma mente sensata e reflexiva à conclusão racional de que esta disposição das moléculas não pode ser devida absolutamente às propriedades da matéria, mas sim a um desígnio imposto sobre a matéria. (N. do T.). 3 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 24 espontânea, ou abiogênese, como também a chama, nunca foi provada, diz ele que «devo me guardar cuidadosamente contra a disposição de que tento sugerir que nunca tenha tido lugar abiogênese no passado, ou que não possa ter lugar no futuro. Com a química orgânica, física molecular e a fisiologia ainda em sua infância, creio que seria uma grande presunção da parte de qualquer um dizer que as condições sob as quais a matéria assume as propriedades que chamamos “vitais” não possam ser um dia produzidas artificialmente». 4 Tudo isto supõe que a vida é produto de causas físicas; que tudo o que se precisa para sua produção é «reunir» as condições necessárias. Sir Mivart, enquanto se opunha à teoria de Darwin, não só sustenta que a doutrina da evolução é “longe de qualquer oposição necessária para a teologia mais ortodoxa”, mas acrescenta que “o mesmo pode dizer-se da geração espontânea.” 5 Como os químicos tiveram êxito em produzir uréia, que é um produto de origem animal, ele pensa que não é irrazoável que estes possam produzir um peixe. Mas enquanto há uma classe de naturalistas que sustentam a doutrina da geração espontânea, a grande massa inclusive daqueles que são os mais avançados em admitir que omne vivum ex vivo, pelo que a ciência sabe ainda, é uma lei estabelecida da natureza. Demonstrar isto é o objetivo do importante discurso do Professor Huxley, a que já se fez referência, pronunciado perante a Associação Britânica em setembro de 1870. Faz duzentos anos, diz-nos ele, foi usualmente tomado por sentado que os insetos que fizeram sua aparição na decomposição de substâncias animais e vegetais produziram-se de forma espontânea. Redi, entretanto, um naturalista italiano, nos meados do século XVII, demonstrou que se a matéria em decomposição fosse protegida por um pedaço de gaze 4 Athenæum, September 17, 1870, p. 376. Esta é outra falácia de raciocínio de T. H. Huxley. Se se produzem «artificialmente», porque naturalmente não o podem ser espontaneamente, só se demonstra com isso a presença do desígnio inteligente alimentado por uma informação adquirida com base no paciente estudo da criação de Deus. (N. do T.) 5 Genesis of Species, by St. George Mivart, F. R. S. p. 266. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 25 admitindo o ar, mas com exclusão das moscas, tais insetos não fariam sua aparição. “Portanto, a hipótese de que a matéria viva sempre surge pela agência da matéria viva preexistente, tomou forma definitiva, e de agora em diante havia um direito a ser considerado e uma reivindicação a ser refutada, em cada caso particular, antes da produção da matéria viva que de qualquer outra maneira pode ser admitida pelos arrazoadores cuidadosos.” 6 Esta conclusão foi cada vez mais definitivamente fixada por todas as investigações e experimentos que foram processados desde aquele dia até hoje. Demonstrou-se que ainda os animálculos infusórios, que são necessários os microscópios mais potentes para detectar, nunca fazem sua aparição quando todos os germes vivos preexistentes foram cuidadosamente excluídos. Estes experimentos, julgados à beira da nãoexistência, tendo para suas coisas matéria de tema tão pequeno como para que seja duvidoso que fossem qualquer coisa ou nada, e ainda mais incerto se estavam vivos ou mortos, são revisados em ordem cronológica pelo Professor Huxley, e a conclusão a que conduzem plenamente estabelecido.7 Isto se vê confirmado pela experiência diária. Carne, verduras e frutas se conservam na medida de centenas de toneladas cada ano. “As matérias que se conservam estão bem cozidas num estojo, provido de um orifício pequeno, e este buraco é soldado quando todo o ar no caso se substituiu por vapor. Mediante este método pode-se guardar-se durante anos, sem putrefação, a fermentação, ou fazer-se mofado. Agora, isto não é porque o oxigênio é excluído, considerando que hoje está demonstrado que o oxigênio livre não é necessário tanto para a fermentação ou a putrefação. Não é porque se esgotaram as latas de ar, por vibriões e bactérias vivas, como Pasteur demonstrou, sem ar ou oxigênio livre. Não é porque as carnes cozidas ou verduras não são putrefacientes ou fermentáveis, como as que tiveram a desgraça de encontrar-se num casco de navio suprido com latas fechadas de modo 6 Athenæum, September 17, 1870, p. 374. O que Charlton Bastian, quem rejeitou as conclusões do professor Huxley, tomou por organismos vivos, resultou ser nada mais que os folículos diminutos de vidro. 7 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 26 inexperiente. O que é, pois, senão a exclusão dos germes? Creio que os abiogenistas estão obrigados a responder a esta pergunta antes de que nos peçam para considerar os novos experimentos, precisamente a mesma ordem.” 8 Mas admitindo que a vida se deriva sempre da vida, a pergunta continua sendo se um tipo de vida, não poderá dar lugar à vida de uma espécie diferente? Faz tempo supunha-se que os parasitas derivassem sua vida da planta ou do animal em que vivem. E o que é mais ao ponto, é uma questão de experiência familiar “que a pressão na pele só dará lugar a um calo”, que parece ter uma vida própria, e que os tumores se desenvolvem com frequência no corpo que adquirem, como na facilidade de câncer, o poder de multiplicação e reprodução. No caso da vacinação, também, uma diminuta partícula de matéria se introduz sob a pele. O resultado é uma vesícula distendida com a matéria de vacinas “na quantidade de cem ou mil vezes o que se inseriu originalmente.” De onde vem? O Professor Huxley nos diz que se demonstrou que “o elemento ativo na linfa vacina é não difusível, e compõe-se de partículas diminutas que não excedem de 1/20000 de uma polegada de diâmetro, que se fazem visíveis na linfa pelo microscópio. Experimentos similares demonstraram que dois dos mais destrutivos das epizootias, as ovelhas da varíola e o mormo, também dependem para sua existência e sua propagação em muito pequenas partículas sólidas de vida, a que se aplica o título de microenzimas.” A questão que surge, diz ele, é se estas partículas são o resultado de homogênese, ou de xenogênese, isto é: São produzidas por partículas preexistentes que vivem da própria natureza? ou: São uma modificação dos tecidos das entidades nas quais se encontram? A decisão desta questão resultou ser uma questão de grande importância prática. Alguns anos visto que as doenças atacaram a videira e o bicho-da-seda na França, que ameaçou destruindo dois dos ramos 8 Huxley’s Address, as reported in the London Athenæum, September 17, 1870, p. 376. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 27 mais produtivas da indústria nesse país. A perda direta da França pela doença do bicho-da-seda apenas, no curso de dezessete anos, estima-se em duzentos e cinquenta milhões de dólares. Descobriu-se que estas doenças da videira e o verme, que eram doenças infecciosas e contagiosas, deveram-se aos organismos vivos, pelos quais foram reproduzidos e propagados. Transformou-se num assunto da maior importância determinar se estas partículas vivas se propagaram, ou se foram produzidas pela ação mórbida da planta ou animal. M. Pasteur, o eminente naturalista, enviado pelo governo francês para investigar o assunto, depois de uma laboriosa investigação decidiu que eram organismos independentes, propagando-se e multiplicando-se com rapidez assombrosa. “Guiado por essa teoria, ele ideou um método de extirpação da doença, que demonstrou ser um completo êxito onde se realizou corretamente” 9 O Professor Huxley fecha seu discurso dizendo que tinha convidado a seu público a que o seguisse “num intento de traçar o caminho que foi seguido por uma ideia científica, em seu lento avanço da posição de uma provável hipótese à de uma lei estabelecida da natureza.” A Biogênese, então, segundo Huxley, é uma lei estabelecida da natureza. 10 9 London Athenæum, September 17, 1870, p. 378. À vista dos fatos expostos no texto, o professor Huxley pergunta: “Como podemos superestimar o valor de que o conhecimento da natureza da epidemia e epizootias, e, em consequência, dos meios de controle ou a erradicação deles, o amanhecer dos quais certamente começou? Olhando para trás não mais de dez anos, é possível selecionar três (1863, 1864 e 1869) em que o número total de mortes pela febre escarlatina subiu a noventa mil. Essa é a volta dos mortos, o mutilado e incapacitado deixado fora de vista. . . . . Os fatos que coloquei antes de ter que deixar o menos otimista, sem dúvida, que a natureza e as causas deste flagelo um dia se entende tão bem como os da pebrina (a doença do bicho-da-seda) e que o massacre pacientemente sofrido de nossos inocentes chegará a seu fim.” 10 Ao citar o professor Huxley como autoridade em ambos os lados da questão da geração espontânea, não há injustiça feita a esse distinto naturalista. Ele quer crer nessa doutrina. Seus princípios nos levam a essa conclusão. Mas, como uma questão de fato científico, ele está obrigado a admitir que todas as provas estão contra ele. Ele, portanto, não o crê, embora ele pensa que pode ser verdade. Portanto Mc. Mivart diz que o professor Huxley e Tyndall, enquanto que dissentem das conclusões do Dr. Bastian em favor da geração espontânea, não obstante, “concordam com ele, em princípio, apesar de que limitam a evolução do mundo orgânico do inorgânico a um muito remoto período da história do mundo” – Genesis of Species, p. 266, note. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 28 O Professor Tyndall trata este tema em sua conferência pronunciada em setembro de 1870, sobre “Os Usos científicos da imaginação.” Ele diz que a questão relativa à origem da vida é, se é devida a um plano criativo: ‘Haja vida!’ ou a um processo de evolução. Estava potencialmente na matéria desde o princípio? Ou: Foi inserida num período posterior? Por mais que as convicções aqui ou ali podem ser influenciadas, diz ele, “o processo deve ser lento, e elogia a hipótese da evolução natural à mente do público. Porque que são o núcleo e a essência desta hipótese? Dispa-se e você está parado frente a frente com a noção de que não apenas as formas mais ignóbeis da vida animal, não apenas as formas mais nobres do cavalo e do leão, não só o mecanismo delicioso e maravilhoso do corpo humano, mas sim a mente humana em si mesma — a emoção, o intelecto, a vontade e todos os seus fenômenos — foram uma vez latentes numa nuvem de fogo. Sem dúvida, a mera enunciação de tal noção é mais que uma refutação. Não creio que qualquer possuidor da hipótese da evolução diria que eu o exagero ou o esgoto em nenhuma maneira. Eu somente o corto de toda a incerteza, e trago perante vocês, sem roupa e sem adornos, os conceitos pelos quais deve sustentar-se ou cair. Sem dúvida estes conceitos representam um absurdo muito monstruosos para ser entretidos por qualquer mente sã.” 11 O Professor Tyndall, entretanto, assim como o Professor Huxley, está em ambos os lados desta questão. O materialismo, com sua doutrina da geração espontânea, portanto é monstruosa e absurda, só no suposto de que a matéria é matéria. Se você só espiritualizar a matéria até que se transforma em mente, o absurdo desaparece. E também o fazem o materialismo e a geração espontânea, e todo o conjunto de doutrinas científicas. Se a matéria converte-se na mente, a mente é Deus, e Deus é tudo. Assim, o panteísmo monstro traga a ciência e seus devotos. Não no esquecemos de que o naturalista, depois de passar sua vida no estudo da matéria, chega à conclusão de que “a matéria não é nada,” que a 11 Athenæum, September 24, 1870, p. 409. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 29 12 “Suprema Inteligência” é o universo. Assim é que aqueles que excedem os limites do conhecimento humano, ou rejeitam o controle das verdades primárias, caem no abismo das trevas de fora. A forma em que o Professor Tyndall põe a questão é a seguinte: 13 “Estas noções da evolução são absurdas, monstruosas, e só servem para a forca intelectual com relação às ideias relativas à matéria que foi plantada em nós quando jovens. O espírito e a matéria jamais nos foram apresentados no mais rude contraste, um como todo-nobre, o outro como todo-mau.” Se em lugar destas ideias pervertidas da matéria e o espírito, encontramo-nos “a considerá-los como igualmente digno e maravilhoso em partes iguais, a considerá-los, de fato, como duas caras opostas do mesmo grande mistério”, como elementos diferentes, de “que nosso mais poderoso mestre espiritual chamaria o Fato Eterno do Universo,” então o caso seria diferente. Já não seria absurdo, como o Professor Tyndall parece pensar que, para a mente converter-se em matéria ou a mente a matéria, ou os fenômenos de uma ser produzido pelas forças da outra. A distinção real, de fato, entre eles se acabará. “Sem esta revolução total”, diz ele, “das noções que prevalecem hoje, a hipótese da evolução tem que ser condenada, mas em muitas mentes profundamente atentas tal revolução já ocorreu.” Temos, pois, o juízo do Professor Tyndall, uma das mais altas autoridades do mundo científico, de que se a matéria é o que todo mundo crê que é, o materialismo, a geração espontânea, e a 12 Contributions to the Theory of Natural Selection, pp. 363-368. O Sr. Wallace pensa que “o maior feito da ciência, a mais nobre verdade da filosofia,” pode-se encontrar expresso em suas seguintes palavras de um poeta da América: — “Deus do granito e a rosa! Alma do pardal e a abelha! A poderosa maré de Ser flui Através de inumeráveis canais, o Senhor de ti Salta à vida no pasto e nas flores, Através de todos os graus de ser corre, Enquanto que desde as torres radiantes da Criação Sua glória flameja em Estrelas e Sóis” 13 Athenæum, September 24, 1870, p. 409. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 30 evolução ou desenvolvimento, são absurdos “muito monstruosos de ser entretido por qualquer mente sã.” Podemos citar sua grande autoridade quanto a outro ponto. Suponhamos que renunciamos a tudo; admitir que não existe uma distinção real entre matéria e espírito, que todos os fenômenos do universo, vital e mental incluído, podem ser referidos a causas físicas, que um ato livre e espontâneo é um absurdo, que não pode haver intervenção de uma mente controladora ou vontade, nos assuntos dos homens sem a existência pessoal do homem depois da morte, — suponhamos que assim renunciamos à nossa moral e à religião, tudo o que enobrece e dignifica ao homem sua existência, o que ganhamos? Segundo o Professor Tyndall, nada. 14 “A hipótese da evolução”, diz-nos, “não soluciona o problema — não professa resolver — o mistério último deste universo. Deixa esse mistério intacto. No fundo, não faz nada mais que “a transposição da concepção de origem da vida a um passado longínquo indefinidamente. Mesmo a concessão da nebulosa e sua vida em potencial, a pergunta: “De onde vieram?” seguiria ainda para nos confundir e nos desconcertar.” Se tivermos que admitir a agência da vontade, “capricho”, como o Professor Tyndall o chama, milhares de milhões de anos no passado, por que seria antifilosófico admiti-lo agora? É muito evidente, portanto, que a admissão das verdades primárias da razão — verdades que, na realidade, todos os homens admitem — verdades que se referem inclusive a nossas percepções sensoriais, e implicam a existência objetiva do mundo material, exige a admissão da mente, de Deus, da providência e da imortalidade. O Professor Tyndall, a seu juízo, o materialismo, a geração espontânea, a evolução da vida, pensamento, sentimento, e a consciência fora da matéria, são absurdos “muito monstruosos para ser entretidos por uma mente sã, a menos que a matéria se espiritualiza na mente, — e então tudo é Deus, e Deus é tudo. 14 The London Athenæum, September 24, 1870, pp. 407-409. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II Teorias do desenvolvimento. 31 Lamarck. Lamarck, um naturalista francês distinto, foi o primeiro dos modernos homens de ciência que adotaram a teoria de que todos os vegetais e animais que vivem na terra, incluindo o homem, desenvolveuse a partir de certos germes originais e simples. Esta doutrina foi exposta em sua “Zoologie Philosophique,” publicada em 1809. Lamarck admitiu a existência de Deus, a quem ele referiu a existência da matéria de que se compõe o universo. Mas Deus, tendo criado a matéria com suas propriedades, não faz nada mais. A vida, os organismos, e a mente são todos o produto da matéria não inteligente e suas forças. Toda a matéria viva está composta de tecido celular, que consiste na agregação de células minúsculas. Estas células não vivem em si mesmas, mas são aceleradas na vida por um pouco de líquido etéreo que impregna o espaço, tais como o calor e a eletricidade. A vida, portanto, segundo esta teoria, origina-se na geração espontânea. A vida, as células vivas ou os tecidos, tendo assim sua origem, todas as formas diversificadas dos reinos vegetal e animal, foram produzidos pelo funcionamento de causas naturais; o mais alto, ainda o mais elevado, forma-se do mais baixo por um processo longo e continuado de desenvolvimento. Os princípios da teoria do Lamarck “estão envoltos nas três proposições seguintes: — “1. Que qualquer mudança considerável e permanente nas circunstâncias em que se coloca uma raça de animais, induz neles uma mudança real em seus desejos e necessidades. “2. Que esta mudança em suas necessidades requer novas ações de sua parte para satisfazer essas necessidades, e que finalmente novos hábitos são assim gerados. “3. Que estas novas ações e hábitos requerem um uso maior e mais frequente de alguns órgãos já existentes, que assim se tornam Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 32 fortalecidos e melhorados; ou o desenvolvimento de novos órgãos, quando novas necessidades os requerem, ou o descuido da utilização de órgãos velhos, o que pode assim diminuir gradualmente até desaparecer.” 15 Vestígios da Criação. Uns trinta anos desde que uma obra apareceu de forma anônima, intitulada “The Vestiges of Creation,” em que a teoria de Lamarck em aspectos essenciais foram reproduzidos. O escritor esteve de acordo com seu predecessor em admitir uma criação original da matéria, ao referir-se à origem da vida a causas físicas; e em derivar todas as espécies em geral e variedades de plantas e animais mediante um processo de desenvolvimento natural de uma fonte comum. Estes escritores se diferenciam na forma em que levam a cabo seus pontos de vista comuns e quanto aos motivos que enfatizam em seu apoio. O autor de “Vestiges of Creation” assume a verdade da hipótese nebular, e argumenta por analogia que, como são complicados e ordenados os sistemas dos corpos celestes são o resultado de leis físicas que agem sobre a matéria original que impregna o espaço, é razoável inferir que as diferentes ordens de plantas e animais surgiram da mesma maneira. Ele se refere à gradação observada nos reinos vegetal e animal; a mais simples, em todas as partes anteriores, precedendo a mais complexa, e a unidade do plano que se conserva em todas as partes. Ele faz muita insistência também no desenvolvimento fetal das ordens mais elevadas dos animais. O feto humano, por exemplo, assumindo que na sucessão das peculiaridades da estrutura do réptil, dos peixes, das aves e do homem. Supõe-se que isto demonstra que o homem é só um réptil melhor desenvolvido, e que as ordens dos animais diferem simplesmente quanto à etapa que ocupam nesta série de desenvolvimento da vida. À medida que a mesma larva da abelha pode chegar a transformar-se numa 15 William Hopkins, F. R. S. Fraser’s Magazine, June 1860, 151. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 33 rainha, um zangão, ou uma operária, assim a mesma célula viva pode chegar a converter-se num réptil, num peixe, num pássaro, ou num homem. No entanto há,, o autor admite, interrupções na escala, as espécies que aparecem de repente sem a devida preparação. Isto ele ilustra com uma referência à máquina de calcular, que por um milhão de vezes produzirá os números em série regular, e então por uma vez, produz uma quantidade de uma ordem diferente; assim a lei de espécies que se gerarão possam ter êxito por um período indefinido, e de repente uma nova espécie é gerada. Estas teorias e seus autores têm caído no descrédito absoluto entre os homens de ciência, e que não é outro senão um leve interesse histórico. Darwin. A nova teoria sobre o tema proposta pelo Sr. Charles Darwin, tem, de momento, uma retenção mais forte na mente do público. Ele fica na primeira fila dos naturalistas, e está em todos lados respeitados não só por seus conhecimentos e sua destreza na observação e descrição, mas por sua franqueza e justiça. Sua teoria, entretanto, é substancialmente a mesma com os já mencionados, na medida em que também explica a origem de todas as variedades de plantas e animais pela operação gradual de causas naturais. Em sua obra sobre a “Origem das Espécies”, diz: “Creio que os animais são descendentes do máximo só quatro ou cinco progenitores, e as plantas de um igual ou menor número.” Na mesma página, 16 contudo, vai muito além, e diz: “A analogia me levaria um passo além, isto é, a crença de que todos os animais e plantas descendem de um protótipo”, e acrescenta que “todos os seres orgânicos que viveram nesta terra, podem ter descendido de uma forma primordial.” 17 16 The Origin of Species by Means of Natural Selection, or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life, by Charles Darwin, M. A., F. R. S., etc., fifth edition (tenth thousand). London, 1869, p. 572. 17 Ibid. p. 573. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 34 O ponto de maior importância em que Darwin se diferencia de seus predecessores é que começa com a vida, eles com a matéria morta. Eles se comprometem a explicar a origem da vida por causas físicas, enquanto que ele assume a existência de células vivas ou germes. Ele não entra na questão de sua origem. Ele assume que existe; o que pareceria a necessidade de envolver a pressuposição de um Criador. O segundo ponto importante da diferença entre as teorias de que se trata é que os antes mencionados representam a diversidade de espécies pelo poder interno de desenvolvimento, um vis a tergo por assim dizer, quer dizer, uma luta depois da melhora, enquanto que Darwin refere-se à origem das espécies principalmente às leis naturais que operam ab extra, matando os fracos ou menos perfeitos, e a preservação do mais forte ou mais perfeito. O terceiro ponto de diferença, quanto ao autor de “Vestiges of Creation,” refere-se, é que este último supõe novas espécies que se formaram de repente, enquanto que Darwin mantém que surgem por um lento processo de mudanças muito minúsculas. Todos estão de acordo, entretanto, no principal ponto que todas as diversidades infinitas e maravilhosos organismos vegetais e animais, do mais baixo ao mais alto, devem-se à operação de causas físicas não inteligentes. A teoria darwiniana, portanto, inclui os seguintes princípios: Primeiro, que semelhante gera semelhante; ou a lei da herança, segundo a qual através do mundo vegetal e animal a descendência é semelhante aos progenitores. Segundo, a lei da variação; isto é, que enquanto que em todo o essencial a descendência é semelhante aos progenitores, sempre difere em maior ou menor grau de seu progenitor. Estas variações são às vezes deteriorações, às vezes neutras, e às vezes melhoras; isto é, tais que capacitam à planta ou ao animal a exercer mais vantajosamente suas funções. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 35 Terceiro, que como as plantas e os animais aumentam em proporção geométrica, tendem a transbordar grandemente seus meios de sustento, e isto, necessariamente, leva a uma contínua e universal luta pela vida. Quarto, nesta luta sobrevivem os mais aptos: isto é, aqueles indivíduos que têm umas variações acidentais de estrutura que os fazem superiores a seus semelhantes na luta pela existência, sobrevivem, e transmitem aquela peculiaridade à sua descendência. Esta é a «seleção natural», isto é, a natureza, sem inteligência nem propósito, seleciona aos indivíduos melhor adaptados para prosseguir e melhorar a raça. É pela operação destes poucos princípios que no curso de incontáveis foi se produziram todas as formas diversificadas de vegetais e animais. «É interessante», diz Darwin, «contemplar uma ribeira revestida de muitas plantas de muitos tipos, com pássaros cantando nos matagais com vários insetos revolteando ao redor, e com vermes arrastando-se pela úmida terra, e meditar em que estas formas elaboradamente construídas, tão diferentes entre si, e interdependentes entre si de uma maneira tão complexa, foram todas produzidas por leis que agem em nosso redor. Estas leis, tomadas no sentido mais amplo, são Crescimento com Reprodução; a Herança que é quase implicada pela reprodução; a Variabilidade com base na ação indireta e direta das condições de vida, e pelo uso e falta de uso; uma Taxa de Aumento tão alta que leva à Luta pela Existência, e como consequência a Seleção Natural envolvendo Divergência de Caráter e a Extinção de formas menos melhoradas. Assim, é base da guerra da natureza, pela fome e a morte, segue o objeto mais exaltado que somos capazes de conceber, isto é a produção dos animais superiores». 18 18 Darwin, C., The Origin of Species, quinta edição, Londres 1869, pág. 579. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 36 Observações sobre a teoria darwinista. Em primeiro lugar, abala o senso comum dos homens não sofisticados que se lhes diga que a baleia e o colibri, o homem e o mosquito, derivam-se da mesma fonte. Não é que a baleia foi desenvolvida a partir do colibri, ou o homem do mosquito, mas que ambos são derivados por um lento processo das contínuas variações através de incontáveis milhões de anos. Tal é a teoria científica com suas penas arrancadas. Não é de estranhar que em sua primeira promulgação foi recebida pelo mundo científico, não só com surpresa, mas também com indignação. 19 A teoria tem, de fato, sobrevivido a este ataque. Sua harmonia essencial com o espírito da época, a aprendizagem real de seu autor e defensores, asseguraram uma influência que está generalizada e, no momento, imponente. Uma segunda observação é que a teoria em questão não pode ser verdade, porque se baseia na hipótese de uma impossibilidade. Supõe-se que a matéria faz o trabalho da mente. Esta é uma impossibilidade e um absurdo no juízo de todos os homens, exceto dos materialistas; e são materialistas, sempre foram, e devem ser sempre, um punhado entre os homens, quer sejam cultos ou incultos. 19 See Proceedings of the Literary and Philosophical Society of Liverpool during the Fiftieth Session, 1860-61. Este volume contém um documento sobre a teoria de Darwin pelo presidente da sociedade, o reverendo H. H. Higgins, em que diz que ele considerava o papel de M. Agassiz, inserido nos Annals and Magazine of Natural History, contra Darwin, “ser absolutamente indigno de tão distinto naturalista” (p. 42). Numa página posterior el dá uma seleção de comentários depreciativos de Agassiz. O mesmo volume contém um documento do Dr. Collingwood em defesa de Agassiz e sua crítica. Na revisão do argumento que diz que vai passar acima de Agassiz “comentários cáusticos sobre a confusão das ideias implícitas nos termos gerais, a variabilidade das espécies,” e também “suas contradições categóricas de muitas das declarações fundamentais de Darwin; mas nunca foi uma teoria mais acossada que unicamente é a de Darwin pelos repetidos ataques de um gigante em paleontologia como Agassiz. Declaração após declaração, pela que toda a teoria se atém junto, é atacado e impugnado, — pedra a pedra da estrutura darwiniana treme perante o aríete do campeão das espécies. Dos doze tais reiterados ataques, dos quais dez são puramente paleontológicos, e ficam indiscutíveis só se chamou aos comentários, e que, possivelmente, o menos importante” (p.87). Agassiz não é um teólogo; ele opõe-se à teoria como um homem de ciência e sobre bases científicas. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 37 A doutrina de Darwin é, que um germe primordial, sem inteligência inerente, desenvolve, sob influências puramente naturais, em toda a infinita variedade de vegetais e organismos animais, com todas as suas complicadas relações entre si e o mundo que os rodeia. Ele não só afirma que tudo isto se deve a causas naturais, e, além disso, que os impulsos mais baixos da vida vegetal passam, por gradações insensíveis, ao instinto dos animais e à inteligência superior do homem, mas ele se opõe à intervenção da mente em qualquer parte do processo. Deus, diz Lamarck, criou a matéria; Deus, diz Darwin, criou a célula viva não inteligente; ambos dizem que, depois desse primeiro passo, tudo o mais segue a lei natural, sem propósito e sem desígnio. Nenhum homem pode crer nisto, que não pode crer que todas as obras de arte, da literatura e da ciência no mundo são os produtos do ácido carbônico, água e amônia. O caráter ateu desta teoria. Em terceiro lugar, o sistema é completamente ateu e, portanto, não é possível ficar de pé. Deus revelou Sua existência e Seu governo do mundo tão claro e com autoridade, que qualquer especulação filosófica ou científica em contradição com as verdades são como teias de aranha na pista de um tornado. Não oferecem resistência sensível. O mero naturalista, o homem dedicado de maneira exclusiva ao estudo da natureza quanto a crer em nada mais que causas naturais, não é capaz de compreender a força com a que as convicções morais e religiosas se apoderam das mentes dos homens. Estas convicções, entretanto, são as mais fortes, as nobres, e as mais perigosas para qualquer classe de homens não ter em conta ou ignorar. Ao dizer que este sistema é ateu, não se diz que o Sr. Darwin é um ateu. Ele reconhece expressamente a existência de Deus, e parece sentir a necessidade de Sua existência para explicar a origem da vida. Tampouco se pretende que todo aquele que adota a teoria o faz num sentido ateu. Já se assinalou que existe uma forma teísta e ateia da hipótese nebular sobre a origem do universo; assim pode haver uma interpretação teísta da Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 38 teoria darwiniana. Os homens que, como o duque do Argyle, levam o reino da lei em tudo, afirmando que inclusive a criação é por lei, pode manter, como o faz, que Deus usa em todas as partes e constantemente as leis físicas, para produzir não só as operações comuns da natureza, senão para dar lugar a coisas concretamente novas, e portanto a novas espécies no mundo vegetal e animal. Estas espécies, portanto, seriam devidas à finalidade e ao poder de Deus como se tivessem sido criados por uma palavra. As leis naturais, diz-se que são para Deus o que o cinzel e o pincel são para o artista. Então Deus é tanto o autor das espécies assim como o escultor ou pintor é o autor do produto de sua habilidade. Esta é uma doutrina teísta. Essa, entretanto, não é a doutrina de Darwin. Sua teoria é que centenas ou milhares de milhões de anos atrás, Deus chamou um germe vivo, ou germes vivos, à existência, e que desde esse momento Deus não tem mais que ver com o universo mais que se Ele não existisse. Este é o ateísmo para todos os efeitos, porque deixa a alma como inteiramente sem Deus, sem um Pai, Auxiliador, ou Governador, como a doutrina de Epicuro ou de Comte. Darwin, além disso, oblitera todas as evidências da existência de Deus no mundo. Ele se refere às causas físicas que todos os teístas creem que é devido às operações da mente divina. não há forma mais eficaz de desfazer-se de uma verdade que por rejeitar as provas em que se apoia. O Professor Huxley diz que quando leu pela primeira vez o livro de Darwin, ele o considerava como o golpe de morte da teleologia, quer dizer, da doutrina do desígnio e a finalidade da natureza. 20 20 Criticisms on “The Origin of Species;” in his Lay Sermons and Addresses, p. 330. “O argumento teleológico,” diz ele, “diz assim: Um órgão ou organismo é, precisamente, equipado para realizar uma função ou propósito, pelo que foi construído especialmente para realizar esta função. Na famosa ilustração do Paley, a adaptação de todas as partes do relógio para a função ou propósito de mostrar o tempo, considera-se evidência de que o relógio foi especialmente ideado para tal fim; pelo fato de que a única causa que sabemos, competente para produzir tal efeito como um relógio que mostrará a hora, é uma adaptação da inteligência idear os meios diretamente a esse fim.” Suponhamos, entretanto, ele continua dizendo, se pudesse demonstrar que o relógio foi o produto de uma estrutura que dava mal a Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 39 Büchner, a quem o caráter ateu de um livro é uma recomendação, diz que “a teoria de Darwin é a mais completamente naturalista que se possa imaginar, e muito mais ateu que a de seu desprezado (verrufenen) predecessor Lamarck, quem admitiu ao menos uma lei geral do progresso e desenvolvimento, enquanto que segundo Darwin, todo o desenvolvimento deve-se à soma progressiva de inumeráveis operações naturais minúsculas e acidentais.” 21 Darwin argumenta contra qualquer intervenção divina no curso da natureza, e especialmente na produção das espécies. Diz ele que está chegando o tempo em que a doutrina da criação específica, isto é, a doutrina de que Deus fez as plantas e os animais, cada um segundo sua natureza, será considerada como «uma curiosa ilustração da cegueira da opinião preconcebida. Estes autores», acrescenta ele, «não parecem mais surpreendidos diante do milagroso ato da criação que diante de um nascimento comum. Mas, creem realmente que em inumeráveis períodos da história da terra se ordenou a certos átomos elementares que se constituíram de repente em tecidos vivos?» [Isto é precisamente o que Darwin professa crer que sucedeu no princípio. Se sucedeu uma vez, não é absurdo que sucedesse com frequência.] «Creem eles que em cada suposto ato de criação produziu-se um ou muitos indivíduos? Foram todas as imensamente numerosas classes de animais e plantas criadas como ovos ou sementes, ou plenamente desenvolvidas? E no caso dos mamíferos, acaso foram criados levando falsas marcas de alimentação no ventre da mãe?» 22 hora, e que de uma estrutura que não era relógio absolutamente, e isso de um barril rotatório simples, então “a força dos argumentos do Paley se teria ido”; e seria “demonstrado que um aparelho completamente adaptado a um propósito em particular poderia ser o resultado de um método de ensaio e erro operado pelos agentes inteligentes, assim como da aplicação direta dos meios adaptados a tal fim, por um agente inteligente.” Isto é precisamente o que ele entende que Darwin obteve. 21 Sechs Vorlesungen über die Darwin’sche Theorie, etc., by Ludwig Büchner, Zweite Auflage, Leipzig, 1868, p. 125. 22 Origin of Species, pág. 571. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 40 Wallace dedica o oitavo capítulo de sua obra sobre «Seleção Natural» 23 a responder às objeções apresentadas pelo Duque de Argyle contra a teoria darwinista. Diz ele: «A questão em que mais insiste o Duque é que na natureza nos encontramos por todas as partes com provas da mente, e que são mais especialmente manifestas quando encontramos “inventos” ou “beleza”. Ele mantém que isto indica a constante supervisão e a direta interferência do Criador, e que não pode absolutamente ser explicado por alguma combinação de leis. Agora, a obra do Sr. Darwin tem como o principal objetivo mostrar que todos os fenômenos dos seres viventes — todos seus maravilhosos órgãos e complexas estruturas; a infinita variedade de forma, tamanho e cor; suas intrincadas e complexas relações mútuas, – podem ter sido produzidas pela ação de umas poucas leis gerais da natureza mais simples, – leis que na maior parte dos casos são meras declarações de fatos admitidos». 24 Em oposição à doutrina de que Deus «aplica leis gerais para produzir efeitos que aquelas leis não são em si mesmas capazes de produzir», diz ele, «eu creio, ao contrário, que o universo está constituído de tal maneira que se regula a si mesmo; que enquanto que contém vida, as formas sob as quais esta vida se manifesta têm um poder inerente de ajustar-se entre si e com a natureza ao redor; e que este ajuste conduz necessariamente a maior quantidade de variedade e de beleza e 23 Wallace on Natural Selection, p. 264. Wallace on Natural Selection, p. 265. Quando alguém fala a respeito da «ação da lei», tem que significar por lei uma força permanente e de ação regular. Mas as leis às quais se refere o Sr. Wallace na passagem anterior não são forças, mas simplesmente regras com base nas quais age um agente, ou uma sequência regular, estabelecida, de eventos. As leis mencionadas são a lei da multiplicação em progressão geométrica, a lei da limitação da população, a lei da herança, a lei da variação, a lei da mudança incessante das condições físicas sobre a superfície da terra, o equilíbrio ou harmonia da natureza. Mas deve-se objetar intensamente contra o uso da palavra lei em diferentes sentidos no mesmo argumento. Se por lei se significa aqui a regra pela qual um agente age (neste caso Deus), o Duque de Argyle poderia estar de acordo com todas as palavras do Sr. Wallace. Se se tomam no sentido que lhes dá o escritor, a passagem ensina exatamente o oposto, isto é, que tudo o que o mundo é ou contém deve-se a forças físicas carentes de inteligência. 24 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 41 de prazer, porque depende de leis gerais, e não de uma supervisão contínua e reajuste dos detalhes». 25 O Dr. Gray 26 esforça-se para vindicar a teoria de Darwin da acusação de ateísmo. Seus argumentos, entretanto, só vão demonstrar que a doutrina do desenvolvimento, ou da derivação das espécies, podem ser mantidos numa forma consistente com o teísmo. Isto ninguém o nega. Eles não provam que o senhor Darwin apresenta-se nessa forma. O próprio Dr. Gray, admite tudo o que aqueles que consideram a teoria de Darwin como ateia disputam. 27 Ele diz: “A proposta de que as coisas e acontecimentos na natureza não foram designados para ser assim, se logicamente levada a cabo, é sem dúvida, equivalente ao ateísmo.” Mais uma vez, 28 ele diz: “Para nós, um Cosmos fortuito é simplesmente inconcebível. A alternativa é um Cosmos designado. .... Se o Sr. Darwin crê que os acontecimentos que ele supõe sucederam e os resultados que contemplamos foram não dirigidos e sem desígnio, ou se o físico crê que as forças naturais às quais atribui os fenômenos são processadas e sem direção, não se precisa de nenhum argumento para mostrar que tal crença é ateia”. Depois do que se disse mais acima, não se precisa de nenhum argumento para nos mostrar que Darwin ensina certamente que as causas naturais «carecem de direção», e que agem sem desígnio ou referência a um fim. Isto não só é declarado de maneira explícita vez após vez, mas também que se argumenta para estabelecê-lo, enquanto que o ponto de vista oposto é ridicularizado e rejeitado. Seu livro foi aclamado como o golpe de morte contra a teleologia. 29 Por isso, Darwin ensina 25 Ibid. p. 268. O Sr. Russel Wallace diz que ele crê que todas as maravilhas dos organismos animais e vegetais e da vida podem ser explicados mediante leis físicas carentes de inteligência. A realidade é, como já vimos, que não crê tal coisa. Não crê que haja tal coisa como matéria ou forças carentes de inteligência; [para ele] toda força é força mental; e o único poder operando no universo é a vontade da Suprema Inteligência. No número de outubro do Atlantic Monthly de 1860, pág. 416. 27 Na página 409. 28 Na página 408. 29 Três artigos nos números de julho, agosto e outubro do Atlantic Monthly para o ano 1860 foram reimpressos com o nome do doutor Asa Gray como seu autor. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 42 precisamente o que o Dr. Gray descreve como ateísmo. Pelo que parece, pode-se crer em Deus, e entretanto ensinar ateísmo. O caráter antiteísta e materialista desta teoria é ainda mais evidenciado pelo que diz Darwin de nossas capacidades mentais. «No distante futuro», diz ele, «vejo campos abertos para mais importantes investigações. A psicologia se levantará sobre uma nova base, a da necessária aquisição de cada poder e capacidade mental por gradação. Se arrojará luz sobre a origem do homem e sua história». 30 Ele mesmo tentou cumprir esta predição em sua recente obra a respeito «Da linhagem do homem», na qual tenta demonstrar que o homem é um símio desenvolvido. A Bíblia diz: o Homem foi criado à imagem de Deus. É uma mera hipótese. Uma quarta observação a respeito desta teoria é que é uma mera hipótese, sendo por seu própria natureza incapaz de ser provada. Pode tomar seu lugar junto à hipótese nebular como um engenhoso método de explicar muitos dos fenômenos da natureza. Vemos ao nosso redor, no caso dos animais domésticos, numerosas variedades produzidas pelas operações de causas naturais. No mundo vegetal esta diversidade é ainda maior. A teoria do Sr. Darwin justificaria todos estes fatos. Dá conta, além disso, pela unidade de plano em que todos os animais da mesma classe ou ordem se constroem, porque os órgãos subdesenvolvidos e rudimentares em quase todas as classes de seres viventes, e pelas diferentes formas através das quais o embrião passa antes de chegar à maturidade. Estes e muitos outros fenômenos podem ser explicados na hipótese da derivação das espécies. Admitindo tudo isto e muito mais, isto não equivale a uma prova da hipótese. Estes fatos podem explicar-se de outra maneira; enquanto que são, como o próprio Darwin admite, muitos fatos para os quais sua teoria não dará conta. Que tenha em conta o que a teoria é. Não é que todas as espécies de qualquer gênero 30 Origin of Species, p. 577. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 43 existente de plantas ou animais se derivaram de um tronco comum, que todos os gêneros e classes de seres que agora vivem organizados foram assim derivados, mas que todos os organismos, dos mais antigos períodos geológicos, por um processo que requer uns quinhentos milhões de anos, foram derivados de um germe primordial. 31 Isto não é tudo. Não é só que esses organismos materiais foram obtidos por um processo de gradação, mas também que os instintos, as faculdades mentais e morais, foram derivadas e alcançadas pelo mesmo processo. Isto nem sequer é tudo. Chama-nos a crer que tudo isto foi provocado pela ação de causas físicas não inteligentes. Para nossa compreensão, não há nada na mitologia e cosmologia hindu mais incrível que isto. Não se arrisca muito dizer que esta hipótese não pode ser demonstrada. Certamente, seus defensores não pretendem prover prova alguma. O Sr. Wallace, como vimos, diz: «A obra do Sr. Darwin tem como principal objetivo mostrar que todo os fenômenos dos seres vivos – todos os seus maravilhosos órgãos e complexas estruturas; a infinita variedade de forma, tamanho e cor; suas intrincadas e complexas relações mútuas, – podem ter sido produzidas pela ação de umas poucas leis gerais da natureza mais simples». Podem ter sido. Não se pretende que este relato da origem das espécies possa ser demonstrado. Tudo o que se afirma é que é uma possível solução. Os cristãos devem ser muito pacatos para assustar-se por um mero «podem ter sido». 31 Sir William Thompson, da Inglaterra, tinha objetado a teoria de que, segundo seus cálculos, o sol não pode ter existido num estado sólido de mais de quinhentos milhões de anos. A isso o Sr. Wallace responde, que tal período, pensa ele, é tempo suficiente para satisfazer as demandas da hipótese. Sr. J.J. Murphy, entretanto, é da opinião contrária. Ele diz que é provável que se requer pelo menos quinhentos anos para produzir um galgo — o ideal de Mc. Darwin de simetria — de cães originais de lobo, e que sem dúvida se requereria mais de um milhão de vezes mais tempo para produzir um elefante de um protozoário, ou inclusive um girino. Além disso, Sir William Thompson tolera, de fato, só um, e não quinhentos milhões de anos para a existência da terra. Nas Transactions of Geological Society of Glasgow, Vol. III, ele diz: “Quando, por último, consideramos a temperatura do subsolo, vemo-nos obrigados à conclusão de que o estado atual de coisas na terra, a vida na terra, toda a história geológica que mostra a continuidade da vida, deve ser limitado dentro de um período de tempo passado como até cem milhões de anos.” Veja-se Habit and Intelligence, by J. J. Murphy, London, 1869, Vol. I. p. 349. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 44 O Sr. Hux1ey diz: «Depois de muita consideração, e certamente sem preconceito contra os pontos de vista do Sr. Darwin, é nossa clara convicção de que, tal como está a evidência, não está demonstrado absolutamente que um grupo de animais, possuindo todos os caracteres exibidos pelas espécies na Natureza, tenha-se jamais originado por seleção, seja esta artificial ou natural». 32 Nos números de junho e julho de 1860 de Fraser's Magazine aparecem dois artigos a respeito da teoria darwinista, escritos pelo William Hopkins, F.R.S. No número de julho diz-se: «Se aceitamos totalmente o peso de todos os argumentos de nosso autor em seu capítulo a respeito de hibridismo, só chegamos à conclusão de que a seleção natural talvez pudesse ter produzido mudanças de organização, que podem ter induzido a esterilidade das espécies; e que portanto a proposição anterior possa ser certa, embora não se possa aduzir nem um só fato positivo como prova da mesma. E deve-se lembrar que esta não é uma proposição de uma importância secundária – uma mera torre, por assim dizer, na fábrica teórica de nosso autor, – mas sim a principal pedra angular que a sustenta. Confessamos que todo o respeito que sentimos para com o autor destas opiniões não nos inspirou um sentimento semelhante para com esta filosofia do poderia ser, que se contente pondo o meramente possível em lugar do provável, e que, ao ignorar a responsabilidade de qualquer aproximação a uma demonstração rigorosa no estabelecimento de suas próprias teorias, dá por sentado de maneira complacente que são corretas até que sejam rigorosamente demonstradas falsas. Quando Newton, em tempos passados, propôs sua teoria da gravitação, não pediu aos filósofos que 32 Lay Sermons and Reviews, pág. 323. Admite-se que inumeráveis variedades foram produzidas por causas naturais, mas o Professor Huxley diz que não se demonstrou que nenhuma espécie se formou assim. Por isso, por mais forte razão, não se demonstrou que todos os gêneros e espécies, com todos os seus atributos de instinto e inteligência, tenham sido formados desta maneira. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 45 cressem ou que lhe demonstrassem que era errônea, mas sentiu que cabia a ele demonstrar que era correta». 33 A resenha do Sr. Hopkins foi escrita antes que Darwin se definiu de maneira plena a respeito de suas opiniões quanto à origem do homem. Diz ele que a grande dificuldade em qualquer teoria de desenvolvimento é “a transição em passar ao homem dos animais mais próximos por debaixo dele, não ao homem considerado meramente como um organismo físico, mas sim ao homem como ser intelectual e moral. Lamarck e o autor dos ‘Vestígios’ não duvidaram em expor-se a uma acusação do mais áspero materialismo ao derivar a mente da matéria, e ao atribuir todas as suas propriedades e operações à nossa organização física. .... Cremos que o homem tem uma alma imortal, e que as bestas do campo não a têm. Se alguém negar isto, não podemos então ter nenhuma base comum para argumentar com ele. Agora quereríamos perguntar: Em que momento de seu avanço progressivo adquiriu o homem esta parte espiritual de seu ser, dotada com o esmagador atributo da imortalidade? Foi uma “variedade acidental”, captada pelo poder da “seleção natural”, e feita por ela permanente? Deve-se considerar a passagem do finito ao infinito como um dos passos indefinidamente pequenos no contínuo progresso no desenvolvimento do homem, alcançado pela operação de causas naturais comuns?” 34 Mas o ponto de que tratamos agora é que a teoria do Sr. Darwin é incapaz de demonstração. Pela própria natureza do caso, o que trata da origem das coisas não pode ser conhecido mais que por revelação sobrenatural. Tudo o mais deve ser especulação e conjetura. E ninguém que seja guiado pela razão renunciará aos ensinos de uma revelação bem autenticada, obedecendo a especulações humanas, por engenhosas que sejam. A incerteza que acompanha todas as filosofias ou teorias científicas a respeito da origem das coisas é suficientemente evidente 33 34 Frazer' s Magazine, julho de 1860, pág. 80. Frazer' s Magazine, julho de 1860, pág. 88. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 46 com base na quantidade de incoerências que apresentam. A ciência, logo que se separa do real e do existente, é a região da especulação, confundese com a filosofia, e fica sujeita a todas as suas alucinações. Teorias do Universo Assim, temos: 1. A teoria puramente ateia, que dá por sentado que a matéria existiu sempre, e que tudo o que o universo contém e revela é devido a forças materiais. 2. A teoria que admite a criação da matéria, mas nega qualquer intervenção adicional de Deus no mundo, atribuindo a origem da vida a causas físicas. Esta era a doutrina de Lamarck, e a do autor de «Vestígios da Criação», e é a teoria à que parece inclinar-se o Professor Huxley, apesar de sua negação da geração espontânea no estado atual de coisas, parece fortemente inclinado em seu discurso como Presidente da Associação Britânica para o Fomento da Ciência, emitido em setembro de 1870, ele disse: “Olhando para trás através da vista prodigiosa do passado, não encontro nenhum registro do início da vida, e portanto estou destituído de meios para formar uma conclusão definitiva quanto às condições de sua aparição. A crença, no sentido científico da palavra, é um assunto sério e requer bases sólidas. Dizer, portanto, em falta das provas admitidas, que tenho uma crença quanto ao modo em que as formas atuais de vida têm sua origem, seria o uso de palavras num sentido errado. Mas a expectativa é permissível, onde a crença não é, e me foi dado olhar para além do abismo do tempo genealogicamente registrado ao período mais remoto, quando a terra passava pelas condições físicas e químicas que não podem ver-se outra vez mais que um homem pode lembrar sua infância, eu devo esperar ser uma testemunha da evolução do protoplasma vivo da matéria não viva. Devo esperar vê-lo aparecer sob as formas de uma grande simplicidade, dotado, como os cogumelos existentes, com o poder de determinar a formação de novo protoplasma de tais matérias como carbonatos de Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 47 amônio, oxalatos e tartaratos, fosfatos alcalinos e terra, e água, sem a ajuda da luz.” 35 Tinha sido também pela causa da verdade, e assim para os centenas que foram pervertidos por seus escritos, se o senhor Darwin tivesse reconhecido esta distinção entre “crença científica” que necessitam “bases sólidas” e “expectativas,” fundadas, como o Professor Huxley diz numa frase seguinte, “no raciocínio analógico.” No artigo já citado no “Fraser’s Magazine,” o escritor diz com referência a Darwin: “Também servirá lembrar que o naturalista filosófico não só deve treinar o olho para observar com precisão, mas também a mente para pensar de maneira lógica; e neste último com frequência encontra-se a tarefa mais difícil dos dois. Com relação a todos, exceto as ciências exatas, pode-se dizer que a mais alta faculdade mental que nos chamam a exercer é aquela pela qual separamos e apreciamos justamente o possível, o provável, e o demonstrável.” 36 Darwin. 3. A terceira ideia especulativa é a do Sr. Darwin e de seus partidários, que admitem não só a criação da matéria, mas também da matéria viva, em forma de um ou uns poucos germes primitivos dos quais, sem nenhum propósito nem desígnio, pela lenta operação de causas naturais não inteligentes e de variações acidentais, durante longas foi, foram-se formando todas as ordens, classes, gêneros, espécies e variedades de plantas e animais, desde os mais inferiores até os mais superiores. Por isso, a teleologia, e por isso a mente, ou Deus, ficam explicitamente excluídas do mundo. Ao argumentar contra a ideia do controle de Deus com o desígnio da operação das segundas causas, o Sr. Darwin pergunta: “Ordenou Ele que o cultivo e as penas da cola da pomba deveria variar, a fim de que o entendido possa fazer seu bico grotesco e raças de pombo-correio? Faz Ele que a estrutura e qualidades 35 36 Athenæum, London, September 17, 1870, p. 376. July, 1860, p. 90. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 48 mentais do cão variam com o fim de que uma raça se possa formar de ferocidade indomável, com mandíbulas adaptadas a obrigar o touro para o esporte brutal do homem? Mas, se abandonamos o princípio num caso, — se não se admitir que as variações dos cães primitivos foram intencionalmente guiados, com o fim de que o galgo, por exemplo, que a imagem perfeita da simetria e vigor, podem formar-se — nenhuma sombra da razão pode ser atribuída à crença de que variações, tanto na natureza e resultado das próprias leis gerais, que foram as bases da seleção natural da formação ou os animais melhor adaptados no mundo, incluído o homem, foram guiados intencionalmente e especialmente. Por muito que desejemos, não podemos seguir o Professor Asa Gray em sua crença de ‘que a variação foi conduzida ao longo de certas linhas benéficas,’ como um arroio, ‘'por linhas definidas e úteis de irrigação’.” 37 Neste ponto o homem se declara ser um produto não desejado da natureza. J. J. Murphy. 4. Outros, incapazes de crer que as causas ininteligentes possam produzir efeitos indicando previsão e desígnio, insistem em que tem que haver uma inteligência dedicada à produção de tais efeitos, mas situam esta inteligência na natureza, e não em Deus. Isto, como se observou interiormente, é um avivamento da velha ideia de um Demiurgo, ou Anima mundi. O Sr. J. J. Murphy, em sua obra sobre “Habit and Intelligence,” diz, eu creio “que há algo no progresso orgânico que a mera seleção natural entre as variações espontâneas não dará conta. Por último, creio que isto é algo que a organização de inteligência que guia a ação das forças inorgânicas e as estruturas de formas que nem a seleção natural nem nenhum outro organismo inteligente poderia formar.” 38 O 37 The Variation of Animals and Plants under Domestication, edit. New York, 1868, Vol. II. pp. 515, 516. 38 Habit and Intelligence, in their connection with the Laws of Matter and Force. A series of Scientific Essays. By Joseph John Murphy. London, 1869, Vol. I. p. 348. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 49 que quer dizer com inteligência e onde reside podemos aprender do prefácio do primeiro volume de seu livro. “A palavra inteligência,” diz ele, “quase não necessita definição, tal como eu a uso em seu sentido familiar. Não vai ser questionado por ninguém que a inteligência não se encontra em nada senão nos seres vivos, mas isso não é tão evidente que a inteligência é um atributo de todos os seres vivos, e coextensivo com a própria vida. Quando falo da inteligência, entretanto, quero dizer não só a inteligência consciente da mente, mas também a inteligência organizadora que adapta o olho para ver, o ouvido para ouvir, e qualquer outra parte de um organismo para seu trabalho. A crença habitual é que a inteligência organizadora e a inteligência mental são duas inteligências distintas. Declarei as razões de minha crença de que não são distintas, mas são duas manifestações separadas da mesma inteligência, que é coextensiva com a vida, embora seja em sua maior parte inconsciente, e só se torna consciente de si mesmo no cérebro do homem.” 39 Owen. 5. O Professor Owen, o grande naturalista inglês, concorda com Darwin em dois pontos: primeiro, na derivação ou gradual evolução das espécies; e segundo, que esta derivação está determinada pela operação de causas naturais. «Fui levado a reconhecer as espécies», diz ele, «como exemplificando a operação contínua da lei natural, ou causa secundária; e isso não só sucessiva, mas também progressivamente; desde a primeira encarnação da ideia vertebrada sob sua velha vestimenta ictíica até que se revestiu da gloriosa roupagem da forma humana». 40 Difere de Darwin em que ele não atribui a origem das espécies à seleção natural, isto é, à lei da sobrevivência das mais aptas das variações acidentais, mas sim a tendências inerentes ou inatas. «Cada espécie muda, no tempo, em virtude de tendências inerentes à mesma». 41 E em segundo lugar, não 39 Ibid. Vol. I. p. 6. American Journal of Science, 1869, p. 43. 41 Ibid. p. 52. 40 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 50 considera estes mudanças como variações acidentais, mas sim como desenhados e levados a cabo em virtude de um plano original. “As espécies devem pouco,” diz ele 42 “da concorrência acidental de circunstâncias como o cosmos circundante depende de uma concorrência fortuita de átomos. Uma rota com propósito de desenvolvimento e mudança, de correlação e interdependência, que manifesta vontade inteligente, é determinável na sucessão de raças como no desenvolvimento e organização do indivíduo. Gerações não variam por acaso, em cada uma e todas as direções; mas em cursos preordenados, definidos e relacionados.” 43 O reino da teoria da lei. 6. Outra opinião é a que demanda inteligência para dar conta das maravilhas da vida orgânica, e acha esta inteligência em Deus, mas repudiando a ideia do sobrenatural. Isto é, não admite que Deus opere jamais exceto por meio de segundas causas ou pelas leis da natureza. Os que adotam esta postura estão dispostos a admitir a derivação das espécies; e a conceder que as espécies existentes foram formadas por meio de modificações das que as precederam; mas mantêm que foram formadas assim com base no propósito e pela contínua ação de Deus; uma ação sempre operativa na guia da operação das leis naturais, de maneira que cumpram os desígnios de Deus. A diferença entre esta teoria e a do Professor Owen é que ele não parece admitir este contínuo controle inteligente de Deus na natureza, mas atribui tudo ao propósito preordenado ou plano original do Ser Divino. 7. Finalmente, e sem pretender ter esgotado as especulações a respeito desta questão, temos o que se pode chamar a doutrina usualmente recebida e escriturística. Esta doutrina ensina: (1) Que o universo e tudo o que ele contém deve sua existência à vontade e ao 42 43 Ibid. p. 52. Veja-se o trabalho do professor Owen na Anatomy of Vertebrates, o quadragésimo capítulo que foi reproduzido na American Journal of Sciences de janeiro de 1869. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 51 poder de Deus; que a matéria não é eterna, nem a vida se origina a si mesma. (2) Deus dotou a matéria, com propriedades ou forças, que Ele sustenta, e conforme com as quais Ele opera em todas as operações comuns de Sua providência. Isto é, Ele as emprega em todas as partes e constantemente, assim como nós as empregamos em nossa restringida esfera. (3) Que no princípio criou, ou deu a vida, a cada tipo distintivo de planta e animal: «Disse Deus: Produza a terra erva verde, erva que dê semente; árvore de fruto que dê fruto segundo seu gênero, que sua semente esteja nele, sobre a terra. E foi assim». «Logo disse Deus: Produza a terra seres viventes segundo sua espécie, bestas e serpentes e animais da terra segundo a sua espécie. E foi assim». Este é o relato escriturístico da origem das espécies. Segundo este relato, cada espécie foi criada de maneira especial, não ex-nihilo, nem sem a intervenção de causas secundárias, mas entretanto de maneira original, não derivadas, evoluídas ou desenvolvidas de espécies preexistentes. Estas espécies distintas ou classes de plantas e animais assim originadas separadamente são permanentes. Nunca se transformam de uma a outra. Entretanto, deve lembrar-se que as espécies são de duas classes, como os naturalistas as distinguem, isto é, as naturais e as artificiais. As primeiras são as que têm seu fundamento na natureza; que tiveram uma origem distinta e que são capazes de propagar-se indefinidamente. As últimas são aquelas distinções que os naturalistas têm feito para sua própria conveniência. Naturalmente, não se afirma que cada uma das chamadas espécies de plantas e animais seja original e permanente, quando a única distinção entre uma e outra espécie possa ser a forma de uma folha ou a cor de uma pena. É só daquelas espécies que têm seu fundamento na natureza que se afirma sua originalidade e permanência. As espécies artificiais, como são chamadas, são simplesmente variedades. A fertilidade da descendência é o critério reconhecido da uniformidade da espécie. Se o que se acabou de dizer é concedido, então, se em qualquer momento da criação original, novas espécies apareceram na terra, devem sua existência à intervenção imediata de Deus. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 52 Aqui, pois, temos ao menos sete opiniões diferentes quanto à origem das espécies. Como pode a ciência decidir-se entre elas? A ciência tem que ver com os fatos e as leis da natureza. Mas aqui a questão trata da origem de tais fatos. «Aqui», diz o Dr. Gray, «não se pode dispor de provas no sentido próprio do termo. Estamos para além da região da demonstração, e temos só probabilidades a considerar». 44 Os cristãos têm direito a protestar contra o posicionamento de probabilidades contra os claros ensinos da Escritura. Não é fácil estimar o mal que se faz quando homens eminentes põem o peso de sua autoridade do lado da incredulidade, influenciados por um mero peso de probabilidades num departamento, descuidando as mais convincentes provas de uma classe diferente. Por exemplo, tratam a questão da unidade da raça humana de maneira exclusiva como uma questão zoológica, ignorando o testemunho da história, da linguagem e das Escrituras. Assim, com frequência se decidem contra a Bíblia com base em uma evidência que não convenceria a um jurado inteligente num pleito por uma pequena soma de dinheiro. Dificuldades admitidas para a teoria darwinista. Uma das excelentes qualidades do Sr. Darwin é sua sinceridade. Ele reconhece que existem graves objeções contra a doutrina que está tentando estabelecer. Admite que se uma espécie se derivar de outra por lentas gradações, seria natural esperar que se vissem por todas as partes os passos intermediários, ou elos de conexão. Mas reconhece que os tais não se encontram; que ao longo de todo o período histórico as espécies permaneceram sem mudanças. São agora precisamente o que eram faz milhares de anos. não há a mais ligeira indicação de que uma se transforme em outra; nem que uma inferior avanço para com outra superior. Isto se admite. A única resposta à dificuldade que assim apresenta-se é que a mudança de espécies é um processo tão lento que 44 Atlantic Monthly, August, 1860, p. 230. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 53 não se podem esperar razoavelmente nenhumas indicações nos poucos milhares de anos compreendidos dentro dos limites da história. Quando objeta-se além que a geologia nos apresenta a mesma dificuldade, que os gêneros e as espécies de animais fósseis são tão distintos como os que agora vivem; que as novas espécies aparecem em certas épocas totalmente distintas das que as precederam; que os especímenes mais perfeitos destas espécies aparecem frequentemente no começo de um período geológico, e não para com seu fim, a resposta que se dá é que os registros da geologia são muito imperfeitos para nos dar um pleno conhecimento desta questão: que um grande número inumerável de formas intermediárias e de transição podem ter desaparecido sem deixar traçado alguma de sua existência. Tudo isto equivale a admitir que toda a história e toda a geologia estão contra a teoria, e que não só não contribuem com dados em favor da mesma, mas também contribuem com dados que, pelo que respeita a nosso conhecimento, Contradizemna. Referindo-se a estas objeções com base na geologia, diz o Sr. Darwin: «Só posso responder a estas questões e objeções com base na hipótese de que o registro geológico é muito mais imperfeito que o que creem muitos geólogos. O número de espécimes em todos nossos museus não é absolutamente nada em comparação com as incontáveis gerações de incontáveis espécies que certamente existiram». 45 Não obstante, o registro, pelo que respeita à sua própria evidência, está contra a teoria. * 45 * Origin of Species, p. 550. Isto foi escrito em 1872, A situação em 1991 não mudou. De fato, a evidência cumulativa nas investigações paleontológicas e genéticas desde 1859, data da publicação da obra A origem das espécies, de Charles Darwin, levou a adoção, da parte de certos evolucionistas, de teorias não gradualistas, e de um total rechaço do darwinismo como mecanismo evolucionista, embora promulgando dogmaticamente o evolucionismo. O geneticista evolucionista R. B. Goldschmidt propôs em 1940 descartar o gradualismo, devido à consciência de que a genética evidenciava a estabilidade das espécies, e propôs que os mudanças de espécie a espécie seriam bruscas, por «mutações sistêmicas», isto é, de todo o sistema orgânico do indivíduo. Em suas palavras, «um réptil pôs um ovo, e saiu um pássaro». Embora a maior parte dos evolucionistas rejeitaram então esta ideia, a verdadeira natureza do registro fóssil e da herança genética, com sua variabilidade circunscrita à natureza de cada espécie natural, forçou a outros eminentes evolucionistas a apresentar alternativas, admitindo a bancarrota do evolucionismo gradualista. Assim, o paleontólogo de Harvard, Dr. Gould, seguido por um bom número de outros Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 54 Com relação à objeção mais séria de que a teoria supõe que a matéria faz o trabalho da mente, que o desenho é cumprido sem desenhista algum, o Sr. Darwin é igualmente cândido: «A princípio nada parece mais difícil de crer que os órgãos e instintos mais complexos tenham sido aperfeiçoados não por meios superiores, embora análogos, à razão humana, mas pela acumulação de inúmeras pequenas variações, cada uma delas boa para o respectivo indivíduo. Não obstante, esta dificuldade, embora para nossa imaginação parece insuperavelmente grande, não pode ser considerada real, se admitimos as seguintes proposições: isto é, que todas as partes da organização e dos instintos oferecem ao menos diferenças individuais, — que há uma luta pela existência que conduz à preservação de separações proveitosas da estrutura ou do instinto, — e finalmente, que podem ter existido gradações no estado da perfeição de cada órgão, cada uma delas boas em sua classe». 46 Também diz: “Embora a crença de que um órgão tão perfeito como o olho pudesse ter sido formado por seleção natural é mais que suficiente para afligir a qualquer um, entretanto, no caso de qualquer órgão, se sabemos de uma longa série de gradações em complexidade, cada uma delas boa para seu possuidor, então, sob condições cambiantes de vida, paleontólogos e geneticistas, propõe que a evolução de uma a outra espécie teve longo a grande velocidade em lugares geograficamente limitados e num lapso dou tempo tão curto que não pôde deixar rastros no registro geológico, enquanto que as durações da espécie original e a da espécie resultante desta relativamente rápida passagem foram tão dilatadas que ambas ficaram registradas no registro fóssil. Vale dizer que com estas teorias trata-se simplesmente de justificar a inexistência de evidência em favor do conceito evolucionista da origem das espécies. Portanto, não se podem apresentar tais explicações como evidência de que o evolucionismo é certo. Segue sucedendo como nos tempos de Darwin: O evolucionismo é a explicação necessária para aqueles que buscam negar a Deus. Mas é uma explicação carente de evidências em seu favor. E como explicação, tem que recorrer constantemente a explicações aparentemente plausíveis de por que todas as evidências cruciais estão ausentes. Há autores, como Colin Patterson, diretor do Museu Britânico de História Natural, e Michael Denton, diretor de um instituto de investigação bioquímica na Austrália, entre outros, que publicaram várias obras denunciando a bancarrota total do evolucionismo como ferramenta explicativa, e rejeitando-o expressamente, embora não de uma perspectiva crente, mas sim agnóstica, sem adotar o criacionismo. Patterson chega a afirmar que o evolucionismo é «anticonhecimento», uma perspectiva que envenena a capacidade cognitiva dos que o abraçam. (N. do T.) 46 Origin of Species, pág. 545. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 55 não há nenhuma impossibilidade lógica na aquisição de qualquer grau concebível de perfeição por meio de seleção natural”. 47 O Sr. Darwin recusa sentir-se afligido por aquilo que ele diz ser suficiente para afligir a qualquer um. Se for dado um número suficiente de anos, algumas complicações fortuitas podem fazer o que for. Se se encontra uma parte áspera de sílex, declara-se que é obra do homem, porque indica desígnio, enquanto que um o órgão como o olho pode ser formado por seleção natural, agindo às cegas. Isto, diz o Dr. Gray em sua apologia, é, ou seria, uma estranha contradição. A esterilidade dos híbridos A imutabilidade das espécies está impressa na própria face da natureza. O que seriam as letras de um livro se tudo ficasse imerso em confusão, seriam os gêneros e as espécies das plantas e animais se estivessem, como o supõe a teoria de Darwin, num estado de constante variação, e isso em todas as direções possíveis. Todos os limites estariam totalmente ausentes, e os pensamentos de Deus, como as espécies foram chamadas, teriam sido apagadas de suas obras. Para impedir esta confusão de «espécies», foi estabelecido como lei natural que os animais de diferentes «espécies» não podem mesclar-se para produzir um pouco diferente de ambos os pais, para misturar-se por sua vez e ficar confundidos com outros animais de outra natureza. Em outras palavras, é lei da natureza, e por isso uma lei de Deus, que os híbridos sejam estéreis. Este fato não o nega o Sr. Darwin. Tampouco nega ele o peso do argumento derivado com base nele contra sua teoria. A única coisa que faz, como nos casos já mencionados, é tentar dar conta do fato. Os elos de conexão entre as espécies estão ausentes; mas pode ser que se perderam. Os híbridos são estéreis mas pode ser que isto se possa explicar de outra maneira sem aceitar que foi feito por desígnio para assegurar a permanência das espécies. Quando se descobre que um 47 Ibid., p. 251. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 56 grande fato da natureza assegura o cumprimento de um fim de suma importância na natureza, é justo inferir que foi designado para o cumprimento deste fim, e consequentemente este fim não deve ser passado por alto nem negado. Distribuição geográfica. O Sr. Darwin é igualmente sincero com referência a outra objeção à sua doutrina. “Quanto à distribuição geográfica,” diz ele, 48 “as dificuldades encontradas na teoria da descendência com modificação são bastante sérias. Todos os indivíduos da mesma espécie, e todas as espécies do mesmo gênero, e até grupos superiores, devem ter descendido de antepassados comuns, e portanto, em partes muito distantes e isoladas do mundo que agora podem encontrar-se, devem no curso das sucessivas gerações viajar de um ponto a todos os outros.” Quando se leva em conta que este é o caso dos moluscos e crustáceos, os animais cujo poder de locomoção é muito limitado, esta distribuição quase universal de um centro parece ser uma impossibilidade. A resposta de Darwin a isto é a mesma que às dificuldades já mencionadas. Ele se lança sobre as possibilidades de duração ilimitada. Ninguém pode dizer o que pôde ter sucedido durante as idades incontáveis do passado. “Olhando à distribuição geográfica,” diz ele, “se for admitido que se produziu através do longo curso das idades muita migração de uma parte do mundo a outra, devido a antigas mudanças climatológicas e geográficas e dos muitos meios ocasionais e desconhecidos de dispersão, então podemos entender, na teoria da descendência com modificação, a maior parte dos grandes fatos condutores da distribuição.” 49 Cada um deve ver quão inconclusivo é todo esse raciocínio. Se admitirmos que muitas coisas desconhecidas podem ter sucedido no passado infinito, então podemos, mas não totalmente, entender mais dos 48 49 Origin of Species, p. 547. Origin of Species, p. 564. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 57 fatos que se opõem à teoria da derivação das espécies. A mesma observação pode fazer-se com referência à constante apelação aos efeitos desconhecidos de duração ilimitada. “A causa principal,” diz o Sr. Darwin, “de nossa falta de vontade natural em admitir que uma espécie deu à luz a outras espécies distintas, é que estamos sempre lentos em admitir qualquer grande mudança de que não vemos os passos. . . . . A mente não pode captar o sentido pleno do termo de até dez milhões de anos; não pode somar e perceber os efeitos completos de muitas pequenas variações acumuladas durante um número quase ilimitado de gerações.” 50 Se dissermos que o macaco durante o período histórico se estende por milhares de anos não tem feito a mais mínima aproximação para converter-se num homem, é-nos dito: Ah! mas não sei o que vai fazer em dez milhões de anos. Ao que é uma resposta suficiente para perguntar: Quanto custa dez milhões vezes nada? Os homens comuns rejeitam esta teoria darwiniana com indignação, assim como com decisão, não só porque os exorta a aceitar o possível como uma verdade demonstrável, mas sim porque atribui a causas cegas, não inteligentes as maravilhas de propósito e desenho que o mundo exibe em todas as partes; e porque efetivamente desterra a Deus de suas obras. Para tais homens é uma satisfação saber que a teoria é rejeitada por razões científicas pela grande maioria dos homens de ciência. O próprio Darwin diz: “As várias dificuldades aqui discutidas, ou seja — que, embora se encontre nas formações geológicas numerosos vínculos existentes entre as espécies que agora existem e que antes existia, não encontramos imensamente numerosas formas de transição que se reúnem com eles todos juntos, a forma súbita em que vários grupos inteiros de espécies aparecem pela primeira vez nas formações europeias; a ausência quase completa, como se conhecem na atualidade, de formações ricas em fósseis debaixo dos estratos cambrianos, — são, sem dúvida, da natureza 50 Ibid., p. 570. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 58 mais séria. Isto o vemos no fato de que os paleontologistas mais destacados, ou seja, Cuvier, Agassiz, Barrande, Pictet, Falconer, E. Forbes, etc., e todos os nossos maiores geólogos, como Lyell, Murchison, Sedgwick, etc., têm unanimemente, com frequência com veemência, mantido a imutabilidade das espécies.”51 Em 1830 houve uma prolongada discussão a respeito deste tema na Académie des Sciences em Paris, Cuvier ficando do lado da permanência das espécies, e da criação e da organização governada por um propósito final, enquanto que Geoffrey St. Hilaire pôs-se do lado da derivação e da mutabilidade das espécies, e «negou», como diz o Professor Owen, «a evidência de desígnio, e protestou contra a dedução de um propósito». A decisão foi quase unânime em favor de Cuvier; e desde 1830 até 1860 dificilmente uma voz levantou-se em oposição à doutrina proposta por Cuvier. Isto, tal como pensa Büchner, foi o triunfo do empirismo, apelando aos fatos, sobre a filosofia conduzida pelo «Apriorische Speculationem». O Professor Agassiz, reconhecido como o maior dos naturalistas vivos, conclui assim sua resenha do livro de Darwin: «Se a teoria transformista fosse certa, o registro geológico deveria exibir uma sucessão ininterrupta de tipos passando gradualmente da um ao outro. O fato é que através de todos os tempos geológicos cada período fica 51 Origin of Species, p. 383. Numa edição anterior de seu trabalho ele incluiu o nome do Professor Owen nesta lista, que ele agora omite, e ele também retira isso de Lyell; acrescentando que a passagem anterior citou as palavras: “Mas o Sr. Charles Lyell agora dá o apoio de sua alta autoridade ao lado oposto.” O professor Owen, como se mostra acima, embora agora admita a mutabilidade das espécies, está muito longe da adoção da teoria de Darwin. O elemento essencial desta teoria é a negação da teleologia; a afirmação de que as espécies devem sua origem à operação não inteligente de causas naturais. Owen claramente nega isto. “Assumindo, então,” diz ele, “que o Palaeotherium chegou a ser em última instância Equus, eu não obtenho nenhuma concepção da operação da força efetiva da personificação como ‘natureza’ o conjunto dos seres que compõem o universo, ou as leis que governam estes seres, dando à minha personificação um atributo que propriamente só pode pregar-se da inteligência, e dizendo: ‘A natureza selecionou os cascos divididos e rejeitou outros’.” American Journal of Science, second series, Vol. 47. p. 41. Quanto a Sir Charles Lyell, a menos que se converteu num homem novo da publicação da nona edição de seus Principles of Geology en 1853, é segundo o Professor Owen de adotar a teoria de Darwin, embora ele possa admitir, em certo sentido, a derivação das espécies. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 59 caracterizado por tipos específicos definidos, que se podem referir a ordens definidas, constituindo classes definidas e ramos definidos, construídos com base em planos definidos. Até que se demonstre que os que recolheram os dados da natureza erraram, e que têm um sentido diferente do que agora geralmente lhes é atribuído, eu considerarei a teoria transformista como um erro científico, falsa em seus fatos, anticientífica em seu método, e de tendência prejudicial». 52 Assim, se as espécies forem imutáveis, sua existência deve ser devido à ação de Deus mediata ou imediata, e em qualquer caso exercida de tal maneira para fazer com que estas se correspondam com um pensamento e propósito na mente divina. E, de maneira mais especial, o homem não deve sua origem ao gradual desenvolvimento de uma forma inferior de vida irracional, mas à energia de seu Criador a cuja imagem foi ele criado. Pangênese. O Sr. Darwin em “Origin of Species,” 53 refere-se, à hipótese da pangênese,” que, diz ele, tinha desenvolvido em outra obra. Como esta hipótese é feita a serviço da que nos ocupa, serve para ilustrar sua natureza e oferece uma visão da natureza da mente do escritor. O Sr. Mivart afirma que a hipótese da pangênese pode enunciar-se como segue: “Que cada organismo vivo é em última instância, composto por um número quase infinito de minúsculas partículas ou átomos orgânicos, denominados ‘gêmulas,’ cada um deles tem o poder de reproduzir seu tipo. Por outro lado, que estas partículas circulam livremente pelo organismo que se compõe delas, e se derivam de todas as partes de todos os órgãos dos antepassados menos remotos de cada organismo, em todos os estados e etapas de tal existência de vários antepassados, e portanto, dos vários estados de cada um de tais órgãos antepassados. Que tal coleção completa de gêmulas é acrescentada em cada óvulo e 52 53 American Journal, July, 1860, p. 154. Página 196. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 60 espermatozóide na maioria dos animais, e cada parte pode reproduzir por gemação (brotação) nos animais inferiores e plantas. Portanto em muitos destes organismos inferiores como um amontoado de grammules ancestrais deve existir em todas as partes de seus corpos, visto que neles cada parte é suscetível de reprodução por gemação. O Sr. Darwin, evidentemente, deve admitir isto, visto que diz: ‘Tem-se dito com frequência pelos naturalistas que cada célula de uma planta tem a capacidade real ou potencial de reproduzir toda a planta; mas tem esse poder só em virtude de que contêm derivadas gêmulas de todas as partes’.” 54 Estas gêmulas são átomos orgânicos; são quase infinitas em número; derivam-se de todos os órgãos dos antepassados menos remotos da planta ou animal; armazenam-se em cada óvulo ou espermatozóide; são capazes de reproduzir-se. Mas a reprodução, como implicando o controle de causas físicas para obter um propósito, é uma obra da inteligência. Estas gêmulas inconcebivelmente numerosas e minúsculas, portanto, os assentos da inteligência. Certamente isto não é ciência. Toda teoria que necessita o apoio de tal hipótese deve ser abandonada prontamente. Seria muito mais fácil crer nas fadas que formam cada planta, que nestas gêmulas. Finalmente, pode-se observar que o Sr. Wallace, embora advogue pela doutrina da “Seleção Natural”, mantém que não é aplicável ao homem; que não pode explicar seu estado original nem presente; e que é impossível, com base na teoria do Sr. Darwin, dar conta da organização física do homem, de suas capacidades mentais, nem de sua natureza moral. A este tema dedica o décimo capítulo de sua obra. 54 Genesis of Species, by St. George Mivart, F. R. S. London, 1871, chap. X. p. 208. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II § 3. A antiguidade do homem. 61 «Hoje em dia», é-nos dito, «os antropólogos concordam geralmente em que o homem não é uma recente introdução na terra. Todos os que estudaram a questão admitem agora que sua antiguidade é muito grande; e que, embora até certo ponto tenhamos determinado o mínimo de tempo durante o qual deve ter existido, não fizemos uma aproximação à determinação do período muito maior durante o qual pode ser que tenha existido. Podemos afirmar, com uma certeza possível, que o homem deve ter habitado a terra há mil séculos, mas não podemos afirmar positivamente que não tenha existido, nem que haja boa evidência de que não tenha existido, por um período de dez mil séculos». 55 A respeito disso deve observar-se, primeiro, que é um fato histórico que nada é menos confiável que estes cálculos a respeito do tempo. Poderia encher-se um volume com exemplos de erros dos naturalistas a respeito desta questão. O mundo não esqueceu o entusiasmo dos inimigos da Bíblia quando se encontrou que o número de capas sucessivas sobre as ladeiras do Monte Etna era tão grande que exigia, segundo se dizia, de milhares e milhares de anos para sua condição atual. Tudo isto se desvaneceu. O Sr. Lyell calculou que se precisava de duzentos e vinte mil anos para dar conta das mudanças que estão tendo lugar nas costas da Suécia. Geólogos posteriores reduzem este tempo a uma décima parte da primeira estimativa. Encontrou-se um fragmento de cerâmica sepultado profundamente sob os depósitos na boca do Nilo. Falou-se com toda confiança que aquele depósito não se podia ter formado durante o período histórico, até que se mostrou que o artigo em questão era de fabricação romana. Por isso, os homens de ciência sóbrios não têm confiança nestes cálculos que demandam milhares de séculos ou inclusive milhões de anos, para a produção de efeitos posteriores às grandes épocas geológicas. A segunda observação com referência a esta 55 Wallace on Natural Selection, p. 303. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 62 grande antiguidade que se afirma da raça humana é que as razões que lhe são atribuídas são, na opinião dos mais eminentes homens de ciência, insatisfatórias. Os dados que se apresentam para demonstrar que o homem viveu durante um número indeterminável de eras sobre a terra são: (1) A existência de populações edificadas sobre pilares, agora submersas em lagos na Suíça e em outros lugares, que, supõe-se, são de grande antiguidade. (2) A descoberta de restos humanos em estado fóssil em depósitos aos quais os geólogos atribuem uma idade contada por dezenas, ou centenas, de milhares de anos. (3) A descoberta de utensílios de diferentes classes, feitos de sílex, na companhia de restos de animais extintos. (4) A antiga separação de homens nas distintas raças nas quais agora subsistem. A respeito desta questão diz Sir Charles Lyell: «Os naturalistas durante muito tempo sentiram que, para tornar provável a opinião recebida de que todas as variedades da família humana surgiram originalmente de um só casal (uma doutrina contra a qual, na minha opinião, não se pode opor nenhuma sã objeção), precisa-se de um lapso de tempo muito maior para a lenta e gradual formação de raças (como a caucásica, a mongólica e a negra) que aquele abrangido em qualquer dos sistemas cronológicos populares». Os caucásicos e os negros aparecem distintivamente marcados em monumentos egípcios aos quais se atribui uma antiguidade de três mil anos. Por isso, argui ele, temos que admitir «uma imensa série de eras anteriores» para dar conta da formação gradual destas distintas raças. 56 Além de todos estes argumentos, afirmase que os monumentos e registros que existem demonstram a existência do homem sobre a terra muito antes do período atribuído à sua criação na Bíblia. 56 Principles of Geology, por Sir Charles Lyell. F.R.S., novena edição, Boston, 1853, pág. 660. Vejase também The Geological Evidences of the Antiquity of Man pelo mesmo autor, Filadélfia, 1863, pág. 385. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 63 Habitações lacustres. Em muitos dos lagos da Suíça foram descobertos pilares erosionados até a superfície do barro, ou projetando-se ligeiramente acima dele, que no passado tinham sustentado habitações humanas. São tão numerosos que fazem evidente que povos inteiros ficavam assim sustentados sobre a superfície da água. Estes povoados, «quase todos eles», são «de data desconhecida, mas os mais antigos» dos mesmos «pertenciam certamente à idade da pedra; porque se extraíram centenas de artigos da lama em que estavam cravados os pilares, artigos parecidos com os dos montículos conchíferos e musgos de turfa da Dinamarca». Uma grande quantidade de ossos de não menos de cinquenta e quatro espécies animais foram extraídos nestas localidades, todos os quais, com uma só exceção, seguem vivendo na Europa. Neste número se incluem os restos de vários animais domesticados, como o boi, a ovelha, a cabra e o cão. 57 Evidentemente, tudo isto não constitui prova de uma grande antiguidade. Inclusive a fins do século passado, * podiam-se ver moradias similares, sustentadas sobre pilares. Todos os restos de animais que se encontram são de espécies existentes. Não há nada que dê evidência de que estas habitações lacustres fossem sequer da época dos humanos. Os raciocínios são feitos com base na ausência de metal e a presença de artigos de pedra. Por isso, infere-se que estes povoados pertenciam à «Idade da Pedra». Esta foi sucedida pela «Idade do Bronze», e esta pela Idade do Ferro. Sir Charles Lyell nos informa de que os geólogos suíços, representados por M. Monet, atribuem «à idade do bronze uma data dentre três mil e quatro mil anos, e ao período da pedra uma idade de cinco a sete mil anos». 58 Entretanto, é uma especulação totalmente arbitrária que houvesse jamais uma idade da pedra. Baseia-se na pressuposição de que a 57 Antiquity of Man, cap. II, pág. 17. Isto é, do século XVIII – N. do T. 58 Ibid. pág. 28. * Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 64 condição original do homem foi de barbárie, da qual se elevou através de uma lenta progressão; durante o primeiro período de seu progresso empregou só artigos de pedra. Logo, de bronze, e logo, de ferro; e que milhares de anos transcorreram antes que a raça passasse de uma destas etapas de progresso a outra. Por isso, se são encontrados restos humanos em algum lugar com relação a artigos de pedra, são atribuídos à idade da pedra. Com base nesta maneira de raciocinar, se são encontradas pontas de flecha e machados de pedra num povoado índio, a inferência deveria ser que todo mundo estava em estado de barbárie neste tempo, quando se empregavam estes artigos. Admitindo que na época de ocupação destes povoados lacustres as pessoas da Suíça, e inclusive todos os habitantes da Europa, fossem desconhecedores do uso do metal, isto não demonstraria que a civilização não estivesse em todo o seu esplendor no Egito ou na Índia. Além disso, a pressuposição de que o estado original fosse de barbárie não é só contrária à Bíblia e às convicções da maioria dos eruditos, mas sim, segundo se crê, aos dados históricos mais claros. Restos fósseis humanos. Muito mais peso neste debate anexa-se à descoberta de restos humanos nos mesmos lugares e nas mesmas circunstâncias com aqueles animais agora extintos. Disto se infere que o homem deve ter vivido quando os animais ainda habitavam a Terra. Estes restos humanos não se encontram em nenhuma das rochas fossilíferas antigas. O fato das Escrituras de que o homem foi o último dos seres vivos que saía da mão de Deus, encontra-se inatacável por qualquer fato cientista. Um esqueleto humano quase perfeito se encontrou encravado numa rocha calcária na ilha de Guadalupe. Essa rocha, entretanto, é de origem moderna, e ainda está em processo de formação. A idade atribuída a este fóssil trata-se só de duzentos anos. Um fragmento de rocha conglomerado se obteve a uma profundidade de dez pés por debaixo do leito do rio Dove, na Inglaterra, que contém moedas de prata do reinado do Eduardo I. Isto demonstra Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 65 que não requer muitos anos para formar rochas, e para enterrá-las profundamente sob a superfície. Os restos aos quais se faz insistência só se encontram em cavernas e enterrados sob depósitos de turfa ou de matérias terrosas. Os geólogos parecem estar de acordo quanto ao fato de que os ossos humanos se encontraram em certas covas na França, na Bélgica e na Inglaterra intimamente associados com os restos de animais que agora vivem, e com as poucas de algumas das raças extintas. Sendo o fato admitido, a pergunta é: Como se deve levar em conta? Esta justaposição não é prova certa da contemporaneidade. Estas cavernas, uma vez que o complexo das feras, chegou a ser esconderijos de homens, de defesa, de culto, ou de sepultura, e, portanto, como Sir Charles Lyell admite: “Não é nas evidências de tais misturas que devemos admitir facilmente a antiguidade alta da raça humana, ou a data recente de certa espécie perdida de quadrúpedes.” 59 Em conexão imediata com a passagem que acabamos de nos referir, Lyell sugere outro método pelo qual os restos de animais pertencentes a idades muito diferentes do mundo poderia chegar a ser misturados entre si. Quer dizer, “abrir fissuras” que “servem como armadilhas naturais.” Ele cita a seguinte conta do Professor Sedgwick de um abismo de enorme profundidade, mas desconhecida, que “está rodeada de bancos de estantes cobertos de erva, e muitos animais, tentados na direção do seu bordo, caíram e pereceram nele. O acesso de gado está agora impedido por uma forte muralha elevada, mas não pode haver dúvida de que, durante os últimos dois ou três mil anos, grandes massas de brechas ósseas deve ter acumulado nas partes baixas da grande fissura, que provavelmente desce toda a espessura do precipício de pedra calcária à profundidade de talvez cinco ou seiscentos pés.” A isto Lyell acrescenta: “Quando alguma destas armadilhas naturais ocorrem para comunicar-se com as linhas de cavernas subterrâneas, os ossos, a terra, e a brecha 59 Principles of Geology, nona edição, p. 740. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 66 podem afundar-se por seu próprio peso, ou ser arrastados às galerias de baixo.” 60 Há uma terceira forma em que se pode contar este entrelaçamento de ossos de animais de diferentes idades. Quanto às cavernas notáveis na província de Lieja, Sir Charles Lyell, diz que o Dr. Schmerling, o naturalista, pelo qual tinham sido cuidadosa e laboriosamente examinados, não pensavam que eram “guaridas de bestas selvagens, mas que seus conteúdos orgânicos e inorgânicos tinham sido varridos pelas correntes comunicando-se com a superfície do país. Os ossos, sugeriu ele, pode com frequência ter sido rodados nos leitos de tais arroios antes de chegar a seu destino no subsolo.” 61 É evidente, portanto, que nenhum argumento conclusivo para demonstrar que o homem foi contemporâneo com certos animais extintos podem extrair-se do fato de que seus restos foram em alguns casos raros encontrados nas mesmas localidades. Ossos humanos achados profundamente sepultados. Menos peso ainda se deve dar ao fato de que se tenham achado ossos humanos profundamente sepultados na terra. Todos sabem que tiveram lugar enormes mudanças na superfície da terra dentro do período histórico. Tais mudanças são produzidas em algumas ocasiões pela lenta operação das causas que sepultaram os alicerces de tais cidades antigas como Jerusalém e Roma muito abaixo do atual nível da superfície da terra. Em outras ocasiões foram causados por cataclismos repentinos. Não é surpreendente que se descubram restos humanos em turfeiras, se, como nos diz Sir Charles Lyell: “Todas as moedas, machados, armas e outros utensílios descobertos em turfeiras britânicas e francesas são romanas; pelo que uma proporção considerável da turba nas turfeiras europeias, evidentemente, não tem uma maior antiguidade que a época de Júlio César”. 62 60 Ibid. pp. 740, 741. Antiquity of Man, p. 64. 62 Principles of Geology, p. 721. 61 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 67 Os dados com os quais se determina a velocidade de deposição de sedimentos são tão incertos que não se pode confiar neles. Sir Charles Lyell diz: «A estimativa mínima de tempo exigida» para a formação do atual delta do Mississipi é de mais de cem mil anos. 63 Segundo a cuidadosa exploração efetuada por membros da Exploração Costeira e outros técnicos dos Estados Unidos, o tempo durante o qual o delta esteve em formação é de quatro mil e quatrocentos anos. 64 Em toda a memória do homem, ou desde que se edificaram choças de pescadores nas costas da Suécia, houve tal afundamento da costa que se encontrou uma choça de pescador, com um tosco lar para fogo em seu interior, ao cavar um canal a uma profundidade de sessenta pés [vinte metros]”. 65 «Durante o terremoto de 1819 perto do Delta do Indo uma área de duas mil milhas quadradas (cinco mil e duzentos quilômetros quadrados) transformou-se num mar interior, e o forte e a população de Sindree afundou até que os telhados das casas estavam bem em cima das águas. A cinco milhas e meia [oito quilômetros e meio] de Sindree, em paralelo com esta área afundada, uma região foi elevada a dez pés (três metros) acima do delta, numa extensão de cinquenta milhas [oitenta quilômetros] de longitude, e em algumas partes de dez milhas [dezesseis quilômetros] de largura». 66 O fato de que os monumentos da arte humana não pode pretender uma antiguidade superior a uns poucos milhares de anos, fá-la totalmente incrível que o homem existiu na terra centenas de milhares ou, como Darwin supõe, milhões de anos. Implementos de pederneira. Tanto estresse tem sido posto na descoberta de certos implementos de pederneira nos depósitos que, discute-se, são de tal idade para 63 Antiquity of Man, p. 43. Veja-se Report upon de Physics and Hydraulics of the Mississippi River, pelo Capitão A. A. Humphreys e o Tenente H. L. Abbott, Corpo de Engenheiros Topográficos Exército dos os EUA, 1861, pág. 435. 65 Dana, Manual of Geology, p. 586. 66 Ibid., p. 588. 64 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 68 demonstrar que o homem deve ter estado presente na terra durante séculos antes do tempo atribuído na Bíblia para sua criação. A este argumento a mesma resposta deve ser dada. Em primeiro lugar, que a presença das obras de arte humana nesses depósitos não há provas de que os homens foram contemporâneos com tais depósitos; à vista das elevações da superfície da Terra e deslocamentos que todos os geólogos admitem são de ocorrência frequente na história de nosso planeta. E em segundo lugar, os próprios Fatos estão em disputa, ou interpretados de maneira diversa pelos homens de ciência de igual autoridade. Isto é especialmente certo de flechas de pederneira, fileira de pérolas, e machados encontram-se no vale de Somme, na França. 67 Lyell confia em que o argumento deles é conclusivo. Mais tarde os exames, entretanto, levaram outros a uma conclusão diferente. Esta é uma pergunta para que os homens de ciência decidam entre eles, e que só eles são competentes para decidir. Não obstante, enquanto que os homens da mais alta posição como os naturalistas afirmam que a ciência não conhece nenhum fato inconsistente com o relato bíblico da origem do homem, os amigos da Bíblia não estão obrigados a afastar-se da interpretação geralmente recebida das Escrituras sobre este assunto. O Professor Guyot, como bem sabem todos os que o conhecem ou ouviram suas conferências públicas, ensina que há fatos que não se conhecem, que não poderá ter-se em conta no suposto de que o homem existiu sete ou oito mil anos nesta terra. É bem sabido também que esta doutrina, muito recentemente, era universal entre os homens de ciência. Cuvier estava tão convencido sobre este ponto que quase não podia pôr-se a olhar o que pretendia ser os restos fósseis do homem. Esta convicção de sua parte, não era um prejuízo, nem era devida a uma reverência pela Bíblia. Era uma convicção científica fundada na evidência científica. As provas de todas as fontes da origem recente do homem foram consideradas como tais que se evite a possibilidade de seu 67 To these Lyell devotes the seventh and eight chapters of his work on the Antiquity of Man. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 69 ser contemporâneo com qualquer das raças de animais extintos. E inclusive aqueles que foram levados a admitir esse ponto, estavam em muitos casos dispostos ao que se refere o fato como uma prova não da antiguidade do homem, mas à existência de um período muito mais tarde que geralmente se supõe, de animais agora extintos. A presença das relíquias humanas com os ossos de animais extintos, “não me parece”, diz Prestwich, “necessitar a realização do homem no tempo passado, tanto como o adiantamento que traz dos animais extintos para com nosso próprio tempo.” 68 O fato de que os monumentos da arte humana não podem pretender uma antiguidade superior a uns poucos milhares de anos, faz totalmente incrível que o homem existiu na terra centenas de milhares ou, como Darwin supõe, milhões de anos. Argumento com base nas raças dos homens e de monumentos antigos. Outro argumento se baseia na hipótese de que a diferença entre as raças caucásica, mongólica e negra, que se sabe que estava já marcada de uma maneira igualmente precisa dois ou três mil anos antes de Cristo, como é agora, deve ter demandado incontáveis eras para desenvolver-se e estabelecer-se. A isto é evidente a seguinte resposta: Primeiro, que diferenças igualmente grandes se estabeleceram dentro do período histórico em animais domésticos. Segundo, que não é incomum que as variedades marcadas se produzam repentinamente, e, por assim dizer, acidentalmente. Em terceiro lugar, que estas variedades de raça não são efeito da operação cega de causas físicas, mas antes, são por aquelas causas que são inteligentemente guiadas por Deus para o cumprimento de algum sábio propósito. Os animais que vivem nas regiões árticas não são apenas vestidos de peles para a sua proteção contra o frio, mas a cor de sua roupa muda com a estação. E assim Deus dispõe as diferentes raças humanas em suas peculiaridades para que sejam apropriadas para 68 Quoted by Professor Dana, Manual of Geology, p. 582. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 70 as regiões em que habitam. O doutor Livingstone, o grande explorador africano, informa-nos que o tipo negro, tal como se concebe popularmente, aparece muito raramente na África, e só em distritos em que prevalece um grande calor em conexão com uma grande umidade. As tribos no interior daquele continente diferem muito, diz ele, tanto em tom como em forma. A ideia de que devem ter passado incontáveis eras para que o homem surgisse da mais profunda barbárie ao estado de civilização indicado pelos monumentos do Egito não repousa sobre nenhuma hipótese melhor. O estado mais antigo do homem, em lugar de ser o inferior, foi em muitos aspectos seu estado superior. E nossa própria experiência como nação demonstra que não se necessitam milênios para que um povo chegue a produzir maiores obras das quais possam jactar-se o Egito ou a Índia. Faz duzentos anos este país era um ermo do Atlântico até o Pacífico. E o que é agora? Segundo Bunsen, seriam necessários cem mil anos para levantar todas estas cidades e para edificar todos estas ferrovias e canais. Insiste-se ainda como uma prova da grande antiguidade do homem que os monumentos e registros monumentais do Egito demonstram que existiu uma nação no mais elevado estado de civilização na época do dilúvio, ou imediatamente posterior ao mesmo. Argui-se que a cronologia da Bíblia e a cronologia do Egito são irreconciliáveis. Com referência a esta dificuldade pode-se observar que os cálculos dos egiptólogos são tão precários, e em muitos casos tão extravagantes, como os dos geólogos. Isto se demonstra com suas discrepâncias. Pode dizer-se, entretanto, que mesmo os estudantes mais moderados das antiguidades egípcias atribuem uma data ao reinado de Manes e a construção das pirâmides incompatível com a cronologia da Bíblia. A isto se pode replicar que a cronologia da Bíblia é muito incerta. Os dados correspondem em sua maior parte aos fatos casualmente estabelecidos; quer dizer, não estabelecidos para os propósitos da cronologia. Os pontos de vista mais geralmente adotados descansa principalmente na Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 71 autoridade do arcebispo Usher, que adotou o texto hebraico como seu guia, e assumiu que nas tábuas genealógicas cada nome marcava uma geração. Entretanto, uma grande parte, dos estudiosos da Bíblia adotaram a cronologia da Septuaginta com preferência aos hebreus; de modo que em vez de quatro mil anos da criação até o nascimento de Cristo, temos perto de seis mil anos. Além disso se admite que o método habitual de cálculo baseado nas tábuas genealógicas é muito incerto. O desígnio destas tábuas não é dar a sucessão regular dos nascimentos numa linha determinada, mas simplesmente marcar a descendência. Isto é assim bem feito se for omitido três, quatro ou mais gerações, como se toda a lista fosse completa. Que este é o plano em que estas tábuas genealógicas se constroem é um fato admitido. “Assim, em Gênesis 46:18, depois de registrar aos filhos da Zilpa, seus netos e seus bisnetos, o escritor acrescenta: ‘São estes os filhos de Zilpa . . . . deu ela à luz a Jacó, a saber, dezesseis pessoas.’ A mesma coisa se repete no caso de Bila, versículo 25, ‘deu ela à luz a Jacó, ao todo sete pessoas.’ Comparar versículos 15, 22. Ninguém pode pretender que o autor deste registro não usou o termo compreensivelmente dos descendentes além da primeira geração. Da mesma maneira, segundo Mateus 1:11, Josias gerou a Jeconias seu neto, e o versículo 8, Jeorão gerou a Uzias seu tataraneto. E em Gênesis 10:15-18, Canaã, o neto de Noé, diz-se que gerou várias nações inteiras, o jebuseu, o amorreu, o girgaseu, o heveu, etc., etc. Nada pode ser mais claro, portanto, mais que no uso da Bíblia, para parir e ‘gerar’ utilizam-se num sentido amplo para indicar a ascendência, sem limitar esta à descendência imediata.” 69 A extrema incerteza que assiste a todas as tentativas para determinar a cronologia da Bíblia é suficientemente demonstrada no fato de que cento e oitenta diferentes cálculos foram realizados por autores 69 The Pentateuch Vindicated from the Aspersions of Bishop Colenso, by William Henry Green, Professor in the Theological Seminary, Princeton, N. J., New York, 1863, p. 132. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 72 judeus e cristãos, da duração do período entre Adão e Cristo. O mais longo destes o faz seis mil novecentos e oitenta e quatro, e a mais curta três mil quatrocentos e oitenta e três anos. Sob estas circunstâncias, é muito claro que os amigos da Bíblia não têm nenhum motivo para inquietação. Se os fatos da ciência ou da história ultimamente, deve fazer necessário admitir que oito ou dez mil anos transcorreram desde a criação do homem, não há nada na Bíblia no caminho da concessão. As Escrituras não nos ensinam quanto tempo os homens tinham existido sobre a terra. Suas tábuas da genealogia pretendem demonstrar que Cristo era o filho de Davi e da semente de Abraão, e não quantos anos tinham transcorrido entre a criação e o advento. 70 70 Herzog’s, Encyklopädie, article “Zeitrechnung,” que cita a obra beneditina L’Art de vérifior les Dates. Vol. I., pp. 27.-36. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II CAPÍTULO II 73 A NATUREZA DO HOMEM § 1. A doutrina escriturística. AS ESCRITURAS nos ensinam que Deus formou o corpo humano do pó da terra, e soprou nele o fôlego de vida, e veio a ser uma alma vivente ()נֶפֶשׁ חַי. Com base neste relato, o homem compõe-se de dois princípios distintivos: corpo e alma: um, material, o outro imaterial; um corpóreo, o outro espiritual. Nesta declaração está envolvido, primeiro, que a alma humana é uma substância; e, segundo, que é uma substância distinta do corpo. De modo que na constituição do homem se incluem duas substâncias distintas. A ideia de substância, como se observou antes, é uma das verdades primárias da razão. Dá-se na consciência de cada homem, e por isso forma parte da fé universal dos homens. Estamos conscientes de nossos pensamentos, sentimentos e volições. Sabemos que estes exercícios ou fenômenos são constantemente mutáveis, mas que há algo do qual eles são os exercícios e manifestação. Este algo é o eu, que permanece sem mudanças, que é o mesmo e idêntico algo, ontem, hoje e amanhã. Por isso, a alma não é uma mera série de atos; tampouco é uma forma da vida de Deus, nem uma mera força insubstancial, mas sim uma verdadeira subsistência. Tudo aquilo que age é, e o que é é uma entidade. Uma não entidade é nada, e nada não pode ter poder nem produzir efeitos. Por isso, a alma do homem é uma essência ou entidade ou substância, o sujeito permanente de seus vários estados e exercícios. O segundo ponto mencionado não está menos claro. Assim como nada podemos saber de uma substância exceto por seus fenômenos, e porquanto estamos obrigados por uma lei de nossa natureza a crer na existência de uma substância da qual os fenômenos são sua manifestação, assim por uma necessidade igualmente intensa nos vemos obrigados a crer que quando dois fenômenos são não só diferentes, mas Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 74 também incompatíveis, ali as substâncias são deste modo diferentes. Portanto, como os fenômenos ou propriedades da matéria são essencialmente diferentes dos da mente, vemo-nos forçados a concluir que a matéria e a mente são duas substâncias distintas; que a alma não é material, nem o corpo espiritual. “Para identificar a matéria com a mente», diz Cousin, numa passagem antes citada “ou mente com matéria; é necessário pretender que a sensação, o pensamento, a volição, são reduzíveis, em última análise; a solidez, extensão, figura, divisibilidade, etc.; ou que a solidez, extensão, figura, etc., são reduzíveis a sensação, pensamento, vontade”. 71 Por isso, pode-se dizer, apesar dos materialistas e idealistas, que é intuitivamente certo que a matéria e a mente são duas substâncias distintas; e esta foi a fé da grande massa da humanidade. Esta visão da natureza do homem que se apresenta no relato original de sua criação é sustentada pelas constantes descrições da Bíblia. Verdades a respeito deste tema assumidas nas Escrituras. As Escrituras não ensinam de maneira formal nenhum sistema de psicologia, mas há certas verdades relacionadas tanto com nossa constituição física como mental que dão de contínuo por supostas. Supõem, como já vimos, que a alma é uma substância; que é uma substância distinta da do corpo; e que há dois, e não mais que dois, elementos essenciais na constituição do homem. Isto é evidente: (1) Pela, distinção que se faz em todas as partes entre alma e corpo. Assim, no relato original da criação faz-se uma clara distinção entre o corpo como formado do pó da terra, e a alma ou princípio de vida que foi soprado nele por Deus. E em Gn 3:19 diz-se: «És pó, e ao pó voltarás». Porquanto foi só o corpo o que foi formado do pó, é só o corpo o que deve voltar para o pó. Em Ec 12:7 afirma-se: «E o pó volte à terra de onde procede, e o espírito volte a Deus, que o deu». Is 10:18, «Também 71 Elements of Psychology, Traducción de Henry, N.Y., 1856, pág. 370. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 75 consumirá a glória da sua floresta e do seu campo fértil, desde a alma até ao corpo». Daniel (Dn 7:15, RC) diz: «Quanto a mim, Daniel, o meu espírito foi abatido dentro do corpo». Nosso Senhor (Mt 6:25) manda a seus discípulos que não se preocupem com seu corpo; e, outra vez mais (Mt 10:28), «não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei, antes, aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo corpo». Esta é a constante descrição das Escrituras: O corpo e a alma são apresentadas como substâncias distintas, e as duas juntas como constitutivas do homem inteiro. (2) Há uma segunda classe de passagens igualmente decisivas a respeito deste ponto. Consiste daquelas em que o corpo é descrito como uma vestimenta que deve ser lançada de lado; um tabernáculo ou casa em que mora a alma, que pode deixar e ao qual voltar. Paulo, numa determinada ocasião, não sabia se estava no corpo, ou fora do corpo. Pedro disse que considerava oportuno, enquanto estava neste tabernáculo, lembrar a seus irmãos a verdade, «sabendo», diz ele, «que é iminente o abandono de meu tabernáculo» (2Pe 1:14, gr.). Paulo diz, em 2Co 5:1 - «Sabemos que, se a nossa casa terrestre deste tabernáculo se desfizer, temos da parte de Deus um edifício, casa não feita por mãos, eterna, nos céus». Neste mesmo contexto fala de ser despidos e revestidos com nossa casa que é do céu, e de estar ausentes do corpo e presentes com o Senhor, sabendo que enquanto estamos no corpo estamos ausentes do Senhor. Aos Filipenses (Fp 1:23, 24) diz ele: «Ora, e um e outro lado, estou constrangido, tendo o desejo de partir e estar com Cristo, o que é incomparavelmente melhor. Mas, por vossa causa, é mais necessário permanecer na carne». (3) É a crença comum da humanidade, tal como está claramente revelada na Bíblia, e é parte constitutiva da fé da Igreja universal, que a alma pode existir e existe, e que age depois da morte. Se é assim, então o corpo e a alma são duas substâncias distintas. O primeiro pode ficar desorganizado, reduzido ao pó, disperso ou inclusive aniquilado, e a segunda manter sua vida e atividade conscientes. Esta doutrina foi Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 76 ensinada no Antigo Testamento, onde os mortos são descritos como habitando no Sheol, de onde apareciam ocasionalmente, como Samuel a Saul. Nosso Senhor diz que Deus não é Deus dos mortos, mas dos vivos; e ao declarar-se como Deus de Abraão, Isaque e Jacó demonstra que Abraão, Isaque e Jacó estão agora vivos. Moisés e Elias conversaram com Cristo no Monte. Nosso Senhor disse ao ladrão moribundo: «Hoje estará» (de uma maneira consciente) «comigo no Paraíso». Paulo, como acabamos de ver, desejava estar ausente do corpo e presente com o Senhor. Ele sabia que sua existência pessoal consciente devia ser continuada depois da dissolução de seu corpo. É desnecessário insistir neste ponto, porquanto a existência da alma em plena consciência e atividade fora do corpo e no intervalo entre a morte e a ressurreição não é negada por nenhuma Igreja Cristã. Mas se isto é assim, demonstra-se com isso claramente que a alma e o corpo são duas substâncias distintas, de maneira que a primeira pode existir independentemente da segunda. Relação da alma com o corpo. Assim, o homem, segundo as Escrituras, é um espírito criado em união vital com um corpo material organizado. Reconhece-se que a relação entre estes dois constituintes de nossa natureza é um mistério. Isto é, trata-se de algo incompreensível. Não sabemos como o corpo age sobre a mente, nem como a mente age sobre o corpo. Mas os seguintes fatos são claros: (1) Que a relação entre os duas é uma união vital, no sentido de que a alma é a fonte de vida para o corpo. Quando a alma deixa o corpo, este deixa de viver. Perde sua sensibilidade e atividade, e se torna ao mesmo tempo sujeito às leis químicas que governam a matéria desorganizada, e por sua operação das mesmas logo fica reduzido a pó, indistinguível da terra da qual foi originalmente tomado. (2) É um fato da consciência de que certos estados do corpo produzem estados correspondentes da mente. A mente toma conhecimento de, ou é consciente de, as impressões produzidas por Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 77 objetos externos sobre os órgãos dos sentidos pertencentes ao corpo. A mente vê, a mente ouve, a mente sente, não de maneira direta nem imediata ao menos em nosso estado presente normal, senão por meio dos apropriados órgãos do corpo. É também assunto de experiência diária que uma condição sadia do corpo é necessária para uma condição sadia da mente; que certas doenças ou certas desordens do primeiro produzem perturbações nas operações da segunda. As emoções da mente afetam o corpo; a vergonha provoca rubor nas bochechas; a alegria faz com que o coração palpite e que os olhos resplandeçam. Um golpe na cabeça faz inconsciente a mente: isto é, faz com que o cérebro fique incapacitado como instrumento de sua atividade; e uma condição doente do cérebro pode causar uma ação irregular na mental como a insânia. Tudo isto é incompreensível, mas é inegável. (3) Também é um fato da consciência que enquanto que certas operações do corpo são independentes da ação voluntária e consciente da mente, como os processos de respiração, digestão, secreção, assimilação. etc., há certas ações que são dependentes da vontade. Podemos querer mover-nos; podemos exercer a força muscular em maior ou menor grau. É melhor admitir estas simples realidades da consciência e da experiência, e confessar que enquanto que demonstram uma união íntima e vital entre a mente e o corpo, não nos capacitam a compreender a natureza desta união, antes que recorrer a teorias arbitrárias e imaginativas que negam estes fatos porque não podem explicá-los. Isto o fazem os que defendem a doutrina das causas ocasionais, que nega toda ação da mente sobre o corpo ou do corpo sobre a mente, mas atribui tudo à ação imediata de Deus. Um certo estado da mente é [com base nesta teoria] a ocasião em que Deus produz uma certa impressão sobre a mente. A doutrina de Leibnitz de uma harmonia preestabelecida é igualmente insatisfatória. Ele negou que uma substância pudesse agir sobre outra de uma classe diferente; que a matéria pudesse agir sobre a mente, ou vice-versa; que a matéria pudesse agir sobre a mente ou a mente sobre a matéria. Ele propôs explicar a correspondência admitida Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 78 entre os variados estados da uma e da outra sobre a hipótese de uma disposição prévia. Deus ordenou antecipadamente que a mente tivesse a percepção de uma árvore sempre que uma árvore se apresentasse diante do olho, e que o braço se movesse sempre que a mente tivesse uma volição para mover-se. Mas negou toda relação causal entre estas duas séries de acontecimentos. Dualismo realista A doutrina escriturística da natureza do homem como um espírito criado em união vital com um corpo organizado, que portanto consiste de dois, e só dois, elementos ou substâncias distintivas, é de grande importância. Está intimamente conectada com algumas das mais importantes doutrinas da Bíblia; com a constituição da pessoa de Cristo e, por conseguinte, com a natureza de Sua obra redentora e de Sua relação com os filhos dos homens; com a doutrina da Queda, do pecado original, e da regeneração; e com as doutrinas de um estado futuro e da ressurreição. É devido a esta conexão, e não devido a seu interesse como uma questão em psicologia, que a verdadeira ideia do homem demanda a cuidada investigação do teólogo. A doutrina anteriormente enunciada, como a doutrina das Escrituras e da Igreja, recebe a designação apropriada de dualismo realista. Isto é, declara a existência de duas distintas res, entidades ou substâncias; uma com extensão, tangível e divisível, o objeto dos sentidos; e a outra não estendida e indivisível, o sujeito pensante, o sentimento e pensamento do homem. Esta doutrina se levanta em oposição ao materialismo e ao idealismo, que embora sejam sistemas antagonistas em outros respeitos, concordam na ligação de todo dualismo de substância. O primeiro faz da mente uma função do corpo; o outro faz do corpo uma forma da mente. Mas segundo as Escrituras e toda a mais sã filosofia, nem o corpo é, Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 79 72 como diz Delitzsch, um precipitado da mente, nem a mente é uma sublimação da matéria. A doutrina escriturística do homem é naturalmente oposta à velha doutrina pagã que se representa como a forma em que a natureza, der Naturgeist, el anima mundi, chega à consciência de si mesma; e também à doutrina panteísta mais estendida segundo a qual os homens são as mais elevadas manifestações do singular princípio universal de ser e vida; e à doutrina que representa o homem como a união do impessoal, da razão universal ou λόγος - logos, com uma organização corpórea viva. Segundo esta visão recém-mencionada, o homem consiste do corpo (σῶμα - soma), alma (ψυχή - psuche) e λόγος - logos, ou a razão impessoal. Isto é algo muito semelhante à doutrina apolinária quanto à constituição da pessoa de Cristo, aplicada a toda a humanidade. § 2. Tricotomia. É de maior importância observar que a doutrina escriturística opõese à Tricotomia, ou doutrina de que o homem consiste de três substâncias distintas, corpo, alma e espírito, σῶμα - soma, ψυχή - psuche, y πνεῦμα pneuma; corpus, anima, e animus. Esta visão da natureza do homem é da maior importância para o teólogo porque não só foi sustentada em maior ou menor grau na Igreja, mas também porque influenciou em sumo grau a forma em que foram apresentadas outras doutrinas, e porque tem uma certa aparência de ser sustentada pelas próprias Escrituras. Esta doutrina foi mantida em diferentes formas. A mais simples e mais inteligível, e a mais usualmente adotada, é que o corpo é a parte material de nossa constituição; a alma, ou ψυχή - psuche, é o princípio da vida animal; e a mente, ou πνεῦμα - pneuma, o princípio de nossa vida racional e imortal. Quando uma planta morre, sua organização material fica dissolvida, e o princípio de vida vegetativa que continha desaparece. Quando morre um 72 Biblische Psychologie, p. 64. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 80 bruto, seu corpo volta ao pó, e a ψυχή - psuche, ou princípio de vida animal com que estava animada, desvanece-se. Quando um homem morre, seu corpo volta para a terra, seu ψυχή - psuche deixa de existir, e só fica seu πνεῦμα - pneuma até que fica reunido com seu corpo na ressurreição. Ao πνεῦμα - pneuma, que é peculiar do homem, pertencemlhe a razão, a vontade e a consciência. A ψυχή - psuche que temos em comum com os brutos pertencem o entendimento, os sentimentos e a sensibilidade, ou capacidade de percepção sensorial. Ao σῶμα - soma pertence o que é puramente material. 73 Segundo outra visão da questão, a alma não é nem o corpo nem a mente; nem tampouco uma subsistência distinta, mas é a resultante da união do πνεῦμα - pneuma e do σῶμα soma. 74 Ou, segundo Delitzsch, 75 há um dualismo de ser no homem, mas uma tricotomia de substância. Ele distingue entre ser e substância, e mantém (1) que espírito e alma (πνεῦμα - pneuma e ψυχή - psuche) não são seres distintos, mas sim substâncias distintas. Diz que a alma vivente ()נֶפֶשׁ חַי, mencionada na história da criação não é o compositum resultante da união de espírito e corpo, de modo que os dois constituíram ao homem, mas sim que se trata de um tertium quid, uma terceira substância que pertence à constituição de sua natureza. (2) Mas, em segundo lugar, este terceiro princípio não pertence ao corpo; não são os mais elevados atributos ou funções do corpo, mas sim pertence ao espírito, e é produzido por ele. Sustenta a mesma relação com ele que o alento com o corpo, ou a efulgência com a luz. Diz que o ψυχή - psuche (alma) é o ἀπαύγασμα - apaugasma do πνεῦμα - pneuma e o vínculo de sua união com o corpo. 73 August Rahn, Lehrbuch des christlichen Glaubens, pág. 324. Göschel in Herzog's Encyklopädie, Article “Seele.” 75 Biblische Psychologie, § 4, p. 128. 74 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 81 A Tricotomia é antiescriturística. Em oposição a todas as formas de tricotomia, ou a doutrina de uma tríplice substância na constituição do homem, deve-se observar: (1) Que se opõe ao relato da criação do homem tal como aparece em Gn 2:7. Segundo este relato, Deus formou o homem do pó da terra, e soprou nele o fôlego de vida, e ele veio a ser alma vivente ()נֶפֶשׁ חַי, isto é, um ser em quem há uma alma vivente. Neste relato não há indicação alguma exceto que o corpo material formado da terra e o princípio vivente derivado de Deus. (2) Esta doutrina (tricotomia) está oposta ao uso uniforme da Escritura. Bem longe de distinguir entre nephesh (ׁ)נֶפֶש, ψυχή - psuche, anima, ou alma, de ruach ()רו ַּח, πνεῦμα - pneuma, animus, ou mente como ou originalmente diferente, ou derivada dela, estas palavras designam todas uma e a mesma coisa. São constantemente intercambiáveis. Uma toma o lugar da outra, e tudo o que se pregue ou que se possa pregar de uma, prega-se da outra. O hebraico nephesh (ׁ)נֶפֶש, e o grego psuche significam alento, vida, o princípio de vida; aquilo em que reside a vida, toda a vida do sujeito mencionado. O mesmo sucede com ruach ( )רו ַּחe πνεῦμα - pneuma; também estes significam alento, vida, e princípio vivente. Por isso, as Escrituras falam do nephesh (ׁ )נֶפֶשou ψυχή - psuche não só como aquilo que vive ou que é o princípio da vida do corpo, mas também como aquilo que pensa e que sente, que pode salvar-se ou perder-se, que sobrevive ao corpo e é imortal. A alma é o próprio homem, aquilo em que residem sua identidade e personalidade. É o Ego. não há no homem nada mais elevado que a alma. Por isso é que se emprega com tanta frequência como sinônimo do eu. Todas as almas são todos os homens; minha alma é meu eu; sua alma é ele. O que dará um homem em troca de sua alma? É a alma a que peca (Lv 4:2). É a alma a que ama a Deus. Somos ordenados a amar a Deus, ἐν ὅλῃ τῇ ψυχῇ - en holei tei psuchei. [Com toda a alma]. Da esperança diz-se que é a âncora da alma, e a palavra de Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 82 Deus é poderosa para a salvação da alma. Afirma-se que o fim de nossa fé é (1Pe 1:9) a salvação de nossas almas; e João (Ap 6:9; 20:4) viu no céu as almas dos que tinham sido mortos pela palavra o Deus. Por tudo isto é evidente que a palavra ψυχή - psuche, ou alma, não designa a mera parte animal de nossa natureza, e não é uma substância diferente de πνεῦμα - pneuma, ou espírito. (3) Uma terceira observação a fazer a respeito desta questão é que todas as palavras anteriormente mencionadas, nephesh (ׁ)נֶפֶש, ruach ( )רו ַּחe neshamah no hebraico, ψυχή - psuche e πνεῦμα - pneuma em grego, e alma e espírito em português, empregam-se nas Escrituras de maneira indiscriminada para homens e animais irracionais. Se a Bíblia atribuísse só um ψυχή - psuche aos brutos, e ambos ψυχή - psuche e πνεῦμα - pneuma ao homem, haveria uma certa base para supor que os dois são essencialmente distintos. Mas não é assim. O princípio que vive no bruto chama-se tanto nephesh (ׁ )נֶפֶשe ruach ()רו ַּח, ψυχή - psuche e πνεῦμα - pneuma. Este principio da criação animal é irracional e mortal, no homem é racional e imortal. “Quem sabe se o fôlego de vida dos filhos dos homens se dirige para cima e o dos animais para baixo, para a terra?” (Ec 3:21). A alma da besta é o princípio imaterial que constitui sua vida, e que está dotado de sensibilidade, e com a medida da inteligência que experimenta demonstra que os animais inferiores possuem. A alma no homem é um espírito criado de uma ordem superior, que não só tem os atributos de sensibilidade, memória e instinto, mas também as autoridades superiores que pertencem à nossa vida intelectual, moral e religiosa. Igualmente nos brutos não é uma substância que sente e outra que lembra; pelo que não é uma substância no homem que é objeto de sensações, e outra substância que tenha a intuição de verdades necessárias, e que está dotado de consciência e com o conhecimento de Deus. Os filósofos falam do mundo da consciência ou do conhecimento imediato que temos do que está fora de nós; da autoconsciência, ou o conhecimento do que está dentro de nós; e da Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 83 consciência de Deus ou nosso conhecimento e sentido de Deus. Todos eles pertencem a uma e a mesma substância imaterial e racional. (4.) É justo fazer uma chamada ao testemunho da consciência sobre este tema. Somos conscientes de nosso corpo e somos conscientes de nossas almas, quer dizer, dos exercícios e dos estados de cada um, mas ninguém é consciente da ψυχή - psuche diferente do πνεῦμα - pneuma, da alma como diferente do espírito. Em outras palavras a consciência revela a existência de duas substâncias na constituição de nossa natureza; mas não revela a existência de três substâncias, e portanto a existência de mais de duas não pode racionalmente ser assumido. Explicação de passagens duvidosas. (5.) As passagens das Escrituras que se citam como favoráveis à doutrina oposta podem-se explicar todas de forma consistente com as atuais representações da Escritura sobre o tema. Quando Paulo diz aos Tessalonicenses (1Ts 5:23, BJ): “O Deus da paz vos conceda santidade perfeita; e que o vosso ser inteiro, o espírito, a alma e o corpo sejam guardados de modo irrepreensível para o dia da Vinda de nosso Senhor Jesus Cristo”, ele só utiliza uma perífrase para todo o homem. Como quando em Lucas 1:46, 47, a virgem diz: “A minha alma engrandece ao Senhor, e o meu espírito se alegrou em Deus, meu Salvador,” alma e espírito nesta passagem não significam coisas diferentes. E quando somos ordenados que “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento” (Lc 10:27), porque não temos uma enumeração de tantas substâncias distintas. Tampouco se distingue entre a mente e o coração como entidades separadas, quando oramos para que ambas possam ser iluminadas e santificadas; queremos dizer simplesmente a alma em todos os seus aspectos ou faculdades. Outra vez em Hb. 4:12, o Apóstolo diz que a palavra de Deus penetra até a divisão da alma e o espírito, das juntas e as medulas. Não se supõe aí que a alma e o espírito sejam substâncias diferentes. As juntas e as medulas não são diferentes Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 84 substâncias: Ambas as coisas são materiais; são formas diferentes da mesma substância. Da mesma maneira alma e espírito são uma e a mesma substância sob diferentes aspectos ou relações. Podemos dizer que a palavra de Deus alcança não só os sentimentos, mas também a consciência, sem assumir que o coração e a consciência sejam entidades diferentes. Muito menos é tal distinção implícita em Fp. 1:27 [Versão Jünemann]: “que vos afirmais num espírito (ἐν ἑνὶ πνεύματι), uma alma (μιᾷ ψυχῇ).” Há mais dificuldade para explicar 1Co 15:44. O Apóstolo não distingue entre o σῶμα ψυχικόν e o σῶμα πνευματικόν; o primeiro é aquele em que o ψυχή - psuche é o princípio vital, e este último que, em que o πνεῦμα - pneuma é o princípio da vida. Um temos aqui, outros têm de ter daí em diante. Isto parece implicar que o ψυχή - psuche existe nesta vida, mas não é a existência do além, e portanto que os dois são separáveis e distintos. Nesta explicação poderia aceitar-se se não contradizem as representações gerais das Escrituras. Estamos obrigados, portanto, a buscar outra explicação que harmonizará com outras porções da Palavra de Deus. O significado geral do apóstolo é claro. Agora temos órgãos brutos, perecíveis, e desonrosos, ou feios. Depois vamos ter corpos gloriosos, adaptados a um estado superior de existência. A única pergunta é: Por que ele chama um psíquico, e o outro pneumático? Devido ao fato de que a palavra ψυχή - psuche, embora com frequência usada para a alma como racional e imortal, é também usada para a forma inferior de vida que pertence aos animais irracionais. Nossos corpos futuros não devem adaptar-se aos princípios de nossa natureza que temos em comum com os brutos, exceto aqueles que são próprios a nós como homens, criados à imagem de Deus. A própria alma humana individual tem certas suscetibilidades e faculdades que a adaptam ao estado presente de existência, e a casa terrestre em que agora habita. Tem apetites animais e necessidades. Tem fome e sede. Precisa dormir e descansar. Mas a própria alma tem poderes mais elevados. O corpo terrestre se ajusta à sua condição terrena; o corpo celeste a seu estado Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 85 celestial. Não há duas substâncias ψυχή - psuche e πνεῦμα - pneuma, há antes, uma e a mesma substância com diferentes suscetibilidades e faculdades. Neste mesmo sentido, Paulo diz: A carne e o sangue não podem herdar o reino dos céus. Entretanto, nossos corpos hão de herdar esse reino, e nossos corpos são de carne e osso. O mesmo princípio material agora constituído como carne e sangue vai ser mudado quanto a ser como o corpo glorioso de Cristo. Como esta representação não demonstra uma diferença substancial entre o organismo que agora é e o que há de ser depois, assim nem o que diz o Apóstolo do σῶμα ψυχικόν e o σῶμα πνευματικόν prova que o ψυχή - psuche e πνεῦμα - pneuma são substâncias distintas. Esta doutrina de uma constituição tripartida do homem sendo adotada por Platão, foi introduzida parcialmente na Igreja primitiva, mas logo veio a ser considerado como perigosa, se não herética. Se os gnósticos mantêm que o πνεῦμα - pneuma no homem era uma parte da essência divina, e incapaz de pecado; e pelos apolinarianos que Cristo tinha só um σῶμα e ψυχή humano, mas não um πνεῦμα humano, a Igreja rejeita a doutrina de que ψυχή - psuche e πνεῦμα - pneuma eram substâncias distintas, visto que nisso aquelas heresias foram fundadas. Em épocas posteriores os semipelagianos ensinaram que a alma e o corpo, mas não o espírito no homem foram as vítimas do pecado original. Todos os protestantes, luteranos e reformados, eram, portanto, os mais zelosos em manter que a alma e o espírito, ψυχή - psuche e πνεῦμα - pneuma, são uma e a mesma substância e essência. E isto, como antes se disse, foi a doutrina comum da Igreja. 76 76 See G. L. Hahn, Theologie des N. T. Olshausen, De Trichotomia Naturæ Humanæ, e Novi Testamenti Scriptoribus recepta. Ackermann, Studien und Kritiken, 1839, p. 889. R. T. Beck. Umriss d. biblischen Seelenlehre, 1843. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II § 3. Realismo. 86 Seu caráter geral. Ainda há outro ponto de vista da natureza do homem que, desde sua ampla e prolongada influência, demanda consideração. De acordo com este ponto de vista, o homem se define como a manifestação do princípio geral da humanidade em união com uma organização corporal determinada. Esta visão foi levada a cabo em diversas formas que aqui não pode ser discutido separadamente. É só a teoria em seus aspectos mais gerais, ou na forma em que se apresentou habitualmente que nossos limites nos permitem examinar. Necessariamente se supõe que a humanidade, a natureza humana como um princípio geral de uma forma de vida, existe antecedentemente (quer seja cronologicamente ou logicamente) aos homens individuais. “Na ordem da natureza,” diz o Dr. Shedd, “a humanidade existe antes das gerações da humanidade; a natureza é anterior aos indivíduos produzidos fora dela.” 77 Existe, também, de maneira independente e fora deles. Como o magnetismo é uma força na natureza existente anteriormente, de maneira independente, e fora de qualquer e todos os ímãs individuais; e como a eletricidade, existe com independência das garrafas de Leyden em que se poderão obter ou através da qual se manifesta na atualidade; como o galvanismo existe independentemente de qualquer e todas as pilhas galvânicas; assim a humanidade existe anteriormente aos homens individuais e independentemente deles. Como um ímã individual é uma dada peça de ferro maleável em que a força magnética está presente e ativa, e como uma garrafa de Leyden é simplesmente um frasco coberto em que a eletricidade está presente, assim um homem individual é uma organização corporal dada em que a humanidade como uma vida em geral ou a força está presente. 77 History of Christian Doctrine, vol. II. p. 77. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 87 À pergunta qual é a natureza humana ou a humanidade genericamente considerada, há diferentes respostas dadas. Diz-se que é um res, uma essência, uma substância, uma existência objetiva real. É algo que existe no tempo e no espaço. Este é o modo comum da declaração. A polêmica entre realistas e nominalistas, em sua forma original e autêntica, voltou-se sobre este ponto. A questão que para as idades ocupou em tão grande medida a atenção de todos os filósofos, era: Quais são as proposições universais? Quais são os gêneros e espécies? Quais são os termos gerais? São só palavras? São ideias ou concepções que existem na mente? São as coisas expressas por termos gerais existências objetivas verdadeiras? Existem só os indivíduos, de modo que as espécies e o gênero são só as classes de indivíduos da mesma classe, ou os indivíduos são só revelações ou individualizações de uma substância em geral que é a espécie ou gênero? De acordo com os realistas anteriores e genuínos, e segundo os filósofos especulativos modernos, a espécie ou gênero são primeiros, independentes e externos ao indivíduo. O indivíduo é só “um modus existendi posterior; modo primeiro e antecedente [no caso do homem] é a humanidade genérica da qual este modo de série posterior é só outro aspecto ou manifestação.” 78 Precisamente, como acaba de dizer, como o magnetismo é anterior ao ímã. O ímã é só uma peça individual de ferro em e através da qual o magnetismo genérico se manifesta. Assim, o realista, diz, “Etsi rationalitas non esset in aliquo, tamen in natura remaneret.” 79 Cousin cita a queixa de Anselmo contra Roscelin e outros nominalistas, “de ne pas comprendre comment plusieurs hommes ne sont qu’un seul et même homme, — nondum intelliget quomodo plures homines in specie sint unus homo.” 80 A doutrina de seu “Monologium” e “Proslogium” e “Dialogus de veritate”, Cousin diz, é “que non-seulement il y a des individus humains, mais qu’il y a en autre le genre humain, l’humanité, 78 Shedd's Essays Boston, 1867, p. 259, note, and his History of Christian Doctrine. vol. II. p. 77. Cousin, Fragments Philosophiques, Paris 1840, p. 167. 80 Cousin's Fragments Philosophiques, Paris, 1840, p. 146. 79 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 88 qui est une, comme il admettait qu’il y a un temps absolu que les durées particulières manifestent sans le constituer, une vérité une et subsistante par elle-même, un type absolu du bien, que tous les biens particuliers supposent et réfléchissent plus ou moins imparfaitement.” 81 Ele cita a Abelardo como afirmando a doutrina a que ele se opôs, com as seguintes palavras: “Homo quædam species est, res una essentialiter, cui adveniunt formæ quædam et efficiunt Socratem: illam eamdem essentialiter eodem modo informant formæ facientes Platonem et cætera individua hominis; nec aliquid est in Socrate, præter illas formas informantes illam materiam ad faciendum Socratem, quin illud idem eodem tempore in Platone informatum sit formis Platonis. Et hoc intelligunt de singulis speciebus ad individua et de generibus ad species.” 82 Segundo uma teoria, “les individus seuls existent et constituent 1’essence des choses;” according to the other, “1’essence des individus est dans le genre auquel ils se rapportent; en tant qu’ individus ils ne sont que des accidents.” 83 Tudo isto está suficientemente claro. O que constitui a espécie ou gênero é uma existência objetiva verdadeira, uma só substância e a mesma numericamente, assim como em particular. Esta única substância geral existe em cada indivíduo pertencente à espécie, e que constitui sua essência. O que é peculiar à pessoa, e que o distingue de outros indivíduos da mesma espécie, é puramente acidental. Esta substância única da humanidade, que se revela ou se manifesta em todos os homens, e que constitui os homens, “possui todos os atributos da pessoa humana; porque o indivíduo é só uma parte e exemplar da natureza. Considerada como uma essência, a natureza humana é uma essência inteligente, racional e voluntária, e em consequência sua agência em Adão participa das qualidades correspondentes.” 84 “Agência,” entretanto, supõe “um agente, e como o pecado original não é o produto do agente individual, 81 Ibidem. Ibid. p. 167. 83 Ibid. p. 171. 84 Shedd, History of Christian Doctrine, vol. II. p. 78. 82 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 89 porque aparece no nascimento, deve-se a que se refere ao agente genérico, — quer dizer, à natureza humana diferente da pessoa humana ou individual.” 85 Humanidade genérica. O que Deus criou, portanto, não era um homem individual, mas sim a espécie homo, ou a humanidade genérica, — uma essência inteligente, racional e voluntária; os homens individuais são as manifestações desta substância numérica e especificamente uma e a mesma, com relação a suas várias organizações corporais. Suas almas não são essências individuais, mas sim uma essência comum revelada e agindo em muitos organismos diferentes. Esta resposta à pergunta proposta acima – que a natureza humana genericamente considerada, que a converte numa essência ou substância comum a todos os indivíduos da raça – é a mais comum e a mais inteligível. Os homens de ciência adotam uma fraseologia um pouco diferente. Em lugar de substâncias, eles falam de forças. A natureza se define como a soma das forças que operam no mundo exterior. O oxigênio é uma força; magnetismo, eletricidade, etc., são forças. “Uma espécie é. . . . sobre a base de uma quantidade específica ou condição da força concentrada, definida no ato ou lei de criação.” 86 A humanidade, ou a natureza humana, é a soma das forças que constituem o homem no que é. A unidade da raça consiste no fato de que estas forças são numericamente como especificamente a mesma em todos os indivíduos que a compõem. Os teólogos alemães, em particular os da escola de Schleiermacher, utilizam os termos vida, lei e lei orgânica. A natureza humana é uma vida genérica, quer dizer, uma forma de vida que se manifesta numa multidão de indivíduos do mesmo tipo. No indivíduo não é distinto ou 85 86 Ibid. p. 80. Professor James D. Dana, Bibliotheca Sacra, 1857, p. 861. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 90 diferente do que é no gênero. É a mesma lei orgânica. Um carvalho só pode produzir outros dez mil carvalhos, mas o bosque inteiro é tanto uma unidade interior orgânica como qualquer árvore. Estas fórmulas podem ser convenientes para evitar a necessidade de circunlóquios, e expressam uma classe de fatos, mas não dão uma ideia definida além dos próprios fatos. Dizer que um bosque inteiro de carvalhos têm a mesma vida genérica, que são tão verdadeiramente um como qualquer árvore é uma, significa simplesmente que a natureza é a mesma em todos, e que todos foram obtidos de uma fonte comum. E dizer que a humanidade é uma unidade, porque tem a mesma vida genérica, e são todos descendentes de um antepassado comum, quer seja não significa nada mais que isso todos os homens são da mesma espécie, quer dizer, que a humanidade é precisamente a mesma em todas as espécies ou significa tudo o que é da parte daqueles que ensinam que os gêneros e espécies, as substâncias das quais o indivíduo é o mero modus existendi. Como agência implica um agente, assim a força, que é a manifestação de poder, supõe algo, um sujeito ou uma substância em que o poder reside. Nada, uma não-existência, não pode ter poder e não manifestam a força. Força, necessariamente, supõe uma substância da que é a manifestação. Portanto, se as forças forem numericamente a mesma, a substância deve ser numericamente a mesma. E, em consequência, se a humanidade for uma determinada quantidade e tipo de força concentrados, numericamente e não só especificamente os mesmos em todos os homens, então são os homens ὁμοούσιοι, partícipes de uma e a mesma essência e idêntica. As mesmas observações se aplicam ao termo vida. A vida é um predicado, não uma essência. Supõe um sujeito do qual é previsível. Não pode haver vida a menos que algo vive. Não é uma coisa em si. Se, portanto, a vida genérica do homem significa algo mais que o mesmo tipo de vida, deve significar que o que vive em todos os homens é identicamente a mesma substância numérica. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 91 Objeções ao Realismo. De acordo com a doutrina comum, a alma de cada homem é um subsistência individual, da própria natureza, mas não da mesma substância numérica como as almas de seus semelhantes, pelo que os homens são ὁμοι-, mas não ὁμοούσιοι. Em apoio desta opinião, e em oposição à doutrina de que “todos os homens são um só homem”, ou que a natureza humana é numericamente uma e a mesma essência da qual os homens individuais são os modos de manifestação, pode-se notar, — 1. Que a doutrina última é uma mera hipótese filosófica. É uma simples hipótese baseada no que é possível. É possível que a doutrina em questão possa ser verdadeira. Assim que em si mesmo é possível que haja uma anima mundi, um princípio imanente da vida no mundo, dos quais todos os organismos vivos são as diferentes manifestações; de maneira que todos os vegetais, todos os animais, e o próprio homem, não são senão formas diferentes de uma e a mesma substância numérica viva, assim como as ondas numerosas do mar em toda sua infinita diversidade de tamanho, forma e matiz, não são senão as balizas de um só e o mesmo vasto oceano. Da mesma maneira é possível que todas as formas de vida devem ser só as diversas manifestações da vida de Deus. Isto não só é possível, mas também é uma ideia tão simples e grandiosa que fascinou a mente dos homens em todas as idades, de modo que a hipótese que prevalece dos filósofos quanto à constituição do universo foi, e continua sendo, panteísta. Entretanto, o panteísmo é demonstravelmente falso, porque contradiz as convicções intuitivas de nossa natureza moral e religiosa. Não basta, portanto, que uma teoria seja possível ou imaginável. Deve contar com o apoio da prova positiva. 2. Tal prova da doutrina que se examina não se encontra na Bíblia. É simplesmente uma hipótese em que certos fatos das Escrituras podem ser explicados. Todos os homens são iguais, têm as mesmas faculdades, os mesmos instintos e paixões, e todos eles são nascidos em pecado. Estes e outros fatos similares admitem uma explicação fácil no suposto de que a humanidade é numericamente uma e a mesma substância da Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 92 qual os indivíduos são tão somente manifestações diferentes; assim como milhares de ímãs diferentes revelam a força magnética que é a mesma em todos, e portanto todos os ímãs são iguais. Mas à medida que os fatos mencionados podem ser explicados por outras diferentes suposições, quando não podem oferecer nenhuma prova desta teoria em particular. Não se pretende que a Bíblia ensina diretamente a doutrina em questão. Tampouco ensina sobre tudo o que requer sua adoção. Pelo contrário, ensina muitas coisas que são irreconciliáveis com isso. O Realismo não é apoiado pela consciência. 3. A hipótese sob consideração não recebe nenhum apoio da consciência. Somos conscientes de nossa própria existência. Estamos (num sentido) conscientes da existência de outros homens. Mas não somos conscientes de uma comunidade de essência de nós mesmos e todos os outros homens. Até o momento de que isto seja a interpretação comum que os homens põem em sua consciência, é diametralmente oposto à mesma. Cada homem crê que sua alma é uma substância distinta, individual, tanto como ele crê que seu corpo é distinto e separado de todo corpo humano. Tal é a opinião comum dos homens. E nada menos que a afirmação direta da Bíblia, ou os argumentos que sobem à demonstração, podem racionalmente ser admitidos para invalidar tal juízo. É inconcebível que todo o concernente à constituição de nossa natureza tão transcendental em suas consequências, deve ser verdade, que de algum modo não se revela na consciência comum dos homens. Não há nada mais característico das Escrituras, e há poucas coisas que mais claramente demonstram sua origem divina, que ela dá por sentado e autentica todos os atos da consciência. Declara que somos o que se revela a nós mesmos como na própria constituição e o estado atual de nossa natureza. Reconhece a alma como racional, livre e responsável. Assume que é distinta do corpo. Tudo isto o sabemos pelo conhecimento. Mas não sabemos que a essência ou substância de nossa alma é numericamente a mesma que a substância das almas de todos os Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 93 homens. Se a Bíblia ensina tal doutrina ela ensina algo que está fora dos ensinos da consciência, e algo ao que esses ensinos, na opinião da grande maioria dos homens, inclusive os mais ilustrados, opõem-se diretamente. O Realismo é contrário aos ensinos da Escritura. 4. As Escrituras não só não ensinam a doutrina em questão, mas também ensinam o que é incompatível com ela. Já vimos que é uma doutrina claramente revelada da Bíblia, e parte da fé da Igreja universal, que a alma continua existindo depois da morte como uma pessoa autoconsciente, individual. Este fato é incompatível com a teoria em questão. Uma dada planta é uma organização material, animada pelo princípio geral da vida vegetal. Se à planta se destrói o princípio da vida vegetal já não existe como planta. Pode existir em outras plantas, mas essa planta particular deixou de existir quando a organização material se dissolveu. O magnetismo segue existindo como uma força na natureza, mas qualquer ímã em particular deixa de ser quando é fundido, ou volatilizado. Da mesma maneira, se um homem é a manifestação de uma vida genérica, ou da humanidade como uma essência comum a todos os homens, então quando o corpo morre, o homem deixa de existir. A humanidade continua sendo, mas o homem individual já não existe. Esta é uma dificuldade que alguns dos defensores da teoria deste esforço para evitar o renunciar ao essencial de sua própria doutrina. Isso seus defensores genuínos e coerentes admitem em toda sua força. A porção anticristã deles reconhecem que sua doutrina é inconsistente com a imortalidade pessoal do homem. A raça, dizem, é imortal, mas os homens individuais não são. A mesma conclusão é admitida por aqueles que mantêm as doutrinas panteístas análogas, ou naturalistas. Se um homem é só o modus existendi, uma forma em que uma substância comum ou vida se revela, não importa se essa substância é a humanidade, a natureza, ou Deus, quando a forma, o organismo material, é destruído, o homem como homem deixa de existir. Os defensores da Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 94 doutrina que se agarram ao cristianismo, embora admitam a dificuldade, esforçam-se para acabar com ela de maneiras diferentes. Schleiermacher reconhece que toda a filosofia está contra a doutrina da existência pessoal do homem num estado futuro. Seu sistema inteiro leva à negação da mesma. Mas diz que o cristão deve reconhecer a autoridade de Cristo. Olshausen, em seu comentário sobre o Novo Testamento, diz, ao explicar 1 Cor. 15:19, 20, e os versículos 42-44, que a Bíblia não sabe nada da imortalidade da alma. Ele pronuncia isso como uma ideia pagã. Uma alma sem corpo perde sua individualidade. Deixa de ser uma pessoa, e é óbvio, perde a consciência de si e tudo o que está conectado com ela. Como, entretanto, as Escrituras ensinam que os homens hão de existir além-túmulo, ele diz que seus corpos também devem seguir existindo, e a única existência da alma durante o intervalo entre a morte e a ressurreição, a qual ele admite, está em conexão (quer dizer, união vital) com as partículas desintegradas do corpo na tumba ou dispersas até os limites da terra. Esta é uma conclusão a que legitimamente leva sua doutrina, e que ele é o suficientemente sincero para admiti-lo. Dr. Nevin, um discípulo de Schleiermacher, tem que lutar com a mesma dificuldade. Seu livro intitulado “The Mystical Presence,” é a exposição mais clara e mais capaz da teologia de Schleiermacher, que apareceu em nossa língua, a menos que a “Philosophy of Religion” de Morell seja seu igual. Ele nega 87 todo dualismo entre a alma e o corpo. Eles são “uma vida”. Uma não pode existir sem o outro. Ele admite que o que a Bíblia ensina da existência separada da alma entre a morte e a ressurreição, é uma dificuldade “que não é fácil, na atualidade, de resolver.” Ele não tenta resolvê-lo. Ele só diz que a dificuldade não é “conciliar a Escritura com uma teoria psicológica, mas sim pô-la em harmonia consigo mesma.” Isto não é nenhuma solução. Trata-se de uma admissão virtual que não pode conciliar a Bíblia com sua teoria 87 Página 171. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 95 psicológica. A doutrina de que o homem é um modus existendi de uma humanidade genérica, ou a manifestação do princípio geral da humanidade, com relação a uma organização corporal determinada, é incompatível com a doutrina bíblica da existência separada da alma, e portanto deve ser falsa. O Realismo é inconsistente com a doutrina da Trindade. 5. Esta teoria é incompatível com a doutrina bíblica da Trindade. Requer-se a conclusão de que o Pai, o Filho e o Espírito não são mais um Deus como Pedro, Tiago e João são um só homem. As pessoas da Trindade são um só Deus, porque a divindade é uma essência; mas se a humanidade é uma essência numericamente a mesma em todos os homens, então todos os homens são um só homem no mesmo sentido que o Pai, Filho e Espírito Santo são um só Deus. Esta é uma reductio ad absurdum. É claramente ensinado nas Escrituras e universalmente crido na Igreja que as pessoas da Trindade são um só Deus num sentido imensamente mais elevado que aquele em que todos os homens são um só homem. A diferença precisa é que a essência comum às pessoas da Trindade é numericamente a mesma, enquanto que a essência comum a todos os homens é só especificamente a mesma, quer dizer, da própria natureza, embora numericamente diferentes. A teoria que leva a conclusão oposta, portanto, deve ser falsa. Não pode ser verdade que toda a humanidade é uma só essência, substância, ou vida orgânica, existentes ou que se manifesta numa multidão de pessoas individuais. Esta é uma dificuldade tão óbvia e fatal de modo que não podia deixar de atrair a atenção dos realistas em todas as épocas e de todas as classes. O grande ponto de controvérsia no Concílio de Niceia entre os arianos e ortodoxos era se as pessoas da Trindade são ὁμοι ou ὁμοούσιοι, de um semelhante ou da mesma essência. Se ὁμοούσιοι, foi admitido em ambos os lados que são um só Deus, porque se o mesmo em substância são iguais em poder e glória. Agora está expressamente afirmado que nem todos os homens são ὁμοι, e sim ὁμοούσιοι, e portanto, pela Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 96 paridade de raciocínio, eles não constituem um homem no mesmo sentido que há um só Deus, e todos são iguais em todos os atributos de sua natureza. 88 É óbvio, admite-se que há um legítimo sentido da palavra em que todos os homens pode-se dizer que são ὁμοούσιοι, quando por ὁμός (mesmo) significa-se similar, ou de natureza similar. Neste sentido, os gregos disseram que os corpos de homens e de outros animais eram consubstanciais, visto que todos eram de carne; e que anjos, demônios e as almas humanas, como seres espirituais, são também ὁμοούσιοι. Mas este não é o sentido em que a palavra é utilizada pelos realistas, quando se fala quer seja das pessoas da Trindade ou dos homens. Em ambos os casos a mesma palavra significa a unidade numérica; os homens são da mesma essência numérica no mesmo sentido em que o Pai e o Filho e o Espírito são o mesmo em essência. A diferença, segundo se diz, entre os dois casos não se refere à identidade de essência, que é a mesmo em ambos, mas antes, encontra-se nisto, que “toda a natureza ou essência está na pessoa divina, mas a pessoa humana é só uma parte da natureza humana comum. Geração na Divindade não admite abscisão ou divisão da substância, mas a geração no caso da criatura implica a separação ou divisão da essência. Uma pessoa humana é uma porção individualizada da humanidade.” 89 Entretanto, deve lembrar-se que a humanidade se declara como uma substância espiritual. O mesmo sucede na natureza com a alma, que se chama uma porção individualizada da natureza humana, que possui consciência, razão e vontade. Mas, se é espiritual, é indivisível. Divisibilidade é uma das principais propriedades da matéria. Tudo o que é divisível é material. Portanto, se a humanidade, como uma substância genérica, admite “a abscisão e a divisão,” deve ser material. Uma parte da razão, um pedaço da consciência, ou um fragmento da vontade, são contraditórias, ou formas de expressão ininteligíveis. Se a humanidade é da mesma essência da alma, já não mais admite a divisão 88 89 1 2 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 97 que a alma. Uma parte de uma alma não pode ser santa e outra profana; uma parte salva e a outra perdida. A objeção à teoria em questão, que faz com que a relação entre os homens individuais seja idêntica a que existe entre as pessoas da Trindade, continua sendo, portanto, com toda sua força. Não se encontraram pela resposta que se acaba de referir, que a resposta supõe que a mente deva ser estendida e divisível. O Realismo é inconsistente com o que a Bíblia ensina sobre a pessoa e a obra de Cristo. 6. É difícil, se não impossível, conciliar a doutrina em questão, com o que as Escrituras ensinam da pessoa e obra de Cristo. Segundo a Bíblia, o Filho de Deus fez-se homem, tomando para Si um corpo e uma alma razoável. De acordo com a doutrina realista, Ele não assumiu uma alma razoável, mas sim a humanidade genérica. O que é isto, senão toda a humanidade, da qual, segundo os defensores desta doutrina, os homens individuais são as porções. A natureza humana como vida genérica, a humanidade como uma substância, e uma substância inteira, foi tomada na união pessoal com o Filho de Deus. O Logos Se encarnou na raça. Esta não é a doutrina da Escritura. O Filho de Deus fez-se um homem; não todos os homens. Ele assumiu uma alma racional, não pelo princípio geral da humanidade. Além disto, é a doutrina daqueles que adotam esta teoria de que a humanidade pecou e caiu em Adão. A substância racional, moral, voluntária chamado a natureza humana, é, ou ao menos era um agente. O pecado de Adão não foi o pecado de um indivíduo, mas sim desta substância genérica, que por que o pecado converteu-se no tema tanto de culpa e de depravação. Em razão deste pecado da natureza humana, a teoria é que todos os homens individuais, em suas sucessivas gerações, naqueles que se revela a natureza, ou naqueles que, como eles o expressam, é individualizada, manancial no mundo num estado de culpa e contaminação. Não nos referimos agora às numerosas e graves dificuldades relacionados com esta teoria como um método de Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 98 contabilização pelo pecado original. Falamos dela só em sua relação com a pessoa de Cristo. Se a natureza humana, como uma vida genérica, uma substância da qual participam todos os homens, converteu-se em culpada e contaminada pela apostasia; e que a humanidade genérica, diferente de uma recém-criado e a alma racional santa, foi assumida pelo Filho de Deus, como podemos evitar a conclusão de que Cristo foi, em Sua natureza humana, pessoalmente culpado e pecador? Isto é uma consequência legítima desta teoria. E esta consequência não só é falsa, mas também uma blasfêmia, a própria teoria deve ser falsa. Pelo fato de que o princípio de que a humanidade é uma substância, e todos os homens são ὁμοούσιοι no sentido de tomar parte da mesma essência numérica, implica consequências destrutivas das doutrinas bíblicas da Trindade e da pessoa de Cristo, assim poderia facilmente ser demonstrado que derroca a fé comum das igrejas protestantes nas doutrinas da justificação, da regeneração, dos sacramentos, e da Igreja. É suficiente para nosso propósito assinalar que, como um fato histórico, os defensores consistentes e profundos desta doutrina ensinam um método de salvação completamente diferente. Muitos homens adotam um princípio, e não o levam a cabo até suas últimas consequências legítimas. Mas outros, mais lógicos, ou mais irresponsáveis, não hesitam em abraçar todos os seus resultados. Nas obras de Morell e do Dr. Nevin, antes mencionadas, o estudante de teologia pode encontrar uma pressão implacável de realismo, à derrocada total da fé protestante, e, pode ser agregado, da fé cristã. 7. Outras objeções a esta teoria pode ser mais apropriadamente consideradas quando viermos a falar das várias doutrinas às quais se aplica. Basta à conclusão da presente discussão dizer que o que se diz que é verdade do gênero homo, supõe-se que é certo de todos os gêneros e espécies dos mundos animal e vegetal. O indivíduo em todos os casos supõe-se que é só a manifestação ou modus existendi da substância genérica. Assim há uma substância bovina, uma eqüina, e uma felina, havendo uma existência objetiva de que todos os bois, todos os cavalos, Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 99 e todos os animais da raça de gato, são as manifestações. E assim, de todas as espécies, quer seja de plantas ou animais. Isto é quase inconcebível. Comparado a esta teoria, a hipótese de um naturgeist, ou anima mundi, ou de uma substância universal, é a própria simplicidade. Que tal teoria deve ser estabelecida e feita o fundamento, ou antes, o princípio controlador de toda a doutrina cristã, é o mais irracional e perigoso. Esta doutrina realista, até há pouco, foi tão explorada como as ideias eternas de Platão ou as formas de Aristóteles. § 4. Outra forma da teoria realista. Há, entretanto, outra fase desta doutrina, que é necessário mencionar. A doutrina de que os gêneros e espécies são substâncias reais existentes com antecedência às pessoas, e independente deles, é a forma antiga, autêntica, e mais inteligível de realismo. Expressa-se nas escolas, dizendo que Universalia são ante rem. A outra forma da doutrina afirma que Universalia são in re. Quer dizer que os universais existem só nos indivíduos, e que os indivíduos são só reais. “L’identité des individus,” diz Cousin 90 en su interpretación de esta forma de la doctrina, “d’un meme genre ne vient pas de leur essence même, car cette essence est différente en chacun d’eux, mais de certains éléments qui se retrouvent dans tous ces individus sans aucune différence, indifferenter. Cette nouvelle théorie diffère de la première en ce que les universaux ne sont plus 1’essence de 1’être, la substance m—me des choses; mais elle s’en rapproche en ce que les universaux existent réellement, et qu’existant dans plusieurs individus sans différence, ils forment leur identité et par là leur genre.” Outra vez, 91 diz ele: “Le principe de la nouvelle théorie est que 1’essence de chaque chose est leur individualité, que les individus seuls existent, et qu’il n’y a point en dehors des individus d’essence 90 91 Fragments Philosophiques, p. 162. Ibid., p. 168. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 100 appelèes les universaux, les espèces et les genres; mais que l’individu lui-même contient tout cela, selon les divers points de vue sous lequels on le considére.” 92 Portanto, Sócrates como um homem individual tem sua própria essência, que, com suas peculiaridades, o faz Sócrates. Negligencia as peculiaridades e o consideram como racional e mortal, então se tem a ideia das espécies; negligência a racionalidade e a mortalidade, e o consideram como um animal, então se tem a ideia do gênero; negligencia todas estas formas (“relictis omnibus formis”), e se só tem a ideia de substância. Segundo esta opinião “les espèces et les genres, les plus élevés comme les plus inférieurs, sont les individus eux-mêmes, considérés sous divers point de vue.” 93 Isto, segundo o sentido claro dos termos, equivale à doutrina comum. As pessoas apenas existem. Certos indivíduos têm algumas propriedades distintivas ou atributos em comum. Constituem uma espécie em particular. Estes e outros indivíduos de diferentes espécies têm outras propriedades comuns a todos eles, e constituem um gênero, e assim as ordens, as classes, até chegar à máxima categoria do ser, que inclui tudo. Mas se for assumido que todos os seres sejam uma substância, cuja substância com certas qualidades acrescentados ou acidente constituem uma classe, com algumas outras adições, uma ordem, com ainda mais modificações, um gênero, uma espécie, um indivíduo, então temos novamente a velha teoria, só estendidas de modo a ter um aspecto panteísta. Alguns homens de ciência, em lugar de definir as espécies como um gênero de indivíduos que têm características determinadas em comum, dizem com o professor Dana, que “corresponde à quantidade específica ou condição da força concentrados, que se define no ato ou lei de criação;” ou com o Dr. Morton, que é “uma forma orgânica primordial,” ou com Agassiz, que é um princípio original imaterial que determina a 92 93 Veja-se a exposição por Abelardo citada na página 170 de Cousin. Cousin, Fragments Philosophiques, p. 183. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 101 forma ou as características dos indivíduos que constituem um grupo distinto. Estes são só os diferentes modos de explicar o fato de que todos os indivíduos de uma espécie dada possuem certas características ou qualidades fundamentais em comum. Para tais declarações não há nenhuma objeção. Mas quando se supõe que estes termos primitivos originais, como no caso da humanidade, por exemplo, segundo a lei de propagação se transmite de geração em geração, a fim de constituir todos os indivíduos da espécie essencialmente uma, quer dizer, um em essência ou substância, de modo que o ato do primeiro indivíduo da espécie (de Adão, por exemplo) é o ato da substância numericamente a mesma em todos os membros dessa espécie, é o ato de cada membro individual, então algo essencialmente novo adiciona-se à anterior definição científica dada das espécies, e voltamos à forma original e autêntica do Realismo em suas características mais ofensivas. Seria fácil demonstrar, (1º.) Que a geração ou a lei de propagação, tanto em plantas como em animais é absolutamente inescrutável, tanto como a natureza da matéria, da mente ou da vida, em si mesmos considerados. Não podemos não mais dizer qual geração é, que o que importa é: que mente é. (2º.) Que é portanto, irrazoável e perigoso fazer uma dada teoria quanto à natureza da geração ou da lei de propagação a base para a explicação das doutrinas cristãs. (3º.) Que qualquer que seja o processo secreto e inescrutável de propagação, que não implica a transmissão da própria essência numérica, de modo que um progenitor e seus descendentes são uma e a mesma substância. Esta suposição está sujeita a todas as objeções já levantadas contra a forma original da doutrina realista. A teoria é, além disso, desprovida de toda evidência quer seja por experiência ou analogia. Não tem nenhum sentido concebível que todos os carvalhos agora na terra sejam idênticos quanto à sua substância com os carvalhos criados originalmente. E não há sentido concebível em fazer estar confuso. Nós e todos os homens somos identicamente a mesma Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 102 substância com Adão. Se um milhar de velas são sucessivamente acesas de uma vela nem por isso se convertem numa vela. Não é uma comunicação da substância da primeira à segunda, e a da segunda às demais em sua ordem, a fim de triunfar no verdadeiro sentido de que a substância da primeira é numericamente a mesma que a de todos os outros. O simples fato é que pelas leis da matéria ordenada por Deus, o estado em que uma vela acesa é, produz certas mudanças ou movimentos nos elementos constitutivos da mecha de outra vela quando as duas ficam em contato, que os movimentos induzem a outros movimentos nas partículas constituintes da atmosfera circundante, que estão conectados à evolução da luz e do calor. Mas não há nenhuma comunicação da substância envolvida no processo. Uma bolota que cai de um carvalho hoje em dia, está composta não das mesmas partículas de matéria da qual se formou a bolota original, mas da matéria da mesma classe, e dispostas na mesma forma. Pode dizer-se que é impregnado de químicos e forças vivas da mesma classe que o mesmo tipo da bolota original, mas não com as mesmas forças numericamente. Assim de todas as plantas e animais. Somos da mesma natureza que Adão no mesmo sentido que todos os animais de uma espécie são os mesmos. A igualdade não consiste na identidade numérica de essência ou das forças vitais, ou da razão ou vontade, mas na uniformidade de tipo e da comunidade de origem. Além do origem e natureza do homem, há outras duas questões, que são mais ou menos envolvidas no que as Escrituras ensinam a respeito da humanidade, e que merecem a atenção antes de voltar à condição moral e religiosa da raça. A primeira delas refere-se à Origem da alma, e a segundo à Unidade da Raça. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II CAPÍTULO III 103 A ORIGEM DA ALMA § 1. Teoria da Preexistência TRÊS são as teorias que se têm apresentado a respeito da origem da alma. Primeiro, a da Preexistência da alma; segundo, a do Traducianismo, ou a doutrina de que a alma da criança se deriva da alma dos pais; terceiro, a de Criação imediata, ou a doutrina de que a alma não se deriva, como o corpo, mas deve sua existência ao poder criador de Deus. A doutrina da preexistência da alma foi apresentada de duas maneiras. Platão mantinha que as ideias são eternas na mente divina; que estas ideias não são meros pensamentos, mas sim entidades viventes; que constituem a essência e a vida de todas as coisas externas; o universo e tudo o que contém essas idéias são realizados, revestidas de matéria, e desenvolvidas na história. Assim, havia um mundo ideal, ou inteligível, interior ao mundo como realmente existente no tempo. O que Platão chamava ideias, Aristóteles o chamou formas. Ele negou que o ideal fosse anterior ao real. A matéria é eterna, e todas as coisas consistem de matéria e forma – significando-se por forma aquilo que dá caráter, ou que determina a natureza das coisas individuais. Como em outros respeitos, também neste teve muita influência a filosofia platônica, ou aristo-platônica, sobre a teologia cristã. E alguns dos pais e dos escolásticos aproximaram-se mais ou menos desta doutrina da preexistência, não só da alma, mas também de todas as coisas neste mundo ideal. São Bernardo, em sua implacável oposição ao nominalismo, adotou a doutrina platônica das ideias, que ele identificou com os gêneros e as espécies. Estas ideias, ensinava ele, eram eternas, embora posteriores a Deus, como um efeito é posterior à sua causa na ordem da natureza. A Providência aplica a ideia à matéria, que se faz animada e assume forma, e assim, «ex mundo intelligibili mundus Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 104 sensibilis perfectus natus est ex perfecto» [do mundo inteligível surgiu o mundo sensível.] 94 Entre os autores modernos, Delitzsch é aquele que mais se aproxima desta doutrina platônica. Diz ele: “Es giebt nach der Schrift eine Präexistenz des Menschen und zwar eine ideale; . . . . eine Präexistenz . . . . vermöge welcher Mensch und Menschheit nicht blos ein fernzukünftiges Object göttlicher Voraussicht, sondern ein gegenwärtiges Object göttlicher Anschauung sind im Spiegel der Weisheit. . . . . Nicht bloss Philosophie und falchberühmte Gnosis, sondern auch die Schrift weiss und spricht von einer göttlichen Idealwelt, zu welcher sich die Zeitwelt wie die geschichtliche Verwirklichung eines ewigen Grundrisses verhält”. 95 Quer dizer: «Há, segundo as Escrituras, uma preexistência ideal do homem; uma preexistência em virtude da qual o homem e a humanidade são contemplados pela onisciência divina não meramente como objetos que se encontram longínquos no futuro, mas sim como presentes no espelho de sua sabedoria. Não só a filosofia e a pretendida Gnosis, mas também as Escrituras reconhecem e certificam um mundo divino ideal com aquele que o mundo real tem uma relação como desenvolvimento histórico de um conceito eterno». Mas deve-se duvidar se Delitzsch significava com isto nada mais que o fato de que a onisciência de Deus abrange desde a eternidade o conhecimento de todas as coisas possíveis, e que Seu propósito determinou desde a eternidade a futuridade de todos os acontecimentos reais, de maneira que seu decreto ou plano, como existente na mente divina, é levado a cabo no mundo externo e sua história. O engenheiro tem em sua mente um claro conceito da máquina que vai produzir. Mas é só mediante uma figura de linguagem que se pode dizer que a máquina preexiste na mente do artífice. Isto é muito distinto da ideia platônica e realista da preexistência. 94 95 Cousin, Fragments Philosophiques, pp. 172 176. Biblische Psychologie, p. 23. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 105 A doutrina de Orígenes. A preexistência, ensinada por Orígenes, e adotada aqui e ali por alguns filósofos e teólogos, não é a doutrina platônica de um mundo ideal. Supõe que as almas dos homens tinham uma existência separada, consciente e pessoal num estado anterior; que tendo pecado naquele estado preexistente, são condenados a nascer no mundo em estado de pecado e a conexão com um corpo material. Esta doutrina foi relacionada por Orígenes com sua teoria de uma criação eterna. O atual estado de ser é só uma época na existência da alma humana. Passou através de outras inumeráveis épocas e formas de existência no passado, e deve passar através de outras tais épocas inumeráveis no futuro. Ele sustentava uma metempsicose muito similar à ensinada pelos orientais, tanto antigos como modernos. Mas inclusive sem a carga acrescentada da transmutação inacabável da alma, a própria doutrina jamais foi adotada na Igreja. Pode-se dizer que começou e terminou com Orígenes, porquanto foi rejeitada tanto pelos gregos como pelos latinos, e desde então só escritores individuais a defenderam. Não pretende ser uma doutrina escriturística, e portanto não pode ser objeto de fé. A Bíblia nunca fala de uma criação de homens antes de Adão, nem de nenhuma apostasia anterior à sua queda, e nunca atribui à pecaminosidade de nossa atual condição a alguma fonte mais alta que ao pecado de nosso primeiro pai. A hipótese de que todas as almas humanas foram criadas ao mesmo tempo que a alma de Adão, e que permaneceram num estado adormecido, inconsciente, até que se uniram aos corpos para os quais foram designados, foi adotada por tão poucos que dificilmente merece um lugar na história da opinião teológica. Mas é muito mais importante a questão quanto a se a alma de cada homem é criada imediatamente, ou se é gerada pelos pais. O primeiro é conhecido, em teologia, como «Criacionismo», e o segundo como «Traducianismo». Já desde o princípio, a igreja grega adotou a postura criacionista como a única consistente com a verdadeira natureza da alma. Tertuliano, na Igreja Latina, era quase um materialista, ou ao menos Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 106 empregou a linguagem do materialismo, mantendo que a alma era gerada de maneira muito semelhante ao corpo. Jerônimo se opôs a esta doutrina. Agostinho era muito adversa à mesma, mas em sua controvérsia com Pelágio a respeito da propagação do pecado se sentiu tentado a favorecer a teoria traducianista como proporcionando uma explicação mais fácil do fato de que derivamos uma natureza corrompida de Adão. Entretanto, nunca pôde adotá-la de uma maneira plena. O Criacionismo chegou a ser posteriormente a doutrina recebida quase universalmente da Igreja Latina, como o tinha sido sempre da Igreja Grega. Na época da Reforma, os Protestantes, como um todo, aderiram-se ao mesmo ponto de vista. Inclusive a Fórmula de Concórdia, o símbolo autoritativo da Igreja Luterana, favorece o criacionismo. Entretanto, a maioria dos teólogos luteranos do século dezessete adotaram a teoria traducianista. Entre os Reformados, sucedeu à inversa. Calvino, Beza, Turretino e a grande maioria dos teólogos Reformados foram criacionistas, e só aqui e ali alguém adotou a teoria ex traduce. Muitos dos atuais teólogos alemães, e aqueles que estão inclinados ao realismo em qualquer forma, tornaramse mais ou menos zelosos na defesa do traducianismo. Entretanto, está longe de ser a opinião universal dos alemães. Talvez a maioria de filósofos alemães concorda com Günther: 96 «O Traducianismo tem suas funções com relação à vida animal do homem; por outro lado, o âmbito do Criacionismo é o da alma; sairia de seu âmbito se estendesse a ação criadora imediata de Deus à vida animal, que é o princípio da existência de seu corpo». 96 Vorschule der speculativen Theologie, 2 edición, Viena, 1846,1848,2 parte, p. 181. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II § 2. Traducianismo. 107 O que se significa pelo termo traducianismo é em geral bem claro pelo sentido da palavra. Por um lado, os traducianistas negam que a alma seja criada; por outro lado, afirmam que é produzida pela lei da geração, sendo tão verdadeiramente derivada dos pais como o corpo. É o homem íntegro, alma e corpo, aquele que é gerado. O homem é derivado de maneira íntegra da substância de seus progenitores. Alguns vão além de outros em suas afirmações a respeito desta questão. Há aqueles que afirmam que a alma é suscetível de «abscisão e divisão», de maneira que uma porção da alma dos pais é comunicada ao menino. Outros se retraem de tais expressões, mas mantêm que há uma verdadeira derivação da uma procedente da outra. Entretanto, ambas as classes insistem na identidade numérica de essência em Adão e toda sua posteridade tanto na alma como no corpo. Os mais ilustrados e cândidos proponentes do traducianismo admitem que as Escrituras guardam silêncio a este respeito. Agostinho tinha dito a mesma coisa há mil anos atrás. “De re obscurissima disputatur, non adjuvantibus divinarum scripturarum certis clarisque documentis.” As passagens citadas em apoio da doutrina não ensinam nada decisivo a respeito desta questão. Que Adão gerasse um filho à sua semelhança, e conforme a sua imagem, e que chamasse seu nome Sete, só afirma que Sete era como seu pai. Não arroja luz alguma sobre o misterioso processo da geração, e não ensina como se alcança a semelhança de filho com o pai por causas físicas. Quando Jó se pergunta: “Quem pode tirar do impuro o limpo?” E quando o Senhor diz: “O que é nascido da carne é carne,” o fato afirma-se que o procriado é semelhante, que uma natureza corrupta se transmite de pais a filhos. Mas que isto só pode ser feito pela transmissão da mesma substância numericamente é uma hipótese gratuita. Insiste-se mais em certos fatos da Escritura que se supõem favoráveis a esta teoria. Diz-se que o fato de que na criação da mulher não se faça menção de que Deus soprasse nela fôlego de vida implica que sua alma, assim como seu Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 108 corpo, derivou-se do de Adão. Entretanto, o silêncio não demonstra nada. Em Gênesis 1:27, diz-se simplesmente: “criou Deus, pois, o homem à sua imagem,” como é dito que Ele criou “todo animal que se arrasta sobre a terra.” Não há nada dito de seu insuflar no homem o fôlego da vida, ou seja, um princípio de vida racional. Entretanto, sabemos que se fez. Não se menciona expressamente no caso de Eva, portanto, não é prova de que não lhe ocorreu. Mais uma vez, diz-se que o descanso de Deus no sábado, implica que a criação de sua energia não se exerceu depois. Entende-se por traçar a linha entre a criação imediata e a produção de efeitos na natureza pelas segundas causas sob o controle providencial de Deus. A doutrina do criacionismo, pelo contrário, assume que Deus constantemente, agora como no princípio, exercita sua agência imediatamente na produção de algo do nada. Mas, em primeiro lugar, não sabemos como a agência de Deus está relacionada com a operação das segundas causas, até que ponto essa agência é mediata, e em que medida o é imediata, e em segundo lugar, sabemos que Deus não se ligou à direção providencial simples, que Seu poder onipresente está sempre operando através dos meios e sem recursos em todo o âmbito da história e da natureza. De todos os argumentos em favor do Traducianismo, o mais eficaz é aquele que se deriva da transmissão de uma natureza pecaminosa de Adão à sua posteridade. Insiste-se em que não se pode explicar nem justificar a não ser que suponhamos que o pecado de Adão foi nosso pecado e nossa culpa, e que a idêntica substância ativa inteligente e voluntária que transgrediu nele, foi-nos transmitida. Este é um argumento que só pode ser considerado de maneira plena quando chegarmos a tratar do pecado original. Por agora é suficiente repetir a observação recém-feita, de que o fato é uma coisa, e a explicação do fato é outra. Admite-se o fato de que o pecado de Adão é, num sentido verdadeiro e importante, nosso pecado, e que derivamos dele uma natureza corrompida; mas que isto precise da adoção da doutrina ex traduce quanto à origem da alma não está tão clara. [Esta Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 109 explicação] foi negada pela imensa maioria dos mais ativos defensores da doutrina do pecado original, em todas as idades da Igreja. Dizer que o criacionismo é um princípio Pelagiano é só uma evidência de ignorância. Mais uma vez, insiste-se se que a doutrina da encarnação implica necessariamente a verdade da teoria ex traduce. Cristo nasceu de uma mulher. Ele foi a semente da mulher. A menos que tanto como a alma e o corpo deriva de sua mãe humana, diz-se, Ele não pode ser realmente da mesma raça conosco. Os teólogos luteranos, portanto, dizem: “Si Christus non assumpsisset animam ab anima Mariæ, animam humanam non redemisset.” Isto, entretanto, é um simples non sequitur. Tudo o que é necessário é que Cristo deve ser um homem, um filho de Davi, no mesmo sentido que qualquer outro da descendência de Davi, exceto só em sua concepção milagrosa. Ele foi formado ex substantia matris suæ no mesmo sentido em que cada menino nascido de uma mulher nasce de sua substância, mas o que é esse sentido, seu nascimento não determina. O argumento mais plausível em favor do traducianismo é o inegável fato da transmissão das peculiaridades étnicas, nacionais, familiares e inclusive paternas da mente e do temperamento. Isto parece dar evidência de que há não só derivação do corpo, mas também da alma em que estas peculiaridades são inerentes. Mas inclusive este argumento não é concludente, porque nos é impossível determinar a que causa mediata devem-se estas peculiaridades. Poderiam ser atribuídas, pelo que possamos saber, a algo peculiar na constituição física. Não se pode negar que a mente é extremamente influenciada pelo corpo. E um corpo que tenha algumas peculiaridades físicas pertencentes a qualquer raça, nação ou família pode determinar dentro de certos limites o caráter da alma. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II § 3. Criacionismo. 110 A doutrina comum da Igreja, e especialmente dos teólogos reformados, foi sempre a de que a alma da criança não é gerada nem derivada de seus pais, mas antes, é criada pela ação imediata de Deus. Os argumentos que se apresentam geralmente em favor desta postura são: 1. Que é mais consequente com as descrições prevalecentes das Escrituras. No relato original da criação estabelece-se uma marcada distinção entre o corpo e a alma. Um é da terra, a outra de Deus. Esta distinção se mantém ao longo de toda a Bíblia. O corpo e a alma não apenas são apresentados como substâncias diferentes, mas também como possuidores de diferentes origens. O corpo voltará ao pó, diz o sábio pregador, e o espírito a Deus que o deu. Aqui se apresenta a origem da alma como diferente de e mais elevado que a do corpo. A alma é de Deus num sentido que não é certo do corpo. De maneira similar, diz-se de Deus que «forma o espírito do homem dentro dele» (Zac 12:1); que dá «alento ao povo que habita» sobre a terra, «e espírito aos que por ela andam» (Is 42:5). Esta linguagem quase concorda com a do relato da criação original, no qual é dito que Deus soprou no homem fôlego de vida, para indicar que a alma não é terrena nem material, mas que teve sua origem de maneira imediata dEle. Portanto, Ele é chamado “Deus dos espíritos de toda carne.” (Nm 16:22, RC). Não poderia ser dito que Ele é Deus dos corpos de todos os homens. A relação em que a alma encontra-se para com Deus como seu Deus e Criador é muito diferente daquela em que o corpo encontra-se para com Ele. E portanto, é dito em Hb. 12:9 [RC]: “tivemos nossos pais segundo a carne, para nos corrigirem, e nós os reverenciamos; não nos sujeitaremos muito mais ao Pai dos espíritos, para vivermos?” A antítese evidente que aqui se apresenta é entre aqueles que são os pais de nossos corpos e aquele que é o Pai de nossos espíritos. Nossos corpos derivam de nossos pais terrestres, nossas almas derivam de Deus. Isto está de acordo com o uso familiar da palavra carne, onde fica em contraste, quer seja explícita ou Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 111 implicitamente, com a alma. Paulo fala daqueles que não haviam “visto seu rosto na carne,” da “vida que agora vivia na carne.” Diz aos filipenses que era necessário para eles que devia permanecer “na carne,” fala de sua “carne mortal.” O salmista diz do Messias, “minha carne descansará em esperança,” que o Apóstolo explica o sentido de que Sua carne não veria corrupção. Em todos estes, e em multidão de passagens similares, a carne, o corpo, e “pais de nossa carne” significa os pais de nossos corpos. Até o momento, portanto, segundo as Escrituras revelam sobre o tema, sua autoridade está contra o traducianismo e a favor do criacionismo. Argumentos com base na natureza da alma. 2. Esta última doutrina é também bem claramente consistente com a natureza da alma. Entre os cristãos se admite que a alma é imaterial e espiritual. É indivisível. A doutrina traducianista nega esta verdade universalmente reconhecida. Afirma que a alma admite «separação ou divisão de essência». 97 E sobre a mesma base pela qual a Igreja rejeitou universalmente a doutrina gnóstica da emanação como inconsequente com a natureza de Deus como espírito, rejeitou, com uma unanimidade quase similar, a doutrina de que a alma admite divisão de substância. Esta é uma dificuldade tão séria que alguns dos proponentes da doutrina ex traduce tentam evitá-la negando que sua teoria pressuponha separação ou divisão deste tipo da substância da alma. Mas pouco serve esta negação. Eles mantêm que a mesma essência numérica que constituía a alma de Adão é constitutiva de nossas almas. Se é assim, então ou a humanidade é uma essência geral da qual os homens individuais são modos de existência, ou o que estava inteiramente em Adão está distributivamente, partitivamente e por separação, na multidão de seus descendentes. Por isso, a derivação de essência implica, como 97 Shedd, History of Christian Doctrine, Vol. I., pág. 343, note. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 112 geralmente se admite que o faz, separação ou divisão de essência. E isto deve ser assim se for pressuposto que a identidade numérica de essência em toda a humanidade se obtém mediante geração ou propagação. 3. Um terceiro argumento a favor do criacionismo e contra o traducianismo deriva-se da doutrina da Escritura sobre a pessoa de Cristo. Ele era verdadeiro homem, tinha uma verdadeira natureza humana, um corpo e uma alma racional. Nasceu de uma mulher. Era, quanto à Sua carne, o Filho de Davi. Era descendente dos pais. Ele era em todos os pontos feito semelhante a nós, mas sem pecado. Isto é admitido por ambas as partes. Mas, como antes foi dito com referência ao realismo, na teoria de traducianismo, isto faz necessária à conclusão de que a natureza humana de Cristo era culpada e pecadora. Somos partícipes do pecado de Adão, tanto a respeito da culpabilidade e da contaminação, porque a mesma essência numérico que pecou nele nos comunica. O pecado, segundo se diz, é um acidente, e que supõe uma substância em que é inerente, ou ao que pertence. Comunidade supõe o pecado, portanto, a comunidade da essência. Se não estivemos em Adão quanto à essência, não pecamos nele, e não derivamos dele uma natureza corrupta. Dizem que se seu corpo e a alma não procedentes do corpo e da alma de sua mãe virgem não era um homem verdadeiro, e não pode ser o redentor dos homens. Em consequência, o que é verdadeiro de outros homens, é verdadeiro dEle. Portanto, Ele deve estar tão comprometido na culpa e na corrupção da apostasia como outros homens. Isso não vai afirmar e negar a mesma coisa. É uma contradição dizer que somos culpados do pecado de Adão porque somos partícipes de sua essência, e que Cristo não é culpado de seu pecado nem participa de sua contaminação, embora Ele é partícipe de sua essência. Se a participação da essência envolve à comunidade da culpa e a depravação num caso, também deve ser no outro. Como isto parece uma conclusão legítima da doutrina traducianista, e como esta conclusão é anticristã, e falsa, a própria doutrina não pode ser verdade. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II § 4. Observações finais. 113 Tais são os argumentos principais a ambos os lados desta questão. Com referência a esta discussão pode-se observar: 1. Que enquanto que nos toca resistir vigorosamente qualquer doutrina que pressuponha a divisibilidade e conseguinte materialidade da alma humana, ou que conduza à conclusão de que a natureza humana de nosso bendito Senhor estivesse contaminada com pecado, entretanto não nos cabe ser mais sábios que o que está escrito. Podemos confessar que a geração, a produção de um novo indivíduo da raça humana, é um mistério inescrutável. Mas isto se deve dizer da transmissão da vida em todas as suas formas. Se os teólogos e filósofos se contentassem com simplesmente negar a criação da alma ex-nihilo sem insistir na divisão da substância da alma nem na identidade de essência em todos os seres humanos, o mal não seria tão grande. Alguns tentam esta moderação, e diz, com Frohschammer: 98 “Generare ist nicht ein traducere, sondern ein secundäres, ein creatürliches creare.” Eles fazem uso da analogia com frequência referida a “cum flamma accendit flammam, neque tota flamma accendens transit in accensam neque pars ejus in eam descendit: ita anima parentum generat animam filii, ei nihil de cedat.” É preciso confessar, entretanto, que neste ponto de vista da teoria perde todo o seu valor como meio de explicar a propagação do pecado. 2. É evidentemente do mais irrazoável e presunçoso, além de perigoso, fazer de uma teoria a respeito da origem da alma a base de uma doutrina tão fundamental para o sistema cristão como o do pecado original. Mas vemos teólogos, antigos e modernos, afirmando ousadamente que se sua doutrina de derivação, e a identidade numérica de substância em todos os homens, não se admite, então é impossível o pecado original. Isto é, que nada pode ser certo, não importa o claramente que seja ensinado na palavra de Deus, que eles não possam 98 Ueber den Ursprung der Seelen, Munich, 1854, p. 83, note 1. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 114 explicar. Isto o fazem inclusive aqueles que protestam contra a introdução da filosofia na teologia, totalmente inconscientes de que eles mesmos ocupam, até este ponto, o mesmo terreno que os racionalistas. Não estão dispostos a crer na depravação hereditária a não ser que a alma do filho seja da mesma substância numérica que a alma do pai. Isto é, as claras declarações das Escrituras não podem ser certas a não ser que se adote a mais obscura, ininteligível e incongruente e menos recebida teoria filosófica quanto à constituição do homem e a propagação da raça. Ninguém tem direito a pendurar a roda de moinho de sua filosofia ao redor do pescoço da verdade de Deus. 3. Há uma terceira nota de advertência que não se deve omitir. Toda a teoria do traducianismo se baseia na pressuposição de que Deus, desde a criação original, opera só através de meios. Desde o «sexto dia, o criador não exerceu, neste mundo, nenhuma energia estritamente criativa. Ele descansou da obra da criação no sétimo dia, e segue repousando». 99 A criação contínua das almas é declarada por Delitzsch 100 como inconsistente com a relação de Deus com o mundo. Ele agora só produz de maneira mediata, isto é, por meio da operação de segundas causas. Isto é uma aproximação à teoria mecânica do universo, que supõe que Deus, tendo criado o mundo, e tendo dotado a Suas criaturas com certas faculdades e propriedades, deixa-o à operação destas segundas causas. Pode-se admitir uma superintendência continuada da Providência, mas se nega o exercício direto da eficiência divina. O que sucede, então, com a doutrina da regeneração? O novo nascimento não é efeito de segundas causas. Não é um efeito natural produzido pela influência da verdade nem da energia da vontade humana. Deve-se ao exercício imediato do poder onipotente de Deus. A relação de Deus com o mundo não é a de um engenheiro com uma máquina, nem de um tipo que lhe limite a operar só através de segundas 99 Shedd, History of Christian Doctrine, vol. II. pág. 13. Delitzsch, Biblische Psychologie, pág. 79. 100 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 115 causas. Ele é imanente no mundo. Ele sustenta e conduz todas as causas. Ele opera constantemente através das mesmas, com elas, e sem elas. Como nas operações de escritura ou de comunicação oral, temos em nós a união e ação combinada de forças mecânicas, químicas e vitais, controlado tudo isso pelo poder diretor da mente; e assim como a mente, enquanto conduz assim as operações do corpo, exercita constantemente sua energia pensante criativa, assim Deus, como imanente no mundo, conduz constantemente todas as operações das segundas causas, e ao mesmo tempo exerce ininterruptamente Sua energia criativa. A vida não é produto de causas físicas. Não sabemos que sua origem se deva em nenhum caso a alguma outra causa diferente do poder imediato de Deus. Se a vida é um atributo peculiar da substância imaterial, pode ser produzida adequadamente com base em um plano fixo pela energia criativa de Deus sempre que estejam presentes as condições mediante as quais Ele se propôs que comece a ser. A organização de uma semente, ou do embrião de um animal, até onde consiste de matéria, pode dever-se à operação de causas materiais conduzidas pela atividade providencial de Deus, enquanto que o princípio próprio vital deve-se a seu poder criador. não há nada nisto que faça de menos ao caráter divino. Nada há nisso que seja contrário às Escrituras. Nada há nisso fora de analogia com as palavras e obras de Deus. É muito mais preferível à teoria que ou exclui totalmente a Deus do mundo, ou restringe suas operações a um concursus com segundas causas. A objeção ao criacionismo de que elimina a doutrina dos milagres, ou que supõe que Deus sanciona cada ato com o qual esteja conectado Seu poder criador, não parece sequer ter plausibilidade alguma. Um milagre não é simplesmente um acontecimento devido à ação imediata de Deus, porque então cada ato de conversão seria um milagre. É um acontecimento que tem lugar no mundo externo e que envolve a suspensão ou neutralização de alguma lei natural, e que não se pode atribuir a nada mais que ao poder imediato de Deus. Por isso, a origem da vida não é um milagre nem em sua natureza nem em seu desígnio, no sentido próprio da palavra. Este exercício da Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 116 energia criadora de Deus, com relação à ação das segundas causas, não implica mais aprovação que o fato de que Ele dá e sustenta a energia de um assassino implica que Ele aprove o assassinato. 4. Por último, esta doutrina do traducianismo é mantida pelos que disputam pela velha doutrina realista de que a humanidade é uma substância ou vida genérica. As duas teorias, entretanto, não parecem harmonizar-se, e sua combinação produz uma grande confusão e escuridão. Segundo uma teoria a alma da criança se deriva da alma de seus pais; de acordo com a outra teoria não há nenhuma derivação. Um ímã não é, ou não precisa ser derivado de outro; uma garrafa de Leyden não se deriva de outra, nem uma bateria galvânica de outra. Não há nenhuma derivação no caso. As forças gerais de magnetismo, eletricidade e galvanismo, manifestam-se com relação às combinações de material. E se um homem é a manifestação do princípio geral da humanidade com relação a um determinado corpo humano, sua natureza humana não se deriva de seus progenitores imediatos. O objetivo desta discussão não é chegar a uma certeza a respeito do que não está claramente revelado nas Escrituras, nem explicar o que por todos lados se admite como inescrutável, mas antes, advertir contra a adoção de princípios que se opõem a claras e importantes doutrinas da palavra de Deus. Se o traducianismo ensina que a alma admite abscisão ou divisão; ou que a raça humana está constituída de uma mesma substância numérica; ou que o Filho de Deus assumiu em união pessoal consigo mesmo da mesma substância numérica que pecou e caiu em Adão, então deve ser rejeitado como ao mesmo tempo falso e perigoso. Mas se, sem tentar explicar tudo, afirma simplesmente que a raça humana se propaga em seguimento da lei geral de que semelhante gera semelhante; que o filho deriva sua natureza de seus pais pela operação de leis físicas, assistidas e controladas pela ação de Deus, seja esta diretiva ou criativa, como em todos os outros casos de propagação de criaturas vivas, pode-se considerar como uma questão aberta, ou assunto indiferente. O criacionismo não supõe necessariamente que há outro Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 117 exercício do poder imediato de Deus na produção da alma humana que aquele que tem lugar na produção de vida em outros casos. Só nega que a alma seja suscetível de divisão, que toda a humanidade esteja composta numericamente da mesma essência, e que Cristo assumisse numericamente a mesma essência que pecou em Adão. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II CAPÍTULO IV 118 A UNIDADE DA RAÇA HUMANA HÁ ainda outra questão que a ciência expôs à teologia, com relação ao homem, que não pode ser passada por alto. Tem toda a humanidade uma origem comum? E tem toda ela uma natureza comum? Descendeu toda ela de um casal, e constituem uma espécie? Estas questões são respondidas afirmativamente na Bíblia e pela igreja universal. São respondidas em sentido negativo por um grande e crescente número de cientistas. Como a unidade da raça não é apenas declarada nas Escrituras, mas também dada por suposta em tudo o que ensinam a respeito da apostasia e redenção do homem, é um ponto a respeito do qual a mente do teólogo deveria ficar convencido de maneira inteligente. Como mero teólogo, pode estar autorizado a satisfazer-se com as declarações da Bíblia; mas como defensor da fé deveria também dar uma resposta aos que se opõem. Há dois pontos envolvidos nesta questão: comunidade de origem e unidade de espécie. Todas as plantas e animais derivados por propagação do mesmo tronco original são da mesma espécie; mas os da mesma espécie não precisam ter derivado de um tronco comum. Se Deus tivesse considerado adequado no princípio, ou em qualquer tempo posterior, criar plantas ou animais da mesma classe em grandes números e em diferentes partes da terra, seriam da mesma espécie (ou natureza), embora não da mesma origem. Os carvalhos da América e os da Europa são idênticos quanto à espécie, embora não sejam derivados de um e o mesmo carvalho primordial. Pode-se admitir que a grande maioria de plantas e animais foram produzidos originalmente não a sós ou em casais, mas em grupos, produzindo a terra uma multidão de animais da mesma classe. Por isso, é em si mesmo possível que todos os homens possam ser da mesma espécie, embora nem todos descendido de Adão. E esta é a opinião de alguns distinguidos naturalistas. Entretanto, a doutrina escriturística a respeito do homem é que a raça não é só a Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 119 mesma em classe, mas sim a mesma em origem. Todos são filhos de um pai comum, e têm uma natureza comum. § 1. Conceito de Espécie. Evidentemente, é essencial para qualquer resposta inteligente à questão o saber se todas as variedades dos homens são de uma espécie, que devemos ser capazes de dizer o que é uma espécie. Este é um ponto de dificuldade muito grande. Os naturalistas não só diferem em suas definições do termo, mas diferem em grande medida na classificação. Alguns supõem um ponto na asa de uma mariposa, ou uma ligeira diversidade de plumagem numa ave, como prova da diferença das espécies. Por isso, alguns se dividem em seis ou oito espécies que outros compreendem numa. Nada, portanto, pode ser feito até que os homens cheguem a um entendimento comum sobre este tema, e a verdadeira ideia das espécies seja determinada e autenticada. Características gerais das espécies. Antes de considerar as diversas definições do termo, é conveniente assinalar que existem certas características das espécies que pelo menos, até recentemente, foram geralmente reconhecidas e admitidas. (1.) A originalidade, quer dizer, eles devem sua existência e o caráter à criação imediata. Eles não são produzidos por causas físicas, nem são sempre derivados de outros gêneros ou espécies. Eles são formas originais. Isto é admitido pelos naturalistas de todas as classes. Tal é a doutrina de Cuvier, Agassiz, Dr. Morton, e daqueles que sustentam que as variedades da raça humana são tantas espécies distintas. Eles querem dizer com isto que tiveram origens diferentes, e não são todas derivadas de um tronco comum. Todas as espécies portanto, pelo consenso geral, tiveram uma origem única. (2.) A universalidade, quer dizer, todos os indivíduos e as variedades pertencentes a uma mesma espécie têm todas as suas Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 120 características essenciais. Onde quer que se encontre os dentes de um animal carnívoro, encontra-se um estômago capaz de digerir o alimento dos animais, e as garras adaptadas para aproveitar e manter a presa. Onde quer que se encontre barbatanas para efetuar movimento na água, encontra-se uma equipamento de respiração adequado para o mesmo elemento. A espécie se transmite toda e inteira. O mesmo sucede em todos os indivíduos que a integram, e nesse sentido universal. (3.) Imutabilidade, ou permanência. Por isso se entende uma parte, que uma espécie nunca perde ou se fundiu em outra; em segundo lugar, que nunca duas ou mais espécies se combinam para produzir uma terceira. A rosa não se pode combinar na tulipa, nem tampouco a rosa e o tulipa são feitas para produzir uma nova espécie, que é nenhum nem outro. As únicas formas permanentes de transmissão de vida orgânica, são tais que constituem espécies distintas. Imutabilidade, portanto, ou o poder para perpetuar-se, é uma das características indispensáveis das espécies. Isto, até há pouco, foi a doutrina universalmente admitida dos naturalistas. E apesar dos esforços dos defensores das diferentes teorias do desenvolvimento, continua sendo a fé geral do mundo científico. Os argumentos principais em apoio desta doutrina já se resolveram, quando se fala da teoria do Sr. Darwin sobre a origem das espécies. Estes argumentos são brevemente as seguintes. (1.) O fato histórico de que todas as espécies conhecidas de plantas e animais são precisamente o que eram quanto alcança a história. A Bíblia e os registros nos monumentos egípcios nos levará de novo a um ponto de milhares de anos antes do nascimento de Cristo. Durante todo este período de cinco ou seis mil anos as espécies seguem sendo as mesmas. (2.) Se termos que receber os fatos da geologia como autenticada, é evidente que a mesma permanência existiu desde o próprio princípio da vida em nosso planeta. Enquanto qualquer espécie que existe, existe sem mudanças em tudo o que é essencial para ela. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 121 (3.) Há uma ausência completa e reconhecida de todas as evidências da transmutação, mas nenhum dos pontos de transição ou enlaces de conexão entre uma espécie e outra é em qualquer lugar detectável. (4.) Se as espécies não fossem imutáveis assim o mundo animal e vegetal em lugar de apresentar a ordem bela por todas as partes visíveis, exibiriam um caos perfeito de toda a vida orgânica. (5.) Apesar dos contínuos e longos esforços engenhosos para fazer híbridos prolíficos, estas tentativas fracassaram de maneira uniforme. As duas maiores autoridades vivas neste tema são o Dr. Bachman de Charleston, Carolina do Sul, e M. Flourens do Jardin des Plantes de Paris. “Qualquer dos híbridos,” diz este último, “nascido da união de duas espécies distintas, unem-se e logo se convertem em estéreis, ou se unem com uma das populações dos pais e logo retornam a este tipo — que em nenhum caso dão que se pode chamar uma nova espécie, quer dizer, uma espécie intermediária duradoura.” “Les espèces ne s’altèrent point, ne changent point, ne passent point de l’une à l’autre; les espèces sont FIXES.” 101 Não há lei natural melhor autenticada ou mais geralmente admitida de que as espécies são imutáveis e capazes de propagar-se por tempo indefinido. Definições de espécie. Nenhum grupo de animais pode ser considerado como uma espécie distinta que não existiu como algo distinto desde o princípio, e que não é imutável em suas características essenciais, e que não é capaz de propagar-se indefinidamente. Estes são pontos de referência importantes, mas não são suficientes para nos guiar em todos os casos a uma conclusão satisfatória quanto a se determinados indivíduos ou variedades são da mesma ou de diferentes espécies. (1.) Devido ao fato de que a origem destas variedades não podem ser historicamente traçado. O caucasiano e o negro existiram com suas características atuais distintivas 101 Principles of zoology, p. 9. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 122 por vários milhares de anos. Mas isto não prova que diferiam desde o princípio. (2.) Devido ao fato de que certas variedades da mesma espécie uma vez estabelecidas se tornam permanentes, e são capazes de duração indefinida. Algumas variedades de cães representados nos monumentos egípcios séculos antes de Cristo, são precisamente as que agora existem. Os naturalistas, portanto, buscaram uma definição precisa de espécie, embora estes intentos não foram em geral bem-sucedido. Cuvier disse: “Estamos na necessidade de admitir a existência de certas formas que se perpetuaram desde o princípio do mundo, sem exceder os limites prescritos primeiro, todos os indivíduos pertencentes a uma destas formas constituem o que se denomina uma espécie.” De Candolle disse: “Nós escrevemos sob a denominação das espécies de todos os indivíduos que se parecem entre si tão estreita entre si como admite nossa hipótese que se tivesse originado do mesmo casal.” Agassiz 102 diz: “As espécies se baseiam em menos importantes distinções, como a cor, tamanho, proporções, escultura, etc.” As objeções a estas definições são: (1.) Que não nos permitem distinguir entre espécies e variedades. (2.) Referem-se quase exclusivamente ao que é externo ou material, cor, tamanho, proporção, etc., como os critérios, em detrimento dos componentes mais elevados do animal. O doutor Prichard, diz que sob o termo espécie se incluem todos aqueles animais que se supõe que surgiram na primeira instância de um único casal. E no mesmo sentido o Dr. Carpenter diz: “Quando se pode demonstrar que duas raças tiveram uma origem distinta, são consideradas como de diferentes espécies; e, por falta da prova, o que se infere quando nos encontramos com alguma peculiaridade da característica de cada organização, pelo que constantemente transmitem de pais à descendência, que uma coisa não se possa supor que perderam, ou a outra a adquiriram, através de qualquer operação que se conhece das causas físicas.” 102 Principles of zoology, p. XIV. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 123 A objeção a este ponto de vista da questão é que torna a comunidade de origem, quer seja demonstrado ou deduzido, o critério de igualdade das espécies. Mas, em primeiro lugar, esta comunidade de origem não pode numa multidão de casos ser estabelecida; e no caso do homem, é precisamente o que devem provar-se. A grande pergunta é, são os mongóis, africanos e caucasianos todos eles obtidos a partir de um antepassado comum? E em segundo lugar, embora a comunidade de origem demonstra a identidade das espécies, a diversidade de origem não provaria a diversidade de espécies. Todas as variedades do cavalo e do cão constituiriam uma espécie por cada classe, apesar de que tinha sido criada como são agora. Espécie significa tipo, e se dois animais são do mesmo tipo são da mesma espécie, não importa qual pôde ter sido sua origem. Se Deus tivesse criado um par de leões na Ásia, outro no norte da África, outro no Senegal, todos eles pertenceriam a uma espécie. Sua identidade de tipo seria precisamente a mesma como se todos fossem descendentes de um casal. A definição do Dr. Morton de espécie como “uma forma orgânica primordial,” obteve aceitação geral. É, entretanto, suscetível de objeção no terreno da ambiguidade da palavra forma. Se por “forma” se entende a estrutura externa, a definição é insatisfatória; se entendemos a palavra em seu sentido escolástico de princípio essencial e formativo, deve ser o mesmo que é mais claramente expresso em outros termos. Agassiz dá outra ideia e muito mais satisfatória da natureza das espécies, quando se refere a um princípio imaterial como seu elemento essencial, e isso para que a igualdade dos indivíduos e as variedades incorporem no que se refere. 103 Ele diz: “Além das distinções que se derivam da estrutura variada de órgãos, há outros menos sujeitos a análise rígida, mas não menos decisivo, que se elaborará do princípio imaterial, com que está dotado todos os animais. Isto é o que determina a constância das espécies de geração em geração, e que é a fonte de todas 103 Principles of zoology, p. 9. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 124 as variadas exposições do instinto e a inteligência que vemos em tela, desde o simples impulso para receber a comida que se traz para seu alcance, como se observa nos pólipos, através das manifestações mais elevadas, na raposa ardilosa, no elefante sagaz, no cão fiel, e no intelecto do homem exaltado, que é capaz de expansão indefinida.” Mais uma vez, diz: 104 “A constância das espécies é um fenômeno vinculado à natureza imaterial.” “Todos os animais,” diz ele, “pode remontar-se no embrião a um mero ponto na gema de um ovo, não apresentando nenhuma semelhança ao animal no futuro. Mas ainda neste caso um princípio imaterial de que nenhuma influência externa pode prevenir ou modificar, está presente, e determina sua forma futura, de modo que o ovo de uma galinha só pode produzir um frango e o ovo de um bacalhau só um bacalhau.” O professor Dana diz: 105 “As unidades do mundo inorgânico são os elementos pesados e seus compostos definidos ou suas moléculas. As unidades dos organismos são espécies, que apresentam eles mesmos em sua condição mais simples no estado de células germinais. Os reinos da vida em todas as suas magníficas proporções são feitas destas unidades.” Outra vez: 106 “Quando os indivíduos se multiplicam de geração em geração, não é mais que uma repetição do tipo-ideia primordial, e a verdadeira noção da espécie não está no grupo resultante, mas na ideia ou elemento potencial que está na base de cada indivíduo do grupo.” Aqui chegamos a terra firme. A unidade de espécies não consiste na unidade ou identidade da estrutura orgânica, na uniformidade quanto ao tamanho, cor, ou qualquer coisa meramente externa, mas na identidade pessoal do princípio imaterial, ou “ideia potencial,” que constitui e determina a identidade da natureza. No ponto inicial na gema do ovo, não há diferença de forma, nenhuma diferença discernível pelo microscópio, ou de detecção por análise química, entre um e outro 104 Ibid. p 43. Bibliotheca Sacra, 1857. p. 863. 106 Bibliotheca Sacra, 1857, p. 861. 105 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 125 germe; entre a célula inicial da ave e a dos peixes. E entretanto, toda a diferença está ali. A diferença, portanto, não pode existir no que é externo (embora dentro de certos limites e em posterior desenvolvimento se manifesta externamente), mas no que é imaterial. Assim que, quando o princípio imaterial de Agassiz, ou a ideia potencial de Dana, é a mesma, a espécie é a mesma, onde o princípio imaterial é diferente, a espécie é diferente. § 2. Evidências da identidade das Espécies. Sendo este o caso, a única questão é, como podemos determinar se o princípio imaterial que constitui e determina a espécie, é igual ou diferente. Além da revelação divina, isto se pode comprovar: (1.) Em parte pela estrutura orgânica. (2.) Parte da φύσις - phusis, ou a natureza física. (3.) Em parte pela ψυχή - psuche, ou a natureza psicológica. (4.) Em parte pela persistência e a capacidade de propagação indefinida. Estrutura orgânica. A primeira evidência da identidade das espécies é preciso buscá-la no σῶμα - soma, ou da estrutura orgânica. A evidência do desígnio está impressa em todos os corpos organizados no universo, e em especial nos órgãos de todos os animais. Os destinadas a viver na terra seca, os destinados a viver na água, e os destinados a voar no ar, têm seu quadro de animais adaptados a estes severos modos ou condições de existência. Também há clara evidência da unidade deste desígnio. Quer dizer, levase a cabo em todas as partes da organização corporal. Os animais destinados a viver na terra seca não têm nenhuma estrutura, ou órgãos ou membros particularmente adaptados aos animais aquáticos. O leão, o tigre, o boi, o cavalo, etc., não têm nem as guelras, as escamas, as barbatanas, nem a cauda como leme dos peixes. Todas as partes do animal harmonizam. Todos eles estão relacionados e se adaptam a um e ao mesmo fim. O corpo do peixe é adaptado para romper a água com a Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 126 menor resistência; suas barbatanas são remos, sua cauda se adapta tanto para a propulsão e a orientação; seu aparelho de respiração é adequado para separar o ar da água, seus órgãos digestivos se adaptam à assimilação da classe de alimento proporcionado pelo elemento em que vive. O mesmo é certo, obviamente, de todos os animais terrestres. Além desta adaptação geral dos animais para viver no ar, na água, e sobre a terra seca, há inumeráveis adaptações mais específicas que convêm à espécie de peixes, aves e animais da terra para os modos particulares de vida para o qual são desenhados. Alguns estão destinados a ser carnívoros, e seus corpos são construídos em harmonia com essa finalidade. Outros estão destinados a viver nas ervas, e neles encontrará tudo adaptado para tal propósito. Esta adaptação refere-se aos propósitos múltiplos e variados. Portanto os gêneros e as espécies de animais pertencentes aos distintos departamentos, classes, ordens, e famílias em que se divide o reino animal, são muito numerosos, e cada um tem sua organização corpórea distintiva indicativa do fim específico que se pretende servir. Tão minúsculo, e assim fixado é o plano em que cada espécie de animais se constrói, que um naturalista hábil, pelo exame de um só osso, pode dizer não só a família, ou gênero, mas sim a própria espécie a que pertence. Agassiz, de uma única escala de um peixe, delimitou todo o seu corpo com a maior precisão, como se o animal vivo tivesse sido fotografado. E a correção de seu traçado se verificou posteriormente pela descoberta de um espécime perfeito da espécie retratada. Agora, o dedutível princípio importante destes fatos admitidos é que há diversidade de cor, forma, proporção, estrutura, etc., não são indicativos de desígnio, ou não proveem uma diferença no princípio imaterial que determina a natureza do animal, pode por si só ser admitido como prova da diversidade de espécies. O galgo italiano e o mastim inglês diferem em todos os aspectos que acabamos de mencionar. O pônei Shetland, o cavalo carro em Londres, e o Barb árabe exibe diversidade similar. Mas quando devem ser anatomicamente Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 127 examinados, comprova-se que se constroem no mesmo plano. As estruturas ósseas, a distribuição dos nervos, músculos e vasos sanguíneos, são expressão da mesma intenção geral. Portanto, os naturalistas referem estas variedades à mesma espécie. E a correção desta conclusão vê-se confirmada por todos os outros critérios da identidade das espécies. Embora se admita que existem tais diferenças nas variedades pertencentes à mesma espécie dos animais inferiores, é surpreendente que as diversidades muito menos da própria natureza entre as variedades da família humana deve insistir-se, como prova da diferença de espécie. O cão selvagem onde quer que for encontrado é quase da mesma cor, e o mesmo tamanho, com as orelhas, as extremidades e a cauda da mesma forma, e entretanto, como são as infinitas variedades permanentes derivadas dessa população original. É bem sabido que estas variedades podem ser produzidas artificialmente. Mediante a criação hábil quase qualquer peculiaridade de forma, cor ou estrutura dentro dos limites da ideia original da espécie, pode ser produzida e perpetuada, como se vê nas diferentes raças de cavalos, gado e ovelhas encontradas inclusive num tão restringido campo de ação, como a Grã-Bretanha. É certo, portanto, que há diversidade de caráter externo ou material, não indicativo da diversidade de desígnio, plano, e a intenção bem pode assumir-se como indicativos da diversidade de espécies. A presença de uma pele conectando os dedos do pé ou as garras de um pássaro, é em si um assunto comparativamente pequeno. É insignificante quanto à quantidade de material gasto, e quanto ao efeito na aparência geral em comparação com os pontos de diferença entre o galgo e o mastim, e entretanto, é indicativo de desígnio. Indica que o animal está destinado a viver na água, e tudo o mais em sua estrutura e natureza encontra-se em correspondência com essa intenção. Uma pequena diferença de estrutura indicativa de desígnio demonstrará diferença das espécies, quando muito maiores diferenças não indicativas são perfeitamente compatíveis com a unidade da espécie. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 128 O argumento fisiológico. O segundo método de determinar a identidade do princípio imaterial em que a ideia das espécies reside, é o exame de seu φύσις phusis, ou de sua fisiologia. Para este departamento pertence o que se refere à debilitação ou a distribuição da força nervosa; à circulação do sangue; à respiração; a calorificação ou a produção de calor animal; à distribuição dos músculos voluntários e involuntários; aos processos da digestão, à assimilação, propagação, etc., etc. Quanto a este ponto é objeto de observação: (1.) Que o φύσις - phusis ou natureza animal, sempre de acordo com o σῶμα - soma, ou a estrutura corporal. Nunca encontramos os órgãos de um dos animais aquáticos com a φύσις - phusis de um animal terrestre. Tudo o relacionado com a fisiologia do animal está em harmonia com sua organização corpórea. (2.) Quando, em todos os aspectos da natureza física das pessoas ou as variedades é a mesma, a espécie não é a mesma, onde a φύσις - phusis é diferente, a espécie é diferente. (3.) Que a fisiologia de um animal é, pois, como facilmente comprovado, e é tão uniforme e fixo, visto que sua estrutura material, e de fato muito mais. A estrutura material pode, e como vimos, diferem excessivamente nas diferentes variedades incluídas na mesma espécie, mas a φύσις - phusis é sempre a mesma. A fisiologia do galgo é idêntica a do mastim, e a do pônei Shetland é a mesma que a do carro-cavalo de Londres. O argumento psicológico. O terceiro critério da identidade das espécies é preciso buscá-lo na ψυχή - psuche, ou a natureza psicológica do animal. A ψυχή - psuche é o princípio imaterial que pertence a todos os animais, e é o mesmo em tipo em cada espécie distinta. É aquele em que reside a vida, que é a sede dos instintos, e dessa medida da inteligência, quer seja maior ou menor, que pertence ao animal. A ψυχή - psuche é a mesma em todos os indivíduos da mesma espécie, e é permanente. Os instintos e hábitos da abelha, a da vespa, da formiga e do castor, do leão, do tigre, do lobo, da raposa, do Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 129 cavalo, do cão, e do boi, e de todas as diversidades sem fim de animais, aves, peixes e insetos, são os mesmos em todas as idades e em todas as partes do mundo. Este princípio imaterial é de uma ordem superior em alguns casos que em outros, e admite graus mais ou menos da cultura, como se vê no elefante treinado ou numa raça de cães bem disciplinada. Mas o principal é que cada espécie tem sua própria ψυχή - psuche, e que este é um elemento mais elevado e maior evidência decisiva da identidade da estrutura corporal ou inclusive a φύσις - phusis, ou a natureza animal. Quando estes três critérios coincidem, quando a organização corporal, em tudo indicativos de desígnio, é o mesmo, onde a φύσις - phusis e a ψυχή - psuche, as naturezas física e psicológica, são as mesmas, ali, para além de toda dúvida razoável, a espécie é a mesma. O quarto critério da espécie encontra-se não só em sua permanência, mas na capacidade de procriação e multiplicação indefinida que pertence a todos os indivíduos e as variedades que se inclui. Os animais da mesma espécie podem propagar sua espécie. Os animais de espécies diferentes não podem combinar-se e perpetuar uma nova espécie ou mestiços. Isto, como vimos é um fato admitido em todas as classes dos naturalistas, excetuados uns poucos indivíduos. É um fato patente a toda a humanidade e verificados pela experiência todas as idades. § 3. Aplicação destes critérios ao homem. Quando chegamos a aplicar estes critérios diversos à raça humana, encontra-se fora de toda dúvida que todos eles coincidem em demonstrar que toda a família humana são uma e a mesma espécie. Em primeiro lugar, a moldura corpórea ou estrutura externa é a mesma em todas as variedades da raça. Há o mesmo número de ossos no esqueleto; seu arranjo e disposição são os mesmos. Há a mesma distribuição dos vasos sanguíneos. O cérebro, a medula espinhal e o sistema nervoso são os mesmos em todos. Todos eles têm os mesmos músculos que sobe a Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 130 muitos milhares em número. Os órgãos de respirar, a respiração, a digestão, a secreção, e a assimilação, são os mesmos em todos. De fato, existem diferenças de tamanho indefinido, compleição e caráter, e a cor do cabelo, dentro da mesma variedade da raça, e entre as próprias variedades. Algumas destas diferenças são variáveis, e algumas são fixas. O caucasiano, o mongol, o africano, têm cada um suas peculiaridades pelas quais uma se distingue facilmente das demais, e que descendem de geração em geração sem alteração. Com relação a estas peculiaridades, entretanto, é de notar-se, em primeiro lugar, que são menos importantes e menos visíveis que os que distinguem as diferentes variedades de animais domésticos pertencentes à mesma espécie. Não há dois homens, ou não há homens de diferentes raças, diferentes entre si tanto como o galgo italiano e o poderoso mastim de grande alcance ou o buldogue. E em segundo lugar, nenhuma destas peculiaridades são indicativas da diferença de desígnio, ou plano, e portanto não são indicativas da diferença no princípio imaterial, que segundo os naturalistas da mais alta classe, determina a identidade das espécies e assegura sua permanência. E em terceiro lugar, estas peculiaridades são referentes às diferenças de clima, dieta, e o modo de vida, e aos efeitos de propagação no caso das peculiaridades adquiridas. A verdade desta última afirmação quanto à influência destas diversas causas na modificação e na perpetuação das variedades da mesma espécie, está abundantemente ilustrado e confirmado no caso de todos os animais inferiores. Tal é a igualdade de todas as variedades da humanidade quanto à sua estrutura corporal, que um sistema da anatomia escrita na Europa e se baseia no exame dos corpos dos europeus exclusivamente, seria aplicável na Ásia, África, América e Austrália, como na própria Europa. O segundo critério de igualdade das espécies é preciso buscá-lo na φύσις - phusis ou natureza física. A este respeito também toda a humanidade encontra-se num acordo, de modo que a fisiologia do caucasiano, do mongol e do africano é precisamente o mesmo. As leis Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 131 que regulam os processos vitais são as mesmas em todos; respiração, digestão, secreção, e a propagação, são todos realizados na mesma forma em todas as variedades da espécie. O terceiro critério encontra-se na natureza psicológica ou ψυχή psuche. Isto, como vimos, é a máxima prova, para a ψυχή - psuche ou princípio imaterial é o elemento mais importante na constituição de todo ser vivente. Onde isso é a mesma, a espécie é a mesma. Não pode haver nenhuma dúvida razoável de que as almas de todos os homens são essencialmente as mesmas. Eles não só têm em comum todos os apetites, os instintos e as paixões, que pertencem às almas dos animais inferiores, mas todos compartilham dos atributos superiores que pertencem exclusivamente ao homem. Todos eles estão dotados de razão, consciência, e o livre-arbítrio. Todos eles têm os mesmos princípios e afetos constitucionais. Todos eles estão na mesma relação com Deus como espíritos que possuem uma natureza moral e religiosa. O quarto critério é a permanência, e a capacidade de propagação indefinida. Vimos que é uma lei natural, reconhecida por todos os naturalistas (com algumas poucas exceções recentes), que os animais de espécies diferentes não convivem, e não pode propagar-se. Se as espécies forem quase aliadas, como o cavalo e o asno, podem produzir descendência que combina as peculiaridades de ambos os pais. Mas o processo detém-se. As mulas não podem seguir a carreira mestiça. Entretanto, é um fato admitido que os homens de toda raça, caucasiano, mongol, e africano, pode assim coabitar, e de seus filhos pode ser indefinidamente reproduzidos e combinados. “Foram estas unidades [espécies]”, diz o professor Dana, “capaz de mesclar entre si indefinidamente 107 , que já não seriam unidades, e as espécies não podem ser reconhecidas. O sistema de vida seria um labirinto de complexidades, e qualquer que seja sua grandeza a um ser que podia compreender o infinito, seria ininteligível caos para o homem. . . . Seria o homem o 107 Bibliotheca Sacra, 1857, p. 863. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 132 templo da natureza fundida sobre toda sua superfície, e através de sua estrutura, sem uma linha a mente poderia medir ou compreender.” Como, portanto, o universo é construído num plano definido; em que suas leis são uniformes, e como os elementos constitutivos do mundo material são permanentes, seria em estranha contradição com esta analogia universal, se no mais alto departamento da natureza, no mundo orgânico e vivo, tudo deve ser instável, de modo que as espécies poderiam misturar-se com as espécies, e o caos ocupar o lugar da ordem e uniformidade. Como, portanto, as diferentes variedades de homens se unem livremente e produzem descendência permanente prolífica, todas as variedades devem pertencer a uma mesma espécie, ou uma das mais fixas das leis da natureza, é em seu caso inverso. A evidência da identidade da raça acumulativa. É preciso assinalar que a força deste argumento a favor da unidade da raça humana não depende de nenhum dos dados aqui mencionados separadamente. Antes, é em sua combinação que reside o poder do argumento. Não é simplesmente porque a estrutura corporal é essencialmente a mesma em todos os homens; nem simplesmente porque têm todas as mesmas características físicas, psicológicas ou da própria natureza; ou porque são capazes de produzir descendência prolífica permanente, mas antes, porque todos estes dados são verdade com relação a toda a família humana onde quer que se encontre através de todo o curso de sua história. Converte-se numa mera questão de logomaquia de controvérsia se os homens são da mesma espécie, se têm o mesmo organismo material, a mesma φύσις - phusis e a mesma ψυχή psuche. Quer seja da mesma espécie ou não, se estas coisas são admitidas que não pode ser racionalmente negado, eles são da mesma natureza, eles são seres do mesmo grupo. Os naturalistas podem dar sentido à palavra espécie como desejam. Isto não pode alterar os fatos do caso. Todos os homens são do mesmo sangue, da mesma raça, da mesma ordem da criação. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 133 “Que as raças dos homens,” diz Delitzsch, “não são espécies de um gênero, mas sim as variedades de uma espécie, vê-se confirmado pelo arranjo de que os fenômenos psicológicos e patológicos em todas elas, pela similitude na estrutura anatômica, nos poderes fundamentais e nos aspectos da mente, nos limites à duração da vida, na temperatura normal do corpo e na taxa média de pulsações, na duração da gravidez, e na livre fecundidade dos casamentos entre distintas raças.” 108 § 4. O argumento filológico e moral. Além dos argumentos antes mencionados, que são todos de caráter zoológico, há outros, não menos conclusivos, de um tipo diferente. Uma das realidades desafortunadas que acompanhou esta controvérsia é que foi deixada muito nas mãos dos naturalistas, de homens treinados a considerar quase exclusivamente o material, ou como muito o que entra dentro da área da vida natural. Desta maneira, tornam-se unilaterais, e deixam de levar em conta todos os aspectos do caso ou de estimar de maneira devida todos os dados que entram na solução do problema. Assim, Agassiz ignora todos os fatos relacionados com as linguagens, com a história e com o caráter mental, moral e religioso e a condição do homem. Por isso, chega a conclusões que uma devida consideração destes dados teria feito impossíveis. A ciência da filologia comparada está baseada em umas leis tão certas e autorizadas como as da natureza. A linguagem não é um produto do acaso. É essencialmente distinta de gritos instintivos ou de sons inarticulados. É uma produção da mente, tremendamente complexa e sutil. É impossível que raças inteiramente distintas tivessem a mesma linguagem. É totalmente certo pelo caráter das línguas francesa, espanhola e italiana, que estas nações são, em grande medida, descendentes comuns da raça latina. Por isso, quando se pode mostrar 108 Commentary on Genesis. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 134 que as linguagem das diferentes raças ou variedades de homens são radicalmente os mesmos, ou derivados de um tronco comum, é impossível duvidar racionalmente que descendem de uma linhagem comum. Por isso, a unidade de linguagem demonstra a unidade de espécie porque demonstra unidade de origem. Por outro lado, a diversidade de linguagem não demonstra diversidade nem de espécie nem de origem, porquanto esta diversidade pode ser devido a outras causas como por exemplo a confusão de línguas em Babel, ou pela antiga e continuada separação de diferentes tribos. Entretanto, o ponto a enfatizar agora é este: Há naturalistas que, como Agassiz, e sobre princípios meramente zoológicos, decidiram que é mais provável (não que seja necessariamente certo, mas simplesmente que é mais provável) que as diferentes variedades de homens, inclusive até o nível de diferentes nações, tenham tido origens diversas, e, tal como mantém Agassiz em seus escritos mais recentes, que sejam espécies diferentes. No entanto, pelo menos em muitos casos, é totalmente seguro, com base no caráter das línguas que falam, que devem ter-se derivado de um tronco comum. Agassiz e outros descrevem as raças europeias e asiáticas como distintas em origem e espécie. Mas Alexander von Humboldt diz: «O estudo comparativo das línguas nos mostra que raças hoje em dia separadas por vastas extensões de terra, estão unidas, e emigraram procedentes de um centro primordial comum. ... O maior campo para tais investigações a respeito da antiga condição da linguagem, e por conseguinte do período em que toda a família humana devia ser considerada, no sentido estrito do termo, como um todo vivente, apresenta-se na longa cadeia das linguagens indo-europeias, que se estende desde o Ganges até o extremo da Europa ibérica, e desde a Sicília até o Cabo Norte» 109 Max Müller diz: “A evidência da língua é incontestável, e é a única prova que vale a pena escutar, com o que se refere aos períodos pré109 Cosmos, Tradução do Otte, edição de Londres, 1849, Vol. II, pp. 471, 472. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 135 históricos não há um jurado inglês hoje em dia, que, depois de examinar os documentos centenários de idioma, rejeitaria a reivindicação de uma descendência comum e uma relação legítima entre hindus, gregos e teutões.” 110 O Chevalier Bunsen diz: “A língua egípcia testemunha uma unidade de sangue com as grandes tribos aramaicas da Ásia, cujas línguas se formaram sob a expressão geral semita, das línguas da família de Sem. É igualmente unido pela identidade de origem com as tribos ainda mais numerosas e ilustres que ocupam agora a maior parte da Europa, e talvez, só ou com outras famílias, pode ter direito a ser chamado a família de Jafé.” 111 Esta família, diz, inclui a nação alemã, os gregos e os romanos, e os índios e os persas. Dois terços da raça humana são assim identificados por estas duas classes de idiomas que tiveram uma origem comum. Pela mesma prova infalível Bunsen mostra que a origem asiática de todos os índios da América do Norte, “é tão plenamente demonstrado como a unidade da família entre si.” 112 Cada dia é a adição de uma nova linguagem a esta lista de afiliados, e apresenta provas adicionais da unidade da humanidade. O ponto em particular que agora se considera é que as conclusões do mero zoólogo como a diversidade de espécies e a diversidade de origem como consequência das diferentes variedades de nossa raça, está demonstrado que é falso o testemunho de alguns da origem comum das línguas que eles falam. A relação espiritual dos homens. Além dos argumentos já mencionados em favor da unidade da humanidade, depois da asserção direta da Bíblia, o que afinal de contas tem a maior força se deriva da atual condição de nossa natureza moral e espiritual. Sempre que nos encontramos com um homem, não importa de 110 Quoted in Cabell's Unity of Mankind, pp. 228, 229. Ibid. p. 232. 112 The Philosophy of Universal History, edit. London, 1854, Vol. II. p. 112. 111 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 136 que nome ou nação, não só descobrimos que tem a mesma natureza nós, que tem os mesmos órgãos, os mesmos sentidos, os mesmos instintos, os mesmos sentimentos, as mesmas faculdades, o mesmo entendimento, vontade e consciência, e a mesma capacidade de cultura religiosa, mas também tem a mesma natureza culpada e contaminada, que necessita a mesma redenção. Cristo morreu por todos, e nos mandou que preguemos o evangelho a toda criatura debaixo do céu. Por isso, não se encontra em nenhuma parte da terra a nenhum homem que não necessite o evangelho ou que não seja capaz de chegar a ser partícipe das bênçãos que oferece. A relação espiritual dos homens, sua comum apostasia, e o comum interesse de todos na redenção operada por Cristo, demonstra sua comum natureza e sua origem comum além da possibilidade de toda dúvida razoável ou desculpável. Nossa atenção esteve dirigida até aqui de maneira especial à unidade da humanidade quanto à espécie. Pouco é necessário dizer em conclusão quanto à sua unidade em origem. (1) Porquanto na opinião dos mais distinguidos naturalistas, a unidade de espécie é em si mesma prova decisiva da unidade de origem. (2) Porque inclusive se isto for negado, é entretanto admitido universalmente que quando a espécie é a mesma a origem pode ser a mesma. Se a humanidade difere quanto à espécie, não podem todos descender de um progenitor comum, mas se é idêntica quanto à espécie, não há dificuldade em admitir sua descendência comum. * Na verdade, é principalmente pelo desejo de refutar a declaração escriturística de que todos os homens são filhos de Adão, e * A respeito da origem comum da espécie humana, é de interesse citar algumas recentes investigações levadas a cabo por uma equipe de biólogos da Universidade de Califórnia em Berkeley. Esta equipe, composto pelo Allan Wilson, Rebecca Cann e Mark Stoneking, investigou o DNA da mitocôndria. Este DNA tem uma peculiaridade, e é que é sempre e unicamente herdado da parte da mãe. A análise do DNA mitocondrial de seres humanos de todo o globo deu uma evidência inequívoca de que todos os seres humanos da terra o herdaram que uma só mulher. Estes são os fatos. Interpretações não faltam a respeito de como pôde perder o DNA mitocondrial de outras supostas mães numa suposta multiplicidade de origens. Mas os fatos em si seguem concordando com a Revelação que DEUS nos dá na Escritura, de que houve uma «mãe de todos os viventes»: Eva (Gn 3:29). (N. do T.) Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 137 para romper a comum irmandade do homem, que se insiste numa diversidade de espécies. Portanto, se for admitido o último, pode-se facilmente conceder o primeiro. (3) A origem comum das linguagens da imensa maioria dos homens demonstra, como já dissemos, sua comunidade de origem, e como inferência, sua unidade quanto à espécie. E porquanto esta comunidade de origem se demonstra quanto a raças, as quais o mero zoólogo tem propensão a descrever com a maior confiança como distintas, fica com isso demonstrada a insuficiência da base de sua classificação. (4) Entretanto, é o testemunho direto das Escrituras a respeito desta questão, com o que são consistentes todos os fatos conhecidos, e a comum apostasia da raça, e sua comum necessidade de redenção, o que faz certo para todos os que creem na Bíblia ou no testemunho de sua própria consciência quanto à pecaminosidade universal da humanidade, que todos os homens são descendentes de um progenitor caído. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II CAPÍTULO V 138 O ESTADO ORIGINAL DO HOMEM § 1. A doutrina escriturística. A doutrina escriturística a respeito desta questão inclui os seguintes pontos: Primeiro, que o homem foi criado originalmente num estado de maturidade e perfeição. Por isso, entretanto, não se entende que a humanidade em Adão antes da Queda, existiu no estado mais elevado de excelência da qual é suscetível. É totalmente provável que nossa natureza, em virtude de sua união com a natureza divina na pessoa de Cristo, e em virtude da união entre os redimidos com seu exaltado Redentor, será depois elevado a uma dignidade e glória muito maior que aquela em que Adão foi criado ou a que alguma vez poderia ter alcançado. Pela maturidade do homem como primeiro criado se significa que não foi criado num estado de infância. Uma pressuposição predileta dos céticos é que o homem era brutal no princípio, quanto a corpo e alma; que foi formando lentamente para si uma linguagem articulada, despertando lentamente as capacidades morais. Isto, entretanto, é inconsistente não só com o relato escriturístico de sua criação, mas também com o papel para o qual foi designado para agir, e que de fato agiu. Pela perfeição de seu estado original se significa que estava perfeitamente adaptado para o fim para o qual tinha sido feito, e para a esfera dentro da qual estava designado que se movesse. Esta perfeição quanto a seu corpo não consistia só na integridade e proporção devida a todas as suas partes, mas também na perfeita adaptação à natureza da alma com a que tinha sido unido. Os teólogos estão acostumados a dizer que o corpo foi criado imortal e impassível. Com relação à imortalidade, é coisa certa que se o homem não tivesse pecado, não teria morrido. Mas que a imortalidade que então teria sido o destino do corpo teria sido o resultado de sua organização original, ou que depois de seu período de prova tivesse passado por uma mudança para adaptá-lo à sua condição Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 139 eterna, é algo que se considerará mais adiante. Por impassibilidade não se significa necessariamente uma isenção total da suscetibilidade à dor, porque tal suscetibilidade em nosso atual estado terrestre, e talvez em qualquer concebível estado terrestre, é uma condição necessária de segurança. É um bem, e não um mal; uma perfeição, e não um defeito. Tudo o que se deve significar com este termo é que o corpo de Adão estava isento das sementes de doença e morte. Nada havia em sua constituição que fosse inconsistente com a mais elevada felicidade e bem-estar do homem no estado em que foi criado, e nas condições sob as quais devia viver. O fato de que o estado primitivo de nossa raça não fosse de uma barbárie da qual os homens tenham ido saindo por si mesmos através de um lento processo de melhora o sabemos, primeiro, pela autoridade das Escritura, que como vimos descreve o homem como criado na plena perfeição de sua natureza. Este fato é decisivo para todos os cristãos. Segundo, as tradições de todas as nações se referem a uma era dourada da qual os homens caíram. Estas estendidas tradições não podem ser explicadas de maneira racional exceto com base na aceitação de que o relato das Escrituras do estado primitivo do homem é correto. Terceiro, a evidência da história está totalmente do lado da doutrina da Bíblia a respeito desta questão. O Egito derivou sua civilização do Este; a Grécia da Fenícia e Egito; a Itália da Fenícia e Grécia; o resto da Europa da Itália. A Europa está agora estendendo rapidamente sua influência civilizadora sobre a Nova Zelândia, Austrália e as ilhas do Oceano Pacífico. A afinidade de línguas demonstra que a antiga civilização do México e da América do Sul se originou na Ásia Oriental. Por outro lado, não há nenhum relato autêntico de uma nação de selvagens emergindo por seus próprios esforços de um estado de barbárie a uma condição de civilização. O fato de que Sir John Lubbock e outros proponentes da doutrina contrária vejam-se obrigados a apoiar-se em fatos tão obscuros e realmente insignificantes como a cultura superior dos índios modernos neste continente contribui para outra prova da Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 140 ausência de evidência histórica em apoio da teoria de uma barbárie primitiva. Quarto, os mais antigos registros, escritos e monumentais, dão evidência da existência de nações num alto estado de civilização, nos mais antigos períodos da história humana. Este fato é facilmente explicado sobre a base da verdade da doutrina das Escrituras a respeito do estado primordial do homem, mas não se pode explicar com base na hipótese oposta. Necessita a gratuita assunção da existência de homens durante eras incontáveis antes destes anteriores períodos históricos. Quinto, a filologia comparativa estabeleceu o fato da íntima relação entre todas as grandes divisões da raça humana. Além disso, demonstrou-se que todas tiveram sua origem de um centro comum, e que este centro foi a sede da mais antiga civilização. A teoria de que a raça humana passou através de uma idade da pedra para uma de bronze, e para uma de ferro, como etapas de progresso da barbárie à civilização, carece, como já dissemos, de base científica. Não se pode demonstrar que a idade da pedra prevalecesse contemporaneamente em todas as partes da terra. E se isto não se pode demonstrar, de nada serve mostrar que houve um período em que os moradores da Europa eram desconhecedores dos metais. O mesmo podese demonstrar a respeito dos patagônios e de algumas tribos africanas em nossos dias. Portanto, tem sido quase a crença universal de que o estado original do homem foi, como ensina a Bíblia, seu estado mais elevado, do qual as nações da terra têm mais ou menos deteriorado. Este estado primitivo, entretanto, distinguiu-se pela superioridade intelectual, moral e religiosa dos homens e não pela superioridade nas artes ou nas ciências naturais. A doutrina da Escritura, portanto, é consistente com o fato admitido de que as nações independentes, e a raça humana como um todo, fizeram grandes avanços em todos os ramos do conhecimento e em todas as artes da vida. Tampouco é inconsistente com a crença de que o mundo sob a influência do cristianismo está melhorando constantemente, e alcançará em última instância, sob o reinado de Cristo, a perfeição e a glória Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 141 milenária. Tudo o que se nega é que os homens eram originalmente selvagens no estado mais baixo da barbárie, da qual têm emergido gradualmente. O já falecido arcebispo Whately, em sua obra sobre “Economia Política,” confessou sua crença na doutrina comum sobre o estado primitivo do homem. Ele diz: “Não temos nenhuma razão para crer que qualquer comunidade feita jamais, nem nunca pode surgir sem ajuda de ajudas externas, de um estado de barbárie a alguma coisa que possa chamar-se civilização.” Em oposição a esta doutrina, Sir John Lubbock tenta mostrar “que há indícios de progresso, inclusive entre os selvagens,” e “que entre as nações mais civilizadas encontram-se rastros da barbárie original” 113 Antes de aduzir a prova de qualquer dessas proposições, ele argumenta contra a teoria de que uma tribo se afundou de uma condição superior a uma inferior, devido ao fato de que existem certas artes que são tão simples e tão úteis, que uma vez conhecidas, elas poderiam nunca perder-se. Se os homens tinham sido pastores e agricultores, nunca se converteriam em meros caçadores; se for familiarizado com o uso dos metais, ou a arte de fazer cerâmica, estas aquisições não podiam perder-se. Se uma vez em posse de conhecimento religioso, esse conhecimento não poderia perecer. Como, entretanto, há tribos existentes nesse momento que, como ele diz, não têm nenhuma religião, nem conhecimento das artes ou da agricultura, ele argumenta que devem ter sido bárbaros desde o princípio, e que a barbárie deve ter sido o estado original do homem. Para demonstrar que selvagens podem por seus próprios esforços pertencer à civilização ele se refere a fatos como os seguintes: Os australianos tinham anteriormente canoas de casca, que abandonaram por outras, escavadas no tronco de uma árvore, “que eles compram dos 113 The Origin of Civilization and the Primitive Condition of Man. By Sir John Lubbock, Bart. M. P., F. R. S., London, 1870, p. 329. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 142 malaios.” Os peruanos tinham domesticado a chama, os polinésios fizeram tecido de casca. “Outro caso muito forte,” diz, “é o bumerangue dos australianos. Esta arma não é conhecida de nenhuma outra raça de homens,” e portanto, argumenta ele, não pode ser uma relíquia de um estado superior de civilização. Ele insiste muito no caso dos Cherokees que se converteram em agricultores, tendo arados, cavalos, gado negro, etc., ignorando o fato de que estavam rodeados pelos americanos civilizados e tinham desfrutado durante anos o ensino fiel de missionários cristãos que os instruíram em todas as artes úteis. Ele encontra as indicações da barbárie original da raça no fato de que implementos de pedra encontram-se não só na Europa, mas também na Ásia, o berço da humanidade, e na melhora gradual da relação entre os sexos. 114 Seu livro está desenhado para “descrever a condição social e mental dos selvagens, sua arte, seus sistemas de casamento e de relação, suas religiões, idioma, caráter moral e leis.” Isto o faz por uma coleção muito abundante de dados nestes vários chefes; e dali tira as seguintes conclusões. “Esses selvagens existentes não são os descendentes dos antepassados civilizados. Que a condição primitiva do homem foi uma barbárie absoluta. Que desta condição várias raças se levantaram de forma independente.” 115 Como estas conclusões se derivam dos fatos detalhados, é impossível ver, especialmente no que se opõem não só à Bíblia, mas também a todos os ensinos da história. Que as tribos mais selvagens têm baixas ideias de Deus, é para nós prova de que nossos primeiros pais eram adoradores do fetiche, quando toda a história demonstra que a religião primitiva de nossa raça foi teísmo puro. Assim como os homens perderam o conhecimento do verdadeiro Deus, eles se tornaram cada vez mais 114 Na página 66, diz ele: “Supondo que o sistema de casamento comunal é mostrado nas páginas anteriores como prevalecente, ou prevaleceu tão amplamente entre as raças num estado inferior de civilização, representa a condição social do homem primitiva e a mais anterior, nós agora viemos a considerar as diversas formas em que podem ter sido dissolvidas e substituídas pelo casamento individual.” 115 Ibid. p. 323. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 143 degradados em todos os outros aspectos. E os que foram expulsos dos centros de civilização em regiões inóspitas, tórridas ou árticas, afundando-se cada vez mais na escala do ser. A verdade é que não há nada no livro de Sir John Lubbock que possa abalar a fé de um menino cristão na doutrina da Bíblia quanto ao estado primitivo do homem. § 2. O homem criado à imagem de Deus. Além do homem, os outros animais foram criados amadurecidos e perfeitos, cada um segundo sua natureza. A característica distintiva do homem é que ele foi criado à imagem e semelhança de Deus. Muitos dos antigos escritores deram por sentado que a palavra «imagem» se referia ao corpo, que eles pensavam que por sua beleza, aspecto inteligente e postura erguida, era uma sombra de Deus, e que a palavra «semelhança» se referia à natureza intelectual e moral do homem. Segundo Agostinho, a imagem se relaciona com a cognitio veritatis, e a semelhança com o amor virtutis; a primeira com as faculdades intelectuais, e a segunda com as morais. Este foi o fundamento da doutrina escolástica de que a imagem de Deus inclui os atributos naturais da alma; e a semelhança nossa conformidade moral com o Ser divino. Esta distinção se introduziu na teologia romana. Belarmino 116 diz: “Imaginem in natura, similitudinem in probitate et justitia sitam esse.” Ele diz também: 117 “Ex his tot patrum testimoniis cogimur admittere, non esse omnino idem imaginem et similitudinem, sed imaginem ad naturam, similitudinem ad virtutes pertinere; proinde Adamum peccando non imaginem Dei, sed similitudinem perdidisse.” Outros modificaram um pouco esta perspectiva fazendo com que a imagem do Deus consistisse o que era 116 117 De Gratia et Libero Arbitrio, I. 6. Disputationes, Paris, 1608, vol. iv. p. 402, a. De Gratia Primi Hominis, 2. Ibid. p. 8, d. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 144 natural e criado, e a semelhança no adquirido. O homem foi criado à imagem de Deus, e se amoldou à Sua semelhança. Isto é, empregou de tal maneira seu dotes naturais que chegou a ser semelhante a Deus em seu caráter. Mas todas estas distinções descansam numa falsa interpretação de Gn 1:26. As palavras צ ּלֶם ֶ - tselem y ְּדמו ּת- d'muth são simplesmente explicativas uma da outra. Imagem e semelhança significa uma imagem que se assemelha. A simples declaração das Escrituras é que na criação o homem era semelhante a Deus. A natureza desta semelhança era uma questão debatida. Segundo os teólogos Reformados e a maioria dos teólogos de outras divisões da Igreja, a semelhança do homem com Deus incluía os seguintes pontos: Sua natureza intelectual e moral. Deus é Espírito, a alma humana é um espírito. Os atributos essenciais do espírito são a razão, a consciência e a vontade. Um espírito é um agente racional, moral e, por isso também, um agente livre. Por isso, ao fazer ao homem conforme a sua imagem, Deus lhe dotou daqueles atributos que pertencem à sua própria natureza como espírito. Assim, o homem fica distinto de todos os outros moradores deste mundo, e é levantado incomparavelmente acima deles. Pertence à mesma ordem de ser que o próprio Deus, e é por isso capaz de ter comunhão com seu Criador. Esta conformidade de natureza entre o homem e Deus não só é a prerrogativa distintiva da humanidade, pelo que respeita às criaturas terrestres, mas também é a condição necessária de nossa capacidade de conhecer a Deus, e por isso o fundamento de nossa natureza religiosa. Se não fôssemos semelhantes a Deus, não poderíamos conhecê-Lo. Seríamos como as bestas que perecem. As Escrituras, ao declarar que Deus é o Pai dos espíritos, e que nós somos Sua linhagem, ensinam-nos que somos partícipes de Sua natureza como ser espiritual e que um elemento essencial daquela semelhança com Deus em que o homem foi originalmente criado consiste em nossa natureza racional ou espiritual. Sobre este tema, entretanto, houve duas opiniões extremas. Os teólogos gregos fizeram a imagem de Deus em que o homem foi criado Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 145 consistir exclusivamente em sua natureza racional. A maioria deles ensinou que o εἰκών era ἐν λογικῇ ψυχῇ, ou como João de Damasco 118 expressa: τὸ κατ᾽ εἰκόνα, τὸ νοερὸν δηλοῖ καὶ αὐτεξούσιον. E Irineu 119 diz: “Homo vero rationabilis et secundum hoc similis Deo.” Os remonstrantes e os socinianos estavam dispostos a limitar a imagem de Deus em que o homem foi criado para seu domínio. Limborch 120 assim diz: “Illa imago aliud nihil est, quam eximia, quædam qualitas et excellentia, qua homo Deum speciatim refert: hæc autem est potestas et dominium, quod Deus homini dedit in omnia a se creata. . . . . Hoc enim dominio Deum proprie refert, estque quasi visibilis Deus in terra super omnes Dei creaturas constitutus.” Este domínio, contudo, foi fundado na natureza racional do homem e, portanto, Limborch acrescenta, que a semelhança de Adão com Deus pertencia à sua alma, “quatenus ratione instructa est, cujus ministerio, veluti sceptro quodam, omnia sibi subjicere potest.” Estas opiniões estão de acordo em excluir a conformidade moral do homem com Deus da ideia da imagem divina em que foi criado. Os teólogos luteranos eram, em geral, inclinados a ir ao extremo oposto. A imagem de Deus, segundo eles, era o que se tinha perdido pela Queda, e que é restaurada pela redenção. Assim, Lutero diz: “So ist nun hier so viel gesagt, dass der Mensch am Anfang geschaffen ist ein Bild, das Gott ähnlich war, voll Weisheit, Tugend, Liebe and kurzum gleich wie Gott, also dass er voll Gottes war.” E: “Das ist Gottes Bild, das eben also wie Gott gesinnet ist und sich immer nach ihm ahmet.” 121 Calovius e outros teólogos luteranos dizem expressamente: “Anima ipsa rationalis non est imago divina, aut imaginis pars, quia anima non est amissa, at imago amissa est.” E de novo: “Unde patet, conformitatem, quæ in substantia animæ reperitur aut corporis, ad imaginem Dei, stylo biblico 118 II. 12; Strauss, Dogmatik, vol. i. p. 690. IV. iv. 3; Works, edit. Leipzig, 1853, Vol. I. p. 569. 120 Theologia Christiana, II. xxiv. 2, edit. Amsterdam, 1715, pp. 133, 134. 121 Sermons on Genesis, edit. Erlangen, 1843, vol. xxxiii. pp. 55, 67. 119 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 146 descriptam, non pertinere, quia substantia animæ aut corporis per lapsum non est perdita, nec per renovationem restauratur.” Isto, entretanto, é antes, uma disputa sobre o uso da frase bíblica “imagem de Deus,” que se aplica ao homem em seu estado original, que pelo próprio fato, pois os luteranos não negam que a alma quanto à sua natureza ou substância é como Deus. Hollazius admite que “Ipsa substantia animæ humanæ quædam θεῖα seu divina exprimit, et exemplar divinitatis refert. Nam Deus est spiritus immaterialis, intelligens, voluntate libera agens, etc., etc. Quæ prædicata de anima humana certo modo affirmari possunt.” 122 Os teólogos Reformados tomam o meio-termo entre os extremos de fazer com que a imagem de Deus consista exclusivamente da natureza racional do homem, ou exclusivamente de sua conformidade moral com seu Criador. De maneira distintiva, incluem ambas as coisas. Calvino 123 diz: Imago Dei est “integra naturæ humanæ præstantia, quæ refulsit in Adam ante defectionem postea sic vitiata et prope deleta, ut nihil ex ruina nisi confusum, mutilum, labeque infectum supersit.” H. à Diest 124 é mais explícito: “Imago Dei fuit partim inamissibilis, partim amissibilis; inamissibilis, quæ post lapsum integra permansit, veluti animæ substantia spiritualis, immortalis, rationalis, cum potentiis intelligendi et libere volendi; amissibilis, quæ partim plane periit, partim corrupta est, manentibus tantum exiguis ejusdem reliquiis; veluti in intellectu insignis sapientia, in voluntate et affectibus vera justitia et sanctitas, in corpore immortalitas, sanitas, f'ortitudo, pulchritudo, dominium in animalia, copia omnium bonorum et jus utendi creaturis.” Maresius 125 diz: “Imago Dei spectavit, (1.) Animæ essentiam et conditionem spiritualem, intelligentem et volentem, quod contra Lutheranos pertendimus, quum post lapsum etiam rudera imaginis Dei 122 Examen, Leipzig, 1763, p. 463. Institutio, lib. i. xv. 4, edit. Berlin, 1834, vol. i. p. 130. 124 Theologia Biblica, Daventriæ, 1644, pp. 73, 74. 125 Collegium Theologicum, loc. v. 52, 53, 54, edit. Gröningen, 1659, p. 60. 123 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 147 adsint. (2.) Eluxit in accidentali animæ perfectione, mentis lumine, voluntatis sanctitate, sensuum et affectuum harmonia atque ad bonum promptitudine; (3.) conspicua fuit in dominio in omnia animalia.” Assim, enquanto que as Escrituras fazem da original perfeição moral do homem o elemento mais destacável desta semelhança com Deus em que foi criado, não é menos certo que reconhecem o homem como filho de Deus em virtude de sua natureza racional. Ele é a imagem de Deus, e é portador e reflexo da semelhança divina entre os habitantes da terra, porque é um espírito, um agente inteligente e voluntário, e como tal está por direito investido com o domínio universal. Isto é o que os teólogos Reformados estavam acostumados a chamar a imagem essencial de Deus, em distinção da acidental. A primeira consistia na própria natureza da alma, a segunda, em seus dotes acidentais, isto é, aquelas que poderiam perder-se sem perder a própria condição humana. § 3. A justiça original. Na imagem moral de Deus, ou justiça original, incluem-se: 1. A perfeita harmonia e devida subordinação de tudo o que constituía o homem. Sua razão estava sujeita a Deus; sua vontade estava sujeita à sua razão; seus afetos e apetites à sua vontade; o corpo era o obediente órgão da alma. Não havia nem rebelião da parte sensível de sua natureza contra a racional, nem havia desproporção alguma entre elas que tivesse que ser controlada ou equilibrada mediante dons ou influências ab extra [exteriores]. 2. Mas além deste equilíbrio e harmonia na constituição original do homem, sua perfeição moral em que se parecia com Deus, incluía o conhecimento, a justiça e a santidade. As duas passagens do Novo Testamento em que estes elementos da imagem divina na qual o homem foi criado, são claramente mencionados, são Cl 3:10 e Ef 4:24. No primeiro diz-se: “e vos revestistes do novo homem que se refaz para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou:” Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 148 ἐνδυσάμενοι τὸν νέον, τὸν ἀνακαινούμενον εἰς ἐπίγνωσιν κατ᾽ εἰκόνα τοῦ κτίσαντος αὐτόν. O novo (νέον) homem, de acordo com a distinção comum entre νέος e καινός, significa recente, recém feito, diferente de velho (παλαιός). A qualidade moral ou excelência deste homem recentemente formado-se expressa na palavra ἀνακαινούμενον, como no uso das Escrituras que é καινός é puro. Esta renovação diz-se que é εἰς ἐπίγνωσιν, não em os conhecimentos, e muito menos por o conhecimento, senão para o conhecimento, de modo que ele conhece. O conhecimento é o efeito da renovação de falar. A palavra ἐπίγνωσιν pode estar relacionada com as palavras que seguem imediatamente (κατ᾽ εἰκόνα), conforme à imagem de Deus, quer dizer, do conhecimento como aquele que Deus possui. Mais do que isso comum e natural tomar ἐπίγνωσιν por si mesmo, e conectar κατ᾽ εἰκόνα com o particípio anterior, “renovado à imagem de Deus.” O conhecimento aqui previsto não é mero conhecimento. É conhecimento completo, preciso, vivo, prático; tal conhecimento é a vida eterna, de modo que esta palavra aqui inclui o que em Ef 4:24 se expressa pela justiça e santidade. Se a palavra κτίσαντος refere-se a Deus como o autor da criação original, ou da nova criação do que o apóstolo está falando aqui, é matéria de dúvida. No caso mais firme, o significado seria, o crente é renovado à imagem de seu Criador. Neste último caso, o sentido é que a renovação é posterior à imagem do criador do novo homem. De acordo com o modo de explicação a ideia é mais claramente expressa que o homem, como originalmente criado, estava dotado de verdadeiro conhecimento. Segundo a outra interpretação isto pode ser comprometido, mas não é afirmado. Tudo o que o Apóstolo nesse caso afirma é que o homem regenerado faz-se semelhante a Deus no conhecimento. Mas como o homem original era também como Deus, e como o conhecimento está incluído nessa semelhança, a passagem ainda demonstra que Adão foi criado na posse do conhecimento de que o Apóstolo fala aqui. Como a palavra κτίζειν no Novo Testamento sempre refere-se à criação original, a menos que algum termo explanatório se acrescente, Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 149 como nova criação, ou, a menos que o contexto proíba sorte referência, e como κτίσαντος não expressa o contínuo processo de transformação, mas o ato momentâneo da criação como já passou, é mais natural entender o Apóstolo como falando da semelhança original com Deus em que o homem foi criado, a que o crente é restaurado. O novo, portanto, não deve entender-se de τὸν γέον, mas de ἀνθρωπον, — conforme à imagem dAquele que criou o homem. Esta é a velha interpretação dada por Calovius e adotada por Wette, Rückert, e outros intérpretes modernos. Calovius diz: “Per imaginem ejus, qui creavit ipsum, imago Dei, quæ in prima creatione nobis concessa vel concreata est, intelligitur, quæque in nobis reparatur per Spiritum Sanctum, quæ ratione intellectus consistebat in cognitione Dei, ut ratione voluntatis in justitia et sanctitate, Ef. 4:24. Per verbum itaque τοῦ κτίσαντος non nova creatio, sed vetus illa et primæva intelligitur, quia in Adamo conditi omnes sumus ad imaginem Dei in cognitione Dei.” Efésios 4:24. A outra passagem acima mencionada é Ef 4:24 [RC]: “e vos revistais do novo homem, que, segundo Deus, é criado em verdadeira justiça e santidade.” O novo homem, τὸν καινὸν ἄνθρωπον, diz-se que é κατὰ θεὸν, quer dizer, à imagem de Deus, e essa imagem ou semelhança com Deus diz-se que consiste em justiça e santidade. Estas palavras quando se utilizam em combinação se pretende ser exaustivas, quer dizer, para incluir toda excelência moral. Qualquer termo pode ser utilizado neste sentido amplo, mas, quando distinguido, δικαιοσύνη significa retidão, o ser e fazer o correto, o que exige a justiça; ὁσιότης, a pureza, a santidade, o estado de ânimo produzido quando a alma está cheia de Deus. Em lugar de verdadeira santidade, as palavras do Apóstolo devem ser traduzidos “a justiça e santidade da verdade,” quer dizer, a justiça e a santidade, que são os efeitos ou manifestações da verdade. Na verdade aqui, em comparação com o engano (ἀπάτη) mencionado no versículo 22, entende-se o que em Cl 3:10 chama-se Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 150 conhecimento. É a luz divina no entendimento, do qual o Espírito da verdade é o autor, e de que, como sua causa próxima, todos os afetos e atos santos continuam. É clara destas passagens que o conhecimento, a justiça e a santidade são elementos da imagem de Deus em que o homem foi criado originalmente. Pelo conhecimento não se significa somente a faculdade de conhecimento, a capacidade de adquirir conhecimentos, mas sim o conteúdo dessa faculdade. Como o conhecimento pode ser inato, assim pode ser concretizado. Adão, logo que começou a ser, teve conhecimento de si mesmo; estava consciente de seu próprio ser, de suas faculdades e de seu estado. Tinha também o conhecimento do que estava fora dele, ou do que a moderna filosofia chama «consciência do mundo». Não só percebia os vários objetos materiais que o rodeavam, mas também compreendia bem a natureza dos mesmos. Não podemos determinar até onde se estendia este conhecimento. Alguns supõem que nossos primeiros pais tinham um conhecimento mais exaustivo do mundo exterior, de suas leis, e da natureza de suas várias produções, que a ciência humana nunca haja podido alcançar desde naquele tempo. É coisa certa que pôde dar nomes apropriados a todas as classes de animais que passaram diante dele para este fim, o que pressupõe uma devida percepção de seus caracteres distintivos. A respeito deste ponto não sabemos nada para além do que a Bíblia nos ensina. É mais importante observar que Adão conhecia a Deus, cujo conhecimento é vida eterna. O conhecimento, naturalmente, difere quanto a seus objetos. O conhecimento de verdades meramente especulativas, o mesmo que o da ciência e da história, é um mero ato do entendimento; o conhecimento do belo envolve o exercício de nossa natureza estética; o das verdades morais, o exercício de nossa natureza moral; e o conhecimento de Deus, o exercício de nossa natureza moral e religiosa. O homem natural, diz o Apóstolo, não recebe as coisas do Espírito, nem as pode conhecer. O que se afirma de Adão é que, ao sair das mãos de seu Criador, sua mente estava impregnada deste conhecimento espiritual ou divino. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 151 Tudo o que se disse a respeito do estado original do homem está comprometido no relato da criação, que declara que foi feito semelhante a Deus; e que foi pronunciado bom, muito bom. Que a bondade é o que pertence ao homem como ser racional, imortal e religioso, e que é necessário para adaptá-lo para a esfera em que ia transferir-se, e o destino de que foi criado, aprendemos em parte das declarações expressas das Escrituras, em parte pela natureza do caso, e em parte do que está envolvido na humanidade restaurada por Cristo. De todas estas fontes, é evidente que a doutrina protestante sobre a imagem de Deus e justiça original em que e com que Adão foi criado não só inclui sua natureza racional, mas também o conhecimento, a justiça e santidade. § 4. O domínio sobre as criaturas. O terceiro ponto que entra na dignidade do estado original do homem, e na imagem de Deus com a qual foi investido, era seu domínio sobre as criaturas. Este surgiu dos poderes de que estava investido, e da expressa designação de Deus. Deus o constituiu governante sobre a terra. Pôs-lhe, como diz o Salmista, tudo debaixo de seus pés em 1 Coríntios 11:7 o Apóstolo diz que o homem é a imagem e glória de Deus, mas que a mulher é a glória do homem. Isto o dá como razão pela qual o homem não deveria fazer nada que implicasse a negação de seu direito a governar. Por isso, era como governante que levava a imagem de Deus, ou que O representava sobre a terra. Não é fácil determinar qual era a extensão do domínio dado ao homem, ou a que estava destinada nossa raça. A julgar pelo relato dado em Gênesis, ou inclusive pela linguagem mais enérgica que se emprega no Salmo 8, deveríamos concluir que esta autoridade devia estender-se só sobre os animais inferiores pertencentes a esta terra. Mas o Apóstolo, em sua exposição das palavras do Salmista, ensina-nos que era muito mais o que se expressava. Diz ele em 1Co 15:27: «E, quando diz que todas as coisas lhe estão sujeitas, certamente, exclui aquele que tudo lhe subordinou». E em Hb 2:8, diz: «Todas as Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 152 coisas sujeitaste debaixo dos seus pés. Ora, desde que lhe sujeitou todas as coisas, nada deixou fora do seu domínio». Por isso, era um domínio absolutamente universal, pelo que respeita às criaturas, com que devia ser investido o homem. Este domínio universal, como aprendemos pelas Escrituras, foi alcançado só pela encarnação e exaltação do Filho de Deus. Mas porquanto Deus vê o fim desde o princípio, como Seu plano é imutável e abrange tudo, esta suprema exaltação da humanidade estava proposta desde o princípio, e incluída no domínio com que o homem foi investido. § 5. A doutrina da Igreja Romana. A doutrina dos romanistas quanto ao estado original do homem coincide com a dos protestantes, exceto num importante particular. Eles sustentam que o homem antes da Queda, estava num estado de perfeição relativa, quer dizer, não só livre de qualquer defeito ou doença física, mas dotado de todos os atributos de um espírito, e dotado com o conhecimento, a justiça e santidade, e investido com domínio sobre as criaturas. Os protestantes incluem tudo isto sob a imagem de Deus; os romanistas entendem por imagem de Deus só o racional, e sobretudo o caráter voluntário do homem, ou a liberdade da vontade. Distinguem, portanto, entre a imagem de Deus e a justiça original. Esta último dizem que se perdeu; a anterior foi retida. Os protestantes, pelo contrário, sustentam que é a imagem divina em seus componentes mais importantes, que o homem perdeu por sua apostasia. Isto, entretanto, só pode considerar-se uma diferença quanto às palavras. O ponto importante da diferença é, que os protestantes sustentam que a justiça original, na medida em que consistiu na excelência moral de Adão, era natural, enquanto que os romanistas sustentam que era sobrenatural. Segundo sua teoria, Deus criou a alma e o corpo. Estes dois componentes de sua natureza estão naturalmente em conflito. Para conservar a harmonia entre eles e a devido submissão da carne ao Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 153 espírito, Deus deu ao homem o dom sobrenatural da justiça original. Foi este dom que o homem perdeu por sua queda, de modo que, visto que a apostasia encontra-se no estado em que Adão era antes de ser investido com esta dotação sobrenatural. Em oposição a esta doutrina, os protestantes sustentam que a justiça original era concreta e natural. A justiça original, diz Lutero: 126 “Non fuisse quoddam donum, quod ab extra accederet, separatum a natura hominis. Sed fuisse vere naturalem, ita ut natura Adæ esset, diligere Deum, credere Deo, agnoscere Deum, etc. Hæc tam naturalia fuere in Adamo, quam naturale est, quod oculi lumen recipiunt.” O Concílio de Trento não fala explicitamente sobre este ponto, mas a linguagem do Catecismo Romano está claramente de acordo com os ensinos mais diretos dos teólogos da Igreja de Roma, no sentido de que a justiça original é um dom sobrenatural. Ao descrever o estado original do homem esse Catecismo diz: 127 “Quod ad animam pertinet, eum ad imaginem et similitudinem suam formavit, liberumque ei arbitrium tribuit: omnes præterea motus animi atque appetitiones ita in eo temperavit, ut rationis imperio nunquam non parerent. Tum originalis justitiæ admirabile donum addidit, ac deinde cæteris animantibus præesse voluit.” Belarmino 128 afirma esta doutrina em termos mais claros: “Integritas illa, cum qua primus homo conditus fuit et sine qua post ejus lapsum homines omnes nascuntur, non fuit naturalis ejus conditio, sed supernaturalis evectio. . . . . 129 Sciendum est primo, hominem naturaliter constare ex carne, et spiritu, et ideo partim cum bestiis, partim cum angelis communicare naturam, et quidem ratione carnis, et communionis cum bestiis, habere propensionem quandam ad bonum corporale, et sensibile, in quod fertur per sensum et appetitum: ratione spiritus et 126 In Genesis, cap. 3; Works, edit. Wittenberg, 1555 (Latin), vol. vi., leaf 42, page 2. Streitwolf, Libri Symbolici Ecclesiæ Catholicæe, vol. i. p. 127. 128 De Gratia Primi Hominis 2. Disputationes, vol. iv. p. 7, c. 129 Ibid. 5 — p. 15, c. d. 127 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 154 communionis cum angelis, habere propensionem ad bonum spirituale et intelligibile, in quod fertur per intelligentiam, et voluntatem. Ex his autem diversis, vel contrariis propensionibus existere in uno eodemque homine pugnam quandam, et ex ea pugna ingentem bene agendi difficultatem, dum una propensio alteram impedit. Sciendum secundo, divinam providentiam initio creationis, ut remedium adhiberet huic morbo seu languori naturæ humanæ, qui ex conditione materiæ oriebatur, addidisse homini donum quoddam insigne, justitiam videlicet originalem, qua veluti aureo quodam fræno pars inferior parti superiori, et pars superior Deo facile subjecta contineretur.” A questão quanto a se a justiça original era natural ou sobrenatural não pode ser respondida até que o significado das palavras seja determinado. A palavra natural utiliza-se com frequência para designar o que constitui a natureza. A razão é num sentido tão natural ao homem que, sem ela, deixa de ser um homem. Às vezes designa qual necessidade deriva-se da constituição da natureza, como quando dizemos que é natural para o homem o desejo de sua própria felicidade; às vezes designa-se no concreto ou inata diferente do que é acidental, acessório, ou adquirido; neste uso da palavra o sentido da justiça, a piedade, e os afetos sociais, são naturais aos homens. Justiça original, afirmam os protestantes, é natural, em primeiro lugar, com o fim de negar que a natureza humana como a primeira vez que participam os princípios conflitivos da carne e o espírito, representado por Belarmino, e que a pura naturalia ou princípios simples da natureza, visto que existiram em Adão, não tinham caráter moral; e, em segundo lugar, para afirmar que a natureza do homem como criado era bom, que seu motivo era iluminado e sua vontade e sentimentos eram conforme à imagem moral de Deus. Era natural para Adão amar a Deus no mesmo sentido que era natural para ele amar-se a si mesmo. Era tão natural para ele apreender a glória de Deus como o foi para ele apreender as belezas da criação. Ele foi assim constituído, assim criado, que em virtude da natureza que Deus lhe deu, e sem nenhum acessório ab extra como don, foi adaptado a cumprir Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 155 o fim de seu ser, quer dizer, glorificar a Deus e deleitar-se nEle para sempre. Objeções à doutrina romana. As objeções óbvias à doutrina romana de que a justiça original era um dom sobrenatural, são: (1.) Que supõe uma visão degradante da constituição original de nossa natureza. De acordo com esta doutrina as sementes do mal se implantaram na natureza do homem, visto que saiu das mãos de Deus. Foi desordenado ou doente, não era tudo o que Belarmino chama morbus o languidez, que necessitava um remédio. Mas isto é depreciativo da justiça e bondade de Deus, e as declarações expressas da Escritura, que o homem, a humanidade, a natureza humana, era boa. (2.) Esta doutrina é, evidentemente, fundada no princípio maniqueu da maldade inerente à matéria. É porque o homem tem um corpo material, que este conflito entre a carne e o espírito, entre o bem e o mal, diz-se que é inevitável. Mas isto se opõe à palavra de Deus e a fé da Igreja. A matéria não é má. E não há uma necessária tendência ao mal da união da alma e do corpo que requer ser corrigida de maneira sobrenatural. (3.) Esta doutrina sobre a justiça original surgiu do semipelagianismo da Igreja de Roma, e foi designada a sustentá-lo. As duas doutrinas são tão relacionadas que permanecem ou caem juntas. De acordo com a teoria em questão, o pecado original é a simples perda da justiça original. A humanidade desde a Queda é precisamente o que era antes da Queda, e antes da adição do dom sobrenatural da justiça. Belarmino 130 dice: “Non magis differt status hominis post lapsum Adæ a statu ejusdem in puris naturalibus, quam differat spoliatus a nudo, neque deterior est humana natura, si culpam originalem detrahas, neque magis ignorantia et infirmitate laborat, quam esset et laboraret in puris naturalibus condita. Proinde corruptio naturæ non ex alicujus doni 130 De Gratia Primi Hominis c. 5. Disputationes, vol. iv. p. 16, d. e. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 156 naturalis carentia, neque ex alicujus malæ qualitatis accessu, sed ex sola doni supernaturalis ob Adæ peccatum amissione profluxit.” O conflito entre a carne e o espírito é normal e original, e portanto não pecaminoso. A concupiscência, o termo teológico desta rebelião do inferior contra os elementos superiores de nossa natureza, não é da natureza do pecado, Andradius 131 (o teólogo católico contra aquele que Chemnitz dirigiu seu Exame do Concílio de Trento) estabelece o princípio, “quod nihil rationem peccati habeat, fiat nisi un volente et sciente,” que exclui, é óbvio, a concupiscência, quer seja no renovado ou não renovado, da categoria de pecado. Portanto, diz Belarmino: 132 “Reatus est omnino inseparabilis ab eo, quod natura sua est dignum æterna damnatione, qualem esse volunt concupiscentiam adversarii.” Esta concupiscência permanece depois do batismo, ou a regeneração, que os romanistas dizem, elimina todo pecado; e portanto, não sendo maus por sua própria natureza, não lhe tira o mérito das boas obras, nem presta obediência perfeita, e inclusive obras de supererrogação da parte dos fiéis, impossível. Esta doutrina do caráter sobrenatural da justiça original como mantidos pelos romanistas, está portanto, intimamente relacionada com todo o seu sistema teológico; e é inconsistente com as doutrinas das Escrituras não só do estado original do homem, mas também do pecado e da redenção. Entretanto, aparecerá na sequela, que nem as normas da Igreja de Roma, nem os teólogos romanos são consistentes em seus pontos de vista do pecado original e sua relação com a perda da justiça original. 131 132 Baur, Katholicismus und Protestantismus, Tübingen, 1836, p. 85, note. De Amissione Gratiæ et Statu Peccati, v. 7; Disputationes, vol. iv. p. 287 a. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II § 6. A doutrina Pelagiana e Racionalista. 157 Segundo os pelagianos e os racionalistas o homem foi criado um agente livre racional, mas sem caráter moral. Ele não era nem justo nem injusto, nem santo nem profano. Tinha simplesmente a capacidade de converter-se em qualquer um. Estar dotados de razão e livre-arbítrio, seu personagem dependia do uso que ele fez das dotações. Se agiu bem, ele chegou a ser justo, se agiu mal, converteu-se em injusto. Não pode ser, segundo seu sistema, não há tal coisa como o caráter moral concreto, e portanto rejeitam a doutrina da justiça original como irracional. Esta postura do estado original do homem é a consequência necessária da hipótese de que o caráter moral só pode pregar-se dos atos da vontade ou das consequências subjetivas destes atos. Este princípio que se opõe à possibilidade da justiça original em Adão, opõe-se também à possibilidade da depravação inata, hereditária, usualmente chamada o pecado original, e também a possibilidade de habitação do pecado, e dos hábitos da graça. Ela mesma é uma inferência a partir da hipótese principal que limita a capacidade de obrigação; que um homem não pode ser louvado, nem culpado, nem recompensado, nem condenado, à exceção de seus próprios atos e o caráter autoadquirido, que os atos devem ser compreendidos no âmbito de sua capacidade. O que é o bem concreto ou inato, inerente ou infuso, é evidente que não no poder da vontade, e portanto não pode ter nenhum caráter moral. Como este princípio é, pois, de longo alcance que deveria ser resolvido definitivamente. A consciência demonstra que as disposições, diferente dos atos, podem ter caráter moral. Pelo mero filósofo moral, e por teólogos cuja teologia é uma filosofia, assume-se como um axioma, ou a verdade intuitiva, que o homem é responsável só do que tem plenos poderes para fazer ou evitar. Plausível como é este princípio, é, — Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 158 1. Oposto ao testemunho da consciência. É um fato de consciência que atribuímos o caráter moral aos princípios que precedem a todas as medidas voluntárias e que são totalmente independentes do poder da vontade. E é um fato suscetível da mais clara demonstração de que não apenas é o ditado de nossa consciência individual, mas também a convicção de todos os homens. Se examinarmos nossa própria consciência quanto à sentença que se passa sobre nós mesmos, encontrar-nos-emos que nos responsabilizamos não só pelos atos deliberados da vontade, quer dizer, por atos de deliberada autodeterminação, que supõe tanto o conhecimento como volição, mas também para atos emocionais, impulsivos, que precedem a toda a deliberação; e não apenas por tais atos impulsivos, mas também pelos princípios, disposições, ou estados imanentes da mente, por seus atos impulsivos ou deliberados, são determinados. Quando um homem está convencido de pecado, não é tanto por determinados atos de transgressão que sua consciência o condena, como para os estados permanentes de sua mente, seu egoísmo, seu mundanismo, e malícia; sua ingratidão, incredulidade e dureza de coração; sua falta de afetos corretos, do amor a Deus, de zelo pelo Redentor, e da benevolência para com os homens. Estes não são atos. Não são estados de ânimo sob o controle da vontade, e entretanto, no juízo da consciência, que não podemos silenciar ou perverter, constituem nosso caráter e são motivo de condenação. Da mesma maneira qualquer que seja se devidas disposições ou os princípios que descobrimos dentro de nós mesmos, o que há do amor a Deus, a Cristo, ou a Seu povo; a humildade, a mansidão, a paciência, ou de qualquer outra virtude do testemunho da consciência é, que estas disposições, que não são nem os atos nem os produtos da vontade, na medida em que existe dentro de nós, constituem nosso caráter aos olhos de Deus e do homem. Não só é o testemunho da consciência com relação a nossos juízos sobre nós mesmos, mas também quanto aos juízos de outros homens. Quando pronunciamos um homem bom ou mau, a sentença não se baseia em seus atos, mas em seu caráter Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 159 conforme o revelado por seus atos. Os termos bom e mau, tal como se aplica aos homens, não se utilizam para expressar o caráter dos atos particulares que realizam, mas sim o caráter permanente dos princípios, disposições, ou estados da mente que determinam seus atos, e dão segurança do que será no futuro. Podemos olhar para um homem bom e saber que há algo em que constitui o seu caráter, e que o faz seguro para não blasfemar, mentir ou roubar, mas, pelo contrário, que ele se esforçará em todas as coisas para servir a Deus e fazer o bem aos homens. Da mesma maneira podemos contemplar um homem ímpio no seio de sua família, quando cada paixão má é calada, e quando só os sentimentos amáveis estão em exercício, e entretanto ele sabe que é mau. Quer dizer, que não só se sabe que cometeu más ações, mas que é intrinsecamente mau, que há nele um homem ímpio, ou um estado permanente da mente, que constitui seu verdadeiro caráter e determina seus atos. Quando dizemos que um homem é avarento, não queremos dizer simplesmente que acumula dinheiro, ou demole a cara do pobre, mas queremos dizer que tem uma disposição que em outro tempo deu lugar a tais atos e que seguirá a produzi-los sempre e quando isso governe o seu coração. A doutrina de Pelágio, portanto, que o caráter moral só pode pregar-se dos atos voluntários, é contrária ao testemunho da consciência. O argumento do juízo geral dos homens. 2. Entretanto, pode-se dizer que nossa consciência ou juízos morais estão influenciadas por nossa educação cristã. Portanto, é importante observar, em segundo lugar, que este juízo de nossa consciência individual vê-se confirmado pela sentença universal de nossos semelhantes. Isto é evidente pelo fato de que em todos os idiomas conhecidos há palavras para distinguir entre as disposições, princípios, ou hábitos, como estados permanentes da mente, e os atos voluntários. E estas disposições são universalmente reconhecidas como boas ou más. A linguagem é o produto da consciência comum dos homens. Não pode Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 160 haver termos como benevolência, justiça, integridade e fidelidade, a expressão dos princípios que determinam os atos, e que não são atos em si mesmos, se os homens não reconhecerem intuitivamente o fato de que os princípios assim como os atos podem ter caráter moral. O caráter moral dos atos são determinados pelos princípios de onde fluem. 3. Longe de que seja verdade que no juízo dos homens o ato voluntário por si só constitui o caráter, justamente o contrário é verdade. O caráter do ato se decide pela natureza do princípio pelo qual se determina. Se um homem dá esmola, ou adora a Deus por um princípio egoísta, sob o controle de uma disposição para garantir o aplauso dos homens, esses atos em vez de serem bons são instintivamente reconhecidos como maus. De fato, se este princípio pelagiano ou racionalista fosse certo, não poderia haver tal coisa como caráter, não só porque os atos individuais não têm qualidade moral, exceto como se derivam do princípio de onde fluem, mas também porque o caráter necessariamente supõe algo permanente e controlador. Um homem sem caráter é um homem sem princípios, quer dizer, em quem não há nada que lhe dá segurança quanto ao que serão suas obras. O argumento da Escritura. 4. As Escrituras neste, como em todos os casos, reconhece a validez dos juízos intuitivos e universais da mente. Distinguem-se em todas as partes entre princípios e atos, e em todas as partes atribuem caráter moral aos primeiros, e dos atos só a medida em que procedem de princípios. Esta é a doutrina de nosso Senhor quando diz: “Ou fazei a árvore boa e o seu fruto bom ou a árvore má e o seu fruto mau; porque pelo fruto se conhece a árvore.” (Mt. 12:33). “Não pode a árvore boa produzir frutos maus, nem a árvore má produzir frutos bons.” (Mt. 7:18). É o caráter interior, a habitação da árvore que determina o caráter do fruto. O fruto revela, mas não constitui, a natureza da árvore. Assim é, ele nos diz, com Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 161 o coração humano. “Como podeis falar coisas boas, sendo maus? Porque a boca fala do que está cheio o coração. O homem bom tira do tesouro bom coisas boas; mas o homem mau do mau tesouro tira coisas más” (Mt. 12:34, 35). Um bom homem, portanto, é aquele que está interiormente bem: ele tem um bom coração, ou natureza, algo dentro dele que está bem em si mesmo, produz bons atos. E o homem mau é um cujo coração, quer dizer, o estado permanente, o controle da mente, sendo em si mesmo mau, habitualmente faz o mal. É do coração que saem os maus pensamentos, os homicídios, os adultérios, as fornicações, os furtos, os falsos testemunhos, e as blasfêmias. Estes termos incluem todos os atos voluntários, não só no sentido da livre autodeterminação, mas também no sentido dos atos espontâneos. Incluem-se, além disso, todos os estados conscientes da mente. É, portanto, expressamente afirmado por nosso Senhor, que atribui caráter moral ao que é mais profundo que qualquer ato da vontade, no mais amplo sentido dessas palavras, mas também ao que está mais baixo que a consciência. Como a maior parte de nosso conhecimento é entesourado até onde a consciência não alcança, assim a maior parte do que constitui nosso caráter como bom ou mau, está abaixo não só da vontade, mas também inclusive da própria consciência. É entretanto, não só pela afirmação direta de que esta doutrina se ensina na Bíblia. É constantemente assumido, e envolvido em algumas das doutrinas mais importantes da Palavra de Deus. Dá-se por sentado no que se ensina da condição moral em que os homens nasceram neste mundo. Diz-se que são concebidos no pecado. São por natureza filhos da ira. Aquele que é nascido da carne é carne, quer dizer, carnal, moralmente corrupto. A Bíblia também fala do pecado que habita; do pecado como um princípio que dá fruto para morte. Representa regeneração não como um ato da alma, mas sim como a produção de uma nova natureza, ou um princípio sagrado, no coração. A negação, portanto, de que as disposições ou princípios diferente dos Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 162 atos, pode ter um caráter moral, subverte algumas das doutrinas das Sagradas Escrituras mais claramente reveladas. A Fé da Igreja sobre este tema. 5. É justo sobre este tema apelar à fé universal da Igreja. Inclusive a Igreja grega, que tem a forma mais baixa da doutrina de qualquer das grandes comunidades cristãs históricas, ensina que os homens necessitam a regeneração logo que nascem, e que pela regeneração se leva a cabo uma mudança da natureza, ou se infunde um novo princípio de vida na alma. Assim também a Igreja latina, mesmo de forma inconsistente, reconhece a verdade da doutrina em questão em todos os seus ensinos. Os que morrem sem ser batizados, de acordo com os romanistas, morrem; e pelo batismo, não só a culpabilidade, mas também a contaminação do pecado é tirada, e os novos hábitos da graça se infundem na alma. É desnecessário assinalar que as igrejas luteranas e reformadas estão de acordo em manter esta importante doutrina, que o caráter moral não pertence exclusivamente aos atos voluntários, mas sim que se estende às disposições, princípios, ou os hábitos da mente. Isto se envolve em todas as suas decisões autoritativas sobre a justiça original, o pecado original, a regeneração e a santificação. O caráter moral das Disposições depende de sua natureza moral e não de sua origem. O segundo princípio envolvido na grande doutrina da Escritura sobre este tema é que o caráter moral de disposições ou hábitos depende de sua natureza e não de sua origem. Há alguns que tentarão adotar uma posição intermediária entre as doutrinas racionalistas e as evangélicas. Admitem que se pode pregar o caráter moral das disposições como diferentes dos atos voluntários, mas insistem em que isto só se pode fazer quando tais disposições se adquiriram. Eles reconhecem que a repetição frequente de determinados atos tem uma tendência a produzir uma disposição permanente para realizá-las. Isto é reconhecido ser Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 163 verdade não só no que respeita à indulgência dos apetites sensuais, mas também no que respeita aos atos puramente mentais. Não só o uso frequente de bebidas alcoólicas produzem uma ansiedade excessiva para eles, mas também confirma o exercício frequente de orgulho ou indulgência da vaidade, confirma e fortalece o espírito orgulhoso e vaidoso, ou estado de ânimo, cujo estado de ânimo, quando assim produzido, admite-se, vai determinar ou constituir o caráter moral do homem. Mas negam que um homem pode ser responsável por qualquer disposição ou estado de ânimo, que não é o resultado de sua própria agência voluntária. Em oposição a esta doutrina, e em favor da posição de que o caráter moral das disposições ou princípios, não depende de sua origem, que se concretos, inatos, infusos, ou auto-adquiridos que são bons ou maus segundo sua natureza, os argumentos são os mesmos em espécie como os apresentadas sob o título anterior. 1. A primeira se deriva de nossa consciência. Em nossos juízos de nós mesmos a questão é o que somos, e não como nos convertemos no que nós sabemos que somos. Se estamos consciente de que não amamos a Deus como deveríamos, que somos mundanos, egoístas, orgulhosos, ou suspeitosos, não é alívio para a consciência, que foi nosso personagem desde o princípio. Podemos saber que nascemos com estas más disposições, mas nem são por isso menos mau aos olhos da consciência. Gememos sob o peso da herança, ou da habitação no pecado, tão profunda e tão inteligentemente como sob a pressão de nossas próprias disposições mal-adquiridas. Assim que também em nossos juízos instintivos de outros homens. Se um homem for viciado nas buscas frívolas, declará-lo-emos um homem frívolo, sem deter-se para averiguar se sua disposição é inata, derivada por herança de seus antepassados, ou se foi adquirida. Pelo contrário, se for manifesto desde sua juventude uma disposição para a aquisição de conhecimentos, que é um objeto de respeito, não importa de onde a disposição se deriva. O mesmo é certo com relação às disposições amáveis ou não amáveis. Não se pode negar que há uma grande diferença nos homens a Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 164 este respeito. Alguns são mal-humorados, irritáveis, e anti-sociais em suas disposições, outros são diretamente o contrário. Uma classe é atrativa, a outra repulsiva; uma é objeto do afeto, e a outra, de desagrado. O juízo instintivo da mente é o mesmo no que respeita às disposições com maior clareza moral em sua natureza. Um homem é egoísta, outro é generoso; um é mal-intencionado, outro é benevolente; um é reto e honorável, outro é enganoso e vil. Pode-se nascer com estes aspectos distintivos de caráter, e tais características, sem lugar a dúvida, são em muitos com frequência casos inatos e hereditários, e entretanto somos conscientes de que nosso juízo sobre eles e aqueles aos quais formam parte é totalmente independente da questão se tais disposições são naturais ou adquiridas. Admite-se que as nações, assim como as tribos e famílias, têm suas características distintivas, e que estas características não são só físicas e mentais, mas também sociais e morais. Algumas tribos são traiçoeiras e cruéis. Algumas são leves e confiantes. Algumas são viciadas em ganhar, outras à guerra. Alguns são sensuais, alguns são intelectuais. Nós de maneira instintiva julgamos cada um segundo seu caráter, gostamos ou não, aprovamos ou desaprovamos, sem nos fazer qualquer pergunta sobre a origem dessas características distintivas. E se o fazemos expor essa questão, embora nos vemos obrigados a responder ao admitir que estas disposições são inatas e hereditárias, e que não são auto-adquiridas pela pessoa cujo caráter eles constituem, nós, entretanto, e nenhum pelo menos, aprova ou os condena segundo sua natureza. Isto é o instintivo e necessário, e portanto a sentença correta, da mente. Esta é a Regra Comum de Juízo. 2. Como na água o rosto responde ao rosto, assim o coração do homem ao homem. O que encontramos revelado em nossa própria consciência encontramos manifestado como a consciência de nossos semelhantes. É o juízo instintivo ou intuitivo de todos os homens que as Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 165 disposições morais derivam seu caráter de sua natureza, e não de sua origem. Na linguagem comum dos homens, dizer que um homem é naturalmente orgulhoso ou malicioso não é um atenuante, mas sim um agravamento. Quanto mais profundamente estes princípios são sentados em sua natureza, menos eles dependem das circunstâncias ou da ação voluntária, mais profundo é nosso espanto e mais severa é nossa condenação. O povo irlandês foi sempre notável por sua fidelidade, a honestidade do inglês; os alemães pela verdade. Estes aspectos nacionais, como se revela nas pessoas, não são o efeito da autodisciplina. Elas são disposições inatas, hereditárias, como evidentemente, tanto as peculiaridades físicas, mentais ou emocionais pelas quais um povo distingue-se de outro. E, entretanto, pelo juízo comum dos homens este fato em nenhum grau é contrário à moral destas disposições. O testemunho da Escritura. 3. Isto também é a clara doutrina da Bíblia. As Escrituras ensinam que Deus fez o homem reto; que os anjos foram criados santos, porque os anjos maus são aqueles que não guardaram seu primeiro estado; que desde a Queda os homens nasceram em pecado; que pelo poder de Deus, e não pelo poder da vontade, o coração é mudado, e novas disposições são implantadas em nossa natureza; e entretanto, a Bíblia sempre fala dos pecadores como pecaminosos e dignos de condenação, se, como no caso de Adão, essa pecaminosidade era auto-adquirida, ou, como no caso de sua posteridade, é um mal hereditário. Sempre fala dos santos como santos, se desta maneira criados assim como anjos, ou feito pelo poder sobrenatural do Espírito na regeneração e na santificação. E, ao fazê-lo, a Bíblia, como vimos, não contradiz o juízo intuitivo da mente humana, mas sanciona e confirma tal sentença. A fé da Igreja. 4. Não faz falta acrescentar que tal é também a fé da Igreja universal. Todas as igrejas cristãs recebem as doutrinas do pecado Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 166 original e da regeneração numa forma que implica não só o princípio de que as disposições, diferente dos atos, podem ter um caráter moral, mas também que tal caráter lhes pertence quer sejam inatos, adquiridos ou infundidos. Portanto, é mais razoável supor o fato de que um homem pode ser responsável só por seus atos voluntários, ou por seus efeitos subjetivos, quando nossa própria consciência, o juízo universal dos homens, a palavra de Deus e a Igreja universal, tão claramente afirmam o contrário. É uma questão de surpresa quão sutil é o veneno do princípio que agora se considerou. É não só o princípio fundamental do pelagianismo, mas também é afirmado com frequência pelos teólogos ortodoxos que não o levam a seus resultados legítimos, mas que, não obstante, permite-o modificar injuriosamente seus pontos de vista de algumas das doutrinas mais importantes da Bíblia. No suposto de que ninguém pode ser julgado, pode ser justificado ou condenado salvo na base de seu caráter pessoal auto-adquirido, eles ensinam que não pode haver uma imputação imediata do pecado de Adão ou da justiça de Cristo; que o único fundamento da condenação deve ser nossa própria pecaminosidade adquirida, e o único fundamento da justificação nossa justiça subjetiva, pelo que subverte dois dos principais pilares da verdade evangélica. Objeções Consideradas. A dificuldade neste tema surge em grande medida de confundir duas coisas distintas. Uma coisa é que uma criatura deve estar sujeita a seu caráter, e outra muito distinta é ele dar conta de ter esse caráter. Se uma criatura for santa ela será considerada e tratada como santa. Se for pecadora, será considerada e tratada como algo pecaminoso. Se Deus criou a Adão santo Ele não podia tratá-lo como profano. Se Ele criou a Satanás pecador, Ele o consideraria como pecador; e se os homens nascem em pecado não podem ser considerados como livres de pecado. A dificuldade não está em seu tratamento das criaturas de Deus de acordo com seu verdadeiro caráter, mas na reconciliação com Sua Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 167 santidade e justiça, que um caráter pecaminoso deva ser adquirido sem agência pessoal da criatura. Se Deus tivesse criado a Satanás pecador ele teria sido pecador, mas não saberíamos como reconciliar com o caráter de Deus porque devia ser criado. E se os homens tivessem nascido em pecado, a dificuldade não está em seu ser considerado e tratado como pecaminoso, mas em seu ser assim nascido. A Bíblia nos ensina a solução desta dificuldade. Isto nos revela o princípio de representação, em razão de que a pena do pecado de Adão, que veio sobre sua posteridade como a recompensa da justiça de Cristo vem a seu povo. No primeiro caso a pena do pecado traz pecaminosidade subjetiva, e no outro traz santidade subjetiva. Trata-se de uma objeção comum à doutrina de que a santidade pode ser criada e o pecaminosidade é hereditária, que faz o pecado e a santidade substâncias. Não há nada na alma, diz-se, a não ser sua substância e seus atos. Se o pecado ou a santidade se prega de outra coisa que não os atos da alma deve ser predicado de sua substância; e assim temos a doutrina da santidade física e a depravação física. A hipótese em que esta objeção se baseia não só é arbitrária, mas também é obviamente errônea. Há na alma: (1.) Sua substância. (2.) Suas propriedades ou atributos essenciais, como a razão, a sensibilidade e a vontade, sem as quais deixa de ser uma alma humana. (3.) Suas disposições constitucionais, ou tendências naturais para exercer certos sentimentos e volições, como o amor próprio, o sentido de justiça, o princípio social, o afeto paterno e filial. Estes, embora não essenciais para o homem, são entretanto encontrados em todos os homens, antes e depois da Queda. (4.) As disposições particulares dos indivíduos, que são acidentais, quer dizer, não pertencem à humanidade como tal. Podem estar presentes ou ausentes; podem ser inatas ou adquiridas. Tais são o gosto pela música, pela pintura ou pela poesia; e a habilidade do artista ou do mecânico, como também são a cobiça, o orgulho, a vaidade, e coisas similares; e tais, também, são as graças do Espírito, a humildade, a mansidão, cortesia, fé, amor, etc. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 168 À medida que o gosto pela música não é nem um ato nem uma substância, assim o orgulho não é nem um nem outro. Tampouco é o instinto maternal de um ato, nem é a benevolência ou a cobiça. Estes são imanentes, estados permanentes da mente. Eles pertencem ao homem, se estiverem ativos ou inativos, se estiverem acordados ou adormecidos. Há algo no artista que o faz dormir seguro de que ele desfrutará e executará o que outros homens não podem nem perceber nem fazer. E esse algo não é nem a essência de sua alma, nem um ato. É um gosto natural ou adquirido e habilidade. Assim que há algo no santo para dormir que não é nem essência nem ato, o que faz patente que ele ama e serve a Deus. Portanto, como há nas disposições alma, princípios, hábitos e gostos que não podem ser considerados como simples atos, e entretanto, não pertencem à essência da alma, é evidente que a doutrina da justiça original ou criada não é responsável à objeção de fazer caráter moral uma substância. Os Pelagianos ensinam que o homem foi criado mortal. O segundo aspecto distintivo da doutrina pelagiana ou racionalista quanto ao estado original do homem, é que o homem foi criado mortal. Disto se pretende negar que a morte é a consequência ou castigo da transgressão; e para afirmar que Adão era responsável pela morte, e sem dúvida teria morrido em virtude da constituição original de sua natureza. Os argumentos enfatizados em apoio desta doutrina são: (1.) Que a organização corporal de Adão não estava adaptada para durar para sempre. Estava em sua própria natureza perecível. Requer-se estar constantemente atualizado pelo sonho e renovado pelo alimento, e que por um processo natural e inevitável de ter envelhecido e decaído. (2.) Que todos os outros animais que vivem na terra evidenciam em sua constituição e estrutura que não estavam destinados por seu Criador a viver de forma indefinida. Foram criados homem e mulher, designados para propagar sua raça. Isto demonstra que foi o plano do Criador uma sucessão de indivíduos, e não a existência continuada dos mesmos Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 169 indivíduos. Como isto é verdade do homem, assim como de outros animais, é evidente, dizem eles, que o homem também era desde o princípio, e com independência do pecado, destinado a morrer. (3.) Um argumento extrai-se do que ensina o Apóstolo em 1 Cor. 14:42-50. Ali disse que o primeiro homem da terra é terreno; que havia um corpo natural (um σῶμα ψυχικόν), diante de um corpo espiritual (o σῶμα πνευματικόν); que o primeiro não se adapta à imortalidade, que a carne e o sangue, quer dizer, o σῶμα ψυχικόν, como Adão tinha quando criado, não podem herdar o reino dos céus. Deste relato se deduz que Adão não foi criado para a imortalidade, antes, foi originalmente investido com um órgão de sua natureza destinados a decair. Resposta aos argumentos de Pelágio. Restam dois pontos a considerar: Primeiro, se Adão teria morrido se não tivesse pecado; e segundo, se seu corpo, tal como estava formado originalmente, estava adaptado a um estado de existência imortal. Quanto ao primeiro não pode haver dúvidas de nenhum tipo. Na Escritura afirma-se de maneira expressa que a morte é o pagamento do pecado. Na ameaçadora advertência: «No dia que dele comeres, certamente morrerá», implica-se sinceramente que, se não comesse, não morreria. Por isso, fica claro com base nas Escrituras que a morte é a consequência penal do pecado, e que não teria sido infligida se nossos primeiros pais não tivessem transgredido. O segundo ponto está muito menos claro, e tem menos importância. Segundo a postura adotada por muitos dos pais, Adão devia passar por sua prova no paraíso terrestre, e se fosse mostrado obediente, devia ser trasladado ao paraíso celestial, do qual o terrestre era o tipo. Segundo Lutero, o efeito do fruto da árvore da vida, que nossos pais teriam sido autorizados a comer se não tivessem pecado, teria sido o de preservar seus corpos em perpétua juventude. Segundo outros, o corpo de Adão e os corpos de sua posteridade, se ele tivesse mantido sua integridade, teriam passado por uma mudança análoga ao que, conforme nos ensina o apóstolo, espera os que estarão Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 170 vivos na segunda vinda de Cristo. Não morrerão, mas todos serão transformados; o corruptível se revestirá de incorrupção, e o mortal se revestirá da imortalidade. Há duas coisas certas, primeiro, que se Adão não tivesse pecado não teria morrido; e segundo, que se o Apóstolo, quando diz que levamos a imagem do terrestre, refere-se a que nossos corpos atuais são como o corpo de Adão tal como foi originalmente constituído, então seu corpo, não menos que o nosso, precisava ser transformado para ficar idôneo para a imortalidade. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II CAPÍTULO VI 171 A ALIANÇA DAS OBRAS DEUS, tendo criado o homem à Sua imagem em conhecimento, retidão e inocência, entrou em aliança de vida com ele, sobre a condição de uma obediência perfeita, proibindo-o de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal sob pena de morte. Segundo esta declaração: (1) Deus entrou numa aliança com Adão. (2) A promessa que acompanhava a aliança era a vida. (3) A condição era uma obediência perfeita. (4) A pena pela desobediência era a morte. § 1. Deus fez uma aliança com Adão. Esta declaração não repousa sobre nenhuma declaração expressa das Escrituras. Entretanto, é um modo conciso e correto de declarar um fato claro das Escrituras, isto é, que Deus fez a Adão uma promessa que dependia de uma condição, e uniu à desobediência uma certa pena. Isto é o que nas Escrituras se entende por aliança, e isto é tudo o que se entende pelo termo aqui empregado. Embora a palavra aliança não se emprega em Gênesis, e não aparece em nenhum outro lugar em nenhuma passagem clara com referência à transação que aqui se registra, entretanto, porquanto o plano de salvação é constantemente designado como uma Nova Aliança, novo não meramente em antítese ao fato no Sinai, mas sim novo com referência a todas as alianças legais, está claro que a Bíblia apresenta a disposição aqui concertada com Adão como uma verdadeira transação federal. As Escrituras não sabem de nada mais que dois métodos de alcançar a vida eterna: aquele que exige uma perfeita obediência, e aquele que demanda fé. Se o último é chamado uma aliança, o primeiro é designado como da própria natureza. É de grande importância que se retenha a forma escriturística de apresentar a verdade. O Racionalismo foi introduzido na Igreja sob a coberta de uma declaração filosófica das verdades da Bíblia livres da mera forma externa Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 172 na qual os escritores sagrados, instruídos no judaísmo, tinham-nas apresentado. Sobre esta base foi descartado o sistema federal, como era chamado. Da mesma maneira, declarou-se que os ofícios profético, sacerdotal e régio de Cristo eram uma forma recarregada e insatisfatória sob a qual expor sua obra como nosso Redentor. Logo se rejeitou todo o caráter sacrifical de Sua morte, e toda ideia de expiação, como mero revestimento judeu. Assim, pela teoria da acomodação, cada doutrina distintiva da Escritura foi posta de lado, e o cristianismo foi reduzido a um deísmo. Por isso, é algo mais que um mero assunto de método o aderir-se à forma escriturística de apresentar as verdades escriturísticas. Deus concertou uma aliança com Adão. Aquela aliança é às vezes chamada uma aliança de vida, porque se prometia vida como recompensa da obediência. Às vezes é chamada aliança das obras, porque as obras eram a condição da qual dependia a promessa, e porque distingue-se desta maneira da nova aliança, que promete vida sob a condição da fé. § 2. A promessa. A recompensa prometida a Adão sob a condição de sua obediência era a vida. (1) Isto está comprometido na ameaçadora advertência: «No dia que dela comeres [isto é, da árvore da ciência do bem e do mal], certamente morrerás». Está bem claro que isto envolvia a certeza de que não ia morrer se não comesse. (2) Isto fica confirmado por inumeráveis passagens e pelo teor geral das Escrituras, nas quais se ensina de maneira tão clara e diversa que a vida foi, por mandato de Deus, conectada com a obediência. «Faze isto, e viverás». Este é o modo uniforme em que a Bíblia fala de que a lei ou a aliança sob o qual o homem pela constituição de sua natureza e pela ordenança de Deus, foi colocado. (3) Porquanto as Escrituras apresentam em todo lugar a Deus como juiz ou governador moral, segue-se necessariamente desta descrição que Suas criaturas racionais serão tratadas segundo os princípios da justiça. Se não Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 173 há transgressão, não há castigo. E os que continuam santos porque continuam na graça e no companheirismo dAquele cuja graça é vida, e cuja bondade amorosa é melhor que a vida. (4.) E, por último, a santidade, ou como o Apóstolo o expressa, estar espiritualmente ocupado, é vida. Portanto, não há dúvida, que tivesse Adão continuado na santidade, teria desfrutado da vida que brota da graça de Deus. A vida assim prometida incluía a feliz, santa e imortal existência da alma e do corpo. Isto está claro. (1) Porque a vida prometida devia ser idônea para o ser a quem foi feita a promessa. Mas a vida apropriada para o homem como um ser moral e inteligente, composto de alma e corpo, inclui a ditosa, santa e imortal existência de sua natureza inteira. (2) A vida da qual as Escrituras falam em todo lugar como conectada com a obediência é aquela que, como se acaba de declarar, surge do favor e da comunhão de Deus, incluindo glória, honra e imortalidade, como o Apóstolo nos ensina em Romanos 2:7. (3) A vida obtida por Cristo para Seu povo foi a vida perdida pelo pecado. Mas a vida que o crente deriva de Cristo é vida espiritual e eterna, a exaltação e completa bênção de sua natureza inteira, tanto alma como corpo. § 3. A condição. A condição da aliança feita com Adão diz-se nos símbolos de nossa igreja que é a perfeita obediência. Que esta afirmação é correta, poderia inferir-se: (1.) Pela natureza do caso e dos princípios gerais claramente revelado na palavra de Deus. Tal é a natureza de Deus, e tal a relação com que Ele sustenta Suas criaturas morais, que o pecado, a transgressão da lei divina, deve implicar a destruição do companheirismo entre o homem e seu Criador, e a manifestação do desprazer divino. O apóstolo, portanto, diz que aquele que ofende num ponto, que rompe um preceito da lei de Deus, é culpado de todos. (2.) É assumido por todas as partes na Bíblia, que a condição de aceitação sob a lei é obediência perfeita. “Maldito aquele que não Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 174 permanecer em todas as coisas escritas no livro da lei, para cumpri-las.” Isto não é uma peculiaridade da economia mosaica, mas uma declaração de um princípio que se aplica a todas as leis divinas. (3.) Todo o argumento do Apóstolo em suas epístolas aos Romanos e aos Gálatas, baseia-se no suposto de que a lei exige a perfeita obediência. Se isso não se conceder, todo seu argumento cai por terra. O mandamento específico dado a Adão de que não comesse de uma certa árvore, portanto, não foi o único comando que estava obrigado a obedecer. Foi dado simplesmente como a prova externa e visível para determinar se estava disposto a obedecer a Deus em tudo. Criados santos, com todos os seus afetos puros, havia mais razão que a prova de sua obediência devesse ser uma ordem exterior e positiva; algo mau, simplesmente porque era proibido, e não mau em sua própria natureza. Assim se veria que Adão obedecia por pura obediência. Sua obediência seria mais diretamente para com Deus, e não a sua própria razão. À questão quanto a se a condição da aliança feita com Adão era uma obediência perpétua além de perfeita, deve provavelmente ser respondida em sentido negativo. Parece razoável em si mesmo e claramente comprometido nas Escrituras que todas as criaturas racionais têm um período determinado de prova. Se forem fiéis durante este período, ficam confirmadas em sua integridade, e já não são mais expostas ao perigo da apostasia Assim, lemos de anjos que não guardaram seu primeiro estado, e dos que o guardaram. Os que permaneceram fiéis prosseguiram em santidade e no favor de Deus. Por isso, deve-se inferir que se Adão tivesse mantido sua obediência durante o período designado para sua prova, nem ele nem sua posteridade ter-seiam expostos ao perigo de pecar. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II § 4. A penalidade. 175 A penalidade que suportava o quebrantamento da aliança é expressa com o inclusivo termo «morte». «No dia que dela comeres, certamente morrerás». Que isto não se refere à mera dissolução do corpo fica claro: (1) Porque a palavra morte, tal como se usa na Escritura com referência às consequências da transgressão, inclui todo mal penal. O pagamento do pecado é morte. A alma que pecar, essa morrerá. Assim, toda e qualquer forma de mal que se inflija como castigo do pecado fica compreendida sob o termo morte. (2) A morte com que se ameaçava era o oposto à vida prometida. Mas a vida prometida, como vimos, inclui todo o envolvido numa existência feliz, santa e imortal da alma e do corpo; e por isso a morte deve incluir não só todas as misérias da vida e a dissolução do corpo, mas também tudo o que se compreende por morte espiritual e eterna. (3) Deus é a vida da alma. Seu favor e comunhão com Ele são essenciais para a santidade e a sorte. Se se perde seu favor, as consequências inevitáveis são a morte da alma, isto é, sua perda de vida espiritual, e uma pecaminosidade e miséria sem fim. (4) A natureza da pena ameaçada é ganha de sua imposição. As consequências do pecado de Adão foram a perda da imagem e do favor de Deus, e todos os males que surgiram daquela perda. (5) Finalmente, a morte em que se incorreu pelo pecado de nossos primeiros pais é aquela da qual somos redimidos por Cristo. Cristo, entretanto, não livra meramente nosso corpo da tumba, mas salva a alma da morte espiritual e eterna; e por isso, a morte espiritual e eterna, junto com a dissolução do corpo e todas as desgraças desta vida, ficaram incluídas na pena originalmente incluída na aliança das obras. Adão morreu certamente no dia em que comeu do fruto proibido. A pena com que tinha sido ameaçado não era um castigo momentâneo, mas a permanente sujeição a todos os males que surgem do justo desagrado de Deus. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II § 5. As partes da aliança das obras. 176 Pertence à natureza de uma aliança que deve haver dois ou mais partes. Uma aliança não é de uma parte somente. As partes da aliança original eram Deus e Adão. Adão, entretanto, não agiu em sua capacidade individual, antes, como cabeça e representante de toda a sua raça. Isto está claro: (1) Porque tudo o que foi dito a ele tem tanta referência à sua posteridade como ao próprio Adão. Tudo o que foi concedido a ele foi concedido a eles. Tudo o prometido a ele foi prometido a eles. E tudo aquilo que se ameaçou a ele, em caso de transgressão, foi ameaçado contra eles. Deus não deu a terra a Adão para que fosse apenas para ele, mas sim como a herança para sua raça. O domínio de que foi investido sobre os animais inferiores pertencia igualmente aos seus descendentes. A promessa de vida abraçava a eles assim como a ele. (2) Em segundo lugar é um fato firme e inegável que a pena em que incorreu Adão sobreveio sobre toda sua raça. A terra foi amaldiçoada para eles assim como o foi para ele. Eles devem ganhar seu pão com o suor de suas frontes. As dores de parto são a herança comum de todas as filhas de Eva. Todos os homens estão sujeitos às doenças e à morte. Todos nascem em pecado, carentes da imagem moral de Deus. Não há um só mal derivado do pecado de Adão que não afete tanto a sua raça como o afetou a ele. (3) Não só os antigos judeus inferiram o caráter representativo de Adão com base no registro dado em Gênesis, mas também que os escritores inspirados do Novo Testamento dão a esta doutrina a sanção da autoridade divina. Em Adão, diz o Apóstolo, todos morreram. A sentença de condenação, ensina-nos ele, passou pela ofensa a todos os homens. Pela ofensa de um todos foram feitos pecadores. (4) Este grande fato é constituído como a base de todo o plano de redenção. Como caímos em Adão, somos salvos em Cristo. Negar o princípio no primeiro caso é negar o segundo, porque ambos os princípios estão inextricavelmente unidos nas exposições da Escritura. (5) O princípio envolvido na condição de Adão como cabeça subjaz a todas as Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 177 instituições religiosas que Deus estabeleceu para os homens; subjaz a todos os Seus procedimentos providenciais com nossa raça, e subjaz inclusive às influências salvadoras de Seu Espírito. Por isso, é um dos princípios fundamentais tanto da religião natural como da revelada. (6) O que é assim claramente revelado na palavra e providência de Deus encontra uma resposta na própria constituição de nossa natureza. Todos os homens são levados como instintivamente a reconhecer a validez deste princípio de representação. Os governantes representam a seu povo; os pais, a seus filhos; os tutores, a seus tutelados. Todas estas considerações têm seu lugar aqui, quando está sob discussão a natureza da aliança das obras e as partes desta aliança, embora naturalmente terão que ser examinadas mais de perto quando se considerar o efeito do pecado de Adão sobre a sua posteridade. Os homens podem debater quanto às bases da condição de cabeça de Adão, mas o próprio fato dificilmente pode ser questionado da parte dos que reconhecem a autoridade das Escrituras. Por isso, entrou na fé de todas as Igrejas cristãs, e é apresentado com maior ou menor clareza em todos os seus símbolos autorizados. § 6. A perpetuidade da aliança das obras. Se Adão agiu não apenas por si mas também por sua posteridade, esse fato determina a questão quanto a se o pacto das obras ainda continua em vigor. No sentido evidente dos termos, dizer que os homens seguem sob essa aliança é dizer que seguem sob prova; que a raça não caiu quando Adão caiu. Mas se Adão agiu como cabeça de toda a raça, então todos os homens passaram por sua prova nele, e caíram com ele em sua primeira transgressão. Por isso, as Escrituras ensinam que entramos no mundo sob condenação. Somos por natureza, isto é, tal como nascemos, filhos da ira. Este fato é dado por sentado em todas as provisões do evangelho e em todas as instituições de nossa religião. Requer-se que os meninos sejam batizados para remissão dos pecados. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 178 Mas enquanto que se deve rejeitar a doutrina Pelagiana, que ensina que cada homem chega ao mundo livre de pecado e livre de condenação, e que passa por sua prova em sua própria pessoa, é entretanto certo que onde não há pecado não há condenação. Por isso, nosso Senhor disse ao jovem: «Faze isto, e viverás». E por isso o Apóstolo, no segundo capítulo de sua Epístola aos Romanos, diz que Deus recompensará a cada homem segundo as suas obras. Aos bons, dará vida eterna; aos maus, indignação e ira. Com isto só é dito que estes princípios eternos de justiça seguem em vigor. Se alguém pode apresentar-se diante do tribunal de Deus e demonstrar que está livre de pecado, quer imputado, quer pessoal; quer original, quer próprio, não será condenado. Mas o fato é que todo mundo jaz em maldade. O homem é uma raça apóstata. Os homens estão envolvidos nas consequências penais e naturais da transgressão de Adão. Tiveram sua prova nele, e ninguém se mantém por si mesmo. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II CAPÍTULO VII 179 A QUEDA O relato escriturístico. O relato escriturístico da Queda, como dado no livro de Gênesis, é que Deus pôs Adão «no jardim do Éden para o cultivar e o guardar. E o SENHOR Deus lhe deu esta ordem: De toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás. ... Mas a serpente, mais sagaz que todos os animais selváticos que o SENHOR Deus tinha feito, disse à mulher: É assim que Deus disse: Não comereis de toda árvore do jardim? Respondeu-lhe a mulher: Do fruto das árvores do jardim podemos comer, mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Dele não comereis, nem tocareis nele, para que não morrais. Então, a serpente disse à mulher: É certo que não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal. Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável aos olhos e árvore desejável para dar entendimento, tomou-lhe do fruto e comeu e deu também ao marido, e ele comeu.» [Gn 2:16; 3:1-6]. As consequências deste ato de desobediência foram: (1) Um sentimento imediato de culpa e vergonha. (2) O desejo e esforço de ocultar-se da presença de Deus. (3) A denúncia e imediata execução do justo juízo de Deus sobre a serpente, sobre o homem, e sobre a mulher. (4) A expulsão do jardim do Éden, e a proibição do acesso à Árvore da Vida. É evidente que este relato da prova e queda do homem não é nem uma alegoria nem um mito, mas uma história verdadeira: (1) Pela evidência interna. Quando se contrasta com relatos mitológicos da criação e origem do homem que se encontram nos registros de antigas nações pagãs, sejam orientais, gregas ou etruscas, a diferença é logo evidente. Estes últimos são evidentemente produto de uma crua Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 180 especulação; o registro da Escritura é simples, inteligível, e carregado das mais elevadas verdades. (2) Pelo fato de que não só se apresenta como uma questão histórica num livro que todos os cristãos reconhecem como de autoridade divina, mas também constitui uma parte integral do livro do Gênesis que é confessadamente histórico. Constitui a primeira das dez divisões nas quais está dividido aquele livro em sua estrutura interna, e pertence de forma essencial a seu plano. (3) Não só constitui uma parte essencial do livro de Gênesis, mas também uma parte essencial da história escriturística como um todo, que trata da origem, apostasia e desenvolvimento da raça humana, em conexão com o plano da redenção. (4) Portanto, encontramos que tanto no Antigo como no Novo Testamento dá-se por sentado os fatos aqui registrados, e mencionados como questão histórica. (5) E finalmente, estes fatos subjazem a todo o sistema doutrinal revelado nas Escrituras. Nosso Senhor e Seus Apóstolos se referem aos mesmos não só como verdadeiros, mas também como constituindo a base de todas as posteriores revelações e dispensações de Deus. Foi devido ao fato de que Satanás tentou o homem e o levou à desobediência que veio a ser o cabeça do reino das trevas, o poder do qual Cristo deveu destruir, e de cujo domínio resgatou o Seu povo. É porque nós morremos em Adão que devemos ser vivificados em Cristo. Assim que a Igreja universal se sentiu obrigada a receber o registro da tentação e queda de Adão como um verdadeiro relato histórico. Há muitos que, embora admitindo o caráter histórico deste relato, consideram-no contudo como figurado em grande medida. Entendem-no eles como uma declaração não tanto de acontecimentos externos como de um processo mental interno; explicando como foi que Eva chegou a comer do fruto proibido e como chegou a induzir a Adão a unir-se a ela em sua transgressão. Não admitem que o tentador fosse uma serpente, nem que falasse com Eva, mas supõem que se sentiu atraída pela beleza do objeto proibido, e que começou a questionar em sua própria mente o fato ou a justiça da proibição. Mas não apenas não há razão alguma para Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 181 afastar-se da interpretação literal da passagem, mas também esta interpretação está apoiada pela autoridade dos escritores do Novo Testamento. Eles reconhecem a serpente como ali presente, e como o agente na tentação e queda de nossos primeiros pais. A árvore da vida. Segundo a narração sagrada, havia duas árvores juntas no jardim do Éden, que tinham um peculiar caráter simbólico ou sacramental. Uma era chamada a Árvore da Vida, e a outra, a Árvore do Conhecimento. A primeira era o símbolo da vida, e seu fruto não podia ser comido exceto com a condição de que o homem retivesse sua integridade. Não podemos determinar se o fruto daquela árvore tinha a virtude inerente de comunicar vida, isto é, de sustentar o corpo do homem em seu vigor e beleza juvenis, ou refiná-lo gradualmente até que chegasse a ser o que é agora o corpo glorificado de Cristo, ou se a conexão entre comer seu fruto e a imortalidade era simplesmente convencional e sacramental. É suficiente saber que comer daquela árvore assegurava de algum modo o desfrutar da vida eterna. Que este é o caso está claro, não só porque depois de sua transgressão o homem foi expulso do paraíso, para «que não estenda a mão, e tome também da árvore da vida, e coma, e viva eternamente» (Gn 3:22), mas também porque Cristo é chamado a Árvore da vida. É chamado assim porque aquela árvore era tipo dEle e a analogia é que assim como Ele é a fonte de vida, espiritual e eterna, para o Seu povo assim aquela árvore foi disposta para ser a fonte de vida para os primeiros pais de nossa raça e para todos os seus descendentes, se eles não se tivessem rebelado contra Deus. Nosso Senhor promete (Ap 2:7) dar aos que vencerem o direito de comer da árvore da vida que está no meio do paraíso de Deus. Afirma-se (Ap 22:2) que no céu há uma árvore da vida, cujas folhas são para a cura das nações; e se acrescenta: «Bemaventurados os que lavam as suas vestiduras, para que tenham o direito de se chegarem à árvore da vida, e para que entrem pelas portas na cidade» [Ap 22:14, TB]. O sentido simbólico e tipológico da árvore da Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 182 vida fica assim esclarecido. Assim como o paraíso era tipo do céu, do mesmo modo a árvore que teria dado uma vida imortal ao Adão obediente naquele paraíso terrestre é o tipo Daquele que é a fonte de vida espiritual e eterna para o Seu povo no paraíso celestial. A árvore do conhecimento. A natureza e significado da árvore do conhecimento do bem e do mal não estão tão claros. Por árvore do conhecimento é certamente bem provável que devamos entender uma árvore cujo fruto comunicaria conhecimento. Isto se pode inferir: (1) Por analogia. Assim como a árvore da vida sustentava ou comunicava vida, assim a árvore do conhecimento tinha sido posto para comunicar conhecimento. (2) Com base na sugestão do tentador, que assegurou à mulher que comer do fruto da árvore abrir-lhe-ia os olhos. (3) Ela compreendeu a designação, porque considerava a árvore como desejável para alcançar a sabedoria. (4) O efeito de comer do fruto proibido foi que os olhos dos transgressores foram abertos. E (5) no versículo 22 lemos que Deus disse do homem caído: «Eis que o homem se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal». A não ser que isto se entenda ironicamente, o que neste contexto parece totalmente antinatural, deve significar que Adão tinha, por comer do fruto proibido alcançado um conhecimento, em alguns aspectos, análogo ao conhecimento de Deus, embora diferente em sua natureza e efeitos. Por isso, parece claro com base na narração inteira, que a árvore do conhecimento era uma árvore cujo fruto comunicava conhecimento. Pode ser, certamente, que não fosse por nenhuma virtude inerente à árvore em si, mas por ter sido constituído assim por Deus. Não é necessário supor que o fruto proibido tivesse o poder de corromper nem a natureza corpórea nem a moral do homem, produzindo assim o conhecimento experimental do bem e do mal. Tudo o que se demanda no texto é que o conhecimento seguisse ao comer do fruto. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 183 As palavras «bem e mal» neste contexto admitem três interpretações. Em primeiro lugar, na Escritura se expressa a ignorância da infância dizendo que o menino não pode distinguir sua mão direita da esquerda; às vezes, dizendo que não pode discernir entre o mal e o bem. Assim, em Dt 1:39 diz-se: «Vossos meninos ... que, hoje, nem sabem distinguir entre bem e mal», e em Is 7:16, «Antes que este menino saiba desprezar o mal e escolher o bem». Por outro lado, a maturidade, quer em conhecimento intelectual ou espiritual, é expressada dizendo que alguém tem poder para distinguir entre o bem e o mal. Assim, o crente perfeito ou amadurecido tem «os sentidos exercitados no discernimento do bem e do mal» (Hb 5:14). Concordando com a analogia destas passagens, a árvore do conhecimento do bem e do mal é simplesmente a árvore do conhecimento. A primeira expressão é plenamente equivalente à outra. Esta interpretação tira muitas dificuldades da passagem. É sustentada também pela linguagem de Eva, que disse que era uma árvore desejável para alcançar a sabedoria. Antes de pecar, Adão tinha a ignorância da felicidade e da inocência. Os ditosos não sabem o que é a dor, e os inocentes não sabem o que é o pecado. Quando comeu da árvore proibida, alcançou um conhecimento que jamais tinha tido antes. Mas, em segundo lugar, as palavras «bem e mal» podem ser tomadas num sentido moral. Se isto é assim, o significado não pode ser que o fruto dessa árvore ia levar a Adão ao conhecimento da distinção entre o bem e o mal, e assim despertar sua natureza moral latente. Esse conhecimento ele deve ter tido desde o princípio, e era algo bom não para ser proibido. Alguns supõem que pelo conhecimento do bem e do mal que se entende o conhecimento de que coisas são boas e quais são más. Trata-se de um ponto determinado para nós pela vontade revelada de Deus. Tudo o que Ele manda é bom, e tudo o que Ele proíbe é mau. A questão é determinada pela autoridade. Não podemos responder com base na natureza das coisas, nem por considerações de conveniência. Supõe-se que em lugar de submeter-se à autoridade ou lei de Deus como a norma de sua conduta, Adão aspirava conhecer por si mesmo o que era Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 184 bom e mau. O que buscava era a emancipação das ataduras da autoridade. Entretanto, a isto se pode objetar que não era este o conhecimento que alcançou ao comer do fruto proibido. Foi-lhe dito que os seus olhos seriam abertos, que conheceria o bem e o mal; e seus olhos foram abertos; alcançou o conhecimento desejado. Mas este conhecimento não era a capacidade de decidir por si mesmo entre o bem e o mal. Teve menos deste conhecimento depois que antes de sua queda. Em terceiro lugar, «bem e mal» podem ser tomados num sentido físico, denotando felicidade e miséria. Comer da árvore proibida ia determinar a questão da felicidade ou miséria de Adão. Conduziu a um conhecimento experimental da diferença. Deus conhecia a natureza e os efeitos do mal com base em Sua onisciência. Adão só podia conhecê-los por experiência, e este conhecimento o obteve quando pecou. Seja qual for a interpretação particular que se adote, estão todas elas incluídas na declaração geral de que a árvore do conhecimento deu a Adão um conhecimento que não tinha antes: chegou a um conhecimento experimental da diferença entre o bem e o mal. A serpente Pode deduzir-se da narração, que Adão esteve presente com Eva durante a tentação. Em Gênesis 3.6, diz-se que a mulher deu do fruto da árvore a seu marido que estava “com ela.” Portanto, foi uma parte de toda a transação. Quando se diz que uma serpente dirigiu-se a Eva, estamos obrigados a aceitar as palavras em seu sentido literal. A serpente não é uma designação figurativa para Satanás, nem Satanás adotou a forma de uma serpente. Uma serpente real foi o agente da tentação, como fica claro do que se diz das características naturais da serpente no primeiro versículo do capítulo, e pela maldição pronunciada sobre o mesmo animal, e pela inimizade que se declarou que subsistiria entre ela e o homem para sempre. Mas é evidente que Satanás foi o verdadeiro tentador, e que empregou a serpente meramente como seu órgão ou instrumento: (1) Pela natureza da transação. O que aqui é atribuído à Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 185 serpente transcende em muito o poder de qualquer criatura irracional. A serpente pode ser que seja o mais ardiloso dos animais do campo, mas não tem as altas capacidades intelectuais que o tentador exibe aqui. (2) No Novo Testamento se declara de maneira direta, e dá-se por sentado em várias formas, que Satanás conduziu a nossos primeiros pais ao pecado. Em Ap 12:9 diz-se: «E foi expulso o grande dragão, a antiga serpente, que se chama diabo e Satanás, o sedutor de todo o mundo». E em Ap 20:2 [RC]: «Ele prendeu o dragão, a antiga serpente, que é o diabo e Satanás». Em 2Co 11:3 Paulo diz: «Receio que, assim como a serpente enganou a Eva com a sua astúcia, assim também seja corrompida a vossa mente e se aparte da simplicidade e pureza devidas a Cristo». Mas o fato de que pela serpente entendia-se como sendo Satanás fica claro pelo v. 14, onde fala de Satanás como o grande enganador; e o que se diz em Rm 16:20, «E o Deus da paz, em breve, esmagará debaixo dos vossos pés a Satanás», é uma evidente alusão a Gn 3:15. Em Jo 8:44, nosso Senhor chama o diabo homicida desde o princípio, e pai de mentira, porque foi por ele que entraram no mundo o pecado e a morte. Tal era deste modo a fé da Igreja judaica. No Livro de Sabedoria 2:24 diz-se que «Por meio da inveja de Satanás entrou a morte no mundo». Nos escritos judeus posteriores esta ideia apresenta-se com frequência. 133 Quanto ao fato de que a serpente falasse, não há nisso mais dificuldade que na proclamação de palavras articuladas do Sinai, ou o ressoar de uma voz do céu no batismo de nosso Senhor, ou em que a asna de Balaão lhe dirigisse a palavra. As palavras pronunciadas foram produzidas por ação de Satanás, e de efeitos similares produzidos por seres angélicos, bons e maus, há numerosos casos na Bíblia. 133 Veja-se Eisenmenger, Endecktes Judenthum, edición de Königsberg, 1711; pág. 822. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 186 A natureza da tentação As primeiras palavras do tentador a Eva tinham a intenção de suscitar nela desconfiança quanto à bondade de Deus, e duvida quanto à veracidade da proibição. «De maneira que Deus lhes disse: Não comais de toda árvore do jardim?», ou , antes, como as palavras provavelmente significam: «Disse Deus: Não comam de nenhuma árvore do jardim?» As seguintes palavras foram um assalto direto sobre a fé dela: «Não morrereis», mas sim bem ao contrário, tornar-vos-eis como Deus em conhecimento. E a esta tentação ela cedeu, e Adão se uniu na transgressão. Com base neste relato parece que a dúvida, a incredulidade e a soberba foram os princípios que conduziram a este fatal ato de desobediência. Eva duvidou da bondade de Deus; não creu em Sua ameaça; aspirou a um conhecimento proibido. Os efeitos do primeiro pecado. Os efeitos do pecado sobre nossos mesmos primeiros pais foram: (1) Vergonha, um sentimento de degradação e de contaminação. (2) Temor do desagrado de Deus; ou, um sentimento de culpa, e o conseguinte desejo de fugir de Sua presença. Estes efeitos eram inevitáveis. Demonstram a perda não só da inocência, mas também da retidão original, e com ela do favor e da comunhão de Deus. Assim, o estado ao qual Adão viu-se reduzido por sua desobediência, pelo que respeita à sua condição subjetiva, foi análogo ao dos anjos caídos. Ficou inteira e totalmente arruinado. Diz-se que ninguém se torna totalmente depravado por uma só transgressão. Num sentido, é certo. Mas uma transgressão, ao incorrer na ira e maldição de Deus e na perda de comunhão com Ele, envolve a morte espiritual de uma maneira tão absoluta, como uma perfuração do coração causa a morte do corpo; ou como uma espetada nos olhos nos envolve em perpétuas trevas. As outras formas de mal conseguintes à desobediência de Adão foram meramente subordinadas. Foram tão somente a expressão do desagrado Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 187 divino e as consequências daquela morte espiritual em que consistia essencialmente a pena anunciada. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II CAPÍTULO VIII 188 O PECADO § 1. A natureza da questão a ser considerada. NOSSOS primeiros pais, é-nos dito, caíram do estado em que foram criados ao pecar contra Deus. Isto apresenta uma das questões mais difíceis e vastas seja em moral ou em teologia. O que é o pecado? A existência do pecado é um fato inegável. Ninguém pode examinar sua própria natureza, nem observar a conduta de seus semelhantes, sem verse levado por força à convicção de que existe o mal do pecado. Não é uma questão puramente moral ou teológica. Cai também dentro do âmbito da filosofia, que tenta explicar todos os fenômenos da natureza humana assim como do mundo externo. Por isso, os filósofos de todas as eras e de todas as escolas se viram obrigados a tentar esta questão. As teorias filosóficas a respeito da natureza do pecado são tão numerosas como as diferentes escolas de filosofia. Esta grande questão chega à consideração do teólogo cristão com certas limitações. Aceita ele a existência de um Deus pessoal de perfeição infinita, e aceita a responsabilidade do homem. Ele não pode aceitar como certa nenhuma teoria da natureza ou da origem do pecado que entre em conflito com nenhum destes princípios fundamentais. Antes de entrar em enunciar qualquer das teorias que foram adotadas com maior ou menor extensão, é importante determinar os dados com base nos quais se deve determinar a resposta à pergunta: O que é pecado? Ou as premissas das quais se deva deduzir a resposta. Estas são simplesmente as declarações da Palavra de Deus e os fatos de nossa própria natureza moral. Ignorando quer totalmente ou em parte estas duas fontes de conhecimento, muitos filósofos, e inclusive teólogos, recorrem à razão, ou antes, à especulação, para decidir esta questão. Mas este método é irrazoável, e com toda certeza levará a falsas conclusões. Ao determinar a natureza da sensação não podemos adotar o método a priori [apriorístico], e argumentar com Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 189 base na natureza da coisa como deveria afetar os nossos órgãos sensoriais. Temos que aceitar os fatos da consciência sensorial como o fenômeno a explicar. Não podemos dizer que a natureza da luz é tal que não pode ser causa do fenômeno da visão; nem dos ácidos que não podem afetar o órgão do gosto; nem que nossas sensações são enganosas quando nos levam a atribuir a eles tais causas. Tampouco podemos determinar filosoficamente os princípios da beleza, e decidir o que é a que os homens devem admirar, e diante do que devem sentir desagrado. Tudo a que a filosofia pode fazer é tomar os fatos de nossa natureza estética e deles deduzir as leis ou princípios da beleza. Da mesma maneira, os fatos de nossa consciência moral devem ser aceitos como verdadeiros e fidedignos. Não podemos arguir que a constituição do universo e que a relação do indivíduo com o todo é tal, que não pode existir o pecado, que não há nada pelo que deveríamos sentir remorso, ou por causa do que deveríamos receber castigo. Tampouco podemos adaptar qualquer teoria de obrigação moral que nos impeça reconhecer como pecado aquilo que a consciência nos leva a condenar. Qualquer pessoa que adotasse tal teoria do sublime e belo que demonstrasse que o Niágara e os Alpes não são sublimes objetos da natureza; ou que a Virgem do Sisti ou a Transfiguração de Rafael não são belas produções da arte; ou que a “Ilíada” e “Paraíso Perdido” não são dignos da admiração das idades, perderia todo o seu esforço. E assim, aquele que ignora as realidades de nossa natureza moral em suas teorias da origem e natureza do pecado, se esforçará em vão. Mas isto se faz constantemente. Descobrir-se-á que todos os pontos de vista antiteístas e anticristãos a respeito deste tema são especulações puramente arbitrárias, enfrentadas com os mais simples e inegáveis fatos da consciência. Com relação à natureza do pecado, tem-se que observar que há dois aspectos em que se pode contemplar a questão. O primeiro diz respeito à sua natureza metafísica, e o segundo à sua natureza moral. O que é que chamamos pecado? Trata-se de uma substância, de um princípio, ou de Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 190 um ato? É uma privação, uma negação, um defeito? É um antagonismo entre a mente e a matéria, entre a alma e o corpo? É o egoísmo como sentimento, ou como propósito? Todas estas são questões que tratam da natureza metafísica do pecado, pelo que é como ente na natureza. Pelo contrário, as perguntas que seguem tratam, antes, de sua natureza moral, isto é: O que é que dá ao pecado seu caráter como mal moral? Como se relaciona com a lei? Com que lei se relaciona o pecado? Qual é sua relação com a justiça de Deus? Qual é sua relação com sua santidade? Qual é a relação que tem ou pode ter o pecado com a lei; trata-se só de atos deliberados, ou também de ações impulsivas e de afetos, emoções e princípios, ou disposições? É evidente que estas são questões morais, não metafísicas. Em algumas das teorias a respeito da natureza do pecado, este é contemplado exclusivamente em um destes aspectos; em outras, exclusivamente no outro; em algumas outras se combinam ambas as perspectivas. § 2. Teorias filosóficas da natureza do pecado. A primeira teoria em ordem temporal, à parte da primordial doutrina da Bíblia, quanto à origem e a natureza do pecado, é a dualista, que supõe a existência de um princípio eterno do mal. Esta doutrina foi extensamente disseminada pelo Oriente, e em diferentes formas foi parcialmente introduzida na Igreja cristã. Segundo a doutrina dos Parsis, este princípio original era um ser pessoal. Segundo os Gnósticos, Marcionitas e Maniqueus, era uma substância, uma ὕλη - hyle ou matéria eterna. Agostinho diz: “Iste [Manes] duo principia inter se diversa atque adversa, eademque æterna et coæterna, hoc est semper fuisse, composuit: duasque naturas atque substantias, boni scilicet et mali, sequens alios antiquos hæreticos, opinatus est.” 134 Estes dois princípios [o do Bem e o do Mal] estão em conflito perpétuo. No mundo presente estão 134 Liber Hæresibus, XLVI.; Works, edit. Benedictines, vol. viii. p. 48, d. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 191 misturados. Ambos entram na constituição do homem. Tem um espírito [πνεῦμα - pneuma] derivado do reino da luz, e um corpo com sua vida animal [σῶμα - soma e ψυχή - psuche] derivado do reino das trevas. Assim, o pecado é um mal físico, a contaminação do espírito por sua união com um corpo material; e deve ser vencido por meios físicos, isto é, por meios adaptados para destruir a influência do corpo sobre a alma. Daí a eficácia da abstinência e da austeridade. 135 Esta teoria, evidentemente, é inconsistente com o Teísmo, ao fazer com que algo fora de Deus seja eterno e independente de Sua vontade. Ele deixa de ser um Ser infinito e um soberano absoluto. Vê-se em todas as partes limitado por um poder coeterno que não pode controlar. (2) Destrói a natureza do pecado como mal moral, ao fazer dele uma substância, e ao apresentá-lo como inseparável da natureza do homem como criatura composta de matéria e espírito. (3) Destrói, naturalmente, a responsabilidade humana, não só ao fazer necessário o mal moral com base na própria constituição do homem, e atribuindo sua origem a uma fonte eterna e necessariamente operante, mas também ao fazer dele uma substância, o que destrói sua natureza como pecado. Esta teoria é tão totalmente antiteísta e anticristã que embora tenha prevalecido muito tempo como heresia na Igreja, nunca entrou em conexão viva com a doutrina cristã. O pecado considerado como uma mera limitação do ser A segunda teoria anticristã da natureza do pecado é a que faz dele uma mera negação, ou limitação, do ser. O ser, a substância, é o bem. Agostinho diz: “Omne quod est, in quantum aliqua substantia est, et bonum [est].” 136 Deus, como a substância absoluta, é o bem supremo. O mal absoluto não seria nada. Por isso, quanto menos ser, menos bem; e 135 Baur's Manichean System. Neander's Church History, edit. Boston, 1849, vol. i. pp. 478-506. Müller's Lehre von der Sünde, Vol. I. pp. 504-518. 136 De Genesi ad Literam, XI. xiii. 17, Works, edit. Benedictines, vol. 3. p. 450, d. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 192 137 toda negação ou limitação do ser é má, ou pecado. Espinoza diz: “Quo magis unusquisque, suum utile quærere, hoc est suum esse conservare conatur et potest, eo magis virtute præditus est; contra quatenus unusquisque suum utile, hoc est suum esse conservare negligit, eatenus est impotens.” Em sua demonstração desta proposição, faz com que o poder e a bondade sejam a mesma coisa, potentia e virtus são o mesmo. Por isso, a carência de virtude, ou o mal, é a fraqueza ou limitação do ser. O Professor Baur, de Tubinga, apresenta de maneira ainda mais taxativa esta postura a respeito da natureza do pecado. 138 Ele diz: «O mal é o finito; porque o finito é negativo; a negação do infinito. Todo o finito é relativamente nada; uma negatividade que, na constante distinção mais e menos da realidade, aparece em formas diferentes». E segue: «Se a liberdade do pecado é a eliminação de toda limitação, então fica claro que só uma série infinita de gradações pode levar-nos a ponto em que o pecado é reduzido a um mínimo infinitesimal. Se este mínimo desaparecesse totalmente, então o ser, assim totalmente livre de pecado, faz-se um com Deus, porque só Deus é absolutamente isento de pecado. Mas se tiverem que existir outros seres além de Deus, deve haver neles, até o ponto de que não são infinitos como o é Deus, e por esta mesma razão, um mínimo de mal». Assim, a distinção entre bem e mal é meramente quantitativa, uma distinção entre mais ou menos. O ser é bom, a limitação do ser é má. Esta ideia de pecado está na natureza do sistema panteísta. Se Deus é a única substância, a única vida, o único agente, então Ele é a soma de tudo o que é, ou antes, tudo o que existe é a manifestação de Deus; a forma de sua existência. Consequentemente, se o mal existe é tanto uma forma da existência de Deus como o bem; e não pode ser outra coisa senão um desenvolvimento imperfeito, ou mera limitação do ser. 137 138 Ethices, Par. IV. propos. xx.; Works, edit. Jena, 1803, vol. ii. p. 217. In the Tübingen Zeitschrift, 1834, Drittes Heft. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 193 Esta teoria, evidentemente: (1) ignora a diferença entre o malum metaphysicum [mal metafísico] e o malum morale [mal moral], entre o físico e o moral; entre uma árvore raquítica e um homem ímpio. Em lugar de explicar o pecado, nega sua existência. Por isso, entra em conflito com a mais clara verdade intuitiva, e com a mais poderosa de nossas convicções instintivas. não há nada do que estejamos mais seguros, nem sequer de nossa própria existência, que da diferença entre o pecado e a limitação do ser, entre o que é moralmente mau e a mera limitação do poder. (2) Esta teoria dá por certo o sistema panteísta do universo, e por isso diverge de nossa natureza religiosa, que exige e supõe a existência de um Deus pessoal. (3) Ao destruir a ideia de pecado, destrói todo sentimento de obrigação moral, dando uma liberdade sem restrições a todas as más paixões. Não só ensina que tudo o que é, é bom; que tudo o que existe ou sucede tem direito a ser, mas que a única norma da virtude é o poder. Como diz Cousin, o vencedor está sempre certo; a vítima sempre está errada. O vencedor é sempre mais moral que o vencido. A virtude e a prosperidade, a desgraça e o vício, diz ele, estão em necessária harmonia. A fraqueza é um vício (isto é, pecado), e por isso é sempre castigada – e vencida. 139 Este princípio foi adotado por escritores como Carlyle, que em seu culto ao herói tornam sempre bons os fortes, e apresentam os assassinos, piratas e perseguidores como sempre mais morais e mais dignos de admiração que suas vítimas. Satanás é assim muito mais digno de homenagem que o melhor dos homens, porquanto nele há mais de ser e de poder, e ele é o sedutor dos anjos e o sedutor dos homens. Jamais a mente humana concebeu um sistema mais totalmente demoníaco que este. Entretanto, este sistema não só tem proponentes filosóficos, mas também impregna muita da literatura popular tanto da Europa como da América. 139 History of Modem Philosophy, tradução de Wight, New York, 1852, Vol. I, pp. 182-187. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 194 A teoria de Leibnitz sobre a privação. Quase nos mesmos termos, mas com um espírito e propósito muito diferentes da doutrina de Espinoza e de seus sucessores, está a teoria do Leibnitz, que também resolve o pecado em privação, e o atribui à necessária limitação do ser. Entretanto, Leibnitz era teísta, e seu objetivo em sua «Théodicée» era vindicar a Deus, demonstrando que a existência do pecado é consistente com Suas perfeições divinas. Sua obra é religiosa em seu espírito e propósito, por errônea e perigosa que seja em alguns de seus princípios. Ele deu por sentado que este é o melhor dos mundos possíveis. Como o pecado existe no mundo, tem que ser ou necessário, ou inevitável. Não deve ser atribuído à ação de Deus. Mas como para a filosofia de Leibnitz Deus é o agente universal, o pecado deve ser uma simples negação ou privação para a qual não se precisa de uma causa eficiente. Estes são os dois pontos a estabelecer. Primeiro, que o pecado é inevitável; e segundo, que não se deve à ação de Deus. É inevitável, porque surge da necessária limitação da criatura. A criatura não pode ser absolutamente perfeita. Seu conhecimento e poder devem ser limitados. Mas se limitados, não só devem ser suscetíveis de errar, mas também o errar ou as ações errôneas são inevitáveis, ou teríamos uma ação absolutamente perfeita de um agente menos que absolutamente perfeito; o efeito transcenderia à capacidade da causa, Por isso, segundo Leibnitz, o mal surge «par la suprême necessité des vérilés éternelles [pela suprema necessidade das coisas eternas]». 140 “Le franc-arbitre va au bien, et s’il rencontre le mal, c’est par accident, c’est que le mal est caché sous le bien et comme masqué.” A origem do mal é assim referido à vontade, mas a vontade é inevitável, ou por necessidade induzido ao erro, pelas limitações inseparáveis da natureza de uma criatura. Se, portanto, Deus criou um mundo absolutamente, Ele deve criar um do qual o pecado não pode excluir-se. Sendo este a origem e a natureza do pecado, segue-se que Deus não é seu autor. A providência, segundo 140 Théodicée, I.25. Works, edición de Berlín, 1840, pág. 511. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 195 Leibnitz, é uma criação contínua (pelo menos este é o ponto de vista que se apresenta em algumas partes de sua “Théodicée” 141 ), portanto tudo o que é positivo e real deve ser devido à sua agência. Mas ainda sendo somente negação, ou privação, não é nada positivo, e portanto não necessitamos uma causa eficiente, mas simplesmente uma causa deficiente para justificar sua existência. A similaridade no modo de enunciar esta doutrina e a doutrina agostiniana que faz de todo pecado um defeito, e que reconcilia sua existência com a santidade de Deus com base no mesmo princípio que adota Leibnitz, é evidente para todos. Entretanto, trata-se meramente de uma similaridade no modo de expressão. As duas doutrinas são essencialmente diferentes, como veremos quando passarmos a considerar a teoria de Agostinho. Para Agostinho, o defeito é a ausência de um bem moral que a criatura deveria possuir; para Leibnitz, a negação é a necessária limitação dos poderes da criatura. As objeções a esta teoria que faz do pecado uma mera privação, atribuindo-o à natureza das criaturas como seres finitos, são substancialmente as mesmas que se apresentaram contra as teorias anteriormente mencionadas. (1) Em primeiro lugar, faz do pecado um mal necessário. As criaturas são necessariamente imperfeitas ou finitas, e se o pecado é a inevitável consequência de tal imperfeição, ou limitação do ser, o pecado deve ser também um mal necessário. (2) Faz de Deus, no fim das contas, o autor do pecado quanto a que atribui a Ele a responsabilidade por sua existência. Porque inclusive admitindo que seja uma mera negação, não demandando nenhuma causa eficiente, entretanto Deus é o autor da limitação na criatura, da qual surge necessariamente o pecado. Ele constituiu que tal maneira as obras de Suas mãos, que não pode mais que pecar, assim como o menino não pode mais que errar em seu juízo. A razão é tão fraca inclusive no homem adulto que são totalmente inevitáveis os erros quanto à natureza 141 Théodicée, I. 27, and III. 381. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 196 e causas das coisas. E se o pecado é igualmente inevitável com base na própria constituição da criatura, Deus, que é o autor desta constituição, deve ser responsável por sua existência. Isto não é só uma detração do caráter de Deus, mas também está diretamente oposto aos ensinos de Sua palavra. A Bíblia nunca atribui a origem do pecado, quer nos anjos ou nos homens, às necessárias limitações de seu ser como criaturas, mas sim ao uso indesculpável e pervertido de sua própria liberdade de ação. Os anjos caídos não guardaram seu primeiro estado; e o homem, deixado à liberdade de sua própria vontade, caiu do estado em que tinha sido criado. (3) Esta teoria tende a apagar as distinções entre o mal moral e físico. Se o pecado é uma mera privação, ou se é a necessária consequência da fraqueza da criatura, é objeto de comiseração mais que de aborrecimento. Nos escritos dos proponentes desta teoria são constantemente intercambiados e confundidos os dois sentidos das palavras bem e mal, o moral e o físico. A distinção, entretanto, entre a virtude e o vício, a santidade e o pecado, como se revela em nossa consciência e na palavra de Deus, é absoluta e total. Ambas são ideias simples. Sabemos o que é a dor da experiência; sabemos o que é o pecado da mesma fonte. Sabemos que ambas as coisas são tão diferentes como o dia e a noite, como a luz e o som. Portanto, toda teoria que tenda a confundir entre ambas as coisas deve ser falsa. Em consequência, as Escrituras, enquanto que apresentam o mero sofrimento como objeto de comiseração, apresentam o pecado como objeto de aborrecimento e condenação. A ira e a maldição de Deus são denunciados contra todo pecado como justa consequência. (4) Por isso, a mencionada doutrina tende não só a diminuir nosso sentimento do mal ou da contaminação do pecado, mas também a destruir todo sentimento de culpa. Nossos pecados são nossas misérias, nossas fraquezas. Não são o que a consciência pronuncia que são, crimes que clamam por seu justo castigo. Entretanto, o pecado se revela à nossa consciência não como uma fraqueza, mas sim como um poder. É maior nos mais fortes. Não são os fracos mentais os que são os piores entre os Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 197 homens, mas sim que os grandes em intelecto foram, em muitos casos, os maiores em iniquidade. Satanás, o pior dos seres criados, é a mais poderosa das criaturas. (5) Se esta teoria for correta, o pecado deve ser eterno. Porquanto nunca podemos libertar-nos das limitações de nosso ser, nunca podemos ficar livres do pecado ao qual estas limitações inevitavelmente dão origem. A alma, portanto, como se tem dito, é a assíntota de Deus, sempre se aproxima mas nunca chegar ao estado de impecabilidade absoluta. O pecado é antagonismo necessário. Outra teoria evidentemente inconsistente com os fatos da consciência e os ensinos da Bíblia, é a que explica o pecado com base na lei da necessária oposição, ou antagonismo. Toda a vida, diz-se, implica ação e reação. Inclusive no universo material prevalece a mesma lei. Os corpos celestiais são guardados em suas órbitas pelo equilíbrio de forças centrífugas e centrípetas. Há polaridade na luz, no magnetismo e na eletricidade. Todas as mudanças químicas produzem-se pela atração e repulsão. Assim no mundo animal não há forças sem obstáculos a vencer; não há repouso sem fatiga; não há vida sem morte. Da mesma maneira, a mente se desenvolve por meio de esforços continuados, por constante conflito entre o que está dentro e fora. Enfatiza-se que a mesma lei deve prevalecer no mundo moral. Não pode haver bem sem mal. O bem é a resistência ou a vitória sobre o mal. O que seria o universo material, não havia uma matéria, e sim uma propriedade; e se tudo fosse oxigênio ou tudo carbono, como seria a vida sem a ação e a reação; o que seria a mente, sem a luta com o erro e a busca da verdade; tal, diz-se, o mundo moral seria sem pecado; uma piscina estancada e sem vida. Pelo que às criaturas concerne, mantém-se que é uma lei de sua constituição que se desenvolvem pelo antagonismo, pela ação de forças contrárias ou de princípios opostos; de maneira que um mundo moral sem pecado é uma impossibilidade. O pecado é a condição necessária para a existência da virtude. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 198 Esta teoria geral é de origem primitiva e ampla difusão. Em sua forma mais recente, apresentada por Blasche e Rosenkranz, o próprio universo, como produto do autodesenvolvimento do Ser infinito absoluto, implicando uma separação ou a diferença do puro e simples em que não se fazia nenhuma distinção, é mau. Vem à existência por uma queda ou apostasia. Assim, como o Professor Müller em sua obra sobre “O pecado,” diz, em vez de panteísmo, temos um sistema que se aproxima quase ao Pan-satanismo. Entretanto, à parte deste extremo terrível da doutrina, em qualquer forma destrói a própria natureza do pecado. O que é assim chamado é a lei universal de toda a existência finita. Não pode haver ação sem reação. Não pode haver vida sem a diversidade e o antagonismo das operações. E se o bem não pode existir sem o mal, o mal deixa de ser algo que tem que ser aborrecido e condenado. Os homens deixam de ser responsáveis por algo que é inseparável de sua própria natureza como criaturas, e por isso não há nada que a consciência possa condenar ou que Deus possa castigar. Com base nesta teoria, toda a nossa natureza é um engano, e todas as denúncias da Escritura contra o pecado são os desvarios do fanatismo. A teoria de Schleiermacher sobre o pecado. A doutrina de Schleiermacher a respeito do pecado está tão relacionada com todo o seu sistema filosófico e teológico que não pode ser compreendida sem algum conhecimento do mesmo. Sua filosofia é panteísta. Sua teologia simplesmente a interpretação da consciência humana conforme os princípios fundamentais de sua filosofia. É chamada teologia cristã porque é a interpretação da consciência religiosa dos cristãos, isto é, daqueles que conhecem e creem nos fatos registrados a respeito de Cristo. Os princípios condutores de seu sistema são como seguem: 1. Deus é a absoluta Infinitude (die einfache and absolute Unendlichkeit, a infinidade simples e absoluta), não uma pessoa, mas sim o simples ser com o simples atributo da onipotência. Outros Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 199 atributos que atribuímos ao Ser Infinito não expressam o que está nEle (ou antes, em Isso), mas sim os efeito produzidos em nós. A sabedoria, bondade, santidade em Deus, significam simplesmente a causalidade nEle que produz estes atributos em nós. 2. O poder absoluto significa todo o poder. Deus, ou o ser absolutamente poderoso, é a única causa. Tudo o que é e tudo o que acontece deve-se à Sua eficiência. 3. Este poder infinito produz o mundo. Seja qual for a relação entre ambos, quer se se trata da substância da que o mundo é o fenômeno, quer se o mundo é a substância da qual Deus é a vida, o mundo, em certo sentido, é. Há um finito assim como um infinito. 4. O homem, como parte integral do mundo, consiste em dois elementos ou tem uma relação tanto com o finito e o infinito, Deus e a natureza. Há no homem consciência de si mesmo, ou uma consciência que é afetada pelo mundo. Ele está no mundo, e é do mundo e é afetado pelo mundo. Por outro lado, tem o que Schleiermacher chama Gottesbewusstseyn, o consciência de Deus. Não se tenta uma mera consciência de Deus, mas sim é Deus em nós em forma de consciência. 5. O estado normal ou ideal do homem consiste no controle absoluto ininterrupto da consciência de Deus, ou de Deus em nós. Estes dois princípios são às vezes distinguidos como carne e espírito. Mas por carne não significa o corpo; nem tampouco, como Paulo frequentemente o utiliza, para denotar nossa natureza caída e corrompida; mas sim nossa natureza toda quanto à sua relação com o mundo. É equivalente, na terminologia de Schleiermacher, à consciência do eu. E por espírito não denota a razão, nem o que a Bíblia significa pelo espírito no homem, isto é, o Espírito Santo, mas sim a consciência de Deus (Gottesbewusstesyn), ou Deus em nós, 6. A religião consiste do sentimento da dependência absoluta. Isto é, no reconhecimento de que Deus, ou o Ser Absoluto, é a única causa, e de que nós somos meramente a forma em que sua causalidade é revelada ou exercitada. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 200 7. O estado original do homem não foi um estado normal ou ideal. Isto é, a consciência de Deus ou o princípio divino não era suficientemente forte para controlar absolutamente a consciência do eu. Este era um estado a alcançar mediante o progresso ou desenvolvimento. 8. O sentimento que surge da ausência deste controle absoluto do princípio superior é o sentimento de pecado; e a convicção de que o princípio superior deveria reger é o sentimento de culpa. Com este sentimento de pecado e de culpa surge o sentimento da necessidade da redenção. 9. Esta redenção consiste em dar controle completo à consciência de Deus; e é efetuada por meio de Cristo, que é o homem normal ou ideal. Isto é, Ele é o homem em quem a consciência de Deus, a natureza divina, Deus (estes são, em seu sistema, termos intercambiáveis), foi totalmente dominante desde o princípio. Nós nos tornamos semelhantes a Ele, isto é, somos redimidos, em parte pelo reconhecimento de Seu verdadeiro caráter como isento de pecado, e em parte pela comunhão com Ele por meio de Sua Igreja. Fica claro que este sistema exclui a possibilidade do pecado no verdadeiro sentido escriturístico do termo: 1. Porque exclui a ideia de um Deus pessoal. Se o pecado é a ausência de conformidade com a lei, tem que existir um legislador, alguém que prescreva a regra do direito a Suas criaturas. Mas neste sistema não há um governante consciente de si mesmo, pessoal, que seja o governador moral dos homens. 2. Porquanto este sistema nega toda eficiência, e naturalmente toda liberdade à criatura. Se o Ser Infinito é o único agente, então tudo o que é, deve-se à Sua eficiência direta; e portanto o pecado é ou Sua obra, ou uma mera negação. 3. Porquanto, segundo esta teoria, o que se chama pecado é absolutamente universal e absolutamente necessário. É a consequência inevitável ou condição da existência de um ser como o homem. Isto é, de um ser com uma consciência de si mesmo e uma consciência de Deus em Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 201 tais proporções e relação que só se pode chegar à dominância do último de maneira gradual. 4. Porquanto o que se chama pecado e culpa são tais só em nossa consciência, ou em nossa apreensão subjetiva dos mesmos. Certas coisas produzem em nós a sensação de dor, outras a sensação de prazer; algumas o sentimento de aprovação; outras, de desaprovação; e isso, por assim dizer, pela ordenança de Deus. Mas a dor e o prazer, o bem e o mal, são meros estados subjetivos. Não têm uma realidade objetiva. Somos pecaminosos e culpados só com relação aos nossos próprios sentimentos, não diante de Deus, ou com referência ao critério do juízo de Deus. 142 Deve ficar bem claro, para todos aqueles que não se entregaram ao controle dos princípios panteístas em que se baseia todo este sistema, quão inteiramente esta posição a respeito da questão que nos ocupa destrói toda verdadeira concepção do que é o pecado; quão inconsequente é com toda responsabilidade; como entra em conflito com o testemunho de nossa própria consciência e com os ensinamentos da Escritura. A teoria sensorial. Uma sexta teoria situa a fonte e a sede do pecado na natureza sensorial do homem. Estamos compostos de corpo e espírito. Seja qual for a relação entre ambos, não se podem deixar de reconhecer como sendo em certo sentido elementos distintos de nossa natureza. Todos os intentos de identificar não só conduzem à contradição das verdades autoevidentes, mas também à degradação do espiritual. Se a mente é o produto do corpo, ou a mais alta função da matéria, ou se o corpo é o produto da mente, ou a forma exterior em que a mente existe, em qualquer caso, a mente se materializa. «É o ensino inegável da história», 142 Schleiermacher's Glaubenslehre. Dr. Gess's Uebersicht über das theologische System Schleiermachers. Müller’s Lehre Von der Sünde, vol. i. pp. 412-437. Bretschneider's Dogmatik, pp. 14-38 of Appendix to Vol. I. Morell's Philosophy of Religion. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 202 143 diz Müller, «que a eliminação da distinção entre espírito e natureza sempre acaba na naturalização do espírito, e nunca na espiritualização da natureza» É um fato de consciência e de comum acordo que o homem consta de alma e corpo. Não é menos certo que pelo corpo que está conectado com o mundo exterior ou da natureza, e pela alma com o mundo espiritual e Deus; que tem necessidades, desejos, apetites e afetos, que encontra seus objetos no mundo material, e que tem outros instintos, afetos, e poderes que encontram seus objetos no mundo espiritual. É evidente que estes últimos são mais altos e devem ser uniformes e sempre dominantes; é um fato de experiência que o contrário é o caso; que o inferior prevalece sobre o superior; que os homens são governados universalmente, em maior ou menor grau, e sempre num grau pecaminoso, por sua natureza sensorial. Preferem o visível e temporal ao invisível e eterno. Buscam a gratificação que se deve encontrar nos objetos materiais antes que a bênção que se acha nas coisas do Espírito. Nisto, segundo esta teoria, consiste a fonte e a essência do pecado. Esta doutrina, que prevaleceu em todas as eras da Igreja, existiu em diversas formas: (1) Na do sistema maniqueu, que ensina o mal essencial da matéria. (2) No do Romanismo posterior, que ensina que o homem, tal como foi criado originalmente, estava constituído de maneira que a alma estava sujeita ao corpo, e que seus poderes mais altos estavam subordinados à sua natureza inferior e sensorial. No caso de Adão, este mal original em sua constituição estava, segundo os Romanistas, corrigido pelo dom sobrenatural da retidão original. Quando aquela retidão foi perdida pela queda, fez-se dominante o elemento sensorial na natureza do homem. Nisto consiste sua pecaminosidade habitual, e esta é a fonte de todas as transgressões que têm lugar. (3) A forma mais comum desta teoria é essencialmente a mesma que a doutrina romana, 143 Vol. I. p 363. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 203 exceto que não atribui o predomínio do corpo sobre a alma à perda da retidão original. O fato de que os homens estão governados pelos elementos inferiores e não pelos mais elevados de sua natureza, como questão da experiência, são explicados de diferentes maneiras. (1) Alguns dizem que se deve à relativa fraqueza dos poderes mais elevados. Isto se reduz à doutrina de Leibnitz de que o pecado deve-se às limitações de nossa natureza, ou à fraqueza e propensão a errar inerentes à nossa constituição como criaturas. (2) Outros apelam à liberdade da vontade. O homem, como agente livre, tem o poder quer de resistir, quer de submeter-se às seduções da carne. Se for submetido, é sua própria falta e pecado. Não há necessidade nem coerção nisso. Mas se esta submissão é universal e uniforme, deve ter uma causa universal e adequada. Esta causa não se encontra na mera liberdade do homem, ou em sua capacidade de submeter-se. Deve ser que a causa é uniforme e permanente, e que tal causa só pode achar-se na própria constituição do homem, ao menos em seu estado atual, que faz com que o elemento sensual no homem seja mais poderoso que o espiritual. (3) Outros, por sua vez, enquanto que não negam a capacidade plenária do homem para resistir às seduções dos sentidos, dão conta da ascendência universal dos poderes inferiores mediante uma referência à ordem de desenvolvimento de nossa natureza. Estamos constituídos de tal maneira, ou viemos ao mundo em tal estado, que a parte inferior ou sensorial de nossa natureza alcança invariável e necessariamente a força antes que se desenvolvam os poderes mais elevados. As propensões animais da criança são poderosas, enquanto que a razão e a consciência são fracas. É por isso que o inferior alcança tal domínio sobre o superior que é depois sempre mantido. Mas é evidente que esta teoria, em nenhuma de suas formas, não chega a expor a verdadeira natureza do pecado, nem a explicar de maneira satisfatória sua origem. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 204 1. O pecado não é essencialmente o estado ou ato de uma natureza sensorial. As criaturas apresentadas na Escritura como mais pecaminosas são os espíritos caídos, que não têm corpos nem apetites sensuais. 2. Em segundo lugar, os pecados mais ofensivos no homem, e que mais lhe degradam, e que mais carregam a sua consciência, nada têm que ver com o corpo. A soberba, a malícia, a inveja, a ambição, e, acima de tudo, a incredulidade e a inimizade com Deus, são pecados espirituais. Podem existir não só em seres que não têm constituição material, mas também na alma separada do corpo, e quando fica extinta sua natureza sensorial. 3. Esta teoria tende a diminuir nossa consciência de pecado e de culpa. Faz de todo mal moral uma mera fraqueza, o consentimento dos poderes mais fracos do espírito às mais intensas forças da carne. Se pecado invariavelmente, e por uma lei que controla os homens em seu estado atual da existência, surge da própria constituição de sua natureza como seres sensíveis, então a responsabilidade pelo pecado deve ser grandemente diminuída, se não totalmente destruída. 4. Se o corpo é a sede e a fonte do pecado, então tudo aquilo que tenda a debilitar o corpo ou a reduzir a força de seus desejos tenderá a fazer os homens mais puros e virtuosos. Se é assim, o monasticismo e ascetismo têm um fundamento na verdade. São sabiamente adaptados à elevação da alma acima da influência da carne e do mundo, e de todas as formas do mal. Mas toda a experiência demonstra o contrário. Inclusive os que se apartam assim do mundo e maltratam os seus corpos, fazem-no com sinceridade, aderindo-se com fidelidade a seus princípios, toda a tendência de sua disciplina é má. Alimenta a soberba, a pretensão de justiça própria, o formalismo e a falsa religião. Os fariseus, na opinião de Cristo, com suas vidas tão estritas e constantes jejuns, estavam mais afastados do reino dos céus que os publicanos e as meretrizes. 5. Com base na hipótese envolvida nesta teoria, os velhos deveriam ser bons. Neles se extinguem as concupiscências da carne. Perdem sua capacidade de desfrutar o que agrada aos olhos ou ministra aos gostos Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 205 dos jovens. O mundo, para eles, perdeu seus atrativos. O corpo se transforma numa carga. É o estado ao qual o jovem asceta quer reduzir sua constituição corporal mediante a abstinência e a austeridade; entretanto, quanto mais velho o homem, a não ser que seja renovado pela graça de Deus, tanto pior o pecador. A alma está mais morta, mais insensível a tudo o que é elevado e espiritual, e mais totalmente afastada de Deus; menos agradecida por Suas misericórdias, menos temerosa de Sua ira, e menos afetada por todas as manifestações de Sua glória e de Seu amor. Assim, não é o corpo que é a causa do pecado. 6. Esta teoria está oposta à doutrina da Bíblia. As Escrituras se referem certamente a uma ampla gama de pecados da natureza sensual do homem; e mencionam a carne (ou σάρξ - sarx) como a sede do pecado e a fonte de todas as suas manifestações em nosso estado presente. Além disso, empregam a palavra σαρκικός - sarkinós, carnal, como sinônimo de corrompido e pecaminoso. Tudo depende do sentido em que os escritores sagrados empreguem as palavras σάρξ - sarx y σαρκικός - sarkinós como antitéticas a πνεῦμα - pneuma e πνευματικός pneumatikos. Segundo uma interpretação, σάρξ - sarx significa o corpo com sua vida animal, seus instintos e apetites. Ou como Bretschneider o define: 144 “Natura visibilis seu animalis tanquam appetituum naturalium fons et sedes, et quidem in malam partem, quatenus hæc natura animalis, legi divinæ non adstricta, appetit contra legem, igiturque cupiditatum et peccatorum est mater.” Se este for o sentido de σάρξ - sarx, então σαρκικός – sarkinós significa animal, e ψυχικός - psuchikos sensorial. Por outro lado, com base nesta postura, πνεῦμα - pneuma significa razão, e πνευματικός - pneumatikos o razoável, isto é, o que é governado pela razão. Segundo esta postura, os σαρκικοί - sarkikoi são as que estão controlados por seus sentidos e pela natureza animal; e os πνευματικός pneumatikos os governados por sua razão e poderes superiores. Segundo a outra interpretação destes termos, σάρξ - sarx significa a natureza caída 144 Lexicon in Novum Testamentum, sub voce. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 206 do homem, sua natureza tal qual é agora; y πνεῦμα - pneuma o Espírito Santo. Logo os σαρκικοί - sarkikoi são os homens naturais, irregenerados, isto é, os destituídos da graça de Deus, e os πνευματικός pneumatikos são aqueles em quem mora o Espírito Santo. Naturalmente, admite-se que a palavra σάρξ - sarx emprega-se com frequência na Escritura, e especialmente nos escritos de Paulo, para denotar o corpo; logo para o que é externo e ritual; logo para o perecível. A humanidade, quando é designada como carne, é apresentada como terrestre, fraca e fugaz. Além destes significados comuns e admitidos da palavra, emprega-se também num sentido moral. Designa o homem, ou humanidade, ou natureza humana como apóstata de Deus. Portanto, as obras da carne não são meramente obras sensuais, mas obras pecaminosas, tudo no homem que é mau. Tudo o que é uma manifestação de sua natureza como caída fica incluída sob as obras da carne. Por isso se atribuem a esta classe a inveja, a malícia, a soberba e as contenções; assim como as orgias e as bebedeiras, Gl 5:19-21. Andar segundo a carne, pensar conforme a carne, estar na carne, etc., etc. (vejase Rm 8:1-13) são modos escriturísticos para expressar o estado, a conduta e a vida dos homens do mundo de todas as classes. O significado de carne, entretanto, tal como se emprega nos escritos de Paulo, fica bem claramente determinado por sua antítese com Espírito. Que o πνεῦμα - pneuma de quem ele fala é o Espírito Santo fica abundantemente demonstrado. Chama-o o Espírito de Cristo, o Espírito de Deus, o Espírito que vivificará vossos corpos mortais; que testifica com nossos espíritos que somos filhos de Deus; cuja morada nos crentes faz deles o templo de Deus. Os πνευματικοί - pneumatikoi, ou espirituais, são aqueles em quem mora o espírito Santo como o princípio controlador de suas vidas. Assim, as Escrituras estão diretamente opostas à teoria que faz do corpo ou natureza sensual do homem a fonte de pecado, e que sua essência consiste em ceder a nossos apetites e afetos mundanos, em lugar de obedecer à razão e à consciência. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 207 A teoria de que todo pecado consiste em egoísmo. Há outra doutrina a respeito da natureza do pecado que pertence às teorias filosóficas, e não às teológicas, sobre esta questão. Faz com que todo pecado consista em egoísmo. O egoísmo não deve ser confundido com o amor próprio. Este último é um princípio natural e original de nossa natureza e da natureza de todas as criaturas sensíveis, tanto racionais como irracionais. Pertence à constituição original das mesmas, e é necessário para sua preservação e bem-estar, e não pode ser pecaminoso. Assim, o egoísmo não é o mero amor ao eu, mas sim a indevida preferência de nossa própria felicidade à felicidade ou bemestar dos outros. Segundo alguns, esta preferência é da natureza de um desejo ou sentimento. Segundo outros, é da natureza de um propósito. Nesta última postura, todo pecado consiste no propósito de buscar nossa própria felicidade em lugar do bem geral ou felicidade, como se expressa usualmente, do universo. Em todo caso, o pecado é a indevida preferência de nós mesmos. Esta teoria se baseia nos seguintes princípios, ou é um elemento essencial no seguinte sistema doutrinal: (1) A felicidade é o maior bem. Tudo o que tenha a tendência a promover a maior quantidade de felicidade é por isso mesmo bom, e tudo o que tenha a tendência oposta é mau. (2) Como a felicidade é o único e último bem, a benevolência, ou a disposição ou propósito de impulsionar a felicidade, deve ser a essência e soma da virtude. (3) Como Deus é infinito, Ele deve ser imensamente benevolente, e por isso deve ser Seu desejo e propósito produzir a maior possível quantidade de felicidade. (4) O universo, ao ser a obra de Deus, tem que estar desenhado e adaptado para chegar a este fim, e é por isso o melhor de todos os possíveis mundos ou sistemas de coisas. (5) Como o pecado existe em nosso mundo atual, deve ser o meio necessário para o maior bem e por isso, como dizem alguns, é consequente com a santidade de Deus permitir e ordenar sua existência; ou, como outros dizem, que o crie. (6) Não há mais pecado no mundo que o necessário para assegurar a maior felicidade para o universo. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 208 A primeira e mais evidente objeção a toda esta teoria já foi apresentada, e é que destrói o próprio conceito de bem moral. Confunde o correto com o que convém. Por isso, contradiz a consciência e o juízo intuitivo da mente. É intuitivamente certo que o correto é correto em sua própria natureza, independentemente de sua tendência a impulsionar a felicidade. Fazer da santidade só um meio para um fim; exaltar a alegria sobre a excelência moral, é não só uma perversão e degradação do alto ao baixo, mas também a total destruição do princípio. Esta é uma questão que, falando propriamente, não admite prova. Só pode ser afirmada. Se alguém negasse que o doce e o amargo diferem, seria impossível demonstrar que há diferença entre ambas as coisas. Só podemos apelar à nossa própria consciência e afirmar que percebemos a diferença. E podemos apelar ao testemunho de todos os outros homens, que também afirmam o mesmo. Mas afinal de contas, trata-se só da declaração de um fato primeiro da parte de um indivíduo, e logo da massa da humanidade. De maneira semelhante, se alguém disser, que não há diferença entre o bem e o conveniente, que uma é boa simplesmente porque é conveniente; ou, se dissesse que não há diferença entre santidade e pecado, só podemos remeter-nos à nossa própria consciência e à consciência comum dos homens, como contradizendo esta declaração. Assim, sabemos pela própria constituição de nossa natureza que o correto e o conveniente não são ideias idênticas; que a diferença é essencial e imutável. E sabemos da mesma fonte, e com a mesma segurança ou certeza, que a felicidade não é o sumo bem, mas o contrário, que a santidade é tanto maior que a felicidade como o céu é mais alto que a terra, ou Cristo que Epicuro. (2) Esta teoria está tão oposta à nossa natureza religiosa como à moral. Dependemos de Deus; devemos a Ele nossa lealdade; devemos fazer Sua vontade sejam quais forem as consequências; e somos exaltados e purificados na mesma proporção em que nos perdemos nEle, adorando Suas divinas perfeições, buscando promover Sua glória, e reconhecendo que de fato e por direito todas as coisas são por Ele, por Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 209 meio dEle e para Ele. Não obstante, segundo esta teoria devemos nossa adesão ao universo de seres sensíveis. Estamos obrigados a impulsionar a felicidade dos mesmos. Esta seria nossa mais elevada e única obrigação. Por isso mesmo não pode haver religião no verdadeiro sentido da palavra. A religião é a homenagem e a adesão da alma a um Ser pessoal imensamente perfeito, a quem devemos nossa existência, que é a fonte de todo bem, e por quem todas as coisas consistem. Substituir o universo por este Ser, e resolver todas as suas obrigações na obrigação de promover a felicidade do universo, é tornar realmente toda a religião impossível. O universo não é nosso Deus. Não é ao universo que amamos, não é ao universo que adoramos, não é ao universo que tememos. Não é a graça do universo que é nossa vida, nem sua desaprovação nossa morte. (3) Porquanto esta teoria está assim oposta à nossa natureza moral e religiosa, é má em seus efeitos práticos. É um refrão, uma máxima baseada na natureza das coisas e na experiência universal, que o mundo é governado pelas ideias. É duvidoso que a história proporciona algum exemplo mais chamativo da verdade desta máxima que a proporcionada pela operação da teoria de que toda virtude se baseia na conveniência de que a santidade é a que tende a produzir felicidade. Quando um indivíduo adota este princípio, toda sua vida interior e exterior fica determinada por ele. Cada questão que se apresenta para sua decisão recebe resposta não com a referência à lei de Deus, nem em conformidade com os instintos de sua natureza moral, mas pelo cálculo da conveniência. E quando uma pessoa fica sob o controle desta teoria, invariavelmente e de maneira necessária torna-se calculador. Se a felicidade for o maior bem, e se tudo o que nos pareça adaptado para impulsionar a felicidade é correto, então perde-se de vista a Deus e Sua lei moral. Nossa própria felicidade é apta para converter-se no principal bem para nós, como o é para o universo. (4) Quase não será necessário lembrar que somos incompetentes para decidir qual será o curso de conduta que produzirá a maior Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 210 quantidade de bem físico, e que por isso nunca podemos decidir o que é o bem e o mal. Pode-se dizer que não se deixa à nossa própria sagacidade o decidir esta questão. A lei de Deus tal como se revela em Sua palavra é uma norma divina mediante a qual podemos aprender o que tende à felicidade e o que tende à desgraça. Mas esta postura não só degrada a lei moral a uma série de máximas sábias, mas também muda todo o motivo para a obediência. Obedecemos não por consideração à autoridade de Deus, mas sim porque Ele sabe melhor que nós o que é que levará ao máximo bem. Além disto, nas perguntas que diariamente se apresentam para a decisão, vemo-nos obrigados a julgar por nós mesmos o que é correto e incorreto, à luz da consciência e dos princípios gerais contidos nas Escrituras. E se todos estes princípios se decompõem no máximo em um princípio, que isso é justo que promove a felicidade, vemo-nos obrigados a recorrer aos cálculos de conveniência, pelo que em nossa curta visão da sabedoria somos totalmente incompetentes. (5) Além de tudo isso, esta teoria pressupõe que o pecado, e a atual terrível quantidade de pecado, são os meios necessários para o maior bem. O que sucede então da distinção entre o bem e o mal? Se o bem é o que tende a promover a maior felicidade, e se o pecado é necessário para promover a maior felicidade, então o pecado deixa de ser pecado, e se torna em bem. Logo deve ser correto fazer males para que venham bens. Como, diz o apóstolo, poderia julgar Deus o mundo com base neste princípio? Se os pecados dos homens não só promoverem de fato o maior fim, mas também um homem tem, ao pecar, o propósito e desejo de cooperar com Deus para produzir a maior quantidade de felicidade, como pode ser condenado? Se a virtude ou santidade que é correta simplesmente porque tende a produzir a maior felicidade, e se o pecado também tende ao mesmo resultado, então o homem que peca com vistas ao maior bem é tão virtuoso quanto o homem que pratica a santidade com este mesmo objetivo. Pode-se dizer que é uma contradição dizer que um homem peca com um propósito verdadeiramente benevolente; porque a essência da virtude é propor o maior bem, e por isso tudo o que Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 211 se faz na execução daquele propósito é virtuoso. Exatamente. A mesma objeção mostra que o bem se torna em mau e o mal em bem, segundo o desígnio com que é cometido ou levado a cabo. Por isso, se um homem mente, rouba ou assassina com um desígnio de promover o bem da sociedade, da igreja ou do universo, é um homem virtuoso. Foi principalmente por adotar e levar a cabo esta doutrina que os jesuítas chegaram a ser uma abominação aos olhos da cristandade, e que foram expulsos de todos os países civilizados. Infelizmente, os jesuítas não foram os seus únicos proponentes. Este princípio foi extensamente espalhado em livros de moral, e chegou a ser adotado por certos teólogos como o fundamento de todo o seu sistema de doutrina cristã. (6) Se a felicidade não é, então, o sumo bem, então a benevolência não é o epítome de toda excelência, e o egoísmo como oposto da benevolência não pode ser a essência do pecado. Mais uma vez, a respeito desta questão pode-se apelar com certeza à nossa própria consciência e à comum consciência dos homens. Nossa natureza moral nos ensina, por um parte, que não se pode reduzir toda virtude à benevolência: a justiça, a fidelidade, a humildade, a longanimidade, a paciência, a constância, a mente espiritual, o amor de Deus, a gratidão a Cristo e o zelo por Sua glória não se revelam à consciência como formas de benevolência. São coisas tão distintas para nossa sensibilidade moral como o vermelho, azul e verde são distintos para o olho. Por outro lado, a incredulidade, a dureza de coração, sua ingratidão, a impenitência, a malícia e a inimizade contra Deus não são modificações do egoísmo. Estes intentos de simplificação não só são antifilosóficos, mas também perigosos, porquanto levam a confundir coisas diferentes, e, como vimos, a negar a natureza essencial das distinções morais. A doutrina que faz com que todo o pecado consiste em egoísmo, como foi em geral mantido, especialmente neste país, considera o egoísmo como o oposto à benevolência segundo a teoria que acaba de ser considerada. Há outros, entretanto, que dizem que é o oposto ao amor de Deus. Como Deus é o verdadeiro centro da alma e a soma de toda Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 212 perfeição, a apostasia dEle é a essência do pecado; a apostasia de Deus implica, segundo se diz, um novo cair em nós mesmos e fazer do eu o centro de nosso ser. Assim Müller, 145 Tholuck, 146 e muitos outros, fazem da alienação de Deus o princípio fundamental do pecado. Mas destronar a Deus requer pôr um ídolo em seu lugar. Esse ídolo, Agostinho e depois dele numerosos escritores das diferentes escolas, dizem ser a criatura, como o Apóstolo descreve de maneira concisa a maldade dos homens, dizendo que “adorando e servindo às criaturas antes que ao Criador.” Mas Müller sustenta que, como este é o eu o pecador busca na criatura, o verdadeiro princípio do pecado que consiste em pôr o eu em lugar de Deus, e faz disso o fim supremo da vida e sua gratificação ou satisfação o grande objeto de perseguição. Naturalmente, não se nega que o egoísmo, em algumas de suas formas, inclui uma ampla classe dos pecados dos quais se fazem culpados os homens. O que se objeta é fazer do egoísmo a essência de todo pecado, ou o intento de reduzir todas as manifestações do mal moral a este único princípio. Isto não se pode fazer. Há pecado desinteressado assim como benevolência desinteressada. Um homem pode real e deliberadamente sacrificar-se no pecado, como em fazer o bem. Muitos pais têm violado a lei de Deus, não para seu próprio benefício, mas em benefício de seus filhos. Pode-se dizer que isto é só uma forma de egoísmo, porque a felicidade de seus filhos é sua felicidade, e o pecado se comete com a satisfação de seus sentimentos paternos. Para isto, entretanto, pode-se responder, em primeiro lugar, que é contraditório dizer que o que se faz por outro é feito por nós mesmos. Quando uma mãe sacrifica a riqueza e a vida por seu filho, embora ela age sob o impulso do instinto maternal, ela age desinteressadamente. O sacrifício consiste em preferir a seu filho que a si mesma. Em segundo lugar, se um ato deixa de ser virtuoso quando seu desempenho encontra e 145 146 Lehre von der Sünde, vol. i. pp. 134-158. Von der Sünde und vom Versöhner, p. 32. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 213 satisfaz alguma demanda de nossa natureza, então nenhum ato pode ser virtuoso. Quando um homem faz qualquer obra boa, ele satisfaz sua consciência. Se a mentira fizer um ato de bondade ao pobre, se é dedicada se ao alívio do doente ou preso, ele satisfaz seus sentimentos benévolos. Se ele busca o favor e a comunhão de Deus, e se consagra ao Seu serviço, ele satisfaz os mais nobres princípios de sua natureza, e experimenta o maior prazer de que é suscetível. Não é necessário portanto, que um ato, quer seja bem ou mal, deva ser desinteressado, que não deve atender a nossa satisfação. Tudo depende do motivo pelo qual se faz. Se isso for motivo da felicidade de outro e não a nossa, o ato é desinteressado. É contrário, portanto, ao testemunho da consciência de cada homem dizer que o egoísmo é o elemento essencial do pecado. Não há egoísmo na malícia, nem na inimizade com Deus. Há formas mais elevadas de mal que o mero egoísmo. A verdadeira natureza do pecado é a alienação de Deus, e a oposição a Seu caráter e vontade. É o oposto à santidade e não admite ser reduzido a nenhum outro princípio, nem o amor da criatura nem o amor ao eu. § 3. A doutrina da Igreja Primitiva. As teorias já consideradas são chamadas filosóficas, quer seja porque se referem à natureza metafísica do pecado, ou porque se baseiam em princípio filosófico. A moral nas doutrinas teológicas sobre o tema são assim designadas, porque se baseiam no que se supõe que são os ensinos de nossa natureza moral ou da palavra de Deus. Pelo que respeita à Igreja primitiva, a doutrina a respeito do pecado foi enunciada só em termos gerais. Em quase todos os casos as afirmações doutrinais discriminativas receberam sua forma como declarações contrárias a posturas errôneas. Enquanto que a verdade não foi negada, a Igreja se contentou em sustentá-la e afirmá-la da maneira simples com que se encontra na Bíblia. Mas quando se assumiram posições que não eram Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 214 congruentes com a doutrina revelada, ou quando se enunciou uma verdade de maneira que contradizia a outra, fez-se necessário ser mais explícito, e enunciar uma expressão da doutrina que incluísse tudo o que Deus tinha revelado a respeito do mesmo. Este processo na determinação, ou melhor dizendo, na definição das doutrinas, foi necessariamente gradual. Foi só depois que surgisse na igreja um erro após outro, que a verdade foi distinguindo-se de cada um deles mediante declarações mais explícitas e realizadas. Como as primeiras heresias foram o Gnosticismo e o Maniqueísmo, sistemas nos quais, em diferentes formas, o pecado era apresentado como um mal necessário que tinha sua origem numa causa independente de Deus e além do controle da criatura, a Igreja foi chamada a negar tais erros, e a declarar que o pecado não era nem necessário nem eterno, mas que tinha sua origem na livre vontade de criaturas racionais. Na luta com o maniqueísmo, toda a tendência da Igreja foi exaltar a liberdade e a capacidade do homem, a fim de manter a doutrina essencial, então assaltada de tantos lados, de que o pecado é um mal moral pelo qual o homem, deve ser condenado, e não uma calamidade pela qual deve ser compadecido. Foi a inevitável consequência do estado não situado de fórmulas doutrinais que se deram declarações contraditórias inclusive da parte dos que buscavam defender a verdade, e não só no caso de diferentes escritores, mas também o mesmo escritor apresentasse, em distintas ocasiões, declarações contraditórias. Em meio destas inconsistências insistia-se constantemente nos seguintes pontos: (1) Que todos os homens são pecadores em seu estado atual. (2) Que esta pecaminosidade universal dos homens teve sua origem histórica e causal na apostasia voluntária de Adão. (3) Que tal é o atual estado da natureza humana que a salvação não pode ser alcançada de outra maneira senão por meio de Cristo e mediante a assistência de Seu Espírito. (4) Que inclusive os meninos, logo que nascem, necessitam a regeneração e a redenção, e que podem ser salvos só por meio dos méritos de Cristo. Estas grandes verdades, que se encontram na base do Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 215 evangelho, entraram na fé geral da Igreja antes de ser tão intensamente defendidas por Agostinho em sua controvérsia com Pelágio. É verdade que se podem citar muitas asserções dos pais gregos que são inconsequentes com algumas das proposições anteriormente citadas. Mas os mesmos escritores, em outras passagens, afirmam sua fé nestas básicas verdades escriturísticas; e estão implicadas nas orações e ordenanças da Igreja, e foram posteriormente incorporadas nas confissões públicas dos gregos, assim como dos latinos. Clemente de Alexandria 147 diz: τὸ γὰρ ἐξαμαρτάνειν πᾶσιν ἔμφυτον καὶ κοινόν. Justino diz: 148 Τὸ γένος τῶν ἀνθρώπων ἀπὸ τοῦ Ἀδὰμ ὑπὸ θάνατον καὶ πλάνην τὴν τοῦ ὄφεως ἐπεπτώκει, aunque él añade: παρὰ τὴν ἰδίαν αἰτίαν ἐκάστου αὐτῶν πονηρευσαμένου. Orígenes diz: 149 “Si Levi . . . . in lumbis Abrahæ fuisse perhibetur, multo magis omnes homines qui in hoc mundo nascuntur et nati sunt, in lumbis erant Adæ, cum adhuc esset in Paradiso; et omnes homines cum ipso vel in ipso expulsi sunt de Paradiso.” Atanásio diz: 150 Πάντες οὐν οἰ ἐξ Αδὰμ γενόμενοι ἐν ἁμαρτίαις συλλαμβάνονται τῇ τοῦ προπάτορος καταδίκη — δείκνυσιν ὡς ἐξ ἀρχῆς ἡ ἀνρθρώπων φύσις ὐπὸ τὴν ἀμαρτίαν πέπτωκεν ὑπὸ τῆς ἐν Εὔᾳ παρα βάσεως, καὶ ὑπὸ κατάραν ἡ γέννησις γέγονεν. Ambrósio diz: 151 “Manifestum itaque in Adam omnes peccasse quasi in massa: ipse enim per peccatum corruptus, quos genuit omnes nati sunt sub peccato. Ex eo igitur cuncti peccatores, quia ex ipso sumus omnes.” Cipriano diz: 152 “Si . . . . baptismo atque a gratia nemo prohibetur; quanto magis prohiberi non debet infans, qui recens natus nihil peccavit, nisi quod secundum Adam carnaliter natus, contagium mortis antiquæ 147 Pædagogus, III. 12; Works, edit. Paris, 1641, p. 262, c. Dialogus cum Tryphone Judæo, 88; Works, edit. Cologne, 1636, p. 316, a. 149 In Epistolam ad Romanos, lib. v. § 1; Works, edit. Wirceburgi, 1794, vol. xv. p. 219. 150 Expos. in Psalms; on Ps. l. (li.), 7. 151 In Epistolam ad Romanos, v. 12; Works, Paris, 1661, vol. iii. p. 269, a. 152 Epistola, lxiv. edit. Bremen, 1690, p. 161, of third set. 148 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 216 prima nativitate contraxit? qui ad remissam peccatorum accipiendam hoc ipso facilius accedit, quod illi remittuntur non propria, sed aliena peccata.” Mais uma vez, diz ele: “Fuerant et ante Christum viri insignes, sed in peccatis concepti et nati, nec originali nec personali caruere delicto.” Estes escritores ensinavam, conforme diz Gieseler, 153 que por meio de Cristo e de sua obediência na árvore da cruz foi curada a desobediência original do homem com referência à árvore do conhecimento; que assim como ofendemos a Deus no primeiro Adão pela transgressão, assim por meio do segundo Adão somos reconciliados com Deus; que Cristo nos libertou do poder do diabo ao que estávamos sujeitos pelo pecado de Adão; que Cristo recuperou para nós a vida e a imortalidade. 154 Não se mantém que os pais gregos sustentaram a doutrina do pecado original na forma em que foi posteriormente desenvolvida por Agostinho, mas antes, ensinavam que a raça tinha caído em Adão, que todos necessitam a redenção, e que a redenção só pode ser obtida por meio do Senhor Jesus Cristo. 155 § 4. A teoria Pelagiana. A começos do quinto século, Pelágio, Celéstio e Juliano introduziram uma nova teoria quanto à natureza do pecado e o estado do homem desde a queda, e de nossa relação com Adão. O fato de que sua doutrina era uma inovação fica demonstrado pelo fato de que foi universalmente rejeitada e condenada logo que foi plenamente compreendida. Eram homens cultos e capazes, e de caráter exemplar. 153 Kirchengeschichte, edit. Bonn, 1855, vol. vi. p. 180. Irenæus, V. xvi. 3; Works, edit. Leipzig, 1853; vol. i. p. 762. 155 J .G. Walch: De Pelagianismo ante Pelagium. J. Hern: De Sententiis eorum Patrum quorum auctoritas ante Augustinum plurimum valuit. Neander’s Church History, vol. i. Gieseler’s Kirchengeschichte, vol. vi. Shedd’s History of Christian Doctrine. Also Münscher’s, Meyer’s, and Klee’s Dogmengeschichte. 154 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 217 Pelágio era britânico, embora não há certeza se era nativo da Bretanha francesa ou do que se conhece como Grã-Bretanha. Era monge, embora leigo. Celéstio era mestre e jurista; Juliano era um bispo da Itália. O princípio radical da teoria Pelagiana é que a capacidade constitui o limite da obrigação. «Se eu devo, eu posso», é o aforismo sobre o qual repousa todo o sistema. A oração celebrada de Agostinho, “Da quod jubes, et jube quod vis,” foi pronunciada por Pelágio como um absurdo, porque assume que Deus pode exigir mais do que o homem pode fazer, e o que o homem deve receber como um dom. Em oposição a esta postura [Pelágio] enunciou o princípio de que o homem deve ter a total capacidade para fazer e ser tudo o que se lhe pode exigir em justiça. “Iterum quærendum est, peccatum voluntatis an necessitatis est? Si necessitatis est, peccatum non est; si voluntatis, vitari potest. Iterum quærendum est, utrumne debeat homo sine peccato esse? Procul dubio debet. Si debet potest; si non potest, ergo non debet. Et si non debet homo esse sine peccato, debet ergo cum peccato esse, et jam peccatum non erit, si illud deberi constiterit.” 156 A íntima convicção de que os homens não podem ser responsáveis por nada que não esteja em seu poder, em primeiro lugar, levou à doutrina Pelagiana da liberdade da vontade. Não era suficiente para a livre ação que o agente fosse autodeterminado, ou que todas as suas volições ficassem determinadas por seus próprios estados interiores. Demandava-se que tivesse poder sobre estes estados. Segundo Pelágio, a liberdade da vontade é poder plenário, em toda ocasião e em cada momento, de escolher entre o bem e o mal, e de ser ou santo ou ímpio. Tudo o que não caia assim dentro do poder imperativo da vontade não pode ter caráter moral. “Omne bonum ac malum, quo vel laudabiles vel vituperabiles sumus, non nobiscum oritur, sed agitur a nobis: capaces enim utriusque rei, non pleni nascimur, et ut sine virtute, ita et sine vitio 156 Gieseler, vol. I. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 218 procreamur: atque ante actionem propriæ voluntatis, id solum in homine est, quod Deus condidit.” 157 Outra vez: “Volens namque Deus rationabilem creaturam voluntarii boni munere et liberi arbitrii potestate donare, utriusque partis possibilitatem homini inserendo proprium ejus fecit, esse quod velit; ut boni ac mali capax, natural iter utrumque posset, et ad alterumque voluntatem deflecteret.” 2. Por isso, o pecado consiste na deliberada eleição do pecado. Pressupõe o conhecimento do que é mau, assim como a plena capacidade para escolhê-lo ou rejeitá-lo. Naturalmente, disto segue: 3. Que não pode existir o chamado pecado original, ou corrupção inerente e hereditária. Os homens nascem, como se afirma na citação anterior, ut sine virtute, ita sine vitio. Em outras palavras, os homens nascem no mundo, desde a Queda, no mesmo estado em que Adão foi criado. Juliano diz: 158 “Nihil est peccati in homine, si nihil est propriæ voluntatis, vel assensionis. Tu autem concedis nihil fuisse in parvulis propriæ voluntatis: non ego, sed ratio concludit; nihil igitur in eis esse peccati.” Este é o ponto em que insistiram principalmente os Pelagianos, que é contrário à natureza do pecado que possa ser irradiado ou herdado. Se a natureza é pecaminosa, então Deus, como autor da natureza, tem que ser o autor do pecado. Juliano 159 portanto diz: “Nemo naturaliter malus est; sed quicunque reus est, moribus, non exordiis accusatur.” 4. Consequentemente, o pecado de Adão só prejudicou a ele. Esta foi uma das acusações formais apresentadas contra os Pelagianos no Sínodo de Dióspolis. Pelágio tentou responder a ela, dizendo que o pecado de Adão exerceu a influência de um mau exemplo, e que neste sentido e neste grau danificou a sua posteridade. Mas negou toda relação causal entre o pecado de Adão e a pecaminosidade de sua raça, ou que a morte seja um mal penal. Adão teria morrido pela constituição de sua natureza, tanto se tivesse pecado como se não o tivesse feito; e sua 157 Pelagius, Apud Augustinum de Peccato Originali, 14; Works, edit. Benedictines, vol. x. p. 573, a. b. Apud Augustinum Opus Imperfectum contra Julianum, I. 60; Works, vol. x. p. 1511, d. 159 Ibid. 158 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 219 posteridade, tanto na mais tenra infância como os adultos, morrem pela semelhante necessidade de sua natureza. Como Adão não era em nenhum sentido o representante de sua raça, como eles não sofreram sua prova nele, cada homem enfrenta sua prova por si mesmo; e é justificado ou condenado unicamente sobre a base de seus próprios atos pessoais. 5. Porquanto os homens vêm ao mundo sem a contaminação do pecado original, e porquanto têm poder plenário para fazer tudo o que Deus exige, podem viver, e em muitos casos vivem, sem pecado; ou, se num momento determinado transgridem, podem voltar-se para Deus e obedecer perfeitamente todos os Seus mandamentos. Por isso, Pelágio ensinou que alguns homens não tinham necessidade de repetir por si mesmos a petição na oração do Senhor: «perdoa nossas transgressões». Antes do Sínodo de Cartago um dos motivos pelos quais foi acusado de heresia, foi que ele ensinou, “et ante adventum Domini fuerunt homines impeccabiles, id est, sine peccato.” 6. Outra consequência de seus princípios, que Pelágio inevitavelmente deduziu, era que os homens podiam ser salvos sem o evangelho. Porquanto o livre-arbítrio no sentido de capacidade plenária pertence essencialmente ao homem do mesmo modo que a razão, os homens, sejam pagãos, judeus ou cristãos podem obedecer a lei de maneira plena e alcançar a vida eterna. A única diferença é que sob a luz do evangelho esta perfeita obediência resulta mais fácil. Uma de suas doutrinas, portanto, era que “lex sic mittit ad regnum coelorum, quomodo et evangelium.” 7. O sistema pelagiano nega a necessidade da graça no sentido da influência sobrenatural do Espírito Santo. Mas porquanto as Escrituras falam tão plena e constantemente da graça de Deus como se manifesta e exercida na salvação dos homens, Pelágio não pôde evitar reconhecer este fato. Mas por graça ele entendia todo aquilo o que derivamos da bondade de Deus. Nossas faculdades naturais da razão e da livre vontade, a revelação da verdade tanto em Suas obras como em Sua palavra, todas as bênçãos providenciais e vantagens que os homens Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 220 desfrutam, caem dentro do conceito Pelagiano de graça. Diz Agostinho que Pelágio descrevia a graça como os dotes naturais dos homens, que porquanto são o dom de Deus, são graça. “Ille (Pelagius) Dei gratiam non appellat nisi naturam, qua libero arbitrio conditi sumus.” 160 E Juliano, diz ele, inclui sob o termo todos os dons de Deus. “Ipsi gratiæ, beneficiorum quæ nobis præstare non desinit, augmenta reputamus.” 161 8. Porquanto as crianças estão destituídas de caráter moral, o batismo no caso deles não pode simbolizar nem efetuar a remissão de pecado. Entretanto é, segundo Pelágio, só um sinal de sua consagração a Deus. Ele cria que nenhuns mais que os batizados eram admitidos no reino dos céus, no sentido cristão do termo, mas mantinha que os crianças não batizadas eram entretanto participe da vida eterna. Por este termo se significava o que posteriormente os escolásticos chamaram limbos infantum [o limbo dos pequenos]. Este foi descrito como que μέσος τόπος κολάσεως καὶ παραδείσου, εἰς ὃν καὶ τὰ ἀβάπτιστα βρέφη μετατ θέμενα ζῇν μακαρίως. 162 Pelágio e suas doutrinas foram condenados por um concílio em Cartago em 412 d.C. Foi exonerado pelos Sínodos de Jerusalém e Dióspolis em 415 d.C., mas condenado pela segunda vez num sínodo de sessenta bispos em Cartago em 416 d.C. Zósimo, bispo de Roma, pôs-se primeiro do lado dos Pelagianos, e censurou a ação dos bispos da África; mas quando sua decisão foi confirmada pelo concílio geral de Cartago em 418 d.C., em que estiveram presentes duzentos bispos, uniu-se na condenação, e declarou excomungado a Pelágio e a seus partidários. Em 431 d.C. a Igreja do Oriente se uniu nesta condenação aos Pelagianos, no Sínodo Geral celebrado em Éfeso. 163 160 Epistola, clxxix. 3; Works, edit. Benedictines, vol. ii. pp. 941, d, 942, a. Ibid. 162 Sobre a distinção entre vita æterna y regnum coelorum, veja-se Pelagius Apud Augustinum de Peccatorum Meritis et Remissione, I. 58; Works, vol. x. p. 231. Conc. Carth. 415. 163 Wigger, Augustianism and Pelagianism. Guericke, Church History, §§ 91-93. Ritter, Geschlchte der Chrislichen Philosophie, Vol. II, págs. 337-443 e todas as histórias da igreja e histórias de doutrina. 161 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 221 Argumentos contra a doutrina Pelagiana. As objeções às doutrinas Pelagianas da natureza do pecado serão necessariamente consideradas quando se apresentar a doutrina Escriturística e Protestante. Por agora é suficiente dizer: 1. Que o princípio fundamental em que se baseia todo o sistema contradiz a consciência comum dos homens. Não é verdade, como nos ensina nossa consciência, que nossa obrigação esteja limitada por nossa capacidade. Cada pessoa sabe que está obrigado a ser melhor que o que é, e melhor que o que pode fazer-se a si mesmo por esforço de vontade. Temos a obrigação de amar a Deus perfeitamente, mas sabemos que tal amor perfeito está além de nosso poder. Reconhecemos a obrigação de estar livres de todo pecado, e totalmente conformados à perfeita lei de Deus. Mas ninguém está tão enfatuado ou cego a seu verdadeiro caráter que creia realmente que alcançou esta perfeição, ou que tenha capacidade para chegar a ela. É a oração ou aspiração diária e constante de cada santo e de cada pecador o ser libertado da escravidão do mal. O soberbo e maligno quereria ser humilde e benevolente; o ambicioso se alegraria em ser generoso; o incrédulo deseja a fé, e o pecador endurecido o arrependimento. O pecado é em sua própria natureza uma carga e um tortura, e embora seja amado e abrigado, como as taças do bêbado são queridas, entretanto, se pudesse efetuar a emancipação por um ato da vontade, o pecado deixaria de reinar em qualquer criatura racional. Assim, não há verdade da que os homens estejam mais intimamente convencidos que a de que são escravos do pecado; que não podem fazer o bem que quisessem, e que não podem alterar seu caráter à vontade. Assim, não há princípio mais afastado da comum consciência dos homens que o princípio fundamental do Pelagianismo de que nossa capacidade limita nossa obrigação, que não estamos obrigados a ser melhores do que podemos fazer a nós mesmos por um ato de vontade. 2. Não é menos repelente para a natureza moral do homem declarar, como ensina o Pelagianismo, que nada é pecaminoso exceto a transgressão deliberada de uma lei conhecida; que não há caráter moral Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 222 nos sentimentos e nas emoções; que o amor e o ódio, a malícia e a benevolência, consideradas como afetos da mente, são do mesmo modo indiferentes; que o mandamento de amar a Deus é um absurdo porque o amor não está sujeito ao controle da vontade. Todos os nossos juízos morais devem estar pervertidos antes que possamos assentir a um sistema que envolva tais consequências. 3. Em terceiro lugar, a doutrina Pelagiana, que confunde liberdade com capacidade, ou que faz com que a liberdade de um agente livre consista no poder de determinar seu caráter por uma volição, é contrário à consciência de todas as pessoas. Sentimos e não podemos deixar de reconhecer que somos livres quando nos autodeterminamos; enquanto que ao mesmo tempo estamos conscientes de que os estados controladores da mente não estão sob o controle da vontade, ou, em outras palavras, que não estão sob nosso próprio poder. Uma teoria que está baseada na identificação de coisas que são essencialmente diferentes, como a liberdade e a capacidade, deve ser falsa. 4. O sistema Pelagiano deixa sem explicação a pecaminosidade universal dos homens, fato este que não pode ser negado. Atribuí-lo à mera livre ação do homem é dizer que uma coisa é sempre simplesmente porque pode ser. 5. Este sistema não chega a satisfazer as necessidades mais profundas e universais de nossa natureza. Ao fazer o homem independente de Deus dando por sentado que Deus não pode controlar agentes livres sem destruir sua liberdade, faz uma zombaria de toda oração pela graça controladora de Deus sobre nós e outros, e lança o homem completamente sobre seus próprios recursos para enfrentar o pecado e os poderes das trevas, sem esperança de libertação. 6. Faz a redenção (no sentido de uma libertação do pecado) desnecessária ou impossível. É desnecessário que deva haver um redentor para uma raça que não caiu, e que tem plena capacidade para evitar todo pecado ou para livrar-se a si mesma de seu poder. E é Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 223 impossível, se os agentes livres forem independentes do controle de Deus. 7. Dificilmente será necessário dizer que um sistema que afirma que o pecado de Adão só fez mal a ele mesmo; que os homens nascem no mundo no estado em que Adão foi criado; ou que os homens podem viver, e com frequência vivem, sem pecado; que não temos necessidade de ajuda divina a fim de ser santos; e que o cristianismo não tem uma superioridade essencial sobre o paganismo ou a religião natural, está totalmente em desacordo com a Palavra de Deus. Certamente, a oposição entre o Evangelho e o Pelagianismo é tão terminante e radical que este último sistema jamais foi considerado absolutamente como uma forma de cristianismo. Em outras palavras, nunca foi a fé de nenhuma igreja cristã organizada. É pouca coisa mais que uma forma de Racionalismo. § 5. A doutrina de Agostinho O elemento filosófico da doutrina de Agostinho. Há dois elementos na doutrina Agostiniana do pecado: um metafísico ou filosófico, o outro moral ou religioso. O primeiro é uma especulação do entendimento, o outro se deriva de sua experiência religiosa e do ensino do Espírito Santo. Um desapareceu, deixando poucos vestígios na história da doutrina que outras especulações, sejam aristotélicas ou platônicas. O outro permanece, e deu forma à doutrina cristã desde aquele dia até a atualidade. E não é para assombrar-se. Nada é mais incerto e insatisfatório que as especulações do entendimento ou teorias filosóficas. Enquanto que nada é mais certo e universal que a consciência moral dos homens e as verdades que esta revela. E como as Escrituras, sendo a obra de Deus, conformam-se e devem conformar-se à constituição de nossa natureza, as doutrinas fundamentadas sobre o duplo ensino do Espírito, em Sua palavra e nos corações de Seu povo, ficam sem mudanças de geração em geração, enquanto que as especulações da filosofia ou dos teólogos filosóficos caem como as Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 224 folhas de um bosque. Ninguém hoje em dia se interessa na filosofia de Orígenes, nem dos neoplatônicos, nem de Agostinho, enquanto que a linguagem de Davi no Salmo 51 é empregado para expressar a experiência e convicções de todo o povo de Deus em todas as eras e partes do mundo. O elemento metafísico na doutrina Agostiniana do pecado surgiu de sua controvérsia com os maniqueus. Manes ensinava que o pecado era uma substância. Isto Agostinho negou. Para ele tratava-se de uma máxima de que “Omne est esse bonum” Mas se esse (ser) é bom, e o mal, se é o contrário do bem, então o mal tem que ser o oposto ao ser, ou nada, isto é, a negação ou privação do ser. Assim, foi levado a adotar a linguagem dos neoplatônicos e de Orígenes, que por um processo diferente, foram levados a definir o mal como uma negação do ser como o chama Plotino, στέρησις τοῦ ὄντος; e Orígenes diz, πᾶσα ἡ κακία οὐδέν ἐστιν, e o mal em si ele que diz é ἐστερῆσθαι τοῦ ὄντος. Ao fazer assim do ser o bem e da negação do ser o mal, Agostinho parece ter cometido o mesmo erro que outros filósofos cometeram tão frequentemente — de confundir o bem físico e moral. Quando Deus ao princípio declarou todas as coisas, materiais e imateriais, que Ele fez, ser muito bom, Ele simplesmente declarou que estão adaptados aos fins para os que se fizeram solidariamente. Ele não tinha a intenção de nos ensinar que a bondade moral poderia ser pregada da matéria ou de um animal irracional. Em outros casos, a boa palavra bom significa agradável, ou adaptado para dar prazer. Em outros ainda, significa moralmente correto. Inferir do fato de tempo que tudo o que Deus fez é bom, ou é que todo esse bonum, que o mal moral, portanto, a negação do bem deve ser a negação do ser, é tão ilógico como afirmar que, porque o mel é bom (no sentido de ser agradável ao gosto) a amargura é má, no sentido de ser pecaminosa. Embora Agostinho usasse a linguagem daqueles filósofos que, tanto antes dele como depois, destroem a própria natureza do pecado ao fazer dele uma mera limitação do ser, entretanto ele estava muito longe de sustentar o mesmo sistema. (1) Eles tornavam o pecado Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 225 necessário, como surgindo da própria natureza de uma criatura. Ele o fazia voluntário. (2) Eles o faziam puramente físico. Ele o fazia moral. Para ele inclui contaminação e culpa. Para eles não incluía nenhuma de ambas as coisas. (3) Em Agostinho esta negação não era meramente passiva, não se tratava da mera carência de ser, era tal privação que tendia à destruição. (4) Sim, para Agostinho, o mal, tal como foi mais plena e claramente ensinado por seus seguidores, não era uma mera privação, um mero defeito. Que uma pedra não possa ver, envolve a negação do poder da visão. Mas não é um efeito, porque o poder da visão não pertence às pedras. A cegueira é um defeito num animal, mas não um pecado. A ausência do amor a Deus numa criatura racional é pecado, porquanto é a ausência de algo que pertence a tal criatura, e que deveria ter. No verdadeiro sentido agostiniano, portanto, o pecado é a negação só como é a privação do bem moral: a privatio boni, ou, como foi expresso posteriormente de maneira geral, uma ausência de conformidade com a lei ou norma do bem. As razões de Agostinho para fazer do pecado uma negação Ao fazer do pecado uma negação, Agostinho tinha principalmente dois fins em vista. (1) Mostrar que o pecado não é necessário. Se se tratasse de algo que existe por si mesmo, ou de algo criado pelo poder de Deus, estaria além do poder do homem. Seria sua vítima, não seu autor. (2) Ele desejava mostrar que não era devido à eficiência divina. Segundo sua teoria da relação de Deus com o mundo, não só tudo o que é, cada substância, está criada e sustentada por Deus, mas sim toda atividade ou poder, toda energia mediante a qual são produzidos os efeitos positivos é a energia de Deus. Por isso, se o pecado fosse algo em si mesmo, algo mais que um defeito, ou uma falta de conformidade com uma lei, Deus deve ser o autor. Por isso, ele adotou aquela perspectiva da natureza psicológica do pecado que não exigisse uma causa eficiente mas sim, como dizia frequentemente, uma causa deficiente. Se um homem, para empregar a antiga ilustração Agostiniana, tange as cordas de uma harpa Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 226 desafinada, ele é a causa do som, mas não da dissonância. Assim, Deus é a causa da atividade do pecador, mas não da discordância entre seus atos e as leis da verdade e direito eternas. 164 O elemento moral de sua doutrina. A verdadeira doutrina Agostiniana do pecado é aquela que o ilustre pai tirou de sua própria experiência religiosa, conduzida e determinada pelo Espírito de Deus. Ele esteve (1) Consciente de pecado. Reconheceu-se a si mesmo como culpado e poluído, como sob a justiça de Deus, ofensivo à Sua santidade. (2) Sentiu-se assim culpado e poluído não só por seus atos deliberados de transgressão, mas também por seus afetos, sentimentos e emoções. Este sentimento de pecado ligado não só com estes estados de mente positivos e conscientes, mas também com a mera ausência de afetos retos, com a falta de amor, de humildade, de fé e outras virtudes cristãs, ou com sua fraqueza e inconstância. (3) Reconheceu o fato de que sempre tinha sido um pecador. Até onde se estendia sua consciência, era consciência de pecado. (4) Estava profundamente convencido de que não tinha poder para mudar sua natureza moral nem para fazer-se santo; que toda a liberdade que possuía, por livre que fosse em pecar, ou (depois da regeneração) em agir de maneira santa, não tinha a liberdade de capacidade que Pelágio pretendia como uma prerrogativa essencial da humanidade. (5) Estava envolvido nesta consciência de pecado como culpa, ou justo merecimento de castigo, assim como contaminação, que não podia ser um mal necessário, mas sim devia ter sua origem no livre ato do homem, e que por isso devia ser voluntário. Voluntário: (a) Ao ter sua origem num ato da vontade; (b) Ao ter sua sede na vontade; (c) Ao consistir na determinação da vontade ao mal: a palavra vontade denota aqui, como geralmente em Agostinho, o sentido mais amplo de tudo 164 Veja-se, a respeito da teoria de Agostinho, Müller, Lehre von der Sünde, vol. I, págs. 338-349. Ritter, Geschichte der Chrislichen Philosophie, Vol. II, págs. 337-425. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 227 aquilo no homem que não cai sob a categoria do entendimento. (6) O que a consciência lhe ensina que era certo a respeito de si mesmo ele viu certo a respeito de outros. Todos os homens demonstravam ser pecadores. Davam todos evidência de pecado logo que davam evidência de razão. Todos davam evidência não só de ser transgressores da lei de Deus, mas também de estar espiritualmente mortos, carentes de toda evidência de vida espiritual. Eram os voluntários escravos do pecado, totalmente incapazes de libertar-se a si mesmos de sua escravidão à corrupção. Ninguém jamais tinha dado evidência de possuir a capacidade de autorregenerar-se. Todos os que davam evidência de estar regenerados atribuíam unânimes a obra não a si mesmos, mas à graça de Deus. Com base nestas realidades da consciência e da experiência, Agostinho chegou à inevitável conclusão: (1) De que se os homens forem salvos não pode dever-se ao próprio mérito deles, mas somente ao imerecido amor de Deus. (2) Que a regeneração da alma deve ser a obra exclusiva e sobrenatural do Espírito Santo; que o pecador não podia nem levar a cabo a obra nem cooperar em sua produção. Em outras palavras, que a graça é certamente eficaz ou irresistível. (3) Que a salvação é por graça, pela soberana misericórdia de Deus, (a) Em que Deus tivesse podido em justiça, deixar os homens a perecerem em sua apostasia sem provisão alguma para sua redenção. (b) Em que ao estar os homens destituídos da capacidade de fazer algo santo ou meritório, sua justificação não pode ser pelas obras, não devida a um favor. (c) Em que não depende da vontade das pessoas salvas, mas do beneplácito de Deus, os que têm que ser feitos partícipes da redenção de Cristo. Em outras palavras, a eleição para vida eterna deve estar baseada no soberano beneplácito de Deus, e não na previsão de boas obras. (4) Uma quarta inferência com base nos princípios de Agostinho era a perseverança dos santos. Se Deus escolhe, por Seu beneplácito, a alguns para a vida eterna, não podem deixar de obter a salvação. Vê-se então que assim como todas as doutrinas distintivas dos Pelagianos são as consequências Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 228 lógicas de seu princípio da capacidade plenária como a base e limite da obrigação, da mesma maneira as doutrinas distintivas de Agostinho são as consequências lógicas de seu princípio da total capacidade do homem caído para não fazer nada espiritualmente bom. Ensinado por sua própria experiência que ele era culpado e poluído desde seu nascimento, e que não tinha poder para mudar sua própria natureza, e vendo que todos os homens estão envolvidos na mesma pecaminosidade e impotência, aceitou a solução escriturística destes atos da consciência e da observação, e por isso manteve: (1) Que Deus criou o homem originalmente à Sua própria imagem e semelhança em conhecimento, retidão e santidade, imortal e investido de domínio sobre as criaturas. Também manteve que Adão foi dotado de perfeita liberdade da vontade, não só com espontaneidade e a capacidade de autodeterminação, mas com o poder de escolher o bem ou o mal, e de determinar assim seu próprio caráter. (2) Que sendo deixado ao poder de sua própria vontade, Adão, sob a tentação do Diabo, pecou voluntariamente contra Deus, e assim caiu do estado em que tinha sido criado. (3) Que as consequências deste pecado sobre Adão foram a perda da imagem divina e a corrupção de toda a sua natureza, de maneira que ficou espiritualmente morto, e por isso mesmo indisposto, incapacitado e transformado em oposto a todo bem espiritual. Além desta morte espiritual, veio a ser mortal, suscetível a todas as misérias desta vida, e à morte eterna. (4) Tal era a união entre Adão e seus descendentes que as mesmas consequências da transgressão sobrevieram a eles. Nascem filhos da ira, isto é, em estado de condenação, destituídos da imagem de Deus, e moralmente depravados. (5) Esta depravação inerente, hereditária, é verdadeira e propriamente da natureza de pecado, envolvendo ao mesmo tempo culpa e corrupção. Em sua natureza formal consiste na privação da retidão original e na (concupiscência) inordinatio naturae, a desordem de toda a natureza. É da natureza de um habitus em distinção de um ato, atividade ou agência. É voluntário, no sentido mencionado anteriormente, especialmente de modo que que não surgiu Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 229 da necessidade da natureza, nem da eficiência de Deus, mas sim da livre ação de Adão. (6) Que a perda da retidão original e a corrupção da natureza conseguinte à queda de Adão são inflições penais, sendo o castigo de seu primeiro pecado. (7) Que a regeneração, ou chamada eficaz, é uma ação sobrenatural do Espírito Santo, em que a alma é o sujeito, e não o agente; que é soberana, concedida ou retida segundo o beneplácito de Deus, e, consequentemente, que a salvação é totalmente de graça. Este é o sistema Agostiniano em todos os seus aspectos essenciais. E esta é a doutrina que permaneceu e que foi a forma de doutrina constante entre o grande corpo de cristãos evangélicos desde aquele tempo até a atualidade. Naturalmente, admite-se que Agostinho cria muitas coisas, junto com os pontos anteriormente mencionados, que eram peculiares do homem ou da época em que viveu, mas que não pertencem ao Agostinianismo como sistema de doutrina. Da mesma maneira que o Luteranismo não inclui todas as opiniões individuais de Lutero e o Calvinismo não inclui todas as opiniões pessoais de Calvino, assim também há muitas coisas ensinadas por Agostinho que não pertencem ao Agostinianismo. Ele ensina que todo pecado é a negação do ser; que a liberdade é capacidade, de maneira que ao negar ao homem caído a capacidade de mudar seu próprio coração, é-lhe negada a liberdade da vontade; que a concupiscência (no sentido inferior da palavra), como sentimento instintivo, é pecaminosa; que uma natureza pecaminosa é propagada pela mesma lei de geração; que o batismo tira a culpa do pecado original; e que todos os meninos não batizados (como os Romanistas seguem ensinando e quase todos os Protestantes o negam) estão perdidos. Estes e outros pontos não formam parte integral de seu sistema, e não receberam a sanção da Igreja quando se pronunciou em favor de sua doutrina em oposição à dos Pelagianos. Da mesma maneira, é questão de importância secundária como compreendeu a natureza da união entre Adão e sua posteridade; que sustentasse a teoria representativa ou a realista; ou que finalmente adotasse o Traducianismo Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 230 contra o Criacionismo, ou o segundo contra o primeiro. Em todos estes pontos a linguagem é confusa e indecisa. É suficiente ter sustentado que tal era a união entre Adão e sua raça, que toda a família humana teve sua prova nele, e que caiu com ele em sua primeira transgressão, de maneira que todos os males que são as consequências desta transgressão, incluindo a morte física e espiritual, são o castigo daquele pecado. A respeito deste ponto ele é perfeitamente explícito. Quando Juliano objetou que o pecado não pode ser o castigo do pecado, respondeu que é preciso distinguir três coisas, que devemos conhecer, “aliud esse peccatum, aliud poenam, peccati, aliud utrumque, id est, ita peccatum, ut ipsum sit etiam poena peccati, . . . . pertinet originale peccatum ad hoc genus tertium, ubi sic peccatum est, ut ipsum sit et poena peccati.” 165 Outra vez diz ele: “Est [peccatum] . . . . non solum voluntarium atque possibile unde liberum est abstinere; verum etiam necessarium peccatum, unde abstinere liberum non est, quod jam non solum peccatum, sed etiam poena peccati est.” 166 A morte espiritual (quer dizer, o pecado original ou a corrupção inerente), diz Wiggers, quer dizer, segundo Agostinho, a pena especial e principal da primeira transgressão de Adão, que passou na pena de todos os homens. 167 Isto está de acordo exatamente com a doutrina do Apóstolo, que diz: “Em Adão todos morrem,” 1 Cor. 15:22, e que uma sentença de condenação (κρῖμα εἰς κατάκριμα) por uma ofensa passa a todos os homens, Rom. 5:16, 17. Isto Agostinho conectou como uma doutrina da Escritura, e como um juízo histórico. Isto, entretanto, é uma doutrina em que os homens encontraram sempre difícil de crer, e um fato que demorou para admitir. Pelágio disse: 168 “Nulla ratione concedi ut Deus, qui propria peccata remittit, imputet aliena.” E Juliano exclama com veemência: 165 Opus Imperfectum, I. 47; Works, edit. Benedictines, vol. x., pp. 1495, d, and 1496, d. Opus Imperfectum, V. 59, Works, edit. Benedictines, vol. x., p. 2026, b. 167 Augustinismus und Pelagianismus, edit. Hamburg, 1833, vol. i. p. 104. 168 Apud Augustinum de Peccatorum Meritis et Remissionie, III. iii. 5; Works, vol. x., p. 289, a. 166 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 231 “Amolire te itaque cum tali Deo tuo de Ecclesiarum medio: non est ipse, cui Patriarchæ, cui Prophetæ, cui Apostoli crediderunt, in quo speravit et sperat Ecclesia primitivorum, quæ conscripta est in coelis; non est ipse quem credit judicem rationabilis creatura; quem Spiritus sanctus juste judicaturum esse denuntiat. Nemo prudentium, pro tali Domino suum unquam sanguinem fudisset: nec enim merebatur dilectionis affectum, ut suscipiendæ pro se onus imponeret passionis. Postremo iste quem inducis, si esset uspiam, reus convinceretur esse non Deus; judicandus a vero Deo meo, non judicaturus pro Deo.” 169 A esta grande objeção Agostinho dá respostas diferentes. (1.) Refere-se aos exemplos das Escrituras em que os homens foram castigados pelos pecados dos demais. (2.) Ele apela ao fato de que Deus visita os pecados dos pais sobre seus filhos. (3.) Às vezes ele diz que devemos nos conformar com a garantia de que o Juiz de toda a terra deve fazer o correto, se podemos ver a justiça de Seus caminhos ou não. (4.) Nos demais ele parece adotar a doutrina realista de que todos os homens estavam em Adão, e que seu pecado foi o pecado deles, sendo o ato da humanidade genérica. Como Levi estava nos lombos de Abraão, e foi dizimado nele, assim nós estávamos neste lombo de Adão, e pecamos nele. (5.) E, finalmente, ele insiste que como somos justificados pela justiça de Cristo, não é incongruente que devemos ser condenados pelo pecado de Adão. 170 Observar-se-á que algumas destas causas são inconsistentes com outras. Se uma for válida, as outras não são válidas. Se podemos conciliar a condenação dos homens por causa do pecado de Adão, em razão de que ele era nosso representante, ou que sustentou a relação que todos os pais mantêm com seus filhos, renunciamos a base de uma união realista. Se a última teoria for verdade, então o pecado de Adão foi nosso ato tão certo como era dele. Se adotarmos a teoria representativa, seu ato não foi 169 170 Opus Imperfectum contra Julianum, I. 50; Works, vol. x. p. 1501, a, b. See Münscher’s Dogmengeschichte, vol. iv., p. 195. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 232 nosso ato num sentido distinto daquele em que um representante age por seus eleitores. Disto é claro: (1.) Que Agostinho não tinha nenhuma convicção clara e definitiva sobre a natureza da união entre Adão e sua raça, que é o fundamento da imputação de seu pecado à sua posteridade, mais do que tinha a respeito da origem da alma; e (2.) Que nenhuma teoria particular sobre este ponto, se representativa ou realista, podem adequadamente constituir um elemento do agostinianismo, como uma forma histórica e a igreja da doutrina. § 6. A doutrina da igreja de Roma. Este é um ponto de difícil decisão. Os próprios Romanistas divergem tanto quanto ao que ensina a Igreja deles a respeito do pecado original como os que não pertencem à sua comunhão. As origens desta dificuldade são: (1) Primeiro, a grande diversidade de opiniões a respeito do tema que prevaleceram na Igreja Latina antes das decisões autoritativas do concílio de Trento e do Catecismo Romano. (2) A ambiguidade e ausência de precisão ou de plenitude nas decisões daquele concilio. (3) As diferentes interpretações dadas por teólogos proeminentes a respeito do verdadeiro sentido dos cânones Tridentinos. Diversidade de doutrina na Igreja Latina. Quanto ao primeiro destes pontos pode-se observar que havia principalmente três elementos conflitivos na Igreja Latina antes da Reforma, com relação a toda a questão do pecado. (1) A doutrina de Agostinho. (2) A dos Semipelagianos, e (3) A daqueles dentre os escolásticos que tentaram encontrar um território intermediário entre os outros dois sistemas. A doutrina de Agostinho, como foi apresentada em anteriores seções, recebeu a sanção da Igreja Latina, e declarou a verdadeira fé ortodoxa. Mas inclusive durante o tempo de Agostinho, e em maior extensão no século seguinte, começaram a prevalecer sérias divergências de seu sistema. Estas divergências se relacionavam com Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 233 todas as muito inter-relacionadas doutrinas do pecado, da graça e da predestinação. O Pelagianismo foi universalmente rejeitado e condenado. Admitia-se que a raça do homem caiu em Adão; que seu pecado afetou prejudicialmente a sua posteridade assim como a ele mesmo; que os homens nascem em estado de alienação de Deus; que necessitam o poder do Espírito Santo a fim de ser restaurados à santidade. Mas, qual é a natureza do pecado original, ou daquela depravação ou deterioração de nossa natureza que se deriva de Adão? Quais são os restos da divina imagem que seguem preservados, ou, qual é o poder para o bem que seguem tendo os homens caídos? E qual é a base sobre a qual Deus leva a uns, e não a outros, ao gozo da vida eterna? Estas eram perguntas que receberam respostas muito distintas. Agostinho, como vimos, respondeu à primeira destas perguntas, dizendo que o pecado original consiste não só na perda da retidão original, mas também na concupiscência, ou desordem, ou corrupção da natureza, que é verdadeira e propriamente pecado, incluindo ao mesmo tempo culpa e contaminação. A segunda pergunta ele respondeu dizendo que o homem caído não tem poder para levar a cabo o que é espiritualmente bom; nem pode regenerar-se a si mesmo, nem preparar-se a si mesmo para a regeneração, nem cooperar com a graça de Deus em tal obra. Estes princípios conduzem necessariamente às doutrinas da graça eficaz ou irresistível e da eleição soberana, como se tem visto e admitido universalmente. Foram estas necessárias consequências, mais que os próprios princípios, os que causaram a oposição. Mas por livrar-se das consequências era necessário que fossem refutados os princípios. Esta Oposição ao Agostinianismo surgiu com os monges, e prevaleceu principalmente entre eles. Como diz Gieseler, 171 era algo muito natural. Agostinho ensina que o homem não podia fazer nada por si mesmo, e que não podia adquirir mérito algum aos olhos de Deus. Os monges criam não só que podiam fazer tudo o que Deus lhes demandava, mas também mais ainda. Se não, para que 171 Kirchengeschichte, vol. vi. p. 350. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 234 submeter-se a seus votos de celibato, pobreza e obediência? O partido que assim se formou contra a doutrina ortodoxa ou estabelecida foi chamada Semipelagiana, porque estava situada numa posição intermediária entre Pelágio e Agostinho. Os Semipelagianos Os principais dirigentes deste partido foram João Cassiano, um monge oriental e discípulo de João Crisóstomo; Lerinensis Vincentius, e Fausto de Régio. O trabalho mais importante do Cassiano se intitulou “Collationes Patrum,” que é uma coleção de diálogos sobre diversos temas. Foi um devoto mais que um escritor especulativo, baseando-se na autoridade das Escrituras para o apoio de sua doutrina. Educado na Igreja grega e formado num monastério, todas as suas prevenções foram adversas ao agostinismo. E quando trasladou sua residência a Marselha no sul da França, e se encontrou em meio das igrejas que se inclinaram à autoridade de Agostinho, pôs-se a modificar e suavizar, mas não diretamente a opor-se às doutrinas distintivas daquele pai. 172 Vicente do Lerins, era um homem de um espírito diferente e de maior poder. Sua confiança estava na tradição. Sustentou a doutrina mais alta sobre a Igreja, e ensinou que a comunhão com ela na fé e as ordenanças foi a única condição essencial da salvação. Foi o autor da célebre fórmula quanto à regra de fé, quod ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum est. Sua obra principal se intitula “Commonitorium,” ou recordador, uma coleção principalmente de extratos. Este trabalho foi considerado durante muito tempo um padrão entre os romanistas, e foi respeitado por muitos protestantes de alta reputação pela capacidade que mostra. Pretendia-se que fosse um guarda contra a heresia, ao mostrar o que os líderes da Igreja tinham ensinado contra os hereges, e para determinar o princípio em que a autoridade dos pais devia ser admitido. Um só pai, embora um bispo, confessor ou mártir, poderia errar, e seus 172 See below, vol. iii., p. 449. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 235 ensinos serem propriamente desatendidos, mas quando ele esteve de acordo com a tendência geral do ensino eclesiástico, quer dizer, com a tradição, ele foi plenamente crido. 173 O mais capaz e mais influente dos líderes do partido semipelagiano foi Fausto de Régio, que assegurou a condenação do Lucidus, um defensor extremo da doutrina agostiniana, no Sínodo de Arles, 475, a.D., e quem foi chamado pelo conselho para escrever a obra “De gratia Dei et humanæ mentis libero arbitrio,” que alcançou grande celebridade e autoridade. Os semipelagianos, entretanto, estavam longe de estar de acordo entre si quanto ao pecado nem quanto à graça. Cassiano ensinou que os efeitos do pecado de Adão a sua posteridade foram: (1.) Que se converteu em mortal, e sujeito às fraquezas físicas desta vida. (2.) Que os conhecimentos da natureza e da lei divina que Adão possuía originalmente, foi em grande medida preservada até que os filhos de Sete se casaram com as filhas de Caim, quando a raça se tornou gravemente deteriorada. (3.) Que os efeitos morais da queda foram para debilitar a alma com toda sua força para o bem, para que os homens necessitassem constantemente a ajuda da graça divina. (4.) Que essa graça ou era a influência sobrenatural do Espírito, a eficiência providencial de Deus, ou seus vários dons de faculdades e de conhecimentos, ele em nenhuma parte se explica claramente. Ele admitiu que os homens não poderiam salvar-se, mas sustentou que não estavam espiritualmente mortos, que estavam doentes, e constantemente necessitavam a ajuda do Grande Médico. Ele ensinou que o homem às vezes começou o trabalho de conversão; às vezes Deus, e às vezes, em certo sentido, Deus salva os que não o desejam. 174 Vicente, evidentemente, considerava que a doutrina agostiniana do pecado original, faz com que Deus seja o autor do mal; porque, diz ele, isso assume que Deus criou uma natureza, que 173 174 Sacr. Bibl. Sanc. Pat., 2d. edit. Paris, 1589, tom. iv. pp. 62-91. Magna Bib. Vet. Pat., Cologne, 1618, tom. v. par. ii., p. 90 ff. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 236 age de acordo com suas próprias leis e sob o impulso de uma cativa vontade, não pode fazer nada senão o pecado. 175 E ele pronuncia heréticos os que ensinam que a graça salva aos que não pedem, não buscam, ou não batem, em alusão evidente à doutrina de Agostinho que não é de quem quer, nem de quem corre, mas de Deus mostrar a misericórdia. Fausto admitiu uma corrupção moral da natureza como consequência da queda de Adão, ao que chamou pecado original (originale delictum). Em sua carta a Lucidus anatematiza a doutrina de Pelágio de que o homem nasce “sem pecado.” 176 Deste estado deteriorado, doentio, nenhum homem pode livrar-se. Ele necessita a graça de Deus. Mas o que era a graça é duvidoso. A partir de algumas passagens de seus escritos não parece ser destinado a ele somente, ou principalmente, a influência moral da verdade revelada pelo Espírito nas Escrituras. Ele diz que Deus atrai os homens a Si, mas “Quid est attrahere nisi prædicare, nisi scripturarum consolationibus excitare, increpationibus deterrere, desideranda proponere, intentare metuenda, judicium comminari, præmium polliceri?” 177 Os Semipelagianos concordavam no rechaço da doutrina Pelagiana de que o pecado de Adão tinha prejudicado só a ele; admitiam que os efeitos daquele pecado passaram a todos os homens, afetando tanto o corpo como a alma. Tornou o corpo mortal, e suscetível às doenças e ao sofrimento; e a alma foi debilitada, de modo que se fez tendente ao mal e incapaz, sem ajuda divina, de fazer nada espiritualmente bom. Mas sustentavam contra o Agostinianismo, ao menos segundo as declarações de Próspero e Hilário, os defensores do Agostinianismo no sul da França: (1) Que o começo da salvação está no homem. O homem começa a buscar a Deus, e que logo Deus o ajuda. (2) Que este incipiente voltar-se da alma a Deus é algo bom, e num sentido é meritório. (3) Que a alma, em virtude de sua liberdade da vontade ou capacidade para o 175 Wiggers, ut supra, vol. ii., p. 214. Sac. Bibl. Sanc. Pat., 2d. edit. Paris, 1589, tom. iv. pp. 875, 876. 177 De Lib. Arbit. I. xvii.: Ibid. p. 906. 176 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 237 bem, coopera com a graça de Deus em regeneração assim como em santificação. Que estas acusações estavam bem baseadas é o que se deve inferir das decisões dos concílios de Orange e Valência em 529 d.C., nos quais as doutrinas de Agostinho foram de novo ratificadas. Como as decisões daqueles concílios foram ratificadas pelo Papa, foram do mesmo modo, segundo a teoria papal, declaradas como a fé da Igreja. Entre as questões que assim se declararam como incluídas na verdadeira doutrina escriturística estão: (1) Que a consequência do pecado de Adão não se limita ao corpo, nem às faculdades inferiores da alma, mas envolve a perda de capacidade para o bem espiritual. (2) Que o pecado derivado de Adão é morte espiritual. (3) Que a graça é concedida, não porque o homem a busca, mas a disposição para buscar é uma obra da graça e o dom de Deus. (4) Que o princípio da fé e a disposição para crer não é da vontade humana, mas sim da graça de Deus. (5) Crer, querer, desejar, buscar, pedir, bater na porta da misericórdia, tudo isso deve ser atribuído à obra do Espírito e não ao bem que pertence à natureza do homem caído. Por isso, os dois grandes pontos em disputa entre os Agostinianos e os Semipelagianos foram decididos em favor dos primeiros. Estes pontos eram: (1) Que o pecado original, ou a corrupção da natureza derivada de Adão, não foi simplesmente um desfalecimento de nosso poder para o bem, mas sim foi morte espiritual; realmente pecado, incapacitando a alma para qualquer bem espiritual. E (2) Que na obra da conversão não é o homem quem começa, mas sim o Espírito de Deus. O pecador não tem poder para voltar-se a si mesmo a Deus, mas é voltado ou renovado pela graça divina antes que possa fazer algo espiritualmente bom. 178 As decisões dos concílios do Orange e Valência em favor do Agostinianismo não puseram fim à controvérsia. O partido Semipelagiano seguiu sendo numeroso e ativo, e chegou a ganhar tanta influência que no nono século Gottschalk foi condenado por ensinar a 178 Binius, Concilia, Colonia, 1618, Tomo II, párrafo I, pág. 638. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 238 doutrina da predestinação no sentido Agostiniano. Deste período até o tempo da Reforma e das decisões do Concílio de Trento, prevaleceu uma grande diversidade de opiniões na Igreja Latina a respeito de todas as questões referentes ao pecado, à graça e à predestinação. Ao chegar-se a admitir geralmente que a retidão original era um dom sobrenatural, chegou-se também a manter de maneira geral que o efeito do pecado de Adão sobre si mesmo e sobre sua posteridade foi a perda daquela retidão. Este foi seu único efeito subjetivo. Assim, a alma fica no estado em que foi originalmente criada, e em que existiu, dizem alguns que durante um período mais longo, outros mais curto, ou num período nada perceptível, antes da recepção do dom sobrenatural. É neste estado que os homens nascem no mundo da apostasia de Adão. A doutrina de Anselmo. Esta perda da retidão original era considerada universalmente como um mal penal. Era o castigo pelo primeiro pecado de Adão, que veio igualmente sobre ele e sobre todos os seus descendentes. A questão agora é: qual é o estado moral de uma alma carente de retidão original considerado como um dom sobrenatural? Foram as diferentes respostas dadas a esta pergunta que deram origem aos pontos de vista em conflito a respeito da natureza e consequências do pecado original. 1. Alguns diziam que este estado negativo era em si mesmo pecaminoso. Admitindo que o pecado original era simplesmente a perda da retidão original, era entretanto verdadeira e propriamente pecado. Esta foi a postura assumida por Anselmo, o pai da filosofia e teologia escolásticas. Em sua obra, “De Conceptu Virginali et Originali Peccato,” diz ele das crianças, 179 “Quod in illis non est justitia, quam debent habere, non hoc fecit illorum, voluntas personalis, sicut in Adam, sed egestas naturalis, quam ipsa natura accepit ab Adam — facit natura personas 179 Cap. xxiii.; Opera, Paris, 1721, p. 104, B, d. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 239 infantium peccatrices. Nullam infantibus injustitiam super prædictam nuditatem justitiæ. 180 Peccatum originale aliud intelligere nequeo, nisi ipsam — factam per inobedientiam Adæ justitiæ debitæ nuditatem.” 181 Mas este pecado original, mesmo em crianças, embora puramente negativo, entretanto, é verdadeira e propriamente pecado. Anselmo diz: “Omne peccatum est injustitia, et originale peccatum est absolute peccatum, unde sequitur quod est injustitia. Item si Deus non damnat nisi propter injustitiam; damnat autem aliquem propter originale peccatum, ergo non est aliud originale peccatum quam injustitia. Quod si ita est, originale peccatum non est aliud quam injustitia, i.e., absentia debitæ justitiæ.” 182 A doutrina de Abelardo. 2. A postura assumida por outros dos escolásticos foi que a perda da retidão original deixou a Adão precisamente no estado em que tinha sido criado, e por isso in puris naturalibus (isto é, nos atributos simples e essenciais de sua natureza). E como seus descendentes compartilham sua sorte, nascem no mesmo estado. Não haveria corrupção hereditária inerente, nem caráter moral, bom ou mau. Não se lhes poderia imputar como pecado a ausência de um dom sobrenatural não pertencente à natureza do homem, e que deveria ser outorgado como um favor. Assim, o pecado original na posteridade de Adão não poderia consistir em outra coisa que na imputação aos mesmos da primeira transgressão que ele cometeu. Eles sofrem o castigo por aquele pecado, castigo que é a perda da retidão original. Segundo esta postura, o pecado original é pena mas não culpa. É verdade que a consequência inevitável desta privação de retidão seria que os poderes inferiores da natureza humana chegariam a dominar sobre a mais alta, e que cresceria em pecado. Entretanto, não teria pecado inerente ou subjetivo no recém-nascido. Haveria uma 180 Cap. xxiv.; Ibid. p. 105, A, c. Cap. xxvii.; Ibid. p. 106, A, b. 182 Cap. iii.; Ibid. p. 98, A, e, B, a. 181 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 240 propensão natural ao pecado, surgindo da constituição original e normal de nossa natureza, e a ausência de retidão original que seria um freio, ou estorvo, mediante o qual os poderes inferiores deveriam ser mantidos sob sujeição. Mas ao esta ser a condição em que Adão saiu das mãos de seu Criador, não poderia em si mesma ser pecaminosa. O pecado consiste em assentimento e propósito, e, por isso mesmo, até que a alma não consinta a este domínio de sua natureza inferior e aja de maneira deliberada de acordo com a mesma, não pode ser acusada de nenhum pecado pessoal e inerente. Por isso, não há pecado de natureza em distinção a pecado cometido. É certo, como ensinavam os defensores desta teoria, em obediência à fé universal da Igreja e a clara doutrina da Bíblia, que os homens nascem em pecado. Mas é a culpa do primeiro pecado de Adão, e não sua própria corrupção inerente. Eles admitiam a fidelidade da tradução latina de Romanos 5:12, que faz o Apóstolo dizer que todos os homens pecaram em Adão (in quo omnes peccaverunt). Mas entendiam esta passagem como não ensinando nada mais que a imputação do primeiro pecado de Adão, e não uma corrupção inerente hereditária da natureza. Esta foi a teoria do pecado original adotada por Abelardo, que mantinha que nada pertencia propriamente à natureza de pecado, senão uma ação executada com má intenção. Como não pode haver tal intenção nos recém-nascidos, não pode, falando corretamente, haver pecado neles. Há uma propensão a pecar que ele chama vitium; mas o pecado consiste em consentir com esta inclinação, e não na própria inclinação. “Vitium itaque est, quo ad peccandum proni efficimur, hoc est inclinamur ad consentiendum ei, quod non convenit, ut illud scilicet faciamus aut dimittamus. Hunc vero consensum proprie peccatum nominamus, hoc est culpam animæ, qua damnationem meretur.” 183 Ele admitiu o pecado original como um castigo, ou como a culpa do pecado de Adão, mas isto era externo e não inerente. 184 183 184 Ethica seu liber dictus: scito se ipsum, cap. iii.; Opera, Paris, 1859, vol. ii. p. 596. In Epistolam ad Romanos, lib. ii.; Ibid. vol. ii. p. 238. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 241 Esta postura a respeito do pecado foi intensamente apoiada por alguns dos teólogos da Igreja de Roma na época da Reforma, especialmente por Catarino e Pighius. Este último, de acordo com Chemnitz, 185 assim indicou sua doutrina: “Quod nec carentia justitiæ originalis, nec concupiscentia habeat rationem peccati, sive in parvulis, sive adultis, sive ante, sive post baptismum. Has enim affectiones non esse vitia, sed naturæ conditiones in nobis. Peccatum igitur originis non esse defectum, non vitium aliquod non depravationem aliquam, non habitum corruptum, non qualitatem vitiosam hærentem in nostra substantia, ut quæ sit sine omni vitio et depravatione, sed hoc tantum esse peccatum originis, quod actualis transgressio Adæ reatu, tantum et poena transmissa et propagata sit ad posteros sine vitio aliquo et pravitate hærente in ipsorum substantia: et reatum hunc esse; quod propter Adæ peccatum extorres facti sumus regni coelorum, subjecti regno mortis et æternæ damnationi, et omnibus humanæ naturæ miseriis involuti. Sicut ex servis, qui próprio vitio libertatem amiserunt, nascuntur servi: non suo, sed parentum vitio. Et sicut filius scorti, sustinet infamiam matris, sine proprio aliquo in se hærente vitio.” 186 A doutrina de Tomás de Aquino. 3. A terceira forma da doutrina que prevaleceu durante este período foi a proposta por Tomás de Aquino (1224-1274 d.C.), um monge dominicano, o Doutor Angélico dos escolásticos, e em muito o teólogo mais influente da Igreja Latina dos tempos de Agostinho. Sua «Suma Teológica» foi considerada durante muito tempo como uma obra normativa entre os Romanistas, e continua sendo citada como autoridade tanto pelos Romanistas como pelos Protestantes. Tomás se aproximou muito de Agostinho que os outros teólogos de seu tempo. Ensinou ele: (1) Que a retidão original foi para Adão um dom sobrenatural. (2) Que 185 186 Examen Concilii Tridentini, de Peccato Originale, edit. Frankfort, 1674, part i., p. 100. See also Köllner’s, Symbolik, vol. ii. p. 285. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 242 por sua transgressão perdeu este dom para si e para sua posteridade. (3) Que a retidão original consistia originalmente na inclinação fixa da vontade para com Deus, ou a submissão da vontade a Deus. (4) Que a consequência inevitável ou concomitante da perda desta retidão original, desta conversão para com Deus, é a aversão da vontade com relação a Deus. (5) Que o pecado original, portanto, consiste em duas coisas: Primeiro, a perda da retidão original, e segundo, a desordem da natureza inteira. O primeiro ele chamou o aspecto formal, e o outro, o material do pecado original. Para empregar sua própria ilustração, uma faca é de ferro; o ferro é o material, a forma é aquilo que faz do material uma faca. Assim no pecado original esta aversão da vontade com relação a Deus (como hábito) é a substância do pecado original, deve sua existência e natureza à perda da retidão original. (6) Por isso, a alma, depois da perda de sua retidão primária, não permanece in puris naturalibus, mas em um estado de corrupção e pecado. Este estado às vezes se chama inordinatio virium animae; às vezes uma deordinatio; às vezes aversio voluntatis abono incomunicabili; às vezes uma disposição corrompida, quando ele diz: 187 “Causa hujus corruptæ dispositionis, quæ dicitur originale peccatum, est una tantum, scilicet privatio originalis justitiæ, per quam sublata est subjectio humanæ mentis ad Deum.” Mais frequentemente, seguindo o seu usus loquendi * e de períodos posteriores esta parte positiva do pecado original é chamada concupiscência. Esta é uma palavra muito difícil de compreender, porque é usada em sentidos muito distintos inclusive com relação ao mesmo tema. Alguns, por concupiscência, podem simplesmente designar o instinto sexual; outros, o que pertence em geral à nossa natureza sensorial; outros, tudo aquilo no homem que tem como seu objeto o visível e temporal; e outros ainda, a disposição torcida da alma, pela qual, sendo adversa a Deus a criatura é dirigida ao mal. Assim, quando 187 * Summa, II. i. lxxxii. art. ii. edit. Cologne, 1640, p. 144 of second set. usus loquendi, isto é, o significado das palavras no seu contexto. (N. do T.) Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 243 se diz que o pecado original, quando é considerado positivamente, consiste na concupiscência, tudo depende do sentido em que se tome a palavra. Se por concupiscência se significa só a natureza sensorial, então o pecado original tem sua sede principalmente no corpo e nos afetos animais, ficando os poderes superiores da alma sem ser afetados por sua contaminação. Tomás de Aquino toma a palavra em seu sentido mais amplo, como é evidente pelos equivalentes recém-mencionados, aversão a Deus, disposição corrompida desordem ou deformidade dos poderes da alma. É neste sentido, diz ele: “Originale peccatum concupiscentia dicitur.” (7) Quanto aos elementos, constitutivos desta corrupção original, ou tal como o expressa ele, as feridas sob as quais sofre nossa natureza caída, diz que incluem: (a) Ignorância e ausência do conhecimento correto de Deus na inteligência. (b) Uma aversão na vontade com relação ao sumo bem. (c) Nos sentimentos ou afetos, ou antes, naquele departamento de nossa natureza em que são manifestados pelos sentimentos, uma tendência a deleitar-se em coisas criadas. Por isso, a sede do pecado original nele é toda a alma. (8) Esta concupiscência ou corrupção inerente não é um ato ou agência ou atividade, mas um hábito, isto é, uma disposição imanente inerente da mente. 188 (9) Finalmente, o pecado original é um mal penal. A perda de retidão original e a consistente desordem de nossa natureza, são a penalidade pela primeira transgressão de Adão. Até aqui, a doutrina de Tomás está estritamente de acordo com a de Agostinho. Sua consideração da questão poderia ser redigida como uma exposição da resposta no «Catecismo de Westminster», que declara que a pecaminosidade daquele estado em que caíram os homens consiste na culpa do primeiro pecado de Adão, a ausência de retidão original e a corrupção de toda a sua natureza. A diferença reside no grau de dano recebido pela apostasia de Adão, ou a profundidade da corrupção da natureza derivada dele. Tomás chama isto de frouxidão ou fraqueza. 188 Ibid. art. i. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 244 Como consequência da queda, os homens são totalmente incapazes de salvar-se a si mesmos, nem de fazer nada verdadeiramente bom à vista de Deus sem a ajuda da graça divina, mas seguem tendo a capacidade de cooperar com aquela graça. Não podem, como ensinavam os Semipelagianos, começar a obra de voltar-se a Deus e por isso necessitam a graça preveniente (gratia praeveniens), mas com esta graça são capacitados a cooperar. Isto origina a diferença entre a graça eficaz (irresistível) de Agostinho, e o sinergismo que entra em todos os outros sistemas. A doutrina dos Escotistas. 4. Duns Escoto, um Franciscano, professor da Teologia em Oxford, Paris e Colônia, onde morreu ou 1308 d.C., foi um grande oponente de Tomás de Aquino. Pelo que respeita à questão do pecado original, uniuse aos semipelagianos. Fez com que o pecado original consistisse só na perda da retidão original, e como esta era puramente um dom sobrenatural, não pertencente à natureza do homem, sua perda deixou a Adão, e a sua posteridade depois dele, precisamente no estado em que o homem tinha sido criado originalmente. Seja qual for a desordem conseguinte a esta perda de retidão, não é da natureza do pecado. “Peccatum originale,” diz ele, “non potest esse aliud quam ista privatio [justitiæ originalis]. Non enim est concupiscentia: tum quia illa est naturalis, tum quia ipsa est in parte sensitiva, ubi non est peccatum.” 189 Por isso, os homens fazem no mundo in puris naturalibus, não no sentido Pelagiano, porquanto os Pelagianos não admitem nenhum dom sobrenatural de retidão dado a Adão, mas no sentido de que possuem todos os atributos essenciais de suas naturezas sem danificar e incontaminados. Assim como o livre-arbítrio, isto é, a capacidade para fazer e ser tudo o que é demandado do homem por seu Criador, pertence essencialmente à sua natureza, também isto permanece desde a Queda. 189 In Lib. IV Sentent., lib. II. dist. xxx. qu. 2; Venice, 1506, 2d part, fol. 83, p. 2, b. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 245 Fica certamente debilitado e rodeado de dificuldades, porquanto o que dava equilíbrio à nossa natureza, a retidão original, foi-se, mas segue aí. Não pode fazer o bem nem tornar-se bom sem a graça de Deus. Mas a dependência da que fala Escoto é mais a da criatura com relação ao Criador que a do pecador para com o Espírito de Deus. Seu empenho parece ter sido o de reduzir o sobrenatural ao natural; confundir a distinção feita constantemente na Bíblia e pela Igreja entre a eficiência providencial de Deus presente em todas as partes e operando sempre em e com causas naturais, com a eficiência do Espírito Santo na regeneração e santificação da alma. 190 Os Dominicanos e Franciscanos chegaram a ser e continuaram sendo durante muito tempo, as duas ordens monásticas mais poderosas da Igreja de Roma. Assim como eram antagonistas em tantos outros pontos, também estavam opostos em doutrina. Os Dominicanos, como discípulos de Tomás de Aquino, foram chamados Tomistas, e os Franciscanos, como seguidores de Duns Escoto, foram chamados Escotistas. A oposição entre estes partidos incluía, como vimos, a oposição de pontos de vista quanto ao pecado original. Os Tomistas estavam inclinados a um Agostinianismo moderado, e os Escotistas a um Semipelagianismo. Mas todas as teoria anteriormente mencionadas, com diversas modificações, tinham seus zelosos defensores na Igreja Latina, quando o Concílio do Trento foi convocado para determinar de maneira autoritativa a verdadeira doutrina, e levantar uma barreira ao poder crescente da Reforma. A doutrina Tridentina a respeito do Pecado Original. O Concílio de Trento confrontava-se com uma tarefa extremamente difícil. Em primeiro lugar, era necessário condenar as doutrinas dos Reformadores. Mas os Protestantes, tanto Luteranos como Reformados, tinham proclamado sua adesão ao sistema Agostiniano em sua pureza e 190 Ritter, Geschichte der christlichen Philosophie, Vol. IV, págs. 354-472. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 246 plenitude; e a declaração desse sistema tinha recebido a sanção de concílios e de papas, e não podia ser impugnado de maneira correta. Esta dificuldade foi superada dando uma falsa descrição da doutrina Protestante, e fazendo-a parecer inconsequente com a doutrina de Agostinho. Este método foi preservado até nossos dias. Moehler em sua obra «Symbolik» descreve a doutrina dos Protestantes a respeito do pecado original, e especialmente a de Lutero, como uma forma de Maniqueísmo. A outra dificuldade, mais séria, era a grande diversidade de opinião existente na Igreja e no próprio Concílio. Alguns eram Agostinianos; outros mantinham que o pecado original consistia simplesmente na carência da retidão original, mas que esta carência é pecado. Outros não admitiam pecado original, mas sim a imputação da primeira transgressão de Adão. Outros, com os Dominicanos, insistiam que a desordem de todas as capacidades conseguintes à perda da retidão original, isto é, a concupiscência, é verdadeira e propriamente pecado. Os Franciscanos negavam isto. Sob estas circunstâncias os legados pontifícios, que assistiam ao Concílio exortaram aos reunidos a que não decidissem nada com relação à natureza do pecado original, lembrando que não tinham sido chamados para ensinar doutrinas senão para condenar erros. 191 E o Concílio procurou seguir este conselho, e por isso suas decisões foram expressas em termos muito gerais. 1. O Sínodo pronuncia um anátema sobre aqueles que não confessam que Adão, quando transgrediu no paraíso o mandamento de Deus, perdeu imediatamente a santidade e retidão em que tinha sido constituído (constitutus fuerat, o positus erat), e que por aquela ofensa incorreu na ira e indignação de Deus e também na morte e na sujeição àquele que tem o poder da morte, isto é, o diabo, e que Adão inteiro por sua queda em transgressão foi mudado para pior em corpo e alma. Os efeitos do primeiro pecado de Adão sobre si mesmo foram então: (1) A perda da retidão original. (2) A morte e o cativeiro a 191 Moehler’s Symbolik, 6th edition, p. 57. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 247 Satanás. (2) A deterioração de toda sua natureza tanto em alma como em corpo. 2. O Sínodo anatematiza também aos que dizem que o pecado de Adão só danificou a ele, e não a sua posteridade; ou que perdeu a santidade e retidão que tinha recebido de Deus só por si e não também por nós, ou que transmitiu à raça humana só a morte e as penas corporais (paenas corporis) e não o pecado, que é a morte da alma. Ensina-se aqui que os efeitos do pecado de Adão sobre sua posteridade são: (1) A perda da retidão original. (2) A morte e as misérias da vida; e (3) O pecado, ou morte espiritual (peccatum, quod est mors animae). Esta é uma clara condenação do Pelagianismo, e uma clara declaração do pecado original como algo irradiado a todos os homens. Entretanto, da natureza deste pecado não se declara nada mais que é a morte da alma, o que pode ser explicado de diferentes maneiras. 3. Também são condenados os que dizem que este pecado de Adão, que é irradiado a todos (omnibus transfusum), e que está inerente em cada um como seu próprio pecado (inest unicuique proprium), pode ser eliminado pelos poderes da natureza humana, ou por qualquer outro remédio senão o mérito de nosso único Mediador, o Senhor Jesus Cristo, que nos reconciliou a Deus por seu sangue, e que nos é feito justiça, santificação e redenção. Declara-se aqui: (1) Que o pecado original é comunicado por propagação e não, como dizem os Pelagianos, por imitação. (2) Que pertence a cada homem e lhe é inerente. (3) Que não pode ser tirado por outro meio senão pelo sangue de Cristo. 4. O Sínodo condena a todos os que ensinam que o recém-nascido não deveria ser batizado; ou que, embora batizado para remissão de pecados, não derivam nada do pecado original de Adão, que deve ser expiado na bacia de bronze da regeneração a fim de obter a vida eterna, de maneira que no caso deles o batismo não seria verdadeiro, mas sim falso. Por isso, as crianças, que não podem ter cometido pecado pessoal, Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 248 são verdadeiramente batizadas para a remissão de pecados, para que o que contraíram na geração seja purificado em regeneração. Daí parece que segundo o Concílio de Trento há pecado nos recémnascidos, que é necessário que seja remetido e lavado mediante a regeneração. 5. O quinto cânon declara que por meio da graça de nosso Senhor Jesus Cristo conferida no batismo, a culpa do pecado original é remetida, e tudo é eliminado que tenha a verdadeira e própria natureza de pecado. Admite-se que a concupiscência (vel fomes) fica no batizado, contra a qual devem lutar os crentes, mas se declara que a concupiscência, embora às vezes é chamada pecado pelo Apóstolo (como se admite), não é verdadeira nem propriamente pecado nos regenerados. Tudo isto é o que ensina o Concílio sob o cabeçalho de pecado original, exceto que é preciso dizer que não têm o propósito de que suas decisões se apliquem à Virgem Maria. O Sínodo deixa sem decidir se ela foi sujeito ao pecado original, como o mantinham os Dominicanos, seguindo a Tomás de Aquino, ou se foi concebida de maneira imaculada, como o afirmavam zelosamente os Franciscanos, seguindo a Duns Escoto. Na sexta sessão, ao tratar da justificação (isto é, da regeneração e santificação), o Concílio decide vários pontos, que devem determinar a postura que adotaram seus membros a respeito da natureza do pecado original. Nos cânones adotados naquela sessão, declara-se, entre outras coisas: (1) Que os homens não podem, sem a graça divina por meio de Jesus Cristo, por suas próprias obras, isto é, obras levadas a cabo com suas próprias forças, ser justificados diante de Deus. (2) Que a graça não é dada simplesmente para fazer mais fáceis as boas obras. (3) Que os homens não podem crer, esperar, amar ou arrepender-se para obter a graça regeneradora sem a graça preveniente de Deus (sine praevenienti Spiritus inspiratione atque ejus adjutorio). (4) Os homens podem cooperar com esta graça preveniente, podem assentir a ela, ou podem rejeitá-la. (5) Os homens, pela Queda, não perderam seu liberum Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 249 arbitrium, capacidade de fazer o bem ou o mal. (6) Nem todas as obras feitas antes da regeneração são pecaminosas. De tudo isto fica evidente que, enquanto o Concílio de Trento rejeitou a doutrina Pelagiana da capacidade plenária do homem desde a Queda, e também a doutrina Semipelagiana de que os homens podem começar a obra de reforma e conversão, entretanto condena com não menos clareza a doutrina Agostiniana da total incapacidade humana para fazer algo espiritualmente bom, mediante o que possa preparar-se ou dispor-se a si mesmo para a conversão, ou merecer a graça regeneradora de Deus. A verdadeira doutrina da Igreja de Roma. Permaneceu a mesma incerteza a respeito de qual era a verdadeira doutrina da Igreja de Roma quanto ao pecado original depois deste Concílio como a que havia antes. Cada partido interpretava seus cânones segundo suas próprias opiniões. O Sínodo declarou que todos os homens nascem infectados com o pecado original, mas fica sem decidir se este pecado consistiu simplesmente na culpa do primeiro pecado de Adão, ou na carência de retidão original, ou na concupiscência. E por isso todos os pontos de vista seguiram sendo sustentados pelos teólogos da Igreja de Roma. Os antigos Protestantes em geral consideraram os cânones do Concílio de Trento como redigidos a propósito para obscurecer o assunto, e mantiveram que a verdadeira doutrina da Igreja [de Roma] envolvia a negação de todo pecado original no sentido de pecado, objetivo ou inerente. Neste ponto de vista concorrem muitos, se não a maioria, dos teólogos modernos. Winer (em seu «Comparative Darstellung»), Guericke (em seu «Symbolik»), Koellner (em seu «Symbolik»), Baur (em seu “Answer to Moehler”), e o doutor Shedd, em sua «History of Christian Doctrine», denunciam todos à Igreja de Roma como sustentando que o pecado original é meramente negativo, a carência de retidão original, e negando que haja algo subjetivo no estado da natureza humana tal como os homens nascem neste mundo, que tenha Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 250 a natureza própria de pecado. As razões que sustentam esta visão da questão são: 1. As doutrinas prevalecentes dos escolásticos e dos teólogos Romanistas a respeito da natureza do pecado. De acordo com os protestantes, “Quidquid a norma justitiæ in Deo dissidet, et cum ea pugnat, habet rationem peccati.” 192 A isto os romanistas se opõem à definição de Andradius: “Quod nihil habeat rationem peccati nisi fiat a volente et sciente.” Se este é o caso, então é impossível que não deveria haver nenhum pecado inerente ou inato. Como as crianças não são “conhecer e querer,” no sentido dos agentes morais, não podem ter pecado. Belarmino 193 diz: “Non satis est ad culpam, ut aliquid sit voluntarium habituali voluntate, sed requiritur, ut processerit ab actu etiam voluntario: Alioqui voluntarium illud, habituale voluntate, naturale esset, et misericordia non reprehensione dignum.” Ele diz que se o homem fosse criado in puris naturalibus, sem a graça, e com esta oposição da carne à razão, não seria um pecador. Com a perda da retidão original está inevitavelmente conectada esta rebelião da natureza inferior do homem contra sua natureza superior. Com a perda da inclinação da vontade para com Deus se implica necessariamente a aversão a Deus. Esta tendência da vontade que acompanha o pecado original não é pecado em si mesma, e entretanto é pecado em nós. Porque Belarmino diz que há uma «perversio voluntatis et obliquitas unicuique inhraerens, per quam peccatores proprie et formaliter dicimur, cum primum homines esse incipimus». Isto, certamente, parece contraditório. A perversão da vontade, ou concupiscência, conseguinte à perda da retidão original, não é em si mesma pecaminosa. Não obstante, constitui-nos em própria e formalmente pecadores logo que começamos a existir. Nada é da natureza do pecado senão a ação voluntária, ou o que procede do mesmo, e entretanto as crianças são pecadores desde o seu nascimento. Ele tenta 192 193 Chemnitz, Examen Concilii Tridentini, I. iv. edit. Frankfort, 1674, p. 116. De Amissione Gratia et Statu Peccati, V. xviii., Disputationes, vol. iv. p. 333, d. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 251 conciliar estas contradições dizendo: “Peccatum in Adamo actuale et personale in nobis originaliter dicitur. Solus enim ipse actuali voluntate illud commisit, nobis vero communicatur per generationem eo modo, quo communicari potest id, quod transiit, nimirum per imputationem. Omnibus enim imputatur, qui ex Adamo nascuntur, quoniam omnes in lumbis Adami existentes in eo et per eum peccavimus, cum ipse peccavit.” Quer dizer, o ato voluntário de Adão, foi ao mesmo tempo o ato da vontade de todos os seus descendentes. Assim o pecado original está em nós, embora nada é pecado em nenhuma criatura que não consista num ato de sua própria vontade, ou que não flua de tal ato. Mas a isto Baur observa com razão: «O que é um ato de uma vontade não existente, um ato a que se atribui a natureza de pecado, embora se encontre totalmente fora da consciência do indivíduo? Pode-se atribuir algum significado a tal exposição? Não destrói acaso a ideia de culpa e pecado, que seja imputado só porque é irradiado em geração comum?» 194 Se alguém, ou uma igreja, sustentam uma teoria a respeito da natureza do pecado que seja incompatível com a doutrina do pecado original, a existência de tal pecado é por isso mesmo negada. (2) Outra razão enfatizada em favor da posição de que a Igreja de Roma nega o pecado original se deduz do que esta Igreja ensina a respeito da retidão original. Se a retidão original é um dom sobrenatural não pertencente à integridade da natureza humana, sua perda o deixa no estado em que saiu das mãos de seu Criador. E este estado não pode ser pecaminoso a não ser que Deus seja o autor do pecado. Até Belarmino, que disputa pelo pecado original, em certo sentido, diz entretanto que o homem está, desde a Queda, no mesmo estado que Adão tal como foi criado. “Non magis differt status hominis post lapsum Adæ a statu ejusdem in puris naturalibus, quam differat spoliatus a nudo, neque deterior est humana natura, si culpam originalem detrahas, neque magis ignorantia et infirmitate laborat, quam esset et laboraret in puris naturalibus condita. 194 Katholicismus und Protestantismus, Tübingen, 1836; segunda edición, pág. 92, nota. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 252 Proinde corruptio naturæ non ex alicujus doni naturalis carentia, neque ex alicujus malæ qualitatis accessu, sed ex sola doni supernaturalis ob Adæ peccatum amissione profluxit.” 195 (3) O Concílio de Trento declara de maneira expressa que a concupiscência nos batizados, isto é, os regenerados, não é de natureza de pecado. Logo não pode ser nos não batizados; porque sua natureza não é mudada pelo batismo. Por outro lado, entretanto, pode-se arguir: (1) Que o Concílio de Trento se declara expressamente contra a doutrina Pelagiana de que o pecado de Adão danificasse só a ele, e declara que toda nossa natureza, alma e corpo, foi por isso mesmo mudada para pior. (2) Afirmam que derivamos de Adão não meramente uma natureza mortal, mas sim pecado, que é morte da alma. (3) Que os pequenos recém-nascidos necessitam o batismo para a remissão de pecado, e que o que é eliminado no batismo de crianças veram et propriam peccati rationem habet. (4) O Catecismo Romano ensina196 que «nascemos em pecado», que somos oprimidos pela corrupção da natureza (naturae vitio premimur) e 197 que nós nihil simus, nisi putida caro; que o vírus do pecado penetra até os mesmos ossos, isto é, rationem, et voluntatem, quæ maxime soldæ sunt animæ partes. Esta última passagem não se refere expressamente ao pecado original, mas sim ao estado dos homens em geral como pecadores. Entretanto, indica a postura assumida pela Igreja de Roma a respeito da atual condição da natureza humana. (5) Belarmino, que é frequentemente citado para demonstrar que os Romanistas fazem do pecado original a mera perda da retidão original, diz: «Si privationem justitiæ originalis ita velit esse effectum pecati, ut non sit etiam ipsa vere proprieque peccatum, Concilio Tridentino manifeste repugnat, neque distingui potest a sententia Catharini» (quem fizesse que o pecado original consistisse somente na imputação do primeiro pecado de Adão). 195 De Gratia Primi Hominis, cap. v.; Disputationes, edit. Paris, 1608, vol. iv. p. 16, d, e. P. iii. c. 10, qu. 4; Streitwolf, Libri Symbolici Ecclesiæ Catholicæ, vol. i. p. 579. 197 P. iv. c. 14, qu. 5; Ibid. pp. 675, 676. 196 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 253 Por tudo isto fica evidente que, embora a doutrina da Igreja de Roma não seja nem lógica nem internamente coerente, é entretanto verdade que esta Igreja ensina a doutrina do pecado original no sentido de uma corrupção pecaminosa da natureza, ou de uma pecaminosidade inata, hereditária. Deve-se observar também que todos os partidos na Igreja de Roma; antes e depois do Concílio de Trento, e por muito que diferissem em outros pontos, estavam unidos no ensino da imputação do pecado de Adão; isto é, que por aquele pecado passou a sentença de condenação a todos os homens. § 7. A doutrina Protestante a respeito do pecado Na época da Reforma, as Igrejas Protestantes não tentaram determinar a natureza do pecado de forma filosófica. Não o consideraram nem como uma limitação necessária, nem como uma negação de ser, nem como a condição indispensável da virtude, nem como tendo sua sede na natureza sensual do homem, nem como consistindo só em egoísmo, nem como sendo, à semelhança da dor, um mero estado da consciência, e não um mal diante de Deus. Baseando sua doutrina sobre sua consciência moral e religiosa e sobre a Palavra de Deus, declararam que o pecado era a transgressão da, ou carência de conformidade com, a lei divina. Nesta definição concordam todas as classes de teólogos, Luteranos e Reformados. Segundo Melâncton, “Peccatum recte definitur ἀνομία, seu discrepantia a lege Dei, h. e., defectus naturæ et actionum pugnans cum lege Dei, easdemque ex ordine justitiæ divinæ ad poenam obligans.” Gerhard diz: 198 “Peccatum” seu “ἀνομία” est “aberratio a lege, sive non congruentia cum lege, sive ea in ipsa natura hærat, sive in dictis, factis ac concupiscentiæ motibus, inveniatur.” Baier diz: 199 “Carentia conformitatis cum lege.” Vitringa 198 199 Loci Theologici, XI. i. 3; edit Tübingen, 1766, vol. v. p. 2, b. Compendium Theologiæ, edit. Frankfort, 1739, p. 346. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 254 200 “Forma peccati est disconvenientia actus habitus, aut status diz: hominis cum divina lege.” Nestas definições se inclui: (1) Que o pecado é um mal específico, diferindo de todas as outras formas de mal. (2) Que o pecado está relacionado com a lei. As duas coisas são correlativas, pelo que onde não há lei não pode haver pecado. (3) Que a lei com a qual assim se relaciona o pecado não é meramente a lei da razão, nem a da consciência, ou a da conveniência, mas a lei de Deus. (4) Que o pecado consiste essencialmente na carência de conformidade, da parte de uma criatura racional, à natureza ou lei de Deus. (5) Que inclui culpa e contaminação moral. O pecado é um mal específico O pecado é um mal específico. Isto o sabemos por nossa própria consciência. Ninguém senão um ser sensível pode conhecer o que é um sentimento. Não podemos nem determinar a priori qual é a natureza de uma sensação, nem comunicar a ideia a alguém que careça dos órgãos sensoriais. A não ser que tivéssemos sentido dor ou prazer, não poderíamos compreender o que significam estas palavras. Se tivéssemos nascido cegos, não teríamos nem ideia do que é a luz. Se tivéssemos nascido surdos, não teríamos ideia do que é poder ouvir. Ninguém senão uma criatura racional pode saber o que se significa por insensatez. Só criaturas com uma natureza estética podem ter a percepção da beleza ou da deformidade. De uma maneira semelhante, só seres morais podem saber o que é o pecado ou a santidade. O conhecimento, em todos estes casos, é dado imediatamente na consciência. Seria em vão tentar decidir a priori o que são a dor, o prazer, a visão e a audição; e muito menos demonstrar que não há tais sensações, ou que não diferem entre si e de todas as demais outras formas de nossa experiência. Cada homem, em virtude de ser uma criatura moral, e porquanto é pecador, tem por isso 200 Doctrina Christianæ Religionis, x. 7; edit. Lyons, 1762, vol. ii. pp. 285, 286. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 255 em sua própria consciência o conhecimento do pecado. Sabe que quando não é o que deveria ser, quando faz o que deveria não fazer, ou omite o que se deveria fazer, é culpado de pecado. Sabe que o pecado não é simplesmente a limitação de sua natureza; nem meramente um estado subjetivo de sua própria mente, sem ter caráter à vista de Deus; que não é só uma insensatez, ou que esteja por debaixo de sua dignidade; ou simplesmente inconveniente porque é prejudicial a seus próprios interesses, ou prejudicial ao bem-estar de outros. Sabe que tem um caráter específico próprio, e que inclui ao mesmo tempo culpa e contaminação. O pecado tem relação com a lei. Uma segunda verdade incluída em nossa consciência de pecado é que tem relação com a lei. Como seres morais e racionais estamos necessariamente sujeitos à lei do direito. Isto está incluído na consciência da obrigação. A palavra dever não teria significado, se não fosse assim. Quando dizemos que algo é nosso dever significamos que estamos obrigados; que estamos sob uma autoridade de alguma classe. A palavra lei, com relação a questões morais e religiosas, emprega-se em dois sentidos. Primeiro, às vezes significa um poder controlador, como quando o Apóstolo diz que tinha uma lei em seus membros lutando contra a lei da mente. Segundo, significa aquilo que vincula, um mandamento de alguém em autoridade. Este é o senso comum do termo no Novo Testamento. Como a regra que obriga a consciência dos homens, e que prescreve o que devem e não devem fazer, foi variadamente revelada na constituição de nossa natureza, no Decálogo, nas instituições mosaicas e na totalidade das Escrituras, o termo emprega-se às vezes num sentido que inclui todas estas formas de revelação; às vezes em referência exclusiva a uma delas, e às vezes exclusivamente com referência a outra. Em todos os casos se retém a ideia geral. A lei é aquilo que liga a consciência. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 256 O pecado está relacionado com a Lei de Deus. A grande pergunta é: Qual é a lei que prescreve ao homem o que deve ser e fazer? (1) Alguns dizem que é nossa própria razão, ou os mais altos poderes da alma. Estes poderes têm a prerrogativa de governar. O homem é autônomo. É responsável perante si mesmo. Ele está obrigado a submeter sua vida, e sobretudo seus poderes inferiores, à sua razão e consciência. Com relação à sua própria dignidade é a obrigação completa sob a qual se encontra, e que cumpre todos os seus deveres quando se vive como é digno de si mesmo. Esta teoria enfrenta a evidente objeção: (a) De que a lei é algo fora de nós e superior a nós, totalmente independente de nossa vontade ou razão. Não podemos nem fazê-la nem alterá-la. Se nossa razão e consciência estão pervertidas, e determinam como correto o que por sua natureza é injusto, nem por isso alteram a realidade. A lei permanece imutável em suas demandas e em sua autoridade. (b) Com base na teoria não poderia haver sentido de culpa. Quando um homem age contra os ditados de sua razão, ou de maneira depreciativa à dignidade de sua natureza, ele pode sentir-se envergonhado ou degradado, mas não culpado. Não pode haver uma convicção de que é responsável perante a justiça, nem nada dessa horrenda expectação de juízo, que diz o Apóstolo que é inseparável da comissão de pecado. (2) Outros dizem que a lei deve ser achada na ordem moral do universo, ou na idoneidade eterna das coisas. Mas tudo isto são meras abstrações. Não podem impor obrigação nem infligir penalidade pela transgressão. Esta teoria outra vez omite de vista, e desconhece por completo, alguns dos mais simples atos da consciência universal dos homens. (3) Outros dizem que a única lei a que estão sujeitas as criaturas racionais são uma consideração ilustrada pela sorte do universo. (4) Outros ainda tomam uma postura mais baixa, e dizem que a única coisa que tem autoridade sobre o homem é uma ilustrada Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 257 consideração por nossa própria felicidade. Mas é evidente que as teorias negam o caráter específico da obrigação moral. Não existe nelas o pecado como distinto do imprudente ou inconveniente. Não pode haver sentido de culpa nem responsabilidade perante a justiça, exceto por violações das normas da conveniência. (5) Fica claro pela própria constituição de nossa natureza que estamos sujeitos à autoridade de um ser racional e moral, um Espírito que conhecemos infinito, eterno e imutável em Seu ser e perfeições. Todos os homens, em todas as idades e partes do mundo, sob todas as formas da religião, e de todos os graus de cultura, têm sentido e reconhecido que estavam sujeitos a um ser persona1 superior a eles. Nenhuma forma da filosofia especulativa, por plausível ou por muito difundida que estivesse ou sustentada confiantemente nas escolas ou em particular, valeram jamais para invalidar este juízo instintivo e intuitivo da mente. Homens ignorantes do verdadeiro Deus fizeram-se para si mesmos deuses imaginários, cuja ira suplicaram e aos quais tentaram propiciar para alcançar os seu favor. Mas quando lhes foi apresentado à mente a ideia escriturística de Deus como um Ser pessoal imensamente perfeito, nunca se pode descartar. Recomenda-se à razão e a consciência. Resolve todos os enigmas de nossa natureza. Dá satisfação a todos os nossos desejos e aspirações; e sentimo-nos obrigados a conformar-nos a este Ser, a Ele e à Sua vontade, e sabemos que somos diante dEle responsáveis por nosso caráter e conduta. Esta vinculação não a podemos lançar de nós mesmos. A lei da gravitação não mais inexoravelmente une a terra à sua órbita que nossa natureza moral une a nossa lealdade e a responsabilidade de Deus. Seria pouco razoável negar um como o outro, e tão inútil para opor-se a uma diante da outra. Esta é claramente a doutrina do Apóstolo na passagem que acabamos de nos referir [Romanos 1]. Ele se estava referindo aos mais depravados e viciosos do mundo pagão, homens aos quais Deus tinha entregue a uma mente reprovada; e entretanto afirma que não só eles tinham conhecido a Deus, mas também conheciam Seu justo juízo; que os que cometem pecado são Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 258 dignos de morte; isto é, que estavam de direito submetidos à autoridade, e inevitavelmente expostos à ira e indignação, de um governador moral. Este é um fato, assim, que é dado na consciência universal dos homens. O pecado está relacionado com a lei, e esta lei não a promulgamos nós, não é uma mera ideia ou abstração, não é uma mera verdade ou razão, ou a idoneidade das coisas, mas sim a natureza e vontade de Deus. A Lei, tal como se revela à consciência, implica um legislador, um ser de cuja vontade é a expressão, e que tem o poder e o propósito manter em vigor todas as suas demandas. E não só isto, mas também um que, pela própria perfeição de Sua natureza, tem que mantê-las em vigor. É em vão argumentar contra estas convicções. É em vão dizer, não há Deus, não há um Ser de quem dependamos, e perante quem somos responsáveis por nosso caráter e conduta. Alcance das demandas da Lei. A pergunta seguinte é: Que demanda esta lei? Esta é a questão a respeito da qual se deu maior diversidade de opiniões e sobre as diversas respostas recebidas se fundamentaram sistemas de teologia assim como de moral. A resposta dada pela consciência insofisticada e ilustrada dos homens, e pela palavra de Deus, é que a lei exige uma completa perfeição, ou a total conformidade da natureza moral e conduta de uma criatura racional à natureza e à vontade de Deus. Ordena-nos que amemos a Deus com todo o coração, com toda a alma, com toda nossa força, e com toda nossa mente, e a nosso próximo como a nós mesmos. Isto Implica uma total congenialidade com Deus; a consagração sem reservas de todos os nossos poderes a Seu serviço, e a absoluta submissão à Sua vontade. Não se pode demandar nada mais que isto a nenhuma criatura. Nenhum anjo ou santo glorificado pode ser ou fazer mais que isto, e isto é o que a lei demanda de toda criatura racional, em todo tempo e em cada estado de seu ser. Num sentido esta obrigação está limitada pela capacidade (não no sentido teológico moderno do termo) da criatura. A capacidade de uma criança é menor que a de um cristão Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 259 adulto, ou que a de um anjo. Pode conhecer menos. Pode conter menos. Está num degrau inferior de ser. Mas o que a lei demanda é a perfeição moral absoluta da criança do adulto ou do anjo. E esta perfeição inclui a total ausência de todo pecado e a total conformidade da natureza à imagem e vontade de Deus. E assim como esta é a doutrina da Bíblia, assim o é também o ensino da consciência. Cada homem, ou pelo menos cada cristão, sente que peca ou que é pecaminoso sempre e quando não alcançar a uma total conformidade com a imagem de Deus. Sente que a frouxidão, a frieza dos afeiçoados, o defeito no zelo, e a carência de humildade, de gratidão, de docilidade, de longanimidade e de benevolência são nele da natureza do pecado. A antiga máxima, omne minus bonum habet rationem mali, autentica-se na consciência de cada crente não sofisticado. Esta foi a doutrina de Agostinho, que em sua carta a Jerônimo, 201 diz: “Plenissima (caritas) quæ jam non possit augeri, quamdiu hic homo vivit, est in nemine; quamdiu autem augeri potest, profecto illud, quod minus est quam debet, ex vitio est.” Os teólogos luteranos e reformados afirmam o mesmo princípio.202 Se for correto este princípio, se a lei exigir a plena conformidade com a natureza e vontade de Deus, disso segue: 1. Que não pode haver perfeição nesta vida. Cada uma das formas de perfeccionismo que prevaleceu jamais na Igreja está baseada quer na hipótese de que a lei não exige uma total libertação do mal moral, ou na negação de que não há nada que tenha natureza de pecado exceto atos da vontade. Mas se a lei é tão extensa em suas demandas para anunciar como pecado todo defeito em qualquer dever, e toda deficiência na pureza, ardor ou constância dos santos afetos, então chega a seu fim a 201 Epistola, CLXVII. iv. 15; Works, edit. Benedictines, vol. ii. p. 897, a. See Chemnitz, Examen Concilii Tridentini, I. De Justificatione, edit. Frankfort, 1674, p. 165, f. De Bonis Operibus, qu. 3, p. 205, a. Gerhard, Loci Theologici, XI. x. 42-45, v. p. 21-24. Quenstedt, Theologia, P. II. cap. ii. § 2, q. 3, edit. Leipzig, 1715, p. 967. 202 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 260 presunção de que qualquer mero homem desde a Queda tenha jamais alcançado a perfeição. 2. Segue também deste princípio que nunca se pode atribuir aos homens neste mundo nenhum mérito por boas obras. Por mérito, segundo o sentido escriturístico da palavra, significa-se o merecimento de uma recompensa como assunto de justiça, com base em uma total satisfação das demandas da lei. Mas se estas demandas nunca foram perfeitamente cumpridas por nenhum homem caído, nenhum de tais homens pode ser justificado por suas obras, nem ter, como o expressa o Apóstolo, nenhum καύχημα - kauchëma, nenhum direito baseado no mérito aos olhos de Deus. Sempre tem que depender da misericórdia e esperar a vida eterna como um livre dom de Deus. 3. Ainda mais evidentemente se segue do princípio em questão que não pode haver tal coisa como obras de supererrogação. Se ninguém nesta vida pode guardar perfeitamente os mandamentos de Deus, fica muito claro que ninguém pode fazer mais que o que exige a lei. Os Romanistas contemplam a lei como uma série de promulgações específicas. Além daqueles mandamentos que comprometem a todos os homens, há certas coisas que chamam preceitos, que não são de obrigação universal, como o celibato, a pobreza e a obediência monástica, e coisas semelhantes. Estas vão além da lei. Ao acrescentar ao cumprimento das demandas de Deus a observância dos preceitos, alguém pode chegar a cumprir mais do que se requer dele, e adquirir assim uma quantidade de mérito maior que aquele que necessita para si mesmo, que em virtude da comunhão dos santos pertence à Igreja, e que pode ser aplicada, por meio do poder das chaves, para benefícios de outros. Naturalmente, toda a base para esta teoria fica eliminada se a lei exige uma perfeição absoluta, a qual, inclusive segundo a doutrina deles, ninguém alcança nesta vida. Sempre estão carregados com pecados veniais, que Deus em Sua misericórdia não imputa como pecados verdadeiros, mas que entretanto são imperfeições. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 261 O pecado não se limita a atos da vontade. 4. Outra conclusão que se tira da doutrina escriturística quanto ao alcance da lei divina, como o mantêm todos os Agostinianos, é que o pecado não se limita a atos da vontade. Há três sentidos em que se emprega a palavra «voluntário» com relação a esta questão. O primeiro e estrito sentido não considera uma ação como da vontade se não é um ato de deliberada autodeterminação, algo que é levado a cabo sciente et volente [sabendo e querendo]. Segundo, todos os exercícios espontâneos e impulsivos dos sentimentos e dos afetos são em certo sentido voluntários. E terceiro, tudo o que seja inerente na vontade como um hábito ou disposição chama-se voluntário como pertencente à vontade. A doutrina da Igreja de Roma a respeito destes pontos, como se mostra na seção precedente, é assunto de disputa entre os próprios Romanistas. A maioria dos escolásticos e dos teólogos Romanistas negam que nada seja da natureza do pecado senão as ações voluntárias no primeiro sentido da palavra «voluntário» que se mencionou anteriormente. Já se viu como tentam conciliar a doutrina da corrupção hereditária e inerente, ou pecado original, com este princípio. Mas mantendo este princípio, negam rotundamente que os meros impulsos, os motus primo primi, como são chamados, das más disposições sejam de natureza pecaminosa. Veem-se forçados a adotar esta doutrina por sua postura a respeito do batismo. Nesta ordenança, segundo a teoria que mantêm, eliminou-se tudo o que seja de natureza de pecado. Mas a concupiscência, com suas inclinações, permanece. Estas, entretanto, se não são deliberadamente seguidas e obedecidas, não são pecaminosas. Que o sejam ou não, naturalmente depende do alcance da lei. Nada é pecaminoso se não o contrário à lei divina. Se esta lei demanda perfeita conformidade com a imagem de Deus, então estes impulsos ao mal são claramente pecaminosos. Mas se a lei só toca atos deliberados, não o são. A doutrina Protestante que pronuncia que estes atos impulsivos são da natureza de pecado fica confirmada pela consciência do crente. Reconhece como um mal em sua própria natureza os primeiros impulsos de malícia, inveja, orgulho ou Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 262 cobiça. Sabe que surgem de uma natureza má, ou imperfeitamente santificada. Constituem parte da carga de corrupção que espera abandonar na tumba; e sabe que estará livre disso no céu; jamais perturbaram a alma perfeitamente santa de seu bendito Senhor, a cuja imagem sempre está agora obrigado a conformar-se. 5. Segue do princípio de que a lei condena toda carência de conformidade com a natureza de Deus, que condena as más disposições ou hábitos, assim como todos os pecados voluntários, sejam deliberados ou impulsivos. Segundo a Bíblia e os ditados da consciência, há pecaminosidade além de pecados; existe o caráter em distinção dos atos fugazes mediante os quais este caráter se revela; isto é, um estado pecaminoso, permanente, inerente, formas imanentes de mal, que são verdadeira e propriamente da natureza de pecado. Assim, nem todo pecado é uma agência, atividade ou ato: pode ser e é também uma condição ou estado da mente. Esta distinção entre pecado habitual e cometido foi reconhecido e admitido na Igreja desde o princípio. Nosso Senhor nos ensina esta distinção quando fala de um mau coração em distinção a atividades ímpias, coisas tão distintas como uma árvore e seus frutos. O Apóstolo fala do pecado como uma lei, ou princípio controlador que regula ou determina suas ações inclusive apesar de sua melhor natureza. Diz que o pecado habita nele. Queixa-se dele como uma carga muito pesada para levar, da qual geme rogando a libertação. E sua experiência nisto é a experiência (não dizemos a teoria) de todo o povo de Deus. Sabem que há mais neles da natureza de pecado que meros atos e exercícios; que seu coração não é reto diante de Deus; que a própria fonte da qual brotam as águas é amarga; que a árvore é conhecida por seus frutos. Consiste na ausência de conformidade com a Lei de Deus. Os Protestantes ensinam não só que o pecado é um mal específico, que tem relação com a lei, que a lei é a natureza e vontade de Deus, e que reconhece e condena todas as formas de mal moral ou carência de Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 263 excelência moral, mas também que a natureza formal do pecado é a ausência de conformidade com a lei divina ou norma de excelência. Esta ausência de conformidade não é uma mera negação como a que se possa pregar de uma pedra ou de um bruto, dos quais se pode dizer que não estão conformados à imagem de Deus. A ausência de conformidade com a lei divina que constitui o pecado é a ausência de congenialidade de uma natureza moral com outra; da natureza dependente e criada com a natureza imensamente santa que necessariamente não é só a soma mas sim a norma de toda excelência. Nisto consiste o pecado, em que não somos conformes a Deus. Assim como o oposto da razão é a sem razão, o oposto à sabedoria é a insensatez, e o oposto ao bem é o mal, da mesma maneira o oposto à santidade divina é o pecado. Não importa de que exercícios ou estados na natureza de um ser moral se possa pregar esta oposição; de atos deliberados, de meros atos impulsivos, ou de disposições ou hábitos; se opõe-se à natureza divina é pecado, odioso em si mesmo e digno de condenação. Assim, em todo pecado há um elemento positivo. Isto é, não se trata meramente da privação de retidão, mas sim é uma injustiça positiva. Porque a ausência de um numa natureza moral é o segundo. A falta de congenialidade com Deus é alienação de Deus, e, como dizem as Escrituras, inimizade contra Ele. Assim, os símbolos e os teólogos Protestantes, ao definir o pecado não meramente como egoísmo ou amor da criatura ou amor ao mundo, que só são modos de sua manifestação, mas sim como a ausência de conformidade de um ato, hábito ou estado de um homem com a lei divina, que é a revelação da natureza divina, têm como apoio tanto a razão como a consciência. Esta doutrina da natureza do pecado fica plenamente sustentada pela autoridade da Escritura. O Apóstolo João diz que toda carência de conformidade com a lei é pecado. As duas ideias hamartia e anomia são coextensivas. Tudo o que seja o um, é o outro. Parece que alguns dos tempos do Apóstolo estavam dispostos a limitar as demandas da fé divina, e a considerar algumas coisas como não proibidas de maneira específica como legítimas. Em oposição a isto, o Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 264 Apóstolo lhes diz que todo o mal é ilegítimo, porque a própria natureza do mal é falta de conformidade com a lei: πᾶς ὁ ποιῶν τὴν ἁμαρτίαν καὶ τὴν ἀνομίαν ποιεῖ - pas ho pion ten hamartian kai ten anomian poiei, aquele que comete pecado comete anomia, porque ἡ ἁμαρτία ἐστὶν ἡ ἀνομία - he hamartía estin he anomia, porque toda falta de conformidade com a lei é pecado (1Jo 3:4). Com isto concordam também todas as exposições da Escritura. As palavras ali empregadas para pecado em todas as suas formas expressam a ideia de não conformidade com uma norma. E além disto a Bíblia ensina em todo lugar que Deus é a fonte e norma de todo bem. Seu favor é a vida da alma. A congenialidade com Ele, a conformidade com Sua vontade e natureza, é a ideia e perfeição de toda excelência; e o estado oposto, a carência desta congenialidade e conformidade, é a soma e essência de todo mal. O pecado inclui culpa e contaminação O pecado inclui culpa e contaminação; o primeiro expressa sua relação com a justiça, o segundo sua relação com a santidade de Deus. Estes dois elementos de pecado serviam na consciência de cada pecador. Sabe que está condenado pela justiça de Deus, e que é ofensivo a Seus santos olhos. Inclusive para si mesmo ele é odioso, degradado e se condena a si mesmo. Entretanto, há duas coisas incluídas na culpa. A primeira a expressamos mediante as palavras criminalidade, demérito e inutilidade. A outra é a obrigação de sofrer o castigo devido a nossas ofensas. Estas são evidentemente coisas distintas, embora expressas pela mesma palavra. Diz-se da culpa de nossos pecados que foi posta sobre Cristo, isto é, a obrigação de dar satisfação às demandas da justiça por causa dos mesmos. Mas Ele não assumiu a criminalidade, o demérito ou a inutilidade de nossas transgressões. Quando o crente é justificado, élhe tirada sua culpa, mas não seu demérito. Permanece sendo de fato, e a seus próprios olhos, a mesma criatura indigna, merecedora do inferno, considerada em si mesma, que o que era antes. Um homem condenado perante um tribunal humano por qualquer ofensa contra a comunidade, Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 265 quando sofreu a pena que a lei prescreve não é por isso menos indigno, e seu demérito existe sendo o mesmo que existia desde o princípio. Mas foi tirada sua responsabilidade perante a justiça ou obrigação à pena da lei, em outras palavras, sua culpa neste sentido da palavra foi removida. Seria injusto castigá-lo outra vez por aquela ofensa. Esta distinção os teólogos costumam expressar com os termos reatus culpæ y reatus penæ. Culpa é (strafwürdiger Zustand) ser digno de repreensão; e reatus penæ é culpa na forma de um castigo inerente: enquanto que reatus penæ é a dívida que devemos à justiça. O fato de que a culpa, no sentido inclusivo do termo, e a contaminação entram na natureza do pecado, ou são inseparáveis da mesma, não só se revela à nossa própria consciência, mas também as Escrituras o dão em todo lugar como suposto. A Bíblia declara constantemente que o pecado e todo pecado, tudo o que leve sua natureza, não só é odioso diante de um Deus santo, mas também é objeto de Sua ira e indignação, a justa razão para infligir castigo. Isto está admitido, e não se pode negar. A única pergunta é. O que é necessário para suscitar o sentimento de culpa tal como existe na consciência? Ou, o que é preciso para que alguma coisa seja uma base justa para o castigo diante de Deus? É suficiente com que a própria coisa seja pecaminosa? Ou é necessário que se deva a nossa própria ação voluntária? Este último o dão por sentado não só os Pelagianos e todos aqueles que definem o pecado como a transgressão voluntária da lei conhecida, mas também muitos que mantêm a distinção do pecado habitual em distinção a pecado cometido, e que inclusive reconhecem que os homens fazem em pecado. Insistem que inclusive o mal inato, o pecado inerente, deve ser atribuível à nossa própria ação voluntária, ou não pode ser culpa em nós. Mas isto é: 1. Contrário à nossa própria consciência. A existência do pecado no coração, a presença de atitudes ímpias, sem considerar sua origem, vai inevitavelmente acompanhada por um sentimento de contaminação e culpa. Sendo estas disposições ímpias em sua própria natureza, devem Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 266 incluir tudo o que é essencial a esta natureza. E, como se reconheceu, a culpa é essencial à natureza do pecado. Nada há pecaminoso que não implique culpa. A consciência ou convicção de pecado tem por isso que incluir a convicção de culpa. E consequentemente, se ficamos convencidos pelas declarações da Escritura e pelo estado de nossa natureza que nascemos em pecado, temos que ficar convencidos de que a culpa vai juntamente com a inata corrupção da natureza. Além disto, o pecado habitual ou residente não é voluntário no sentido de ser por desígnio ou intencionado, ou no sentido de que esteja sob o poder da vontade, e entretanto todos os cristãos admitem que este pecado residente constitui uma terrível carga de culpa; uma carga mais pesada para o coração e a consciência que todas nossas transgressões cometidas. 2. O princípio em questão não está menos oposto aos juízos comuns dos homens. Todos os homens julgam instintivamente a um homem pelo que é. Se é bom, assim o consideram. Se é mau, pronunciam-no mau. Este juízo é tão inevitável ou necessário como o de que alguém seja alto ou baixo, erudito ou literato. A questão quanto à origem do caráter do homem não entra na base deste juízo. Se nasce bom, se ele se tornou bom a si mesmo, ou se recebeu esta qualidade de bom como dom de Deus não afeta de maneira material ao caso. É bom, e como deve ser considerado e tratado. Da mesma maneira, tudo o que é necessário a fim de justificar e precisar o juízo de que um homem seja mau é que assim o seja. Este é o princípio pelo qual nos julgamos a nós mesmos, e sobre o qual os homens se julgam universalmente uns aos outros. Por isso, este princípio tem que ser bom. 3. A doutrina de que o pecado, a fim de incluir culpa, tem que poder ser referido à nossa própria ação voluntária, é contrária à analogia. Não é assim com a santidade. Adão foi criado santo. Sua santidade constituía tão verdadeiramente seu caráter como se a tivesse adquirido por si mesmo, e se tivesse sido retida teria continuado sendo, e enquanto que fosse retida era objeto de complacência e a base de recompensa diante de Deus. A graça habitual, como é chamada, ou o novo princípio da vida Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 267 espiritual, comunicada à alma na regeneração, não é autoproduzida. É devido ao poder sobrenatural do Espírito Santo, e entretanto constitui o caráter do crente. A única razão pela qual não é meritória é que é tão imperfeita, e que não pode cancelar a dívida que já devemos à justiça de Deus. Entretanto, a alma, se é perfeitamente santificada pelo Espírito Santo, é tão pura, tão objeto de aprovação e de deleite para Deus, como um anjo não caído. 4. A doutrina em questão contradiz a fé da Igreja universal. Deve-se fazer uma distinção entre a fé da Igreja e as especulações (ou inclusive as doutrinas) dos teólogos. Com frequência ambas as coisas divergem. A primeira é determinada pelas Escrituras e pelos ensinos internos do Espírito; as segundas estão grandemente modificadas pela filosofia vigente do século em que viveram estes teólogos, e pelas idiossincrasias de suas próprias mentes. Durante a Idade Média, por exemplo, as especulações dos escolásticos e a fé da Igreja tinham bem pouco em comum. A fé da Igreja encontra-se em seus credos, orações e geralmente em suas formas de devoção. Em todas estas, ao longo de todos os séculos a Igreja mostrou que considera a todos os homens como carregados com o pecado original, como pertencentes a uma raça contaminada e culpada, contaminada e culpada desde o primeiro momento de sua existência. Não se pode dizer que a Igreja cresse que o pecado original fosse devido à ação de cada homem individual, nem que fosse o ato da humanidade genérica. Estes são pensamentos alheios às mentes do comum dos crentes. Por isso, deve ter existido sempre e em todas as partes na Igreja a convicção de que pode haver culpa que não está ligada à ação voluntária dos culpados. As crianças foram sempre batizadas para remissão de pecados, e os homens sempre foram considerados pela igreja como nascidos em pecado. 5. A explicação dada do inegável fato da contaminação e culpa inatas, da parte daqueles que admitem o fato, mas que mantêm que este pecado original é atribuível à nossa própria ação, é totalmente insatisfatória. Esta explicação é que cometemos uma ação milhares de Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 268 anos antes que existíssemos, isto é, que a substância que constitui nossas almas individuais cometeu, na pessoa de Adão, o pecado de desobedecer a Deus no paraíso. Esta explicação, naturalmente, pressupõe o fato a explicar. O fato permanece, aconteça o que acontecer à explicação. Os homens nascem em estado de pecado e contaminação. Tudo o que se segue de rejeitar as explicações é que pode existir pecado que não seja atribuível à ação voluntária daqueles em quem está inerente. Esta consequência é muito mais fácil de admitir, na opinião da imensa maioria das pessoas, que a doutrina de que somos pessoalmente culpados de comer do fruto proibido como nossa própria ação. 6. A Bíblia, ao ensinar em todo lugar que os homens nascem em pecado, que vêm ao mundo como filhos da ira, ensina com isso que pode haver e que há pecado (contaminação e culpa) que se herda e deriva, que é inerente e inato, e por isso não atribuível à nossa própria ação. Como as Escrituras não ensinam em nenhum lugar que realmente pecamos antes de existir, afirmam o fato que entra na fé comum da Igreja, que a culpa une-se a todo pecado, seja como for que se origine aquele pecado. § 8. Os efeitos do pecado de Adão sobre sua posteridade. É parte da fé de todo o âmbito cristão que o pecado de Adão danificou não só a ele mesmo, mas também a todos os descendentes dele por geração comum. A natureza e o alcance do mal assim irradiado à sua raça, e a base ou razão de que os descendentes de Adão ficassem envoltos nas más consequências de sua transgressão, foram assunto de diversidade e de discussão. Quanto a estes dois pontos a comum doutrina Agostiniana é brevemente declarada nos Símbolos de nossa Igreja. Segundo um de nossos pontos normativos: «a pecaminosidade daquele estado em que o homem caiu consiste na culpa do primeiro pecado de Adão, a ausência de retidão original, e a corrupção de toda sua natureza, o que recebe usualmente o nome de pecado original, junto com todas as transgressões materializadas que surgem dele». Esta corrupção de Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 269 natureza é declarada na Confissão de Fé como «tanto em si mesma como em todas as suas atividades, verdadeira e propriamente pecado». E como consequência desta corrupção original, os homens estão «totalmente indispostos, incapacitados e feitos opostos a todo bem, e totalmente inclinados a todo mal». Quanto à base destes males, ensina-nos que «tendo sido concertado a aliança com Adão não só por ele mesmo mas também por toda a sua posteridade, toda a humanidade ao descender dele por geração comum pecou nele e caiu com ele em sua primeira transgressão». Ou, como se expressa na Confissão: «Nossos primeiros pais, sendo a raiz de toda a humanidade, a culpa de seu pecado foi imputada, e a mesma morte em pecado e natureza corrompida foram comunicadas a toda a sua posteridade, descendendo deles por geração comum.» Nesta perspectiva da relação da humanidade com Adão, e das consequências de sua apostasia, os três temas principais que se incluem são a imputação do primeiro pecado de Adão; a corrupção da natureza derivada dele, e a incapacidade do homem caído para qualquer bem espiritual. § 9. Imputação imediata. Admitindo-se que a raça do homem participa das más consequências da queda de nossos primeiros pais, este fato é explicado mediante diferentes teorias. 1. A adotada pelos Protestantes em geral, tanto por Luteranos como por Reformados, e também pelo grande corpo da Igreja Latina, é que em virtude da união, federal e natural, entre Adão e sua posteridade, seu pecado, embora não o ato deles, é-lhes imputado de tal maneira que é a base judicial de que a pena de que foi ameaçado caísse também sobre eles. Esta é a doutrina da imputação imediata. 2. Outros, enquanto admitem que toda a posteridade comum de Adão deriva dele uma natureza corrompida, negam entretanto, primeiro, Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 270 que esta corrupção ou morte espiritual seja uma inflição penal por seu pecado; e segundo, que haja imputação alguma aos descendentes de Adão de seu primeiro pecado. Tudo o que realmente lhes é imputado é sua própria depravação inerente e hereditária. Esta é a doutrina da imputação mediata. 3. Outros descartam inteiramente a ideia de imputação, pelo que respeita ao pecado de Adão, e atribuem a corrupção hereditária dos homens à lei geral da propagação. Pela totalidade dos reinos vegetal e animal, semelhante gera semelhante. O homem não é uma exceção a esta lei. Ao ter perdido Adão sua retidão original e corrompido sua natureza por sua apostasia, transmite esta natureza despojada e deteriorada a todos os seus descendentes. Com esta teoria não se determina até que grau esteja a natureza humana danificada pela queda. Segundo alguns, está tão deteriorada para estar espiritualmente morta, no verdadeiro sentido escriturístico do termo, enquanto que segundo outros o dano resulta pouco mais que uma fraqueza física, uma constituição danificada que o primeiro pai transmitiu a seus filhos. 4. Outros por sua vez adotam a teoria realista, e ensinam que assim como a humanidade genérica existia total e inteira nas pessoas de Adão e Eva, seu pecado foi o pecado de toda a raça. Ao nos ser comunicada a mesma substância numérica racional e voluntária que agiu em nossos primeiros pais, o ato deles foi verdadeira e propriamente nosso ato, sendo o ato de nossa razão e vontade, como foi o seu ato. Por isso nos é imputado não como dele, mas sim como nosso próprio. Literalmente pecamos em Adão, e consequentemente a culpa deste pecado é nossa culpa pessoal, e a conseguinte corrupção da natureza é o efeito de nosso próprio ato voluntário. 5. Outros, enfim, negam toda relação causal, seja lógica ou natural, seja judicial ou física, entre o pecado de Adão e a pecaminosidade de sua raça. Alguns que assumem esta postura dizem que foi uma constituição divina que se Adão pecava, todos os homens deveriam pecar. O primeiro acontecimento estava conectado com os outros só no propósito divino. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 271 Outros dizem que não há necessidade de explicar o fato de que todos os homens sejam pecadores além de atribuí-lo ao seu livre-arbítrio. Adão pecou, e outros homens pecam. Isto é tudo. Um fato tem uma explicação tão fácil como o outro. Enunciado da doutrina de imputação imediata A primeira das doutrinas anteriormente mencionadas é a que se apresenta nos Símbolos das Igrejas Luterana e Reformada, e pelo grande corpo de teólogos daquelas grandes ramos históricos da comunidade Protestante. 203 Qual foi esta doutrina pode enunciar-se em poucas palavras. Imputar é simplesmente atribuir a, tal como se diz que atribuímos bons ou maus motivos a alguém. No sentido jurídico e teológico da palavra, imputar é atribuir qualquer coisa a uma pessoa ou pessoas, sobre razões adequadas, como a razão judicial ou meritória de recompensa ou castigo, isto é, da outorga de bem ou da inflição de mal. A mais elaborada discussão da palavra hebraica חָשַׁב- chashab e da grega λογίζομαι - logízomai, que se empregam na Escritura com relação a este tema, não dá nada além do simples resultado que se mencionou. 1. Imputar é contar a, ou pôr em dia de alguém. Pelo que respeita ao sentido da palavra, não há diferença se o que se imputa é pecado ou justiça; seja que se trate de nosso pessoalmente, ou o pecado ou a justiça de outro. 2. Imputar pecado, no sentido escriturístico e teológico, é imputar a culpa do pecado. E por culpa se significa não a criminalidade nem a vergonha moral, nem o demérito, nem muito menos a contaminação moral, mas a obrigação judicial de dar satisfação à justiça. Por isso, o 203 Na época da Reforma, um influente partido da Igreja de Roma mantinha, seguindo a alguns dos escolásticos, que o pecado original consiste só na imputação do primeiro pecado de Adão, e como as Confissões dos Reformadores foram dadas não apenas como exposição da verdade, mas também como protesto contra os erros da Igreja de Roma, observar-se-á que os Protestantes afirmam que o pecado original é não somente a imputação do pecado de Adão, mas também a corrupção hereditária da natureza; e os teólogos Reformados com frequência destacavam mais a última coisa que a primeira, devido ao fato de que a primeira era admitida por seus adversários, mas a segunda era negada. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 272 mal conseguinte à imputação não é uma inflição arbitrária; não se trata meramente de uma desgraça ou calamidade; nem de uma disciplina, mas de um castigo, isto é, um mal infligido em execução da pena da lei e para a satisfação da justiça. 3. Uma terceira observação na elucidação do que se significa pela imputação do pecado de Adão é que todos os teólogos, sejam Reformados ou Luteranos, admitem que na imputação do pecado de Adão a nós, de nossos pecados a Cristo, e da justiça de Cristo aos crentes, a natureza da imputação é a mesma, de maneira que um caso ilustra os outros. Quando se diz que nossos pecados foram imputados a Cristo, ou que Ele levou nossos pecados, não se significa que realmente Ele cometesse nossos pecados, ou que Ele fosse moralmente criminoso por causa deles, ou que o demérito dos mesmos estivesse sobre Ele. Tudo o que se significa é que Ele tomou, usando a linguagem dos velhos teólogos, «nosso posto perante a lei». Ele assumiu o responder às demandas da justiça pelos pecados dos homens, ou, como o expressa o Apóstolo, ser feito maldição por eles. Da mesma maneira, quando se diz que a justiça de Cristo é imputada aos crentes, não significa que operassem eles aquela justiça, que eles fossem os agentes dos atos de Cristo na obediência da lei; nem que o mérito de Sua justiça sejam os méritos pessoais deles; nem que constitua seu caráter moral; simplesmente significa que Seu, tendo sido operada por Cristo para benefício de seu povo, em nome deles, por Ele como representante deles, é posta na conta deles, de maneira que Deus possa ser justo ao justificar aos ímpios. Muita da dificuldade a respeito desta questão surge da ambiguidade na linguagem. As palavras justo e injusto têm dois significados distintos. Às vezes expressam um caráter moral. Um homem justo é um homem reto ou bom. Em outras ocasiões, estas palavras não expressam caráter moral, mas sim simplesmente uma relação com a justiça. Neste sentido, um homem justo é alguém com relação a quem ficam satisfeitas as demandas da justiça. Pode ser pessoalmente injusto (ou ímpio), e legalmente justo. Se não fosse assim, nenhum pecador Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 273 poderia ser salvo. Não há um só crente na terra que não se sinta e se reconheça pessoalmente injusto, culpado, merecedor da ira e maldição de Deus. Não obstante, alegra-se na certeza de que a imensamente meritória justiça de Cristo, Sua plena expiação pelo pecado, constitui-lhe legalmente, não moralmente, justo para a justiça divina. Assim, quando Deus declara os injustos como justos, não os declara o que não são ou simplesmente declara que a dívida deles à justiça foi paga por outro. E quando se diz que o pecado de Adão é imputado à sua posteridade, não se significa que eles tivessem cometido este pecado, ou que fossem os agentes de seu ato, nem se significa que sejam moralmente criminosos pela transgressão dele; que seja para eles a razão de remorso e de autoinculpação; significa-se apenas que em virtude da união entre ele e seus descendentes, seu pecado é a base judicial da condenação de sua raça, precisamente como a justiça de Cristo é a base judicial da justificação de Seu povo. Até aqui o enunciado desta questão. Não é menos uma doutrina da Escritura que um fato da experiência o fato de que a humanidade é uma raça caída. Os homens são pecaminosos universalmente, sob todas as circunstâncias de seu ser neste mundo, e estão expostos a inumeráveis males. Muitos destes, e isso em muitos casos, e os mais chocantes, caem sobre os filhos dos homens na tenra infância, antes de qualquer possível transgressão própria. É um fato que não se pode negar; e por esta causa a mente humana se torturou para encontrar uma solução. A solução escriturística deste terrível problema é que Deus constituiu a nosso primeiro pai como cabeça federal e representante de sua raça, e o pôs à prova não só por si mesmo mas também por toda a sua posteridade. Se ele tivesse retido sua integridade, ele e todos os seus descendentes teriam sido confirmados para sempre num estado de santidade e felicidade. Ao cair do estado em que foi criado, eles caíram com ele em sua primeira transgressão, de maneira que a pena por este pecado veio sobre eles assim como sobre ele. Assim, os homens tiveram sua prova em Adão. Porquanto ele pecou, sua posteridade vem ao mundo num estado de pecado e de condenação. São Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 274 por natureza filhos da ira. Os males que sofrem não são imposições arbitrárias, nem simplesmente as consequências naturais de sua apostasia, mas sim inflições judiciais. A perda da retidão original, e a morte espiritual e temporal sob a qual começam sua existência, são a penalidade pelo primeiro pecado de Adão. Não dizemos que esta solução do problema da pecaminosidade e miséria do homem careça de dificuldades; porque os caminhos de Deus são inescrutáveis. Mas podese afirmar com confiança, primeiro, que esta é a solução escriturística ao problema; e segundo, que é muito mais satisfatória para a razão e a consciência que nenhuma outra solução que tenha sugerido jamais o engenho humano. Isto fica demonstrado por sua geral aceitação na Igreja Cristã. A base da imputação do pecado de Adão. A base da imputação do pecado de Adão, ou a razão pela qual a penalidade de seu pecado tem caído sobre toda a sua posteridade, segundo a doutrina anteriormente enunciada, é a união entre nós e Adão. Naturalmente não seria próprio imputar o pecado de um homem a outro a não ser que houvesse alguma conexão entre eles que explicasse e justificasse tal imputação. As Escrituras nunca falam da imputação dos pecados dos anjos nem dos homens nem a Cristo, nem da justiça dele a eles; porquanto não existe aquela relação entre homens e anjos, nem entre anjos e Cristo, para implicar um nas consequências judiciais do pecado ou da justiça do outro. A união entre Adão e sua posteridade que é a base da imputação de seu pecado a eles é ao mesmo tempo natural e federal. Ele era a cabeça natural deles. Tal é a relação entre pai e filho, não só no caso de Adão e de seus descendentes, mas em todos os outros, que o caráter e conduta do um, de maneira necessária, e em maior ou menor grau, afetam o outro. Nenhum fato da história está mais claro que o de que os filhos levam as iniquidades de seus pais. Eles sofrem pelos pecados dos primeiros. Deve haver uma razão para isso, uma razão fundada na mesma constituição de nossa natureza. Mas havia algo Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 275 peculiar no caso de Adão. Acima e além desta relação natural que existe entre um homem e sua posteridade, havia uma constituição divina especial pela qual ele foi designado a cabeça e o representante de toda a raça. Adão, a Cabeça Federal de sua raça. 1. Assim, o primeiro argumento em favor da doutrina da imputação é que as Escrituras apresentam a Adão como não só a cabeça natural, mas também a cabeça federal de sua posteridade. Isto está claro, como já se observou com base na narração dada em Gênesis. Tudo o que se diz ali a Adão foi dito em sua capacidade representativa. A promessa de vida foi para ele e para sua semente depois dele. O domínio com que foi investido pertencia à sua posteridade além de a ele mesmo. Todos os males com que foi ameaçado em caso de transgressão incluíam a eles, e de fato têm caído sobre eles. Eles são mortais; devem ganhar seu pão com o suor do seu rosto; estão submetidos a todos os inconvenientes e sofrimentos que surgem do desterro de nossos primeiros pais do paraíso, e da maldição pronunciada por causa do homem sobre a terra. E não menos evidentemente nascem no mundo carentes de retidão original e sujeitos à morte espiritual. Por isso, a pena total com que foi ameaçado Adão foi infligida a eles. Foi morte com a promessa de redenção. Agora, que estes males são penais em nosso caso assim como no dele é coisa clara, porque o castigo é um sofrimento infligido na execução de uma ameaça e para satisfação da justiça. Não importa qual seja o sofrimento. Seu caráter como pena não depende de sua natureza, mas sim do desígnio para o qual se aplica. Um homem, como já se observou antes, pode ser encerrado no cárcere para o proteger da violência popular; outro, em execução de uma sentença legal. Num caso o encarceramento é um favor; no outro, um castigo. Assim, porquanto os males que os homens sofrem devido ao pecado de Adão são infligidos em execução da pena com que foi ameaçado, são tão verdadeiramente penais em nosso caso como no dele; e por conseguinte ele foi tratado como a cabeça Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 276 federal e representante de sua raça. Além da clara hipótese da verdade desta relação federal, esta é declarada de maneira expressa na Palavra de Deus. O paralelo estabelecido pelo Apóstolo entre Adão e Cristo se relaciona precisamente neste ponto. Adão era o tipo dAquele que devia vir, porque como o primeiro era o representante de sua raça, assim o outro é o representante de Seu povo. E as consequências da relação se mostram como igualmente análogas. Foi porque Adão era o representante de sua raça que seu pecado é a base judicial para a condenação deles; e é devido ao fato de que Cristo é o representante de Seu povo, que Sua justiça é a base judicial da justificação dos crentes. O princípio representativo nas Escrituras. 2. Este princípio representativo impregna a totalidade das Escrituras. A imputação do pecado de Adão à sua posteridade não é um fato isolado. É só uma ilustração de um princípio geral que caracteriza as dispensações de Deus desde o princípio do mundo. Deus Se declarou a Si mesmo a Moisés como sendo «SENHOR, SENHOR Deus compassivo, clemente e longânimo e grande em misericórdia e fidelidade; que guarda a misericórdia em mil gerações, que perdoa a iniqüidade, a transgressão e o pecado, ainda que não inocenta o culpado, e visita a iniqüidade dos pais nos filhos e nos filhos dos filhos, até à terceira e quarta geração!» (Êx 34:6, 7). Jeremias diz: «Tu usas de misericórdia para com milhares e retribuis a iniquidade dos pais nos filhos; tu és o grande, o poderoso Deus, cujo nome é o SENHOR dos Exércitos» (Jr 32:18). A maldição pronunciada sobre Canaã caiu sobre sua posteridade. A venda da parte de Esaú de sua primogenitura excluiu a seus descendentes da aliança da promessa. Os filhos de Moabe e de Amom ficaram excluídos da congregação de Jeová para sempre, porque seus antepassados se opuseram aos israelitas quando saíram do Egito. No caso de Datã e Abirão, como no de Acã, «suas mulheres, e seus filhos, E seus pequenos» pereceram pelos pecados de seus pais. Deus disse a Eli que a iniquidade de sua casa não seria expiada jamais nem com Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 277 sacrifícios nem com ofertas. A Davi foi dito: «Não se apartará jamais de tua casa a espada, porquanto me menosprezaste, e tomaste a mulher de Urias heteu para que fosse tua mulher». Ao desobediente Geazi lhe disse: «A lepra de Naamã pegará a ti e a sua descendência para sempre». O pecado de Jeroboão e dos homens de sua geração determinou o destino das dez tribos para toda a história. A imprecação dos judeus, quando demandaram a crucificação de Cristo: «O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos» segue gravitando sobre o disperso povo de Israel. Nosso próprio Senhor disse aos judeus de Sua geração que eles tinham edificado os sepulcros dos profetas que seus pais tinham matado, com o que se reconheciam eles mesmos como filhos de assassinos, e que por isso o sangue daqueles profetas seria demandado das mãos deles. Este princípio passa através de todas as Escrituras. Quando Deus concertou aliança com Abraão, não foi por si mesmo somente, mas também por sua posteridade. Eles ficaram ligados por todas as estipulações daquela aliança. Eles compartilharam suas promessas e suas ameaças, e em centenas de casos a pena pela desobediência sobreveio sobre aqueles que não tiveram parte nas transgressões. Os filhos sofreram igualmente com os adultos nos juízos, fossem de fome, pestilência ou guerra, que sobrevieram ao povo por seus pecados. Da mesma maneira, quando Deus renovou e ampliou a aliança abraâmica no Monte Sinai, foi feito com os adultos daquela geração como representantes de seus descendentes até as mais remotas gerações. E os judeus estão até o dia de hoje sofrendo a pena dos pecados de seus pais pela rejeição dAquele de quem falaram Moisés e os profetas. Todo o plano de redenção descansa sobre o mesmo princípio. Cristo é o representante de Seu povo, e sobre esta base são-lhe imputados seus pecados a Ele e a justiça dEle é imputada a eles. Da mesma maneira, na aliança batismal o pai age pelo filho, e o vincula, sem o consentimento do filho, e o destino do filho depende, como norma geral, da fidelidade do pai. Ninguém que crê a Bíblia pode fechar os olhos ao fato de que em todas as partes se reconhece um caráter representativo dos pais, e que as Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 278 dispensações de Deus estiveram baseadas desde o começo sobre o princípio de que os filhos levam as iniquidades de seus pais. Esta é uma das razões que os incrédulos dão para rejeitar a origem divina das Escrituras. Mas a incredulidade não dá alívio algum. A história está tão cheia desta doutrina como a Bíblia. O castigo de um delinquente envolve a sua família em sua desgraça e miséria. O pródigo e o bêbado provocam a pobreza e a miséria de todos os que estão relacionados com eles. Não há nação existente hoje em dia sobre a face da terra, cujas condições de riqueza ou de miséria não tenham ficado principalmente determinadas pelo caráter e a conduta de seus antepassados. Se, incapazes de resolver os mistérios da Providência, precipitamo-nos ao ateísmo, só aumentamos mil vezes as trevas que nos rodeiam. É mais fácil crer que todas as coisas estão guiadas pela razão e a bondade infinitas, e que redundarão para maior glória de Deus e para a maior bênção do universo, que crer que esta imensa acumulação de pecado e desgraça é a obra de uma força cega sem propósito e sem fim. Se for admitido o fato de que levamos as consequências do pecado de Adão, e que os filhos sofrem pelas iniquidades de seus pais, poder-seia induzir que isto não se deve atribuir à justiça de Deus, mas à operação sem desígnio de uma lei geral, que apesar de alguns males incidentais é globalmente benéfica. Mas com esta hipótese a dificuldade não fica diminuída, mas aumentada. Com base em ambas as teorias, a natureza e o grau de sofrimento são os mesmos. A única diferença tem que ver com a pergunta: Por que sofrem por ofensas das quais não são pessoalmente culpados? A Bíblia diz que estes sofrimentos são judiciais; que são infligidos como castigo para manter a lei. Outros dizem que são meras consequências naturais, ou inflições arbitrárias de um soberano. Se um rei desse morte aos filhos de um rebelde, libertaria de reprovação a sua conduta o dizer que era um ato de soberania arbitrária? Se a prevenção do crime for um fim importante do castigo (embora não é seu fim primordial), não seria um alívio dizer que a morte dos filhos estava disposta para prevenir que outros pais se rebelassem? Pode-se admitir Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 279 que a execução dos filhos de um criminoso da parte de um soberano humano seria um castigo cruel e injusto, enquanto que se nega e se deve negar que seja injusto da parte de Deus que Ele visite as iniquidades dos pais sobre seus filhos. Em primeiro lugar, nenhum soberano humano tem os direitos sobre seus súditos que pertencem a Deus sobre Suas criaturas como Criador deles. E em segundo lugar, nenhum soberano humano tem o poder e a sabedoria para alcançar o maior bem com base nas penalidades que ele aplique pela violação da lei. Não podemos inferir que porquanto uma conduta determinada seja incorreta por parte do homem, seja por isso injusta em Deus. Ninguém poderia com justiça enviar uma pestilência ou fome através de uma terra, mas Deus envia tais visitações não só com justiça, senão para a manifestação de Sua própria glória e para o bem de Suas criaturas. O mesmo princípio envolto em outras doutrinas. Que o pecado de Adão se imputa à sua posteridade fica demonstrado não só (1) Pelo fato de que ele era sua cabeça e representante natural, e (2) Pelo fato de que este princípio de representação impregna as Escrituras; e (3) pelo fato de que é a base sobre a qual se administra a providência de Deus, e (4) Pelo fato de que males conseguintes à apostasia de Adão são expressamente declarados nas Escrituras como de inflição penal, mas também (5) Pelo fato de que o princípio de imputação esta envolto em outras grandes doutrinas da Bíblia. A hipótese de que um homem não possa ser, sob o governo de Deus, castigado justamente pelos pecados de outro, não é só contrária às expressas declarações das Escrituras, como vimos, e à administração do governo divino desde o princípio, mas também é subversiva das doutrinas da expiação e da justificação. A ideia da transferência de culpa ou de castigo vicário está na raiz de todas as ofertas expiatórias sob o Antigo Testamento, e da grande expiação sob a nova dispensação. Levar o pecado é, na linguagem das Escrituras, levar a culpa do pecado. A vítima levava o pecado do ofertante. Fazia-se imposição das mãos sobre Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 280 a cabeça do animal prestes a ser degolado, para expressar a transferência de culpa. Aquele animal devia estar isento de todo defeito ou mancha, para pôr em evidência de que seu sangue não era derramado por suas próprias deficiências, mas pelo pecado de outro. Tudo isto era simbólico e típico. Não podia haver uma verdadeira transferência de culpa a um animal irracional, nem fazer-se uma verdadeira expiação mediante seu sangre. Mas estes serviços eram significativos. Tinham a intenção de ensinar estas grandes verdades: (1) Que a pena pelo pecado era a morte. (2) Que o pecado não podia ser perdoado sem intervir expiação. (3) Que a expiação consiste num castigo vicário. O inocente toma o lugar do culpado, e sofre a pena em seu lugar. Esta é a ideia que acompanha as ofertas de expiação em todas as eras e em todas as nações. Esta é a ideia inculcada em toda a Bíblia. E isto é o que ensinam as Escrituras a respeito da expiação operada por Cristo. Ele levou nossos pecados; Ele foi feito maldição por nós; Ele sofreu em nosso lugar a maldição da lei. Tudo isto vai sobre o terreno de que os pecados de um homem podem ser justamente imputados a outro, sobre uma base adequada. Na justificação inclui-se a mesma ideia de raiz. A justificação não é uma mudança subjetiva no estado moral do pecador; não é um mero perdão; não é simplesmente o perdão e a restauração ao favor, como quando um rebelde é perdoado e restaurado ao gozo de seus direitos civis. É uma declaração de que as demandas da justiça ficaram satisfeitas. Procede sobre a hipótese de que a justiça que a lei demanda pertence quer pessoalmente, quer inerentemente, ou por imputação, à pessoa justificada, ou declarada justa. Assim, há uma conexão lógica entre a negação da imputação do pecado de Adão e a negação das doutrinas escriturísticas a respeito da expiação e da justificação. As objeções que se apressam contra a primeira doutrina têm o mesmo peso contra as últimas. E é questão histórica que os que rejeitam uma rejeitam deste modo as outras. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 281 Argumento com base em Romanos 5:12-21. Em Romanos 5:12-21, o Apóstolo ensina esta doutrina da maneira mais normal e explícita. O desígnio daquela passagem é ilustrar o método da salvação. O Apóstolo tinha estado ensinando que todos os homens são pecadores, e que todo mundo é culpado diante de Deus. Estando todos os homens sob a condenação da lei, é impossível que pudessem ser justificados pela lei. A mesma lei não pode ao mesmo tempo justificar e condenar as mesmas pessoas. Assim, porquanto nenhuma carne pode ser justificada pelas obras da lei, Deus enviou o Seu Filho para nossa salvação. Ele assumiu nossa natureza, tomou nosso lugar, e obedeceu e sofreu em nosso lugar, operando assim para nós uma justiça perfeita e imensamente meritória. Sobre a base daquela justiça, Deus pode agora ser justo ao justificar os ímpios, se, renunciando eles à sua própria justiça, recebem e confiam nesta justiça de Deus, que lhes é oferecida gratuitamente no Evangelho. A doutrina fundamental da Epístola aos Romanos, como doutrina fundamental do Evangelho, é, portanto, que a justiça de um homem, Cristo, pode ser e é imputada de tal maneira aos crentes para ser a base meritória da Justificação dos mesmos perante o tribunal de Deus. Para tornar esta doutrina mais clara a seus leitores, o Apóstolo faz referência ao caso análogo da condenação da raça humana pelo pecado de Adão; e expõe que assim como o pecado de Adão é a base judicial da condenação de todos os que estavam nele, isto é, de todos os representados por ele, da mesma maneira a obediência de Cristo é a base judicial da justificação de todos os que estão nEle. No prosseguimento deste plano, primeiro afirma a imputação do pecado de Adão à sua posteridade. Logo a demonstra. Logo comenta a respeito dela. Logo a aplica; e por fim tira inferências da mesma. Assim, de todas as maneiras possíveis, como parece, expõe a doutrina como parte da revelação de Deus. A asserção da doutrina se contém no versículo doze do capítulo. Foi por um homem, diz ele, que o pecado e a morte passaram a todos os homens; porquanto todos pecaram. Pecaram por meio de, ou em, aquele um homem. Seu pecado foi o pecado de todos Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 282 em virtude da união entre eles e ele. A prova desta doutrina está contida nos versículos treze e quatorze. O Apóstolo argui assim: O castigo supõe pecado; o pecado supõe lei; porque o pecado não é imputado onde não há lei. Todos os homens são castigados; todos estão sujeitos a males penais. Portanto, todos eles são réus de pecado, e consequentemente todos são culpados de violar a lei. Esta lei não pode ser a lei de Moisés, porque os homens morriam (isto é, estavam sujeitos à pena da lei) antes que aquela lei fosse dada. Não pode ser a lei escrita no coração; porque morrem aqueles que nunca cometeram nenhum pecado pessoal. Há males penais, por isso, que sobrevêm a toda a humanidade antes que nada em seu estado e conduta mereça tal inflição. A base para esta inflição, portanto, deve ser buscada fora deles mesmos, isto é, no pecado de seu primeiro pai. Por isso, Adão é tipo de Cristo. Assim como o primeiro é cabeça e representante de sua raça, assim o segundo é cabeça e representante de Seu povo. Assim como o pecado do primeiro é a base da condenação de sua posteridade, assim a justiça do segundo é a base para a justificação de todos os que estão nEle. Mas embora haja esta grande analogia entre a Queda e a Redenção do homem, há entretanto certos pontos de diferença, todos eles em favor do plano de redenção. Se morremos pela ofensa de um homem, muito mais abundará a graça para os muitos por meio de um homem. Se por um delito passou a todos a sentença de condenação, a livre justificação é de muitas ofensas. Se somos condenados por um pecado em que não tivemos participação pessoal e voluntária, muito mais viveremos com base em uma justiça que recebemos de coração. Por isso, prossegue o Apóstolo na aplicação de sua ilustração, se todos os homens (em união com Adão) são condenados pela ofensa de um homem, assim também todos (em união com Cristo) serão justificados sobre a base da justiça de um homem. Assim como a desobediência de um homem nos constituiu pecadores, assim a obediência de um homem nos constitui justos (vv. 18 e 19). Com base nestas premissas o apóstolo chegou a duas conclusões: Primeiro, que a lei não foi disposta para Justificação, senão para que o pecado abundasse Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 283 no conhecimento e na consciência dos homens; e, em segundo lugar, que onde o pecado abundou, a graça abundará mais. Os benefícios e as bênçãos da redenção excederão em muito os males da apostasia. Seja o que for que se pense dos detalhes desta exposição. dificilmente se pode duvidar que expressa a ideia principal da passagem. Poucos podem duvidar, e poucos o duvidaram jamais, que o apóstolo ensina aqui claramente que o pecado de Adão é a base judicial da condenação de sua raça. Com isto não só concorda, como já vimos, o relato escriturístico da Queda, mas também o que ensina o Apóstolo em 1 Coríntios 15:21,22: «Visto que a morte veio por um homem, também por um homem veio a ressurreição dos mortos. Porque, assim como, em Adão, todos morrem, assim também todos serão vivificados em Cristo.» A união com Adão é a causa da morte; a união com Cristo é a causa da vida. Argumento com base no consentimento geral. A imputação do pecado de Adão foi a doutrina da Igreja universal em todas as idades. Era a doutrina dos judeus, derivada do claro ensino das Escrituras do Antigo Testamento. Era e é a doutrina das igrejas Grega, Latina, Luterana e Reformada. Sua negação é uma novidade. Foi só pelo surgimento do Arminianismo que um corpo considerável de cristãos se aventurou a opor-se a uma doutrina tão claramente ensinada na Bíblia, e sustentada por tantos fatos da história e da experiência. Os pontos de diversidade com referência a esta questão não se relacionam com o fato de que o pecado de Adão seja imputado à sua posteridade, senão com as bases da imputação ou com suas consequências. Na Igreja Grega se adotaram as posturas mais baixas prevalecentes entre os cristãos. Os teólogos daquela igreja sustentavam geralmente que a morte natural, e uma deterioração de nossa natureza, junto com uma mudança para pior em todo o estado do mundo, foram os únicos males penais que a raça da humanidade sofre devido ao pecado de Adão. Na Igreja Latina, durante a Idade Média, como já vimos, dava-se uma grande diversidade Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 284 de opinião quanto à natureza e extensão dos males trazidos sobre o mundo pela apostasia de nossos primeiros pais. O Concílio de Trento declarou que estes males eram a morte, a perda da retidão original, e o pecado, que é descrito como a morte da alma. Os Luteranos e Reformados mantiveram a mesma doutrina com maior consistência e solenidade. Mas em toda esta diversidade se admitia universalmente, primeiro, que certos males são infligidos sobre toda a humanidade. devido ao pecado de Adão; e, segundo, que estes males são penais. Os homens eram considerados, com respeito à Igreja, como portadores em maior ou menor grau do castigo pelo pecado de seu primeiro pai. Objeções à doutrina. A grande objeção a esta doutrina, que é manifestamente injusto que um homem seja castigado pelo pecado de outro, já foi considerada de passagem. O que é castigo? É um mal ou um sofrimento infligido para vindicar a lei. Onde está a injustiça de que um homem sofra por outro, sobre a base da união entre eles? Se há injustiça no caso, deve ser na inflição de sofrimento anterior ou sem ter em conta um merecimento pessoal. Não consiste no motivo de tal inflição. A inflição de sofrimento para gratificar a malícia ou a vingança é naturalmente um crime. Infligilo por mero capricho é igualmente evidentemente mau. Infligi-lo para alcançar algum fim reto e desejável pode ser não só justo, mas também benevolente. E não é tal fim sustentar a lei divina? O fato de que toda a humanidade sofre devido ao pecado de Adão não o nega nem o pode negar nenhum crente na Bíblia. Não se pode negar que estes sofrimentos foram dispostos por desígnio. Estão incluídos nas ameaças dadas no princípio. Foram expressamente declarados na Bíblia como penais. Afirma-se que a sentença de condenação passou a todos os homens pela ofensa de um homem. Uma parte da pena ameaçada contra o pecado no grande progenitor da raça foi que seu posteridade sofresse as consequências de sua transgressão. E assim sofrem. É em vão, portanto, negar a realidade, e não se obtém alívio algum negando que estes Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 285 sofrimentos são infligidos em execução da pena da lei e com o objeto imensamente importante para sustentar sua autoridade. § 10. Imputação mediata Nos meados do século dezessete, Amyraut, Cappel e La Place (ou Placæus), três distinguidos professores na escola teológica francesa em Saumur introduziram várias modificações da doutrina Agostiniana ou Reformada a respeito dos decretos, da eleição, da expiação e da imputação do pecado de Adão. La Place ensinou que derivamos uma natureza corrompida de Adão, e que esta natureza corrompida, e não o pecado de Adão, é a base da condenação que sobreveio sobre toda a humanidade. Quando se objetou a esta exposição que perdia de vista a culpa do primeiro pecado de Adão, respondeu que não negava a imputação deste pecado, mas que simplesmente a fazia depender de nossa participação em sua natureza corrompida. Somos inerentemente depravados, e por isso estamos envolvidos na culpa do pecado de Adão. Não há imputação direta nem indireta do pecado de Adão à sua posteridade, mas só uma imputação indireta e mediata do mesmo, baseada no fato de que participamos de seu caráter moral. Estes pontos de vista foram apresentados pela primeira vez por La Place num ensaio, «De statu homini lapsi ante gratiam», publicado nas «Theses Salmurienses», e depois de maneira mais elaborada num tratado, «De imputatione primi peccati Adami». Esta doutrina foi formalmente condenada pelo Sínodo Nacional da França em 1644-45;204 pelas igrejas suíças na «Formula Consensus»; e pelos teólogos holandeses. Jaeger, um teólogo luterano, em seu “Ecclesiastical History,” 205 justifica-se dizendo: “Contra doctrinam Plactæi — tota Gallia reformata, quin et Theologi reformati in Hollandiâ surrexêre.” O decreto do Sínodo Francês 204 205 See Quick’s Synodicon, London, 1692. Tom. i. lib. ix. cap. v. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 286 de Charenton sobre este tema é o seguinte: “Cum relatum esset ad Synodum, scripta quædam . . . . prodisse, quæ totam rationem peccati originalis solâ corruptione hæreditariâ in omnibus hominibus inhærente definiunt, et primi peccati Adami imputationem negant: Damnavit Synodus doctrinam ejusmodi, quatenus peccati originalis naturam ad corruptionem hæreditariam posterum Adæ ita restringit, ut imputationem excludat primi illius peccati, quo lapsus est Adam: Adeoque censuris omnibus ecclesiasticis subjiciendos censuit pastores, professores, et quoscunque alios, qui in hujus quæstionis disceptatione a communi sententia recesserit Ecclesiarum Protestantium, quæ omnes hactenus et corruptionem illam, et imputationem hanc in omnes Adami posteros descendentem agnoverunt.” Foi para fugir do sentido desta decisão que Placæus propôs a distinção entre a imputação mediata e imediata. Disse que não negava a imputação do pecado de Adão, mas só que precedia a contemplação da corrupção hereditária. Mas isto é o mesmo que tinha declarado o Sínodo. A corrupção hereditária ou morte espiritual é a pena, ou, tal como o expressam as confissões Luteranas, Calvino e os Protestantes em geral, era um mal infligido pelo justo juízo de Deus, por causa do pecado de Adão». A Fórmula Consensus Ecclesiarum Helveticarun foi estabelecida em 1675, em oposição à doutrina de Amyraut sobre a graça universal, à doutrina de Placæus a respeito da imputação mediata, e a todas as outras a respeito da obediência ativa de Cristo. 206 Nesta fórmula diz-se: “Censemus igitur (quer dizer, porque a aliança das obras não só se aplicou com Adão, mas também nele, com toda a raça humana) peccatum Adami omnibus ejus posteris, judicio Dei arcano et justo, imputari. Testatur quippe Apostolus ‘in Adamo omnes peccasse:’ ‘Unius hominis inobedientia peccatores multos constitui;’ ‘in eodem omnes mori.’ Neque vero ratio apparet, quemadmodum hæreditaria corruptio, tanquam mors spiritualis, in universum genus humanum justo Dei 206 Niemeyer, Collectio Confessionum, p. 81. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 287 judicio cadere possit, nisi ejusdem generis humani delictum aliquod, mortis illius reatum inducens, præcesserit. Cum Deus justissimus totius terræ judex nonnisi sontem puniat.” 207 Rivet, um dos professores da Universidade de Leyden, publicou um tratado em apoio da decisão do Sínodo da França, intitulado «Decretum Synodi Nationalis Ecclesiarum Reformatarum Gallire initio anni 1645, de imputatione primi Peccati omnibus Adami posteris, cum Ecclesiarum et Doctorum Protestantium consensu, ex scriptis eorum ab Andrea Riveta collecto». Este tratado está contido no terceiro volume da edição fólio de suas obras. Seus colegas na Universidade publicaram seu apoio formal à sua obra, e a recomendaram fervorosamente como antídoto à nova doutrina de Placæus. Os teólogos de outras universidades da Holanda se uniram nesta condenação da doutrina da imputação mediata. Chamam-no o εὕρημα Imputationis Mediatæ a “ficulneum nuditatis indecentis tegumentum,” e insistem que a imputação do pecado de Adão não se baseia em nossa corrupção inerente como tampouco a imputação da justiça de Cristo se baseia em nossa justiça inerente. “Quomodo et justitia Christi electis imputatur, non mediate per renovationem et obedientiam horum propriam, sed immediate, ad quam hæc ipsa propria forum obedientia demum subsequitur.” 208 Estas duas grandes doutrinas foram consideradas como indissoluvelmente unidas. Os teólogos protestantes estão de acordo em sustentar que “Imputatio justitiæ Christi et culpæ Adami pari passu ambulant, et vel utraque ruit, vel utraque agnosci debet.” 209 A imputação mediata fora da Igreja Francesa Embora a doutrina da imputação mediata foi assim geralmente condenada tanto pela Igreja Reformada como pela Luterana, achou distinguidos defensores além do âmbito da Igreja Francesa. Vitringa o 207 Art. x.; Niemeyer, p. 733. De Moor, Commentarius in Marckii Compendium, cap. xv. § 32, vol. iii. p. 280. 209 Ibid. vol. iii. p. 255. 208 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 288 jovem, Venema e Stapfer, em sua «Teologia Polêmica», deram sua sanção. Procedendo deste último autor, foi adotada pelo Presidente Edwards, em um capítulo de sua obra sobre o «Pecado Original». Entretanto, aparece ali meramente como uma adição estranha. Não foi adotada em seu sistema para qualificar suas perspectivas teológicas em outras doutrinas. Embora o Presidente Edwards se mostre claro partidário da doutrina de Placæus, ao dizer 210 «que a má disposição vem primeiro, e que a imputação de culpa é consequente», entretanto ensina de maneira expressa e formal, e de maneira extensa, a doutrina da imputação imediata em outras seções de sua obra. (1) Argui através de toda uma seção para demonstrar a condição de cabeça federal de Adão; (2) Mantém que a ameaça de morte feita a Adão incluía a perda da retidão original e a morte espiritual. (3) Que a ameaça incluía sua posteridade, e que os males que sofrem como consequência de seu pecado são verdadeiramente penais. Se é assim, a perda da retidão original e da depravação inerente são penais, supõem uma culpa antecedente. Isto é, uma culpa antecedente, e não consequente à existência e contemplação da depravação. (4) Em sua exposição de Romanos 5:12-21, ele ensina de maneira expressa a doutrina comum, e diz «Como este lugar em geral é muito pleno e plano, assim a doutrina da corrupção da natureza, tal como se deriva de Adão, e também a imputação de seu primeiro pecado, são ambos claramente ensinados ali. A imputação da transgressão de Adão é certamente declarada de uma maneira bem direta e frequente. Aqui nos assegura que pelo pecado de um homem a morte passou a todos; todos sendo juntamente sentenciados a este castigo como tendo pecado (assim se implica) no pecado daquele homem. E se repete, vez após vez, que todos são condenados, muitos morreram, muitos foram constituídos pecadores, etc., pelo delito de um, pela desobediência de um, e por uma ofensa». 211 Como a culpa precede 210 211 Original Sin, IV. iii.; Works, edit. N. Y. 1829, vol. ii. p. 544. Original Sin, III. i.; Works, vol. ii. p. 512. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 289 ao castigo, se, como diz Edwards, a depravação ou morte espiritual é um castigo, então a imputação da culpa do primeiro pecado de Adão precede à depravação, e não é consequente a ela. Esta é a exposição que dá ao longo de toda sua obra sobre o Pecado Original. É só quando responde à objeção de que é injusto que sejamos castigados pelo pecado de Adão que entra em abstrusas discussões metafísicas a respeito da natureza da unidade ou identidade, e tenta demonstrar 212 que Adão e sua posteridade são um agente, e não agentes distintos. Assim que é, antes, o realismo que a imputação mediata o que Edwards adotou para a ocasião. Placæus e seus seguidores, a fim de defender o terreno que tinham assumido, apelaram a muitos escritos de teólogos anteriores que pareciam ignorar a imputação imediata do pecado de Adão, e que atribuíam a condenação da raça principalmente, se não de maneira exclusiva, à depravação hereditária derivada de nosso primeiro pai. Estas passagens se podiam encontrar com facilidade, e se podem explicar também com facilidade sem supor, o que seria contrário à mais clara evidência, que se negasse ou pusesse em dúvida a direta imputação do pecado de Adão. Antes que surgisse Ário com a direta negação da verdadeira divindade de Cristo e da doutrina da Trindade, a linguagem dos escritores eclesiásticos era confusa e contraditória. Da mesma maneira, muito é o que se pode encontrar, inclusive na Igreja Latina e nos escritos do próprio Agostinho, antes do surgimento da controvérsia Pelagiana, que é difícil de conciliar com o sistema Agostiniano. Agostinho viu-se obrigado a publicar um volume de retratações, e em muitos casos, quando não tinha nada de que retratar-se encontrou muito que modificar e que explicar. Assim, não é para assombrar-se que antes que alguém negasse abertamente a doutrina da imputação imediata, e especialmente quando a doutrina igualmente importante da depravação hereditária era abertamente rejeitada por um influente partido da Igreja de Roma, que os teólogos Protestantes parecessem negligenciar uma 212 Ibid. p. 546. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 290 doutrina que ninguém negava, e que dedicassem sua atenção principalmente aos pontos que então estavam controvertidos. Entretanto, Rivet mostra claramente que embora não fosse destacada, a doutrina da imputação imediata do pecado de Adão era universalmente assumida. Isto fica claro pelo fato de que todas as consequências naturais da apostasia de Adão, a mortalidade, a perda da retidão original, a corrupção da natureza ou morte espiritual, etc., etc., eram da natureza de castigo. O que os Reformadores estavam desejosos de manter era que a depravação hereditária original (a concupiscência, na linguagem da Igreja Latina) era da natureza do pecado, e consequentemente que os homens não perecem eternamente só propter peccatum alienum, sino también propter peccatum proprium. Este é, em especial, o caso com Calvino. Na Confissão de Fé que redigiu para a escola de Genebra, é dito: “Singuli nascuntur originali peccato infecti . . . et a Deo damnati, non propter alienum delictum duntaxat, sed propter improbitatem, quæ intra eos est.” E em outro lugar ele diz: “Dicimus Deum justo judicio nobis in Adamo maledixisse, ac voluisse nos ob illius peccatum corruptos nasci, ut in Christo instauremur.” Outra vez: “Peccavit unus, omnes ad poenam trahuntur, neque id modo, sed ex unius vitio, contagionem omnes contrahunt.” Novamente: “Si quæratur causa maledictionis, quæ incumbit omnibus posteris Adæ, dicitur esse alienum peccatum, et cujusque proprium.” No mesmo sentido, diz Beza: 213 “Tria sunt quæ hominem reum constitunut coram Deo, (1.) Culpa promanans ex eo quod omnes peccavimus in proto lapso (Rom. v. 12). (2.) Corruptio quæ est pæna istius culpæ, impositam tam Adamo, quam posteris. (3.) Peccata quæ perpetrant homines adulti.” 214 O Reitor Cunningham 215 chama a atenção ao fato de que a doutrina da imputação 213 Apolog. pro Justificatione. Véase Turretin, locus IX, quæst. 9, y De Moor, Comentarius in Johannis Marckii Compendium, cap. XXV. §32, vol. III. pág. 260. ss., donde se puede encontrar un tratamiento extendido de esta controversia. 215 The Reformers and the Theology of the Reformation, second edition, p. 383. 214 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 291 imediata do pecado de Adão é ensinada de maneira muito mais explícita nos Catecismos Maior e Menor de Westminster que na Confissão de fé. Isto o explica de maneira muito natural com base na hipótese de que a negação desta doutrina da parte de Placæus não tinha atraído a atenção na Inglaterra quando foi preparada a Confissão (1646), mas que chegou a ser conhecida antes que os catecismos fossem completados. Objeções à doutrina da imputação mediata As principais objeções contra a doutrina da imputação mediata são: 1. Que nega o que a Escritura afirma. As Escrituras afirmam que a sentença de condenação passou a todos os homens pelo pecado de um homem. Isto a doutrina da imputação mediata nega, e afirma que a base desta condenação é a depravação inerente. Somos contados partícipes do pecado de Adão só devido ao fato de que derivamos uma natureza corrompida dele. Mas, segundo as Escrituras, a razão de que sejamos depravados é que somos considerados como partícipes de seu pecado, ou devido ao fato de que a culpa daquele pecado nos é imputada. A culpa na ordem da natureza e de fato precede à morte espiritual que é sua consequência penal. 2. Esta doutrina nega o caráter penal da corrupção hereditária em que nascem todos os homens. Segundo as Escrituras e a fé da igreja universal, a mortalidade, a perda de retidão original, e a corrupção hereditária são infligidas à humanidade em execução da ameaça feita contra Adão, e estão incluídas no inclusivo termo de morte, por meio da que se expressou a pena ameaçada. Isto é enfaticamente ensinado pelo Presidente Edwards assim como da parte dos outros teólogos Reformados. Ele dedica uma seção de sua obra para demonstrar que a morte mencionada em Gênesis, e da que fala o Apóstolo em Rm 5:12, incluía a morte espiritual, e que a posteridade de Adão estava incluída nesta pena. Diz ele: «As calamidades que lhes sobrevêm como Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 292 consequência de seu pecado são trazidas sobre eles como castigos.» 216 Além disso, ele acrescenta que destrói toda a força do argumento do Apóstolo «supor que a morte da qual fala aqui como caindo sobre a humanidade por causa do pecado de Adão não vem como um castigo». 217 E outra vez: «Não suponho que a depravação natural da posteridade de Adão se deva só ao curso da natureza; deve-se também ao justo juízo de Deus». 218 Mas o castigo supõe culpa; se a perda de retidão e a conseguinte corrupção da natureza são castigos, supõem a antecedente imputação de culpa; e por isso a imputação é imediata e não mediata; é antecedente e não consequente à nossa depravação inerente. A postura que os teólogos Reformados apresentam uniformemente a respeito deste tema é que Deus constituiu a Adão como cabeça e representante de sua raça. A pena incluída na aliança concertada com ele, e que incluía sua posteridade era a perda do favor e da comunhão de Deus. As consequências da perda do favor divino no caso de Adão eram: (1) A perda da justiça original; (2) A conseguinte corrupção de toda a sua natureza, e (3) a exposição à morte eterna. Estas consequências sobrevêm à sua posteridade na mesma ordem: primeiro, na perda, ou antes, na destituição da retidão original; e segundo, na corrupção da natureza; e terceiro, na exposição à morte eterna; de maneira que nenhum filho de Adão é exposto à morte eterna sem levar em conta sua própria pecaminosidade pessoal e merecimento. Neste ponto Turrettin diz: “Poena quam peccatum Adami in nos accersit, vel est privativa, vel positiva. Prior est carentia et privatio justitiæ originalis; posterior est mors tum temporalis, tum æterna, et in genere mala omnia, quæ peccatoribus immittuntur. Etsi secunda necessario sequitur primam ex natura rei, nisi intercedat Dei misericordia, non debet tamen cum ea confundi. Quoad primam dicimus Adami peccatum nobis imputari immediate ad poenam privativam, quia 216 Original Sin, II. i; Works, vol. ii. p. 432. Ibid. II. iv. ut supra, p. 481. 218 Ibid. IV. ii. ut supra, p. 540. 217 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 293 est causa privationis justitiæ originalis, et sic corruptionem antecedere debet saltem ordine naturæ; sed quoad posteriorem potest dici imputari mediate quoad poenam positivam, quia isti poenæ obnoxii non sumus, nisi postquam nati et corrupti sumus.” 219 Vogelsang 220 diz: “Certe neminem sempiterna subire supplicia propter inobedientiam protoplasti, nisi mediante cognata perversitate.” E Mark 221 diz que se Placæus e outros não significava nada mais por imputação mediata que “hominum natorum actualem punitionem ulteriorem non fieri nudo intuitur Adamicæ transgressionis absque interveniente etiam propria corruptione et fluentibus hinc sceleribus variis, neminem orthodoxum possent habere obloquentem.” Mas, acrescenta, é evidente que significava muito mais. Eles negam a imputação do primeiro pecado de Adão como a causa desta inerente corrupção. Como Adão ficou sujeito por sua apostasia à morte eterna, mas por meio da intervenção da graça redentora foi indubitavelmente salvo dela, assim também embora toda sua posteridade incorre na mesma terrível pena por sua própria e inerente corrupção, entretanto temos toda a razão para crer que nenhum ser humano perde-se realmente sem incorrer pessoalmente na pena da lei por sua transgressão pessoal. Mas isto é pela redenção de Cristo. Todos os que nascem na infância são salvos, mas são salvos pela graça. É entretanto importante que se compreendam claramente as verdadeiras posturas das Igrejas Reformadas a respeito da doutrina da imputação imediata. Estas igrejas não ensinam que o primeiro pecado de Adão seja o único e imediato fundamento da condenação de sua posteridade à morte eterna, mas sim é a base daquela perda do favor divino do que se origina a perda da retidão original e a corrupção de nossa natureza toda, o que por sua vez deve ser a base imediata da exposição à perdição final, da qual, entretanto e como creem quase todos os Protestantes, são salvos todos aqueles que não têm outros pecados pelos quais responder. 219 Loc. IX. quæst. ix. 14, edit. Edinburgh, 1847, p. 558. Quoted by De Moor, Commentarius, vol. iii. p. 275. 221 Ibid. p. 278. 220 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 294 A imputação mediata aumenta as dificuldades que devem ser explicadas 3. Uma objeção adicional à doutrina da imputação mediata é que aumenta, em lugar de aliviar, a dificuldade do caso. Nega que se fizesse uma aliança com Adão. Nega que a humanidade tivesse jamais uma prova. Supõe que em virtude de uma lei natural de propagação, quando Adão perdeu a imagem de Deus e se tornou pecador, seus filhos herdam este caráter, e que sobre a base deste caráter estão sujeitos à ira e maldição de Deus. Por isso, todos os males que a doutrina escriturística e da Igreja descrevem como sobrevindo à posteridade de Adão como o castigo judicial por seu primeiro pecado, descreve-os a doutrina da imputação mediata como inflições soberanas, ou como meras consequências naturais. O que a Escritura declara que é um justo juízo, Placæus o apresenta como uma administração arbitrária. Inconsistente com o argumento do apóstolo em Rm 5:12-21 4. Uma objeção ainda mais séria é que esta doutrina destrói o paralelo entre Adão e Cristo que tanto destaca o Apóstolo em sua Epístola aos Romanos. O grande tema que ele se empenha em ensinar e ilustrar, e que apresenta como um elemento cardeal do método de salvação, é que os homens estão justificados para uma retidão que não é pessoalmente deles. Para ilustrar e confirmar esta grande doutrina fundamental, refere-se ao fato de que os homens foram condenados por um pecado que não é pessoalmente deles. Vez após vez insiste em que foi pelo pecado de Adão, e não por nosso próprio pecado ou pecaminosidade, que a sentença de morte (a perda do favor divino) foi passada sobre todos os homens. É sobre esta base que ele apressa aos homens a que se apoiem mais confiantemente sobre a promessa da justificação sobre a base de uma justiça que não é inerentemente nossa. Este paralelo fica destruído, a doutrina e o argumento do apóstolo ficam frustrados, se negar-se que o pecado de Adão, como antecedente de qualquer pecado ou nossa pecaminosidade, é a base de nossa Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 295 condenação. Se somos partícipes das consequências penais do pecado de Adão só devido à natureza corrompida derivada dele por uma lei da natureza, então somos justificados só sobre a base de nossa própria santidade inerente derivada por uma lei de graça de Cristo. Assim, temos a doutrina da justificação subjetiva, que derruba a grande doutrina da Reforma e a grande base para a paz e confiança do povo de Deus, isto é, que a base de nossa justificação diante de Deus é uma justiça não dentro de nós, mas sim operada por nós, – a justiça de outro, a do eterno Filho de Deus, e por isso mesmo uma justiça imensamente meritória. Qualquer doutrina que tenda a invalidar ou a debilitar a evidência escriturística deste artigo fundamental de nossa fé está forjada de males maiores que os que lhe pertencem quando considerada em si mesma. Esta é a razão pela qual os teólogos Reformados se opuseram tão tenazmente à doutrina de La Place. Viram e disseram que com base em seus princípios a doutrina da imputação da justiça de Cristo antecedente à nossa santificação não podia ser defendida. A doutrina está baseada sobre um princípio falso. 5. Entretanto, é possível que a objeção mais séria contra a doutrina da imputação mediata seria a respeito do princípio sobre o qual se baseia e dos argumentos de seus defensores em seu apoio. O grande princípio em que se insiste em apoio desta doutrina é que um homem não pode ser em justiça castigado pelo pecado de outro. Se é assim, então é injusto da parte de Deus visitar as iniquidades dos pais em seus filhos. Então foi injusto da parte de Cristo declarar que o sangue dos profetas mortos desde o princípio seria demandada dos homens de sua geração. Logo é injusto que os judeus de nosso tempo atual, desde a crucificação de nosso Senhor, vejam-se dispersados e acossados, segundo as predições dos profetas, pela rejeição do Messias. O mesmo sucede com o dilúvio enviado em ira sobre o mundo, a destruição de Sodoma e Gomorra, e o extermínio dos cananeus, em que milhares de crianças morreram sendo inocentes dos delitos pelos quais se infligiram estes juízos, que seriam Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 296 atos de enorme injustiça. Se este princípio for correto, então toda a administração do governo de Deus sobre o mundo, os procedimentos de Deus sobre as nações e com a Igreja, não se podem defender. Ele, desde o princípio e ao longo de todas as eras, teve os filhos como responsáveis da conduta dos pais, incluiu-os sem seu consentimento nas alianças feitos com seus pais, e visitou sobre eles as consequências da violação de tais alianças, das quais eles não eram pessoalmente culpados, assim como lhes outorgou ricas bênçãos ganhas pela fidelidade de seus progenitores, sem nada meritório da parte deles. Além disso, se este princípio é válido, então toda a doutrina escriturística dos sacrifícios e da expiação é um engano. E também temos que adotar a teoria sociniana que faz com que a morte de Cristo seja uma mera inculcação da verdade, em lugar de uma satisfação penal pelo pecado. Um serviço didático, e não expiatório. Os teólogos Reformados do século dezessete expressaram seu profundo pesar de que homens que professavam ser ortodoxos adotassem de Pelagianis et Pelagianizantibus, contra a doutrina da imputação imediata, «exceções» e [«mesquinhas objeções ...»] “objectiones . . . . petitas a Dei justitia et veritate, ab actus et personæ Adamicæ singularitate, ex sceleris longe ante nos præterito tempore, ex posterum nulla scientia vel consensione in illud, ex non imputatis aliis omnibus factis et fatis Adami, etc.,” que tinham sido tantas vezes refutadas nas controvérsias com os Socinianos e os Remonstrantes. 222 Fica muito claro que se não se pode estabelecer tal constituição entre os homens, nem sequer da parte de Deus, de maneira que um homem possa em justiça levar a iniquidade de outro, então a Bíblia e a Providência tornam-se igualmente ininteligíveis, e as grandes doutrinas da fé cristã são derrubadas. 222 De Moor, Coommentarius in Johannis Marckii Compendium, vol. iii. p. 279. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 297 A teoria da propagação. A teoria dos que negam toda imputação do pecado de Adão à sua posteridade, seja mediata ou imediata, e que representam a corrupção da raça como consequência de sua apostasia com base na lei geral da propagação, de que semelhante gera semelhante, difere só em termos da doutrina de La Place. Tudo o que ele significava por imputação mediata era que os descendentes de Adão derivaram dele uma natureza corrompida, têm o mesmo caráter moral, e por isso são considerados dignos da mesma condenação. Isto estão dispostos a admitir os proponentes da teoria recém-mencionada. Por isso, a doutrina deles é suscetível a todas as objeções que militam contra a doutrina da imputação mediata, e não demanda uma consideração separada. § 11. A preexistência. O princípio de que um homem pode em justiça ser considerado responsável ou considerado como culpado só por seus próprios atos voluntários e por suas consequências subjetivas é tão plausível que para muitas mentes tem a autoridade de uma verdade intuitiva. Entretanto, é uma doutrina tão clara da Bíblia e, deste modo, tão claramente o testemunho da experiência que os homens nascem em pecado, que chegam ao mundo em estado de culpa e de contaminação moral, que surge uma necessidade de conciliar esta realidade com o que eles consideram como verdade evidente por si mesma. Propuseram-se duas teorias para conseguir esta conciliação. A primeira é a da preexistência. Orígenes, e depois dele alguns personagens dispersos ao longo da história da Igreja, até o dia de hoje, supuseram que os homens existiam em outro estado antes de nascer neste mundo, e que tendo pecado voluntariamente contra Deus naquele anterior estado de ser, entram neste mundo com uma carga de culpa e contaminação devido a seu próprio ato voluntário. Ao não ter sido nunca adotada esta postura por nenhuma Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 298 igreja cristã, não pertence de maneira própria à teologia cristã. É suficiente observar a respeito dela: 1. Que não pretende estar ensinada nas Escrituras, e por isso que não pode ser um artigo de fé. Os Protestantes se unem em ensinar que «todo o conselho de Deus com relação a todas as coisas necessárias para Sua própria glória, e para a salvação do homem, e sua fé e vida, são ensinadas ou diretamente nas Escrituras, ou se podem deduzir de maneira boa e necessária das próprias Escrituras, às quais nunca se deve acrescentar nada, seja por novas revelações do Espírito nem pelas tradições dos homens». Porquanto a doutrina da preexistência das almas nem está expressamente estabelecida na Bíblia, nem se pode deduzir dela, não se pode receber como um dos princípios formativos da doutrina cristã. Tudo o que pretendem seus defensores cristãos é que não é contradita pelas Escrituras, e que por isso são livres para sustentá-la. 2. Mas nem mesmo isto pode ser concedido. É expressamente contrário aos claros ensinos da Palavra de Deus. Segundo a história da criação o homem foi feito à imagem de Deus. Seu corpo foi feito do pó da terra, e sua alma foi derivada de maneira imediata de Deus, e ele o pronunciou que «era muito bom». Isto é totalmente inconsistente com a ideia de que Adão fosse um espírito caído. A Bíblia ensina também que Adão foi criado à imagem de Deus em conhecimento, retidão e santidade e um estado mais elevado. Também as Escrituras, como já vimos, dizem que foi por um homem que entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, porque todos pecaram naquele um homem. Há uma relação causal entre o pecado de Adão e a condenação e pecaminosidade de sua posteridade. Isto contradiz a teoria que atribui a atual pecaminosidade dos homens não aos atos de Adão, mas sim ao ato voluntário de cada homem individual num estado anterior de existência. 3. Esta doutrina está tão carente de todo apoio do testemunho da consciência como da autoridade da Escritura. Ninguém tem nenhuma reminiscência de uma existência anterior. Nada há em seu estado atual que o conecte com um anterior estado do ser. Trata-se simplesmente de Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 299 uma mera hipótese, sem a menor evidência de parte de nenhum fato conhecido. 4. A teoria, se for certa, não nos dá nenhum alívio. Pecados dos quais nada sabemos; que foram cometidos por nós antes de nascer; que não podem ser trazidos à consciência como nossos próprios pecados, nunca podem constituir uma base justa de castigo, não mais que as ações de um idiota. É desnecessário, no entanto, prosseguir este assunto ainda, porquanto as objeções contra a teoria realista, na maioria dos casos, têm o mesmo peso contra a teoria da preexistência. § 12. A Teoria Realista Os que rejeitam a insustentável teoria da preexistência e, entretanto, mantêm o princípio de que só se pode atribuir culpa ao que se deve à nossa ação se veem empurrados a pressupor que Adão e sua raça são um no sentido que seu ato de desobediência foi literalmente o ato de toda a humanidade. E em consequência são tão verdadeiramente culpados num sentido pessoal, devido a isso, como o era o próprio Adão; e que a corrupção inerente fluindo daquele ato pertence-nos no mesmo sentido e da mesma maneira que pertencia a ele. Seu pecado, diz-se então, «é nosso não porque nos seja imputado, mas que se nos imputa porque é verdadeira e propriamente nosso». Temos que disputar constantemente com a ambiguidade dos termos. Há um sentido em que a proposição anterior é perfeitamente verdadeira, e há um sentido em que não o é. É verdade que a justiça de Cristo nos é imputada porque é nossa com base nos termos da aliança da graça; porque foi operada para nós por nossa grande cabeça e representante, que obedeceu e sofreu em nosso lugar. Mas não é verdade que seja nossa no sentido de que fôssemos os agentes por meio dos quais tal justiça fosse levada a cabo, ou as pessoas em quem é inerente. De maneira semelhante, do pecado de Adão pode-se dizer que nos é imputado porquanto é nosso, porquanto é o pecado da cabeça divinamente constituída e representante de nossa raça. Mas não é Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 300 nosso no mesmo sentido em que era dele. Não foi nosso ato, isto é, um ato em que nossa razão, vontade e consciência fossem exercidos. Há um sentido em que o ato de um agente é o ato do principal. Vincula-o legalmente, de uma maneira tão eficaz quanto fosse possível vincular-se. Mas ele não é, por isso mesmo, o agente eficiente do ato. O sentido em que muitos afirmam que o ato de Adão foi nosso ato é que a própria natureza ou substância numérica, a mesma razão e vontade que existiram e que agiram em Adão, pertencem-nos; de maneira que fomos verdadeira e propriamente os agentes de seu ato de apostasia. A Teoria da Identidade, do Reitor Edwards A hipótese que o Reitor Edwards se lança a disputar é «Que Adão e sua posteridade não são um, mas agentes inteiramente distintos». 223 A teoria sobre a base da qual ele tenta demonstrar que Adão e sua posteridade foram um agente não é exatamente a velha teoria realista, mas antes, uma teoria dela, e depende de suas peculiares perspectivas a respeito da unidade ou identidade. Segundo ele, toda unidade depende da arbitrária disposição de Deus». A única razão pela qual uma árvore totalmente crescida é a mesma com sua primeira semente, ou que o corpo de um homem adulto é o mesmo com sua substância infantil, é que Deus assim quer considerá-los. Nenhuma criatura é uma e a mesma nos diferentes períodos de sua existência porque seria numericamente uma e a mesma substância, ou vida, ou organismo; mas simplesmente porque Deus «as trata como uma, comunicando-lhes semelhantes propriedades, relações e circunstâncias; e assim nos leva a considerá-las e tratá-las como uma». 224 Diz ele: «Se a existência de uma substância criada é totalmente o efeito, em cada momento sucessivo, do poder imediato de Deus naquele momento, sem nenhuma dependência de uma existência anterior, tanto como a primeira criação fora do nada, então o que existe 223 224 Original Sin, IV. iii.; Works, edit. N. Y. 1829, vol. ii. p. 546. Ibid. p. 556. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 301 naquele momento, por este poder, é um novo efeito; e considerado simples e absolutamente, não o mesmo com qualquer existência passada, embora seja como ela, e siga com base em um certo método estabelecido. E não há identidade nem unidade no caso, senão a que depende da arbitrária disposição do Criador, que, por Seu sábio e soberano decreto une novos efeitos sucessivos de tal maneira que os considera como um». 225 Emprega ele duas ilustrações para esclarecer seu sentido de maneira perfeita. O resplendor da lua nos parece uma coisa permanente, mas é na realidade um novo efeito produzido cada momento. Cessa, e é renovado, em cada ponto sucessivo do tempo, e assim vai transformando-se num efeito totalmente novo em cada instante. Não é numericamente mais a mesma coisa como a que existia no momento anterior que o som do vento que sopra agora é, individualmente, o mesmo som do vento que soprava faz justamente um momento. O que é certo do resplendor da lua, diz ele, deve sê-lo também de sua solidez, e de todo o resto que pertença à sua substância. Também, as imagens de coisas postas diante de um espelho parecem permanecer precisamente as mesmas, com uma identidade contínua perfeita. Mas se sabe que não é assim. Estas imagens são constantemente renovadas pela impressão e reflexo de novos raios de luz. A imagem que existe neste momento não se deriva absolutamente da imagem que existia no momento justamente anterior. Não é numericamente a mesma, como se fosse pintada por um artista com umas cores que se desvanecessem logo que são pintados. A evidente falácia destas ilustrações é que os casos são aparentemente semelhantes, mas não na realidade. O resplendor da lua e a imagem num espelho não são substâncias que tenham uma existência continuada; são meramente efeitos sobre nossos órgãos visuais. Pelo contrário, as substâncias que produzem estes efeitos são existências ou entidades objetivas, e não estados subjetivos de nossa sensibilidade. 225 Ibid. pp. 555, 556. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 302 Entretanto, Edwards diz que o que é verdade das imagens deve ser verdade dos mesmos corpos. «Não podem ser os mesmos, com uma identidade absoluta, mas devem ser renovados a cada momento, se for como se demonstrou, que seu atual existência não é, falando estritamente, o efeito de sua existência passada, mas é de maneira total, em cada instante, o efeito de uma nova ação ou aplicação da poderosa causa de sua existência». 226 Assim, porquanto não existe a identidade numérica de substância nas coisas criadas, e como toda unidade depende da arbitrária disposição de Deus» e que as coisas são uma, porque assim as considera e trata Deus, «não há uma razão sólida», conforme mantém Edwards, pela qual a posteridade de Adão não seja «tratada como uma com ele para a derivação … da perda de retidão, e a conseguinte corrupção e culpa». 227 Segundo esta doutrina da identidade, tudo o que existem, incluindo a alma humana, é e permanece sendo uma não devido a nenhuma continuidade de vida e substância, mas sim como uma série de novos efeitos produzidos em cada momento sucessivo pela renovada eficácia de Deus. Toda a teoria resolve-se na doutrina de que a preservação é uma criação contínua. O argumento do Edwards para demonstrar este extremo é que «a existência de cada substância criada é uma existência dependente, e por isso é um efeito, e deve ter alguma causa; e a causa deve ser uma destas: ou a existência antecedente da mesma substância, ou o poder do Criador». Não pode ser a existência antecedente da mesma substância, e por isso deve ser o poder de Deus. Sua conclusão é que a manutenção da substância criada da parte de Deus «é plenamente equivalente a uma produção imediata do nada, em cada momento». 228 226 Original Sin, IV. iii.; Works, vol. ii., p. 555, note. Ibid. p. 557. 228 Ibid. p. 554. 227 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 303 Objeções à teoria de Edwards As consequências fatais desta visão da natureza da preservação apresentaram-se sob o epígrafe da Providência. Tudo o que se deve observar aqui é: 1. Que se baseia na pressuposição de que podemos compreender a relação da eficiência de Deus com os efeitos produzidos no tempo. Devido ao fato de que cada novo efeito que nós produzimos deve-se a um novo exercício de nossa eficiência, dá-se por sentado que este deve ser o caso com Deus. Entretanto, Ele habita na eternidade. Para Ele não há distinção entre o passado e o futuro. Todas as coisas estão igualmente presentes diante dEle. Como nós existimos no tempo e no espaço, todos os nossos modos de pensamento estão condicionados por estas circunstâncias de nosso ser. Mas como Deus não está sujeito às limitações do tempo ou do espaço, não temos direito de transferir a Ele estas limitações. Isto só demonstra que não podemos compreender como Deus produz efeitos sucessivos. Não sabemos o que sejam por atos sucessivos, e por isso é totalmente irrazoável e presunçoso fazer desta hipótese a base para explicar magnas doutrinas escriturísticas. É certamente igualmente concebível ou inteligível que Deus quer a existência continuada das coisas que Ele cria, que aquelas que Ele cria de novo em cada momento sucessivo. 2. Esta doutrina de uma criação continuada destrói a distinção escriturística e do senso comum entre a criação e a preservação. As duas coisas se apresentam de maneira constante como diferentes, e são consideradas como diferentes pelo juízo comum da humanidade. Pela criação, Deus chama as coisas à existência, e mediante a preservação as sustenta em seu ser. As duas ideias são essencialmente distintas. Portanto, toda teoria que as confunda deve ser falaciosa. Deus quer que as coisas que criou continuem sendo; e negar que Ele possa causar uma existência continuada é negar Sua onipotência. 3. Esta doutrina nega a existência da substância. A ideia de substância é uma ideia primordial. Dá-se na constituição de nossa Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 304 natureza. É uma verdade intuitiva, como se demonstra por sua universalidade e necessidade. Um dos elementos essenciais desta ideia é a continuidade ininterrupta do ser. A substância é aquilo que permanece; que segue sem mudanças sob todas as mudanças fenomenológicas às quais está sujeita. Segundo a teoria da criação contínua não há nem pode haver substância criada. Deus é a única substância no universo. Tudo o que é fora de Deus é uma série de novos efeitos; não há nada que tenha existência continuada, e por isso não há substância. 4. Segue-se necessariamente que se Deus é a única substância, Ele é o único agente no universo. Sendo que todas as coisas fora de Deus são chamadas a ser do nada a cada momento, ficam reduzidas a modos da eficiência de Deus. Se Ele cria a alma em cada instante sucessivo, Ele cria todos os seus estados, pensamentos, sentimentos e volições. A alma é só uma série de atos divinos. E por isso não pode haver livre-arbítrio, nem pecado, nem responsabilidade, nem existência individual. O universo é só a automanifestação de Deus. Assim, esta doutrina é essencialmente panteísta em suas consequências. 5. Resolver toda identidade numa «disposição arbitrária de Deus», nega que haja qualquer verdadeira identidade em quaisquer coisas criadas. Edwards diz de maneira expressa que não são numericamente as mesmas. Não podem ser as mesmas com uma identidade absoluta. São uma somente porque Deus assim as considera, e porque são semelhantes, de maneira que as consideramos como as mesmas. Sendo este o caso, não parece haver base sequer para a culpa e a contaminação na alma individual como procedente de seus próprios atos, porque não há nada senão uma conexão aparente, não real, entre o presente e o passado na vida da alma. Não é a mesma alma que é culpado hoje do pecado cometido ontem. Muito menos pode ser tal identidade arbitrária ou suposta entre Adão e sua raça uma base justa para eles levarem a culpa do primeiro pecado dele. Em resumo, esta doutrina subverte todas as nossas ideias. Supõe que algumas coisas que, como a alma humana, são verdadeiramente uma, não são uma no sentido de identidade numérica; e Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 305 que algumas coisas que não são idênticas, como Adão e sua posteridade, são uma no sentido de que a alma de um homem é uma, ou que a identidade pode-se pregar de qualquer criatura. Por isso, esta doutrina, que explicaria a culpa e a depravação inata dos homens sobre a base de uma disposição arbitrária de Deus, pela quais se declaram como um ser que na realidade são subsistências distintas, é não só contrária às Escrituras e às convicções intuitivas dos homens, mas que não oferece nenhuma solução satisfatória aos atos que pretende explicar. Não traz à consciência de nenhum homem que o pecado de Adão foi seu pecado no sentido de que nossos pecados de ontem são nossa culpa de hoje. A própria teoria Realista. A estranha doutrina do Edwards acima descrita concorda com a teoria realista até onde ele e os realistas se unem em dizer que Adão e sua raça são um no mesmo sentido em que uma árvore é um durante todo o seu progresso desde a semente até a maturidade, ou em que a alma humana é uma durante todos os diferentes períodos de sua existência. Mas difere de maneira essencial em que Edwards nega a identidade numérica em qualquer caso. A identidade, segundo ele, não inclui em nenhuma criatura a existência continuada de uma e a mesma substância. Pelo contrário, a doutrina realista faz da identidade numérica da substância a essência da identidade. Cada gênero ou espécie de plantas ou animais é uma porquanto todos os indivíduos daqueles gêneros e espécies são partícipes de uma e a mesma substância. Em cada espécie há só uma substância da que os indivíduos são modos de manifestação. Segundo sua teoria a humanidade é numericamente uma e a mesma substância da qual os indivíduos são os modos de manifestação. Segundo esta teoria, a humanidade é numericamente uma e a mesma substância em Adão e em todos os indivíduos de sua raça. O pecado de Adão foi, portanto, o pecado de toda a humanidade, porquanto foi cometido por numericamente a mesma substância racional e voluntária que nos constitui como homens. Foi nosso pecado no mesmo sentido em que foi Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 306 seu pecado, porquanto foi nosso ato (o ato de nossa razão e vontade) tanto como dele. Há duas classes de objeções a esta teoria que pudemos aqui passar a considerar. Primeiro, as que militam contra o realismo como teoria; e em segundo lugar, as que se relacionam com sua aplicação à relação da união entre nós e Adão como solução dos problemas do pecado original. Recapitulação das Objeções à teoria realista. (1) O realismo é uma mera hipótese; uma de muitas possíveis hipóteses. A possibilidade é tudo o que se pode pretender em seu favor. Não se pode dizer que seja provável, e muito menos ainda que seja certo; e por isso não pode ser constituído de maneira legítima como base de outras doutrinas. (2) Não tem o apoio das Escrituras. A Bíblia, certamente, diz que Adão e sua raça são um; mas também diz que Cristo e seu povo são um; que toda a multidão de crentes de todas as idades e no céu e na terra são um. Assim, na vida comum falamos de cada comunidade organizada como um todo. A Igreja visível é uma. Todo estado ou reino separados são um. Tudo depende da natureza desta unidade. E esta deve ser determinada pela natureza daquilo de que se fala, e do usus loquendi da Bíblia e da vida comum. Assim como ninguém infere do fato de que as Escrituras declaram que Cristo e Seu povo são um que sejam numericamente a mesma substância; nem da unidade pregada dos crentes como distintos do resto da humanidade que sejam de uma substância e o resto dos homens de outra substância diferente, tampouco temos direito nós a inferir do fato de que a Bíblia diga que Adão e sua posteridade são um que sejam numericamente a mesma substância. E tampouco as Escrituras descrevem a natureza e os efeitos da união entre nós e Adão para demandar nem justificar a doutrina realista. A natureza e os efeitos de nossa unidade com Adão são declarados em todos os pontos essenciais como análogos à natureza e aos efeitos de nossa unidade com Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 307 Cristo. Assim como esta não é uma unidade de substância, tampouco é a outra. (3) Mostrou-se que o realismo não tem sustento da consciência dos homens, mas pelo contrário, contradiz os ensinos da consciência tal como são interpretados pela grande maioria de nossa raça, tanto letrados como iletrados. Todo homem é revelado a si mesmo como uma substância individual. (4) O realismo, como se argui mais acima, contradiz a doutrina das Escrituras até onde é irreconciliável com a doutrina escriturística da existência separada da alma. (5) Subverte a doutrina da Trindade até onde faz do Pai, Filho e Espírito Santo um Deus só no sentido em que todos os homens são um homem. As pessoas da Trindade são um Deus porque são um em essência ou substância. E todos os homens são um homem porque são um em essência. As respostas que os realistas Trinitários dão a estas questões são insatisfatórias, porque supõem a divisibilidade, e consequentemente a materialidade, do Espírito. (6) É difícil, se não impossível, conciliar a teoria realista com a impecabilidade de Cristo. Se uma essência numérica da humanidade fezse culpada e contaminada em Adão, e se nós somos culpados e estamos contaminados porque somos partícipes daquela substância caída, como pôde livrar-se a natureza humana de Cristo de pecado, se tomou sobre Si da mesma essência numérica que pecou em Adão? (7) As objeções anteriores são de aparência teológica ou escriturísticas; outras de caráter filosófico serviram para varrer a doutrina do realismo de todas as escolas da filosofia moderna, exceto até onde foi combinada com as formas superiores de monismo panteísta. O Realismo não é solução para o problema do pecado. As objeções que militam contra esta teoria como solução dos problemas do pecado original não são menos decisivas. Há duas coisas que o realismo se propõe explicar. Primeiro, o fato de que sejamos Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 308 castigados pelo pecado de Adão; e segundo, que a depravação hereditária seja em nós verdadeira e propriamente pecado, envolvendo culpa assim como contaminação. O primeiro é explicado com base em que o ato de Adão foi nosso próprio ato; e o segundo sobre a base de que a depravação inata é a consequência de nossa própria ação voluntária. Assim como um homem é responsável por seu caráter ou estado mental permanente produzidos por suas transgressões pessoais, assim nós somos responsáveis pelo caráter com que viemos ao mundo, porque é resultado de nossa apostasia voluntária de Deus. A isto é evidente objetar: 1. Que admitindo que o realismo seja certo; admitindo que a humanidade seja numericamente uma e a mesma substância, da qual os homens individuais são os modos de manifestação; e admitindo que esta humanidade genérica pecou em Adão, isto não nos dá uma solução satisfatória de nenhum dos atos anteriormente enunciados. Duas coisas são necessárias para vindicar a inflição de castigo por um pecado cometido com base em uma responsabilidade pessoal. Primeiro, que o pecado seja um ato de consciente autodeterminação. De outra maneira não pode ser levado à consciência para produzir o sentimento de criminalidade. E o sofrimento sem o sentimento de criminalidade ou de culpa, pelo que respeita a quem padece, não é castigo, mas uma crueldade arbitrária. E, segundo, para vindicar o castigo aos olhos da justiça, no caso que se supõe, tem que haver uma criminalidade pessoal manifesta a todos os seres inteligentes conhecedores do caso. Se o homem cometesse um delito em estado de sonambulismo ou de insânia, sem saber o que fazia, sendo impossível que o reconhecesse ao ser restaurado a uma condição normal, está claro que tal delito não poderia ser com justiça a base do castigo. O castigo infligido com base nisso não seria castigo aos olhos de quem o sofresse, nem justo para os outros. Não está menos claro que se alguém cometesse um crime em um bom estado de mente, e depois se tornasse louco, não poderia ser castigado com justiça enquanto continuasse em tal estado. A execução de um maníaco ou de um idiota por qualquer delito cometido antes da insânia ou idiotice Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 309 seria um ultraje. Se estes princípios são corretos, então fica claro, inclusive admitindo tudo o que pretendem os realistas, que não se obtém nenhum alívio. Não dá nenhuma solução satisfatória nem ao fato de que sejamos castigados pelo pecado de Adão nem da culpa que acompanha a nossa depravação hereditária inerente. Um pecado do qual é impossível que estejamos conscientes como nosso ato voluntário não pode ser mais a base de castigo como nosso ato que o pecado de um idiota, de um louco, ou de um cadáver. Quando o corpo do Cromwell foi exumado e pendurado de uma forca, Cromwell não foi por isso castigado; e aquela ação foi, para toda a humanidade, uma mera manifestação de impotente ato vingativo. 2. Mas a teoria realista não pode ser admitida. A hipótese de que agimos milhares de anos antes de nascer para ser pessoalmente responsáveis por aquela ação é monstruosa. É, como diz Baur, uma proposição impensável; isto é, uma proposição à qual não se pode atribuir nenhum significado inteligível. Podemos compreender como se pode dizer que morremos com Cristo e que ressuscitamos com Ele; que Sua morte foi nossa morte, e Sua ressurreição nossa ressurreição, no sentido de que Ele agiu por nós como nosso substituto, cabeça e representante. Mas dizer que verdadeira e realmente morremos e ressuscitamos nEle; que nós fomos os agentes de Seus atos, não comunica ideia alguma à mente. Da mesma maneira podemos compreender como se pode dizer que pecamos em Adão e que caímos nele enquanto que ele era a cabeça divinamente designada e representante de sua raça. Mas a proposição de que nós executamos seu ato de desobediência é para nossos ouvidos um som sem significado algum. É tão impossível quanto algo não existente possa agir. Então não existíamos. Não tivemos ser antes de nossa existência neste mundo; e que nós agíssemos antes de ter existido é uma absoluta impossibilidade. Deve-se lembrar que um ato implica um agente; e o agente de um ato voluntário responsável deve ser uma pessoa. Antes da existência da personalidade de um homem, aquele homem não pode levar a cabo Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 310 nenhuma ação voluntária. O pecado cometido é um ato de autodeterminação voluntária; e, por isso mesmo, tal ato é impossível antes da existência do eu. A substância com a qual parece um homem pode ter existido antes que ele chegasse a ser, mas não o homem como tal. Admitindo que as almas dos homens sejam formadas da substância genérica da humanidade, esta substância não é mais aquele homem que o pó da terra do qual Adão foi formado era seu corpo. A ação voluntária e responsável, o caráter moral e a culpa podem pregar-se só de pessoas, e não podem pregar-se deles nem verdadeiramente lhes pertencer antes que existam. Por isso, a doutrina que supõe que somos pessoalmente culpados do pecado de Adão sobre a base de que fomos agentes daquele ato, que nossa vontade e razão foram exercidos de tal maneira naquela ação como para fazer-nos a nós pessoalmente responsáveis da mesma e de suas consequências, é absolutamente inconcebível. 3. Outra objeção a esta teoria é que não dá razão alguma pela qual nós sejamos responsáveis pelo primeiro pecado de Adão, e não de suas posteriores transgressões. Se seu pecado, é nosso devido ao fato de que a totalidade da humanidade, como natureza genérica, agiu nele, esta razão aplica-se deste modo a todos os seus outros pecados, o mesmo que a seu primeiro ato de desobediência, ao menos antes do nascimento de seus filhos. A raça não estava menos individualizada e concentrada em Adão quando estava no jardim que depois de ter sido expulso dele. Além disso, por que é o pecado de Adão, em lugar de, ou mais que o pecado de Eva pelo qual somos responsáveis? É uma realidade escriturística clara de que a humanidade tem uma relação com o pecado de Adão que não tem com o pecado de Eva. Diz-se que levamos a culpa de seu pecado, mas nunca que levamos a culpa dela. A razão é que Adão era nosso representante. A aliança foi feita com ele; assim como em gerações posteriores a aliança foi feita com Abraão, e não com Sara. Sobre esta base há uma razão inteligível pela qual a culpa do pecado de Adão nos seja imputada, o que não se aplica ao pecado de Eva. Mas com base na teoria realista seria o reverso. Eva pecou primeiro. A humanidade Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 311 genérica, individualizada nela, apostatou de Deus, antes que Adão tivesse delinquido; e por isso foi o pecado dela, mais que o dele, aquele que arruinou nossa comum natureza. Mas não é esta a descrição que dá a Escritura. 4. A oposição imposta contra a doutrina da imputação mediata, que é inconsequente com a doutrina apostólica da justificação, e incompatível com seu argumento em Rm 5:12-21, tem uma força igual contra a teoria realista. O que o Apóstolo ensina, no que ele insiste com maior energia, e o que é o fundamento da esperança de cada crente, é que somos justificados por atos que não são nossos próprios; dos quais não fomos os agentes, e cujo mérito não nos vem pessoalmente nem constitui nosso caráter moral. Isto, diz-nos ele, é análogo ao caso de Adão. Nós não fomos agentes em sua ação. Seu pecado não foi nosso pecado. Sua culpa não nos pertence pessoalmente. É-nos imputada como algo que não é nosso, um peccatum alienum, e a pena da mesma é a perda do favor divino, a perda da retidão original e a morte espiritual, são suas tristes consequências. Da mesma maneira que a justiça de Cristo não é nossa, antes, é-nos imputada, e temos um título justo sobre a base daquela justiça, se a aceitamos e confiamos nela, para todos os benefícios da redenção. Isto, que é claramente a doutrina do Apóstolo e das igrejas Protestantes, é negado pela escola realista. Isto é, nega que o pecado de Adão como pecado de outro seja a base de nossa condenação; e em coerência deve também negar (como de fato o negam a maioria dos Realistas) que a justiça de Cristo, como justiça de outro, seja a base de nossa justificação. O que torna mais séria esta objeção é que as razões atribuídas para negar que o pecado de Adão, se não é nosso próprio, possa nos ser justamente imputado, militam com a mesma força contra a imputação de uma justiça que não é pessoalmente nossa. O grande princípio que está na base da teoria realista, como de todas as demais falsas teorias a respeito do pecado original, é que um homem pode ser responsável só de seus próprios atos e do caráter que ele mesmo formou. Se for assim, então, segundo o Apóstolo, a não ser que possamos Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 312 cumprir a lei com perfeição e restaurar nossa natureza à imagem de Deus por nossa própria ação, temos que perecer eternamente. 5. Finalmente, deve rejeitar-se a solução apresentada pelos Realistas para explicar nossa relação com Adão e para resolver os problemas do pecado original, porquanto o Realismo é uma teoria puramente filosófica. Certamente, diz-se com frequência que a doutrina de nossa relação de aliança com Adão, e da imediata imputação de seu pecado à sua posteridade, é uma teoria. Mas isto não é verdade. Não se trata de uma teoria, senão do simples enunciado de um claro fato escriturístico. A Bíblia diz que o pecado de Adão foi a causa da condenação de sua raça. Diz-nos que não se trata da mera causa ocasional, mas sim da base judicial daquela condenação; que foi por, ou devido a, seu pecado que foi pronunciada a sentença de condenação sobre todos os homens. Esta é a doutrina total da imputação imediata. É tudo o que a doutrina inclui. Nada se acrescenta à simples declaração escriturística. Pelo contrário, o Realismo é uma teoria filosófica exterior à Escritura, que tem a intenção de explicar o fato de que o pecado de Adão é a base da condenação de nossa raça. Introduz uma doutrina de universais, da relação dos indivíduos com os gêneros e as espécies, a respeito do que as Escrituras nada ensinam, e faz desta teoria filosófica uma parte integral da doutrina da Escritura. Isto é acrescentar à Palavra de Deus. É fazer com que a verdade das doutrinas escriturísticas dependam da correção de especulações filosóficas. É importante ter presente a relação que a filosofia sustenta de maneira própria com a teologia. (1) A relação é íntima e necessária. As duas ciências abrangem praticamente as mesmas esferas e tratam dos mesmos temas. (2) Há uma filosofia subjacente a todas as doutrinas escriturísticas, ou que as Escrituras dá por suposta em todos os seus ensinos. (3) Como as doutrinas da Bíblia vêm de Deus, e são por isso infalíveis e absolutamente certas, não se pode admitir nenhum princípio filosófico como sadio que não esteja de acordo com estas doutrinas. (4) Por isso, o verdadeiro ofício e esfera da filosofia cristã, ou da filosofia Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 313 nas mãos de um cristão, é determinar e ensinar estes fatos e princípios a respeito de Deus, do homem e da natureza que estejam de acordo com a palavra divina. Um cristão não pode adotar certa teoria da liberdade humana e mediante ela decidir o que a Bíblia ensina a respeito da prévia ordenação e da providência; ao contrário, deveria deixar que os ensinos da Bíblia determinem sua teoria da liberdade. E assim sucede com todas as outras doutrinas; e isto se pode fazer com a total certeza de que a filosofia à qual somos assim levados a adotar será autenticada como verdadeira perante o tribunal da razão iluminada. A objeção ao Realismo é que inverte esta ordem ou empreende o controle das Escrituras, em lugar de deixar-se levar por elas. A Bíblia diz que estamos condenados pelo pecado de Adão. O Realismo o nega, e diz que ninguém é nem pode ser condenado exceto por seu próprio pecado. § 13. O pecado original. Os efeitos do pecado de Adão sobre sua posteridade são declarados em nossos símbolos como: (1) A culpa de seu primeiro pecado. (2) A perda da retidão original. (3) A corrupção de toda nossa natureza, a qual (isto é, a qual corrupção) recebe usualmente o nome de pecado original. Usualmente, mas nem sempre. Não é incomum que por pecado original se signifique todas as consequências más subjetivas da apostasia de nosso primeiro pai, e que por isso inclua os três pontos mencionados. Por isso, o Sínodo Nacional da França condenou a doutrina de Placæus, porque fez com que o pecado original consistisse em depravação inerente e hereditária com exclusão da culpa do primeiro pecado de Adão. Esta corrupção inerente em que nascem todos os homens desde a Queda é propriamente chamada pecado original: (1) Porque é verdadeiramente da natureza de pecado. (2) Porque brota de nossos primeiros pais como a origem de nossa raça. (3) Porque é a origem de Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 314 todos os outros pecados; e (4) Porque em sua natureza distingue-se dos pecados de comissão. A natureza do pecado original. Quanto à natureza desta corrupção hereditária, embora a fé da Igreja Católica, ao menos das igrejas Latina, Luterana e Reformada, fosse uniforme em todo o essencial, entretanto foi geral a diversidade de opiniões entre os teólogos. (1) Segundo muitos dos pais gregos, e em tempos posteriores dos Remonstrantes, e Arminianos, trata-se de um mal físico mais que moral. A condição física de Adão ficou deteriorada por sua apostasia, e esta constituição natural deteriorada descendeu à sua posteridade. (2) Segundo outros, a concupiscência, ou corrupção inata, tem tal domínio sobre a natureza sensorial ou animal do homem, acima de seus mais altos atributos da razão e da consciência, que envolve uma maior tendência ao pecado, mas não é em si mesma pecaminosa. Alguns dos teólogos Romanistas apoiam de maneira clara esta doutrina, e alguns Protestantes, como vimos, sustentam que esta é a doutrina simbólica da Igreja de Roma como tal. Esta mesma postura foi defendida por teólogos de nossa própria era e país. (3) Outros mantêm uma doutrina estreitamente relacionada com a recém-mencionada. Falam de depravação inerente, e admitem que é de natureza de uma corrupção moral, mas negam que suporte culpa à alma, até que seja exercida, assentida e abrigada. (4) A doutrina das igrejas Reformada e Luterana a respeito desta questão é apresentada em Suas confissões autorizadas. A “Confissão do Augsburgo”. 229 “Docent quod post lapsum Adæ omnes homines, secundum naturam propagati, nascantur cum peccato, hoc est, sine metu Dei, sine fiducia erga Deum, et cum concupiscentia.” “Articuli Smalcaldici.” 230 “Peccatum hæreditarium tam profunda et tetra est corruptio naturæ, ut nullius hominis ratione intelligi possit, sed ex Scripturæ patefactione agnoscenda, et credenda sit.” 229 230 I. ii. 1; Hase, Libre Symbolici, p. 9. III. i. 3; Ibid. p. 317. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 315 231 “Formula Corcordiæ.” “Credendum est . . . . quod sit per omnia totalis carentia, defectus seu privatio concreatæ in Paradiso justitiæ originalis seu imaginis Dei, ad quam homo initio in veritate, sanctitate atque justitia creatus fuerat, et quod simul etiam sit impotentia et inaptitudo, ἀδυναμία et stupiditas, qua homo ad omnia divina seu spiritualia sit prorsus ineptus. . . . . Præterea, quod peccatum originale in humana natura non tantummodo sit ejusmodi totalis carentia, seu defectos omnium bonorum in rebus spiritualibus ad Deum pertinentibus: sed quod sit etiam, loco imaginis Dei amissæ in homine, intima, pessima, profundissima (instar cujusdam abyssi), inscrutabilis et ineffabilis corruptio totius naturæ et omnium virium, imprimis vero superiorum et principalium animæ facultatum, in mente, intellectu, corde et voluntate.” “Constat Christianos non tantum actualia delicta . . . peccata esse agnoscere et definire debere, sed etiam ... hæreditarium morbum ... imprimis pro horribili peccato, et quidem pro principio et capite omnium peccatorum (e quo reliquæ transgressiones, tanquam e radice nascantur ...) omnino habendum esse.” 232 “Confessio Helvetica II.” 233 “Qualis (homo Adam) factus est a lapsu, tales sunt omnes, qui ex ipso prognati sunt, peccato inquam, morti, variisque obnoxii calamitatibus. Peccatum autem intelligimus esse nativam illam hominis corruptionem ex primis illis nostris parentibus in nos omnes derivatam vel propagatam, qua concupiscentiis pravis immersi et a bono aversi, ad omne vero malum propensi, pleni omni nequitia, diffidentia, contemptu et odio Dei, nihil boni ex nobis ipsis facere, imo ne cogitare quidem possumus.” 231 I. 10. 11; Ibid. p. 640, the second of that number. I. 5; Ibid. p. 640, the first of that number. 233 VIII.; Niemeyer, Collectio Confessionum, p. 477. 232 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 316 234 “Confessio Gallicana.” “Credimus hoc vitium (ex propagatione manans) esse vere peccatum.” “Articuli XXXIX.” 235 “Peccatum originis . . . est vitium et depravatio naturæ cujuslibet hominis ex Adamo naturaliter propagati, qua fit ut ab originali justitia quam longissime distet; ad malum sua natura propendeat et caro semper adversus spiritum concupiscat, unde in unoquoque nascentium iram Dei atque damnationem meretur.” “Confessio Belgica.” 236 “Peccatum originis est corruptio totius naturæ et vitium hæreditarium, quo et ipsi infantes in matris utero polluti sunt: quodque veluti noxia quædam radix genus omne peccatorum in homine producit, estque tam foedum atque execrabile coram Deo, ut ad universi generis humani condemnationem sufficiat.” “Catechesis Heidelbergensis.” (Pravitas humanæ naturæ existit) “ex lapsu et inobedientia primorum parentum Adami et Evæ. Hinc natura nostra ita est depravata, ut omnes in peccatis concipiamur et nascamur.” 237 Nestas Confissões se ensina de maneira expressa que por natureza corrompida não deve entender-se nem essência nem substância (como o mantinha Matthias Flacius, e só ele no tempo da Reforma). A respeito deste ponto diz a Fórmula de Concórdia: Que embora o pecado original corrompe toda a nossa natureza, entretanto a essência ou substância da alma é uma coisa, e o pecado original é outra. “Discrimen igitur retinendum est inter naturam nostram, qualis a Deo creata est, hodieque conservatur, in qua peccatum originale habitat, et inter ipsum peccatum 234 XI.; Ibid. p. 332. IX.; Niemeyer, p. 603. 236 XV.; Ibid. p. 370. 237 VII.; Ibid. p. 431. 235 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 317 originis, quod in natura habitat. Hæc enim duo secundum sacræ Scripturæ regulam distincte considerari, doceri et credi debent et possunt.” 238 A Confissão de Westminster diz: 239 «Por este pecado eles (nossos primeiros pais) caíram de sua retidão original e comunhão com Deus, e assim deviam ser mortos em pecado, e totalmente contaminados em todas as faculdades e partes da alma e do corpo. Sendo eles a raiz de toda a humanidade, a culpa deste pecado foi imputada, e a mesma morte em pecado e natureza corrompida comunicadas a toda sua posteridade, descendendo deles por geração comum. Desta corrupção original, pela qual ficamos totalmente indispostos, incapacitados e feitos hostis a todo o bem, e plenamente inclinados a todo o mal, procedem todas as transgressões que se cometem. Esta corrupção da natureza, durante esta vida, permanece naqueles que são regenerados; e embora seja por meio de Cristo perdoada e mortificada, entretanto tanto ela mesma como todas as suas atividades são verdadeira e propriamente pecado.» Enunciado da doutrina Protestante. Com base nas anteriores declarações parece que, segundo a doutrina das igrejas Protestantes, o pecado original, ou a corrupção da natureza derivada de Adão, não é: (1) Uma corrupção da substância ou essência da alma. (2) Tampouco é um elemento essencial infundido na alma, como um veneno que se mistura com vinho. A Fórmula de Concórdia, por exemplo, nega que as más disposições de nossa natureza caída sejam «condiciones, seu concreatæ essentiales naturre proprietates». O pecado original é declarado como um «accidens, i. e., quod non per se subsistit, sed in aliqua substantia est, et ab ea discemi potest». As declarações afirmativas a respeito disto são: (1) Que esta corrupção da natureza afeta toda a alma. (2) Que consiste na perda ou ausência da retidão original, e 238 239 I. 33; Hase, p. 645. Capítulo VI. §§ 2-5. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 318 a conseguinte total depravação moral de nossa natureza, incluindo ou se manifestando numa aversão a todo o bem espiritual, ou a Deus, e numa inclinação a todo o mal. (3) Que é verdadeira e propriamente da natureza de pecado, incluindo ao mesmo tempo culpa e contaminação. (4) Que retém seu caráter de pecado inclusive nos regenerados. (5) Que ocasiona a morte espiritual da alma, de maneira que o homem natural, ou não renovado, é totalmente incapaz, por si mesmo, de fazer nada bom diante de Deus. Esta doutrina, portanto, levanta-se em oposição: 1. Àquilo que ensine que a raça dos homens não ficou prejudicada pela queda de Adão. 2. Àquilo que ensine que os males conseguintes à queda são meramente físicos. 3. À doutrina que faça do pecado original algo inteiramente negativo, consistindo na ausência de retidão original. 4. À doutrina que admite uma depravação hereditária da natureza, fazendo-a consistir numa inclinação a pecar, mas negando que seja pecaminosa por si mesma. Alguns dos teólogos ortodoxos fazem uma distinção entre vitium e peccatum. Queriam limitar este último termo a um pecado de comissão, enquanto que o anterior o empregavam para denotar a pecaminosidade residente e hereditária. Há sérias objeções a esta distinção: primeiro, que a vitium, assim entendido, é realmente pecado; inclui tanto pecado como contaminação, e assim é definido por Vitringa e outros que estabelecem esta distinção. Segundo, opõe-se ao uso teológico estabelecido. A depravação, ou corrupção hereditária inerente, sempre foi designada como peccatum, e portanto dizer que não é peccatum senão meramente vitium produz confusão e é condizente com o erro. Terceiro, é contrário às Escrituras, porque é inegável que a Bíblia designa a corrupção residente ou hereditária, ou vitium, como ἁμαρτία - Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 319 hamartia. Isto os romanistas reconhecem, que negam que tal concupiscência depois da regeneração seja de natureza de pecado. 240 5. A quinta forma de doutrina a que a fé Protestante opõe-se é a que admite uma deterioração moral de nossa natureza, que merece o desagrado de Deus, e que é, portanto, verdadeiramente pecado, e que entretanto nega que o mal seja tão grande para produzir a morte espiritual, e que envolva a total incapacidade do homem natural ao que é espiritualmente bom. 6. E a doutrina das igrejas Protestantes opõe-se aos ensinos dos que negam que o pecado original afete o homem inteiro, e que dizem que tem sua sede de maneira exclusiva nos afetos ou no coração, enquanto que o entendimento e a razão não foram danificados nem influenciados. Portanto, a fim de sustentar a doutrina Agostiniana (ou Protestante) do pecado original, devem-se estabelecer três pontos: I. Que toda a humanidade descendendo de Adão por geração comum nasce destituída de retidão original, e são sujeitos a uma corrupção da natureza que é verdadeira e propriamente pecado. II. Que esta corrupção original afeta o homem em Sua totalidade; não só o corpo com exclusão da alma; nem as faculdades inferiores com exclusão das superiores; e não o coração com exclusão dos poderes intelectuais. III. Que é de tal natureza que antes da regeneração os homens caídos estão «totalmente indispostos, incapacitados, e opostos a todo o bem». Prova da doutrina do pecado original. Primeiro argumento com base na universalidade do pecado. O primeiro argumento como prova desta doutrina provém da pecaminosidade universal dos homens. Todos os homens são pecadores. Esta é inegavelmente a doutrina das Escrituras. É afirmada, suposta e demonstrada. As asserções deste feito são muito numerosas para citá-las. 240 See above, pp. 178, 179. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 320 Em 1Rs 8:46 diz-se: «não há homem que não peque». Ec 7:20: «não há homem justo na terra, que faça o bem e nunca peque.» Is 53:6: «Todos nós nos desencaminhamos como ovelhas, cada qual se apartou por seu caminho.» Is 64:6: «Todos nós somos como sujeira, e todas as nossas justiças como trapos de imundície.» Sl 130:3: «Se observares, SENHOR, iniqüidades, quem, Senhor, subsistirá?» Sl 143:2: «À tua vista não há justo nenhum vivente.» Rm 3:19: «Que ... todo o mundo [πᾶς ὁ κόσμος pas ho kósmos] seja culpável perante Deus.» Vv. 22, 23: «Porque não há distinção, pois todos pecaram e carecem da glória de Deus.» Gál 3:22: «Mas a Escritura encerrou tudo sob o pecado», esta é, declarou a todos os homens sob o poder e a condenação do pecado. Tg 3:2 [AV]: «Porque todos ofendemos em muitas coisas.» 1Jo 1:8: «Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos enganamos, e a verdade não está em nós.» V. 10: «Se dissermos que não temos cometido pecado, fazemo-lo mentiroso, e a sua palavra não está em nós.» 1Jo 5:19: «O mundo inteiro jaz no Maligno.» Estas são só algumas das declarações da pecaminosidade universal dos homens das quais a Escritura está repleta. Mas em segundo lugar, este triste fato é constantemente assumido na Palavra de Deus. A Bíblia em cada momento dirige-se aos homens como pecadores. A religião que revela é uma religião para pecadores. Todas as instituições do Antigo Testamento, e todas as doutrinas do Novo, dão por sentado que os homens, universalmente, estão sob o poder e debaixo da condenação do pecado. «O mundo», tal como se emprega na Escritura, designa à massa da humanidade, em distinção à igreja, ou ao povo regenerado de Deus, e sempre envolve em sua aplicação a ideia de pecado. O mundo vos aborrece. Não sou do mundo. Eu vos escolhi do mundo. Todas as exortações da Escritura que se dirigem de maneira indiscriminada aos homens, chamando-os ao arrependimento, necessariamente supõem a universalidade do pecado. O mesmo sucede com as ameaças gerais e as promessas da Palavra de Deus. Em resumo, se nem todos os homens são pecadores, a Bíblia não está adaptada a seu verdadeiro caráter e estado. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 321 Mas as Escrituras não só afirmam diretamente e supõem em todo lugar a universalidade do pecado entre os homens, mas que este é um extremo que talvez mais que nenhum outro é feito objeto de um argumento formal e prolongado. O Apóstolo, especialmente em sua Epístola aos Romanos, começa com um processo regular de prova, de que todos, quer judeus ou gentios, estão debaixo do pecado. Até que este fato seja admitido e reconhecido, não há lugar nem necessidade do Evangelho, que é o método de Deus para a salvação dos pecadores. Por isso, Paulo começa declarando o propósito de Deus de castigar todo pecado. Logo mostra que os gentios são universalmente culpados do pecado de impiedade; que apesar de conhecer a Deus, não O adoram como Deus nem Lhe dão as graças. A consequência natural, judicial, e por isso inevitável, da impiedade é, segundo a doutrina do Apóstolo, a imoralidade. Os que O abandonam, Deus os abandona a um domínio do mal sem freios. Por isso é que todo mundo gentio estava afundado no pecado. No caso dos judeus, diz-nos ele, a coisa não era melhor. Tinham um conhecimento mais correto de Deus e de Sua lei, e muitas instituições dadas por Deus, pelo que suas vantagens eram muito grandes. Entretanto, eram tão verdadeira e universalmente pecadores como os gentios. Suas próprias Escrituras, que naturalmente se dirigiam a eles, declaram de maneira expressa: não há justo, nem um sequer. Não há quem entende, não há quem busque a Deus. Todos se extraviaram; a uma se tornaram inúteis; não há quem faz o bem, nem um sequer. Por isso, conclui ele, todo mundo é culpado diante de Deus. Tanto os judeus como os gentios estão todos debaixo do pecado. Por isso, pelas obras da lei ninguém será Justificado. Este é o fundamento de todo o sistema doutrinal do Apóstolo, e da religião da Bíblia. Jesus Cristo deveu salvar a Seu povo de seus pecados. Se os homens não são pecadores, Cristo não é o Salvador dos Homens. O que as Escrituras ensinam de maneira tão clara o ensinam com não menos clareza a experiência e a história. Cada homem sabe que é pecador. Sabe que cada ser humano que tenha visto está no mesmo Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 322 estado de apostasia de Deus. A história não contém o registro de nenhum homem sem pecado, exceto o Homem Cristo Jesus, que, ao estar isento de pecado, fica distinto por isso de todos os outros homens. Não temos relato algum de nenhuma família, tribo ou nação livre da contaminação do pecado. A universalidade do pecado entre os homens é, por isso, uma das mais inegáveis doutrinas da Escritura, e um dos fatos mais certos da experiência. Segundo argumento com base na total pecaminosidade dos homens Esta depravação universal não é um mal leve. Toda a raça humana, por sua apostasia de Deus, está totalmente depravada. Por depravação total não se significa que todos os homens sejam igualmente ímpios, nem que cada homem esteja tão totalmente corrompido como é possível que um homem seja; nem que os homens estejam destituídos de todas as virtudes morais. As Escrituras reconhecem o fato, abundantemente confirmado pela experiência, de que os homens, em maior ou menor grau, são honrados em seus procedimentos, benignos em seus sentimentos, e benéficos em sua conduta. Inclusive os pagãos, ensinanos o Apóstolo, fazem por natureza as coisas da lei. Estão mais ou menos sob o governo da consciência, que aprova ou desaprova sua conduta moral. Tudo isto é perfeitamente consequente com a doutrina escriturística da depravação total, que inclui a total ausência da santidade; a carência das devidas apreensões das perfeições divinas, e de nossa relação com Deus como nosso Criador, Preservador, Benfeitor, Governador e Redentor. É comum a todos os homens uma alienação total da alma de Deus, de maneira que nenhum homem irregenerado entende nem anda após Deus; nenhum homem assim faz de Deus sua porção, nem da glória de Deus o fim de seu ser. O afastamento de Deus é total ou completo. Todos os homens adoram e servem à criatura em lugar de e mais que ao Criador. Por isso, declara-se nas Escrituras que estão espiritualmente mortos. Estão destituídos de todo princípio de vida Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 323 espiritual. A terrível extensão e profundidade desta corrupção de nossa natureza ficam provadas: 1. Por seus frutos; pelo terrível domínio dos pecados da carne, de pecados de violência, dos pecados do coração, como a soberba, a inveja e a malícia; dos pecados da língua, como a maledicência e o engano; dos pecados da irreligião, da ingratidão, da impiedade e da blasfêmia; todos estes marcaram toda a história de nossa raça, e seguem distinguindo o estado de todo o mundo. 2. Pela consideração de que as demandas de Deus de nossa suprema reverência, amor e obediência, que são habitual e universalmente negligenciadas pelos homens irregenerados, são imensamente grandes. Isto é, são tão grandes que não se podem imaginar maiores. Estas demandas não só são ignoradas em tempos de excitação e de paixão, mas sim habitual e constantemente. Os homens vivem sem Deus. São, diz o Apóstolo, ateus. Esta alienação de Deus é tão grande e tão universal que as Escrituras dizem que os homens são inimigos de Deus; que a mente carnal, isto é, o estado da mente que pertence a todos os homens em seu estado natural, é inimizade contra Deus. Isto fica demonstrado não só por seu descuido e desobediência, mas também por rebelião direta contra a Sua autoridade, quando em Sua providência Ele nos arrebata nossos ídolos; ou quando Sua lei, com suas demandas inexoráveis e sua terrível penalidade, faz-se sentir sobre a consciência, e Deus é contemplado como um fogo consumidor. 3. Uma terceira prova do terrivelmente mau desta corrupção hereditária vê-se no universal rechaço de Cristo da parte daqueles aos quais Ele deveu salvar. Ele é em si mesmo distinguido entre dez mil e totalmente desejável; unindo em Sua pessoa todas as perfeições da Deidade e todas as excelências da humanidade. A Sua missão foi de amor, de um amor totalmente incompreensível, imerecido, imutável e infinito. Por amor não só se humilhou ao nascer de uma mulher, e ao ser feito sob a lei, mas também ao viver uma vida de pobreza, de dor e de perseguição; ao suportar sofrimentos inconcebivelmente grandes por Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 324 nossa causa, e finalmente ao levar nossos pecados sobre Seu próprio corpo no madeiro. Ele tem feito possível que Deus seja justo e que entretanto justifique os ímpios. Por isso, Ele oferece bênçãos de valor infinito, sem dinheiro e sem preço, a todos os que as aceitem. Ele obteve e nos oferece sabedoria, justiça, santificação e redenção; oferece-nos fazer de nós reis e sacerdotes para Deus, e exaltar-nos a um estado sem fim de inconcebível glória e bem-aventurança. Apesar de tudo isto, apesar da divina excelência de Sua pessoa, da grandeza de Seu amor da profundidade de Seus padecimentos e do valor das bênçãos que Ele proveu, e sem as quais devemos perecer eternamente, os homens, universalmente, quando são deixados a si mesmos, O rejeitam. Ele veio aos Seus, mas os Seus não O receberam. O mundo O aborreceu, e segue aborrecendo-O; não quer reconhecê-Lo como seu Deus e Salvador; não está disposto a aceitar Suas ofertas. Nem quer amá-Lo ao servi-Lo. A conduta dos homens para com Cristo é a mais clara prova da apostasia de nossa raça, e da profundidade da depravação em que está afundada; e, pelo que respeita aos ouvidores do Evangelho, é a maior razão para sua condenação. Todas as outras razões parecem fundir-se nesta, porque nosso Senhor diz que os homens estão condenados porque não creem no unigênito Filho de Deus. E o Espírito Santo, por boca do Apóstolo, diz: «Se alguém não ama o Senhor, seja anátema. Maranata!» sentença que será ratificada no dia do juízo por todas as criaturas racionais, caídas e não caídas, no universo. A pecaminosidade dos homens é incorrigível. 4. Outra prova do ponto que estamos considerando encontra-se na incorrigível natureza do pecado original. É, pelo que respeita a nós, uma doença incurável. Os homens não estão tão afetados pela Queda para ter perdido sua natureza moral. Sabem que o pecado é um mal, e que os expõe ao justo juízo de Deus. Por isso, desde o princípio do mundo tentaram não só expiá-lo, mas também de destruí-lo. Recorreram a todos os meios possíveis a seu alcance com este propósito. Provaram os Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 325 recursos da filosofia e da cultura moral. Apartaram-se da contaminadora companhia de seus semelhantes. reuniram todas as energias de sua natureza e todos os poderes de sua vontade. Sujeitaram-se aos mais dolorosos atos de negação de si mesmos, a observâncias ascéticas em todas suas formas. O único resultado destes esforços foi que os anacoretas se tornaram como sepulcros caiados, que aparecem por fora belos, enquanto que por dentro estão cheios de ossos de mortos e de toda imundície. Os homens foram lentos em aprender o que nosso Senhor ensina, que é impossível fazer bom o fruto até que a árvore seja boa. Entretanto, um mal que é tão indestrutível tem que ser muito grande. Argumento com base na experiência do povo de Deus. 5. Podemos apelar sobre este tema à experiência do povo de Deus em todas as idades e em todas as partes do mundo. Em nenhum respeito foi mais uniforme esta experiência que na convicção de sua depravação aos olhos de um Deus imensamente santo. O patriarca Jó, descrito como o melhor homem de sua geração, pôs sua mão sobre sua boca, e sua boca no pó diante de Deus, e declarou que se aborrecia a si mesmo, e que se arrependia no pó e na cinza. Os Salmos Penitenciais de Davi estão repletos não apenas com as confissões de pecado, mas também com os reconhecimentos de sua profunda depravação diante de Deus. Isaías clamou: Ai por mim! Sou um homem de lábios imundos, e habito no meio de um povo que tem os lábios imundos. Os antigos profetas, inclusive quando eram santificados desde o ventre, pronunciavam suas justiças como trapos de imundícia. O que se diz corporativamente é em todos os lugares apresentado como verdade da pessoa individual. Toda a cabeça está doente, e todo o coração desacordado. Da planta do pé até a cabeça não há nele coisa sã; só feridas, e contusões, e chagas podres. No Novo Testamento, os escritores sagrados evidenciam o mesmo profundo sentir de sua própria pecaminosidade, e forte convicção da pecaminosidade da raça a que pertencem. Paulo fala de si mesmo como o principal dos pecadores. Queixa-se de que era carnal, vendido ao pecado. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 326 Geme sob a carga de uma natureza ímpia, dizendo: Miserável homem que sou; quem me libertará deste corpo de morte? Desde os dias dos Apóstolos até nosso próprio tempo, não houve diversidade a este respeito na experiência dos cristãos. Não há evidência neles de nenhuma disposição para encobrir ou desculpar sua pecaminosidade diante de Deus. Uniformemente e em todas as partes, e precisamente em proporção à sua santidade, humilham-se sob o sentimento de sua culpa e contaminação, e se aborrecem, arrependendo-se no pó e na cinza. Esta não é uma experiência irracional, nem exagerada. É o efeito natural da compreensão da verdade; de um discernimento sequer parcial da santidade de Deus, da espiritualidade da lei, e da ausência de conformidade com esta norma divina. Com esta experiência de pecado sempre vai conectada a convicção de que nosso sentimento de sua medida de mal, e de seu poder sobre nós, e por isso de nossa culpa e contaminação, é totalmente inadequado. Sempre constitui parte da carga do crente, que sente menos que o que sua razão e experiência, iluminadas pelas Escrituras, ensinam-lhe que deveria sentir a respeito de sua corrupção e degradação morais. 6. Quase não será necessário dizer que o que as Escrituras ensinam de uma maneira tão manifesta de maneira indireta a respeito da profundidade da corrupção de nossa natureza caída também o ensinam por asserção direta. O coração humano é pronunciado como enganoso sobre todas as coisas, e desesperadamente ímpio. Inclusive no princípio (Gn 6:5, 6) falou-se: «Viu o SENHOR que a maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era continuamente mau todo desígnio do seu coração.» Jó 15:14-16: «Deus não confia nem nos seus santos; nem os céus são puros aos seus olhos, quanto menos o homem, que é abominável e corrupto, que bebe a iniqüidade como a água!» Ec 9:3: «O coração dos homens está cheio de maldade, nele há desvarios enquanto vivem; depois, rumo aos mortos.» A Palavra de Deus está repleta de passagens assim. Nos termos mais explícitos pronuncia a degradação e corrupção moral do homem como consequência da Queda como uma Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 327 apostasia total de Deus; um estado de morte espiritual, implicando a total ausência de toda verdadeira santidade. Terceiro argumento com base na manifestação inicial do pecado Um terceiro grande fato da Escritura e da experiência a respeito desta questão é a manifestação inicial do pecado. Logo que uma criança é capaz de ação moral, dá evidência de um caráter moral pervertido. Não somente vemos a manifestação de ira, malícia, egoísmo, inveja, orgulho e outras ímpias disposições, mas sim todo o desenvolvimento da alma é rumo ao mundo. A alma de uma criança dirige-se, por uma lei interior, das coisas invisíveis e eternas às coisas que se veem e são temporais. Em suas mais anteriores manifestações, é mundana, da terra, terrenal. Assim como este é o testemunho da experiência universal, assim o é o da Bíblia. Jó 11:12: «O homem estúpido se tornará sábio, quando a cria de um asno montês nascer homem» Sl 58:3 (RC): « Alienam-se os ímpios desde a madre; andam errados desde que nasceram.» Pv 22:15: «A estultícia (o mal moral) está ligada ao coração da criança.» Estes três fatos inegáveis, a universalidade do pecado entre os homens, seu poder dominante, e sua anterior manifestação, constituem uma clara prova da corrupção de nossa comum natureza. É um princípio de juízo universalmente reconhecido e sobre o qual se age, que um curso de ação em qualquer criatura, racional ou irracional, que é universal e dominante, e que é adotado uniformemente desde o começo de seu ser determina e revela sua natureza. O fato de que todos os indivíduos de certas espécies vivam da rapina; que todos os indivíduos de outra espécie vivam de erva; que alguns sejam anfíbios, e outros vivam só na terra; que. alguns sejam gregários e outros solitários; que alguns sejam suaves e dóceis, e outros ferozes e indomáveis; não sob certas circunstâncias e condições, mas sempre e em todas as partes, sob todas as diferentes circunstâncias de seu ser, considera-se prova de sua constituição natural. Mostra o que são por natureza, em distinção ao que são ou possam ser Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 328 feitos por circunstâncias e cultura externas. O mesmo princípio aplica-se aos nossos juízos a respeito dos homens. Tudo o que seja variável e limitado em suas manifestações; tudo o que se encontre em alguns homens e não em outros, atribuímos a causas peculiares e limitadas, mas o que é universal e dominante é uniformemente atribuído à natureza do homem. Alguns destes modos de ação universalmente manifestos entre os homens são atribuíveis aos atributos essenciais de sua natureza, como a razão e a consciência. O fato de que todos os homens efetuem ações racionais constitui uma clara prova de que são criaturas racionais; e o fato de que executem ações morais constitui prova de que têm uma natureza moral. Outros modos universais de ação são atribuídos não aos atributos essenciais da natureza humana, mas sim a seu atual estado permanente. Que todos os homens busquem o conforto e os prazeres, e que se prefiram a si mesmos antes que a outros, não deve atribuir-se à nossa natureza como homens, mas sim ao nosso estado presente. Como o fato de que todos os homens executem ações morais é prova de que têm uma natureza moral, assim também o fato de que tal conduta moral é sempre má, ou que todos os homens pecam desde o mais anterior desenvolvimento de suas capacidades, constitui prova de que sua natureza moral é depravada. É absolutamente inconsequente com todas as ideias justas de Deus que Ele tenha criado o homem com uma natureza que, com absoluta uniformidade, o conduza ao pecado e à destruição; ou que o tenha situado em circunstâncias que inevitavelmente o levem à sua ruína. O atual estado da natureza humana não pode ser, por isso, sua condição normal e original. Somos uma raça caída. Nossa natureza se tornou corrompida por nossa apostasia de Deus, e por isso é que toda imaginação (isto é, todo exercício) dos pensamentos do coração do homem são só e continuamente o mal. Veja-se também Gn 8:21. Esta é a solução escriturística e a única racional do fato inegável da profunda, universal e anterior pecaminosidade manifesta dos homens em todas as eras, em todas as classes, e em todas as partes do mundo. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 329 Evasões dos argumentos que antecedem. Os métodos adotados pelos que negam a doutrina do pecado original para dar conta da universalidade do pecado são insatisfatórios em sumo grau. 1. Não será necessário referir-nos aqui às teorias que esquivam esta enorme dificuldade quer negando a existência do pecado, quer atenuando sua má natureza, de maneira que a dificuldade deixe de existir. Se na realidade não existe o mal do pecado, então não há pecado que explicar. Mas o fato da existência do mal, de sua universalidade e de seu poder, é muito palpável e está muito na consciência para admitir sua negação ou que seja deixado de lado. 2. Outros mantêm que temos no livre-arbítrio do homem uma solução suficiente para dar conta da universalidade do pecado. Os homens podem pecar; escolhem pecar, e não se precisa de maior razão para explicá-lo. Se Adão pecou sem uma natureza corrompida antecedente, por que, pergunta-se, é preciso supor a corrupção da natureza para explicar o fato de que outros homens pequem? Entretanto, um efeito uniforme exige uma causa uniforme. O fato de que um homem possa andar não é razão adequada para que sempre ande numa direção. Um homem pode exercer suas faculdades para alcançar um ou outro objetivo; o fato de que os dedique ao longo de toda uma vida a adquirir riquezas não se explica simplesmente dizendo que é um agente livre. A pergunta é: Por que seu livre-arbítrio está sempre exercido numa direção determinada? Assim, o fato de que os homens sejam agentes livres não é a solução da pecaminosidade universal e total apostasia de nossa raça com relação a Deus. 3. Outros buscam uma explicação deste fato na ordem de desenvolvimento dos elementos constitutivos de nossa natureza. Estamos constituídos de tal maneira que as faculdades sensoriais são chamadas seu exercício antes que os poderes mais elevados da razão e da consciência. Por isso, os primeiros alcançam um domínio indevido, e levam à criança e ao homem a obedecer os instintos inferiores de sua Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 330 natureza, quando deveria ser guiado por suas mais elevadas faculdades. Mas, em primeiro lugar, esta é uma concepção totalmente inadequada de nossa depravação hereditária. Não consiste exclusiva nem principalmente no domínio da carne (no sentido ilimitado desta palavra) sobre o Espírito. É um mal muito mais profundo e radical. É morte espiritual, segundo as expressas declarações das Escrituras. E, em segundo lugar, não pode ser a condição normal do homem que suas faculdades naturais se desenvolvam em tanta ordem que inevitável e universalmente o conduzam à sua degradação e ruína moral. E, em terceiro lugar, esta teoria não elimina dificuldades, e por outro lado não explica os fatos. É tão difícil de conciliar com a justiça e a bondade de Deus o fato de que os homens nasçam com uma natureza constituída de tal maneira que os conduz indefectivelmente ao pecado quanto nascem num estado de pecado. Com isso se nega toda justa prova à raça. Segundo as Escrituras e a doutrina da Igreja, a humanidade teve não só uma prova justa, mas também favorável em Adão, que agiu como representante deles na maturidade e plena perfeição de sua natureza, e com todas as facilidades, motivos e considerações adaptados para assegurar sua fidelidade. Isto é muito mais fácil de crer que a hipótese de que Deus ponha a criança no amanhecer da razão em sua prova para a eternidade, com uma natureza já pervertida, e sob circunstâncias que em todo caso e indefectivelmente o levam à sua destruição. A única solução, por isso, que provê uma explicação é a doutrina escriturística de que toda a humanidade caiu na primeira transgressão de Adão, e levando a pena por seu pecado entram no mundo em estado de morte espiritual, cuja evidencia vê-se e se sente na universalidade, o poder controlador e a anterior manifestação do pecado. As Escrituras ensinam esta doutrina de maneira expressa As Escrituras ensinam a doutrina do pecado original, ou a corrupção hereditária e pecaminosa de nossa natureza como derivada de Adão, não só de uma maneira indireta, ensinando, como já vimos, a Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 331 universal e total depravação de nossa raça, mas também declaram a doutrina de maneira direta. Não somente ensinam que os homens pecam universalmente e desde o primeiro despertar de seu ser, mas também afirmam que o coração do homem é mau. Diz-se que é «Enganoso ... mais que todas as coisas, e perverso; quem o conhecerá?» (Jr 17:9). «O coração dos filhos dos homens está inteiramente disposto a praticar o mal» (Ec 8:11). «Toda a imaginação dos pensamentos do seu coração era má continuamente» (Gn 6:5, TB); ou, como em Gn 8:21 (TB): «A imaginação do coração do homem é má desde a sua mocidade.» Coração, na linguagem das Escrituras, significa-se o próprio homem; a alma, aquilo que é a sede e fonte da vida. É aquilo que pensa, sente, deseja e quer. É aquilo do qual procedem bons ou maus pensamentos, desejos e propósitos. Nunca denota um mero ato, ou um estado passageiro da alma. É aquilo que é permanente, que determina o caráter. Tem a mesma relação com os atos que a terra tem com os seus produtos. Assim como uma boa terra dá plantas apropriadas para os homens e para os animais, e uma má terra produz cardos e espinheiros, assim nos é dito que o coração humano (a natureza humana em seu estado atual) é demonstrado mau pela prolífica colheita de pecados que produz sempre e em todo lugar. Esta doutrina é ensinada ainda mais claramente em Mt 7:16-19, onde nosso Senhor diz que os homens são conhecidos por seus frutos. «Pelos seus frutos os conhecereis. Colhem-se, porventura, uvas dos espinheiros ou figos dos abrolhos? Assim, toda árvore boa produz bons frutos, porém a árvore má produz frutos maus.» E outra vez, em Mt 12:33: «Ou fazei a árvore boa e o seu fruto bom ou a árvore má e o seu fruto mau; porque pelo fruto se conhece a árvore.» A própria essência e propósito destas instruções é que os atos morais são uma revelação do caráter moral. Não o constituem, mas simplesmente o manifestam. O fruto de uma árvore revela a natureza da árvore. Não faz a natureza, mas demonstra qual é. O mesmo no caso do homem: seus exercícios morais, seus pensamentos e sentimentos, assim como suas ações externas, estão determinadas por uma causa moral. Há algo na natureza do homem que é Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 332 distinto de suas ações e anterior a elas que determina sua conduta (isto é, todos os exercícios conscientes da mesma), que seja ou boa ou má. Se os homens são universalmente maus, isso constitui, segundo o ensino de nosso Senhor, uma prova evidente de que a natureza deles é má; tanto como o fato de que um fruto mau demonstra que a árvore é má. Assim, quando as Escrituras declaram que o coração do homem é «perverso», afirmam precisamente o que significa a Igreja quando declara que nossa natureza é depravada. Nem a palavra coração, nem a natureza, em tais contextos, denota substância ou essência, mas aptidão. As palavras expressam uma qualidade em distinção a um atributo ou propriedade essenciais. Inclusive quando falamos da natureza de uma árvore, não nos referimos à sua essência, mas à sua qualidade; a algo que pode ser modificado ou mudado sem uma mudança de substância. Assim, nosso Senhor refere-se a fazer uma árvore boa, ou a fazer o mal. A explicação do significado escriturístico da palavra coração que se dá mais acima fica confirmada por formas análogas e sinônimas de expressão que se empregam na Bíblia. O que é às vezes designado como um coração mau chama-se «o velho homem», «uma lei de pecado em nossos membros», «a carne», «a mente carnal», etc. E, por outro lado, o que se chama «um novo coração» é chamado «o novo homem», «nova criação» (ou natureza), «a lei do Espírito», «a mente espiritual», etc. Todos estes termos e frases designam o que é inerente, imanente e permanente, em oposição ao que é passageiro e voluntário. A primeira classe de termos emprega-se para descobrir a natureza do homem antes de sua regeneração, e a outra para descobrir a mudança depois da regeneração. Assim, as Escrituras, ao declarar que o coração do homem é enganoso e desesperadamente perverso, e que sua imaginação ou exercícios são de contínuo o mal, declaram em termos diretos a doutrina da Igreja do pecado original. O Salmista também afirma diretamente esta doutrina quando diz: (Sl 51:5): «Em maldade fui formado, e em pecado me concebeu minha mãe.» Nos versículos anteriores ele tinha confessado os seus pecados de Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 333 comissão; e aqui se humilha a si mesmo ainda mais completamente diante de Deus, reconhecendo sua depravação inata, hereditária, uma depravação que não considerava como uma mera fraqueza, ou inclinação ao mal, mas antes, declara que era iniquidade e pecado. Em partes posteriores do Salmo refere-se a esta corrupção hereditária e inerente, da qual desejava fervorosamente ser libertado. «Eis que amas a verdade no íntimo, e no oculto me fazes conhecer a sabedoria. Purifica-me com hissopo, e ficarei puro; lava-me, e ficarei mais alvo do que a neve. ... Cria em mim, ó Deus, um coração puro e renova em mim um espírito reto » (Sl 51:6-10, RC). Era a respeito de sua parte interior, de sua natureza interna, que tinha sido formada em iniquidade e concebida em pecado, que ele orava para que pudesse ser purificado e renovado. Todo o espírito deste Salmo e o contexto em que aparecem as palavras do quinto versículo, constrangeram à maioria dos comentaristas e leitores da Escritura a reconhecer nesta passagem uma afirmação direta da doutrina do pecado original. Naturalmente, nenhuma doutrina descansa sobre uma passagem isolada. O que se ensina num lugar com toda certeza será dado por sentado ou será afirmado em outros lugares. O que Davi diz de si mesmo como nascido em pecado é confirmado por outras descrições da Escritura, o que mostra que o que era verdade dele não é menos verdade de toda a humanidade. Assim (Jó 14:4, RC): «Quem do imundo tirará o puro?» Jó 15:14: «Que é o homem, para que seja puro? E o que nasce de mulher, para ser justo?» Assim também nosso Senhor diz (Jo 3:6): «O que é nascido da carne, é carne.» Isto significa, claramente, que o que nasce de pais corrompidos é, em si mesmo, corrompido; e está corrompido por causa de sua ascendência ou derivação. Isto está claro: (1) Pelo uso comum da palavra carne num sentido religioso nas Escrituras. Além dos sentidos primário e secundário da palavra empregada de maneira familiar na Bíblia para designar nossa natureza corrompida e caída. Por isso, estar «na carne» é estar em nosso estado natural, irregenerado. As obras da carne são obras que brotam de uma Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 334 natureza corrompida; andar segundo a carne é viver sob a influência controladora de uma natureza pecaminosa. Por isso, ser carnal, ou ter uma mente carnal, é ser corrompido, ou, como Paulo explica, é estar vendido, ser escravo do pecado. (2) Porquanto a carne é aqui oposta ao Espírito. «O que é nascido da carne, é carne; e o que é nascido do Espírito, é espírito.» Como a segunda parte deste versículo significa que, sem dúvida, aquele que é proveniente do Espírito Santo, é santo, ou conformado à natureza do Espírito Santo, a primeira parte deve significar que aquele que se deriva de uma origem má é em si mesmo mau. Um filho nascido de pais caídos deriva deles uma natureza caída, corrompida. (3) Esta interpretação é exigida pelo contexto. Nosso Senhor está atribuindo a razão para a necessidade da regeneração ou do nascimento espiritual. Esta razão é a derivação de uma natureza corrompida por nosso nascimento natural. É porquanto nascemos em pecado que a renovação do Espírito Santo é universal e absolutamente necessária para nossa salvação. Outra passagem igualmente decisiva é Ef 2:3: «Também todos nós» (isto é, nós os judeus, o mesmo que os gentios) «éramos, por natureza, filhos da ira, como também os demais.» Filhos da ira, segundo uma conhecida expressão idiomática hebraica, significa objetos da ira. Nós, diz o Apóstolo, assim como outros homens, somos objetos da ira divina. Isto é, estamos sob condenação, justamente expostos ao Seu desagrado. Esta exposição à ira de Deus, como Ele ensina, não se deve exclusivamente à nossa conduta pecaminosa, é a condição em que nascemos. Somos por natureza filhos da ira. A palavra natureza nestas formas de expressão sempre se opõe àquilo que é adquirido, ou sobreposto, ou ao que se deve a uma influência ab extra ou a um desenvolvimento interior. Paulo diz que ele e Pedro eram judeus por natureza, isto é, eram judeus de nascimento, não por proselitismo. Diz que os gentios fazem por natureza as coisas da lei, isto é, em virtude de sua constituição interior, não por instruções externas. Os deuses dos pagãos, diz ele, não são deuses por natureza. Só o são na opinião dos Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 335 homens. Na literatura clássica como na linguagem comum, dizer que os homens são, por natureza, orgulhosos, ou cruéis, ou justos, significa sempre que o predicado é devido a eles em virtude de sua constituição ou condição natural, e não simplesmente devido à sua conduta ou caráter adquirido. O dativo φύσει - phusei, nesta passagem não significa por causa de, porque φύσις - phusis significa simplesmente natureza, seja boa ou má. Paulo não diz diretamente que é «por causa de nossa natureza (corrompida) que somos filhos da ira», interpretação que demanda a introdução no texto da ideia expressa pela palavra corrompida. Simplesmente afirma que somos filhos da ira por natureza, isto é, tal como nascemos. Nascemos num estado de pecado e de condenação. E esta é a doutrina da Igreja do pecado original. Nossa condição natural não é meramente uma condição de fraqueza física, ou de propensão ao pecado, nem de sujeição a más disposições, que, se forem abrigadas, tornam-se pecaminosas; mas que nascemos em estado de pecado. Rueckert, um comentarista racionalista, diz, referindo-se a esta passagem: 241 «É perfeitamente evidente, por Rm 5:12-20, que Paulo estava bem longe de estar oposto à ideia expressa no Sl 51:5 de que os homens nascem pecadores, e como não interpretamos para nenhum sistema, não tentaremos negar que o pensamento, “nascemos filhos da ira”, isto é, tal como fomos desde o nosso nascimento ficamos expostos à ira divina, seja o verdadeiro sentido destas palavras.» A Bíblia descreve os homens como espiritualmente mortos Outra maneira em que as Escrituras ensinam claramente a doutrina do pecado original deve-se achar nas passagens que descrevem o estado natural do homem desde a queda. Os homens, todos os homens, de todas as nações e épocas, e de todas as condições, são descritos como espiritualmente mortos. O homem natural, o homem tal como é por natureza, está destituído da vida de Deus, isto é, de vida espiritual. Seu 241 Der Brief Pauli an die Epheser. Leipzig, 1834, p. 88. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 336 entendimento está entenebrecido, de maneira que não conhece nem recebe as coisas de Deus. Não é suscetível de ser impressionado pelas realidades do mundo espiritual. É tão insensível a elas como um homem morto o é às coisas deste mundo. Está alienado de Deus, e é totalmente incapaz de libertar-se por si mesmo deste estado de corrupção e desdita. Aqueles, e só aqueles, que são renovados pelo Espírito Santo, que são vivificados pelo poder de Deus, e que por isso mesmo são chamados espirituais, como dirigidos e motivados por um princípio superior que qualquer um que pertença à nossa natureza caída, são descritos como libertados deste estado em que nascem os homens. «O homem natural», diz o Apóstolo, «não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente» (1Co 2:14). «Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados»; e não apenas vós os gentios, mas «e …nós», quando estávamos mortos em pecados, Deus «nos deu vida juntamente com Cristo» (Ef 2:1, 5). O estado de todos os homens, judeus e gentios, anterior à regeneração, é declarado como um estado de morte espiritual. Em Ef 4:17, 18 descreve-se este estado natural do homem dizendo a respeito dos gentios que «andam na vaidade de sua mente (isto é, em pecado), tendo o entendimento entenebrecido, excluídos da vida de Deus pela ignorância que há neles, pela dureza de seu coração». O estado natural do homem é de trevas, das quais seu efeito imediato é a ignorância e o endurecimento, e a consequente alienação de Deus. É verdade que isto se diz dos gentios, mas o Apóstolo ensina constantemente que o que é certo do gentio é não menos certo do judeu; porque não há diferença, porquanto todos pecaram, e estão destituídos da glória de Deus. Com estas poucas passagens concorda todo o teor da Palavra de Deus. A natureza humana em seu estado atual é sempre e em todo lugar descrita como assim entenebrecida e corrompida. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 337 Argumento com base na necessidade da Redenção. Outro argumento sustentando a doutrina do pecado original é que a Bíblia em todo lugar ensina que os homens necessitam da redenção mediante o sangue de Cristo. As Escrituras não conhecem nada a respeito da salvação de ninguém da família humana exceto por meio da redenção que é em Cristo Jesus. Esta é tão claramente a doutrina da Bíblia que nunca foi questionada na Igreja Cristã. As crianças precisam da redenção assim como os adultos, porque também elas ficam incluídos na aliança da graça. Mas a redenção, no sentido cristão do termo, é libertação por meio do sangue de Cristo do poder e das consequências do pecado. Cristo deveu salvar os pecadores. E não salva a ninguém mais que a pecadores. Se salva a crianças, devem estar em estado de pecado. não há possibilidade de evitar esta conclusão, exceto negando uma ou outra das premissas das que se desprende. Ou temos que negar que os crianças sejam salvas por meio de Cristo, o que é uma ideia tão anticristã que dificilmente tem sido expressa dentro do âmbito da Igreja. Ou temos que negar que a redenção, no sentido cristão do termo, inclui a libertação do pecado. Esta é a postura adotada pelos que negam a doutrina do pecado original e que, entretanto, admitem que os crianças são salvas por meio de Cristo. Sustentam que no caso deles a redenção é meramente a preservação do pecado. Por causa de Cristo, ou mediante Sua intervenção, são transferidos de um estado de ser em que sua natureza se desenvolve em santidade. Em resposta a esta evasiva é suficiente observar: (1) Que é contrária à doutrina clara e universalmente recebida da Bíblia quanto à natureza da obra de Cristo. (2) que esta postura elimina a necessidade de redenção. Mas toda a Bíblia ensina claramente que a morte de Cristo é absolutamente necessária; que se houvesse outra maneira pela qual os homens pudessem ser salvos, Cristo morreu em vão (Gl 2:21; 3:21). Mas, segundo a doutrina em questão, não há necessidade para sua morte. Se os homens são uma raça caída e não corrompida, e se podem ser preservados de pecado com uma mera mudança em suas circunstâncias Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 338 para que então o custoso dispositivo de meios remediáveis, a encarnação, os padecimentos e a morte do Eterno Filho de Deus, para a salvação deles? Está bem claro que todo o plano Escriturístico da redenção está baseado na apostasia de toda a raça humana de Deus. Assume-se que os homens, todos os homens, os pequenos assim como os adultos, estão em estado de pecado e de desgraça, dos quais ninguém senão um divino Salvador pode libertá-los. Argumento com base na necessidade da Regeneração. Isto fica ainda mais claro com base no que as Escrituras ensinam a respeito da necessidade da regeneração. Por regeneração se significa tanto na Escritura como na linguagem da Igreja a renovação efetuada pelo Espírito Santo; a mudança de coração ou de natureza efetuado pelo poder do Espírito, mediante o qual a alma passa de um estado de morte a um estado de vida espiritual. É esta mudança de pecado à santidade aquele que nosso Senhor pronuncia como absolutamente essencial para a salvação. Só os pecadores necessitam regeneração. As crianças necessitam regeneração. Por isso, as crianças estão em estado de pecado. O único extremo deste argumento que deve ser provado é que os crianças precisam da regeneração no sentido que acima se explica. Mas isto dificilmente admite alguma dúvida. (1) Fica demonstrado pela linguagem da Escritura, que afirma que todos os homens, a fim de entrar no Reino de Deus, devem nascer do Espírito. A expressão que se emprega é absolutamente universal. Significa todo ser humano descendente de Adão por geração comum. Não se faz exceção alguma de classe, de tribo, de caráter ou de idade. E não estamos autorizados a fazer tal exceção. Mas além disso, como observamos anteriormente, a razão atribuída para esta necessidade do novo nascimento aplica-se às crianças assim como aos adultos. Nosso Senhor diz que todos os que são nascidos da carne, e porquanto são assim nascidos, devem nascer de novo. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 339 (2) As crianças sempre foram incluídas com seus pais em cada revelação ou promulgação da aliança da graça. A promessa de um Redentor a nossos primeiros pais dizia respeito a seus filhos bem como a si mesmos. A aliança com Abraão não foi somente com ele, mas também com sua posteridade, pequenos e adultos. A aliança no Monte Sinai, que como ensina Paulo, incluía a aliança da graça, foi solenemente ratificado com o povo e com seus «pequenos». As Escrituras, assim, sempre contemplam os filhos do nascimento como necessitados da salvação, e como interessados no plano de salvação que a Bíblia tem o magno desígnio de revelar. (3) Isto é ainda mais evidente pelo fato de que o sinal e o selo da aliança da graça, a circuncisão sob a Antiga dispensação, e o batismo sob a Nova, aplicava-se a recém-nascidos. A circuncisão era certamente um signo e sinal da aliança nacional entre Deus e os hebreus como nação. Isto é, era o selo daquelas promessas dadas a Abraão, e depois por meio de Moisés, que se relacionavam com a teocracia externa ou república de Israel. Entretanto, fica claro que além destas promessas nacionais havia também a promessa da redenção feita a Abraão, promessa que, diz explicitamente o Apóstolo, alcançou-nos (Gl 3:14). Isto é, nós (todos os crentes) ficamos incluídos na aliança feita com Abraão. Não está menos claro que a circuncisão era o sinal e o selo daquela aliança. Isto fica claro porque o Apóstolo ensina que Abraão recebeu a circuncisão como selo da justiça da fé. Isto é, foi o selo daquela aliança que prometia e assegurava a justiça sob a condição da fé. Está também claro porque as Escrituras ensinam que a circuncisão tinha um sentido espiritual. Significava purificação interior. Era administrada a fim de ensinar aos homens que os que recebiam o rito necessitavam tal purificação, e que esta grande bênção era prometida aos fiéis à aliança, pela qual a circuncisão era o selo. Por isso, as Escrituras falam da circuncisão do coração; de uma circuncisão interior efetuada pelo Espírito em distinção da que era exterior na carne. Comparar Dt 10:16 30; Ez 44:7; At 7:51; Rm 2:28. Com base em tudo isto, fica claro que a circuncisão não podia Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 340 ser administrada com base em seu desígnio divinamente constituído a qualquer um que não precisasse da circuncisão ou regeneração do coração, para fazê-los aptos para a presença e o serviço de Deus. E como era administrada por mandato divino às crianças quando tinham oito dias de idade, é inevitável a conclusão de que diante de Deus tais crianças, precisam de regeneração, e por isso que nascem em pecado. O mesmo argumento aplica-se, evidentemente, ao batismo de crianças. O batismo é uma ordenança instituída por Cristo, para significar e selar a purificação da alma, mediante a aspersão de seu sangue, e sua regeneração pelo Espírito Santo. Por isso só pode ser administrada propriamente àqueles que estão num estado de culpa e de perdição. Entretanto, administra-se a crianças, e por isso supõe-se que as crianças necessitam perdão e santificação. Este é o argumento que Pelágio e seus seguidores, encontraram mais difícil de rebater. Não podiam negar o sentido do rito. Não podiam negar que era administrado corretamente a crianças, e entretanto recusaram admitir a inevitável conclusão de que os crianças nascem em pecado. Por isso, foram conduzidos à evasão artificiosa de que o batismo era administrado às crianças não com base em seu estado atual, mas sobre a hipótese de sua provável condição futura. Não eram pecadores, mas provavelmente chegariam a sê-lo, e necessitariam então os benefícios dos quais o batismo é sinal e objeto. Inclusive o Concílio de Trento encontrou necessário protestar solenemente contra uma perversão tão manifesta de um solene sacramento, que o reduzia a uma zombaria. A fórmula do batismo prescrita por Cristo, e universalmente adotada pela Igreja, supõe que aqueles a quem se administra o batismo são pecadores, e que necessitam a remissão de pecados e a renovação do Espírito Santo. Assim, a doutrina do pecado original fica entretecida no mesmo tecido do cristianismo, e encontra-se na base das instituições do evangelho. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 341 Argumento com base na universalidade da morte. Outro argumento decisivo sobre este tema é tomado da universalidade da morte. A morte, segundo as Escrituras, é um mal penal. Pressupõe pecado. Nenhuma criatura moral racional está sujeita à morte, exceto por causa do pecado. Os pequeninhos morrem, e por isso os pequeninhos são sujeitos ao pecado. A única maneira de evadir-se deste argumento é negar que a morte seja uma inflição penal. Esta é a postura adotada pelos que rejeitam a doutrina do pecado original. Afirmam que se tenta um mal natural que brota da constituição original de nossa natureza, e que por isso não é mais uma prova de que todos os homens são pecadores que a morte dos brutos demonstra que eles sejam pecadores. Em resposta a esta objeção, é evidente observar que os homens não são brutos. O fato de que os animais irracionais, incapazes de pecar, estejam sujeitos à morte, não constitui então evidência de que as criaturas morais possam estar sujeitas com justiça ao mesmo mal, embora livres de pecado. Mas, em segundo lugar, o que é de muito maior peso, a objeção está em oposição direta às declarações da Palavra de Deus. Segundo a Bíblia, a morte no caso do homem é um castigo. Adão foi ameaçado com ela como a pena da transgressão. Se não tivesse pecado, tampouco teria morrido. O Apóstolo declara de maneira expressa que a morte é o pagamento (ou castigo) do pecado; e a morte é devido ao pecado (Rm 6:23 e 5:12). Ele não só o declara como um fato, mas também o adota como princípio, fazendo disso a base de todo o seu argumento em Rm 5:12-20. Sua doutrina, como aqui a expõe, é que onde não há lei não há pecado. E onde não há pecado, não há castigo. Todos os homens são castigados, e portanto todos os homens são pecadores. O fato de que todos os homens são castigados ele o demonstra pelo fato de que todos morrem. A morte é o castigo. A morte, diz ele, reinou desde Adão até Moisés. Reina inclusive sobre aqueles que não pecaram em sua própria pessoa por transgressão voluntária, como fez Adão. Reina sobre os pequeninhos. Passou absolutamente a todos os homens, porquanto todos são pecadores. Não se pode pôr em dúvida que este é o argumento Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 342 do Apóstolo; e tampouco se pode pôr em dúvida que este argumento está baseado na pressuposição de que a morte, no caso do homem, é um mal penal, e que sua inflição é uma prova inegável de culpa. Por isso, devemos ou rejeitar a autoridade das Escrituras, ou admitir que a morte dos pequeninhos é uma prova de sua pecaminosidade. Embora o argumento do Apóstolo, tal como se enunciou anteriormente, é uma prova direta do pecado original (ou da corrupção inerente, hereditária), não é menos prova, como se enfatizou em outra ocasião, da imputação do pecado de Adão. Paulo argumenta em Rm 5:12-20 para demonstrar que assim como em nossa justificação a retidão sobre cuja base somos aceitos não é subjetivamente nossa, mas a retidão de outro, de Cristo, da mesma maneira a razão humana de nossa condenação à morte é o pecado de Adão, algo fora de nós, e não pessoalmente nosso. Mas deve lembrar-se que a morte da qual ele fala conforme ao uso uniforme da Escritura, nestes contextos, é a morte de um homem; uma morte apropriada para sua natureza como ser moral formado à imagem de Deus. A morte com que se ameaçou a Adão não era a mera dissolução de seu corpo, mas sim morte espiritual, a perda da Vida de Deus. A morte física das crianças é uma prova patente de que estão sujeitas à pena que sobreveio aos homens (que entrou no mundo e que passou a todos os homens) devido a um homem ou pela desobediência de um. E porquanto aquela pena era a morte espiritual, assim como a dissolução do corpo, a morte dos crianças é uma prova escriturística e decisiva de seu nascimento destituídos da retidão original e infectados com uma pecaminosa corrupção da natureza. Sua morte física, é prova de que estão envolvidos na pena, cujo principal elemento é a morte espiritual da alma. Foi pela desobediência de um homem que todos são constituídos pecadores, não só por imputação (o que é certo, e de grande importância), mas também por depravação inerente. Como é pela desobediência de um homem que todos são constituídos justos, não só por imputação (o que é verdade e vitalmente importante), mas Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 343 também pela conseguinte renovação de sua natureza fluindo de sua reconciliação com Deus. Argumento com base no consentimento comum dos cristãos Finalmente, é justo, a respeito desta questão, apelar à fé da Igreja universal. Os protestantes, ao rejeitar a doutrina da Tradição, e ao afirmar que a Palavra de Deus contida nas Escrituras do Antigo e do Novo Testamento é a única norma infalível de fé e de prática não rejeitam a autoridade da Igreja como mestra. Não se isolam da grande companhia dos fiéis em todas as idades, para estabelecer uma nova fé. Mantêm que Cristo prometeu o Espírito Santo para conduzir o Seu povo ao conhecimento da verdade; que o Espírito habita como mestre em todos os filhos de Deus, e que os que nascem de Deus são assim levados ao conhecimento e à crença da verdade. Assim, há para a verdadeira Igreja, ou o verdadeiro povo de Deus, só uma fé, como assim só tem um Senhor e um Deus, o Pai de todos. Portanto, qualquer doutrina que possa ser demonstrada como uma parte da fé (não da Igreja externa e visível, mas sim) dos verdadeiros filhos de Deus em todas as eras do mundo, tem que ser certa. Deve ser recebida não porque seja universalmente crida, mas porque o fato de que seja universalmente crida por verdadeiros cristãos é uma prova de que é ensinada pelo Espírito tanto em Sua palavra como nos corações de Seu povo. Este é um são princípio reconhecido por todos os Protestantes. Esta fé universal da Igreja não deve ser buscada tanto nas decisões dos concílios eclesiásticos como nas fórmulas devocionais que prevaleceram entre o povo. Como frequentemente se observa, é nas orações, na hinologia, nos escritos devocionais que os verdadeiros crentes estabelecem como canal de sua comunhão com Deus, e o meio através do qual expressam suas mais íntimas convicções religiosas, que devemos buscar a fé universal. Da fé do povo de Deus ninguém se pode separar sem perder a comunhão dos santos, e sem colocar-se fora do âmbito dos verdadeiros crentes. Se estas coisas se admitem, temos que admitir a doutrina do pecado original. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 344 Certamente, esta doutrina recebeu várias explicações, e em muitos casos foi desvirtuada por teólogos e por concílios, mas está indelevelmente gravada na fé da verdadeira Igreja. Impregna as orações, o culto e as instituições da Igreja. Todos os verdadeiros cristãos estão convencidos de pecado; estão convencidos não só de suas transgressões individuais, mas também da depravação de seus corações e naturezas. Reconhecem esta depravação como inata e dominante. Gemem sob ela como sob uma pesada carga. Sabem que por natureza são filhos da ira. Os pais levam seus filhos a Cristo para ser lavados por Seu sangue e renovados por Seu Espírito com tanta ansiedade como as mães se amontoavam ao redor de nosso Senhor, com suas sofredoras crianças, para que fossem curados por Sua graça e poder. Assim, sejam quais forem as dificuldades que possa levar a doutrina do pecado original, devemos aceitá-la como claramente ensinada nas Escrituras, confirmada pelo testemunho da consciência e da história, e sustentada pela fé da Igreja universal. Objeções Deve-se admitir que as objeções a esta doutrina são muitas e sérias. Mas isto é verdade de todas as grandes doutrinas da religião, seja natural ou revelada. E tais dificuldades não se limitam à esfera da religião. Nosso conhecimento, em todos os campos, está muito limitado, e está, em grande medida, limitado a atos isolados. Sabemos que uma pedra cai ao solo, que uma semente germina e produz uma planta de seu própria natureza; mas nos é totalmente impossível compreender como se conseguem estes efeitos com os quais estamos tão familiarizados. Sabemos que Deus é, e que governa todas suas criaturas, mas não conhecemos como Sua eficaz atividade controladora concorda com o livre-arbítrio dos seres racionais. Sabemos que existem o pecado e a desgraça no mundo, e sabemos que Deus é infinito em poder, santidade e benevolência. O que não sabemos é como conciliar a prevalência do pecado com o caráter de Deus. Estes são alguns atos familiares e universalmente admitidos, tanto em filosofia como em religião. Uma Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 345 coisa pode ser certa, e com frequência o é, contra a qual se possam fazer objeções que ninguém pode responder. Há dois importantes princípios práticos que se seguem dos atos recém-mencionados. Primeiro, que o fato de que não possamos limpar de objeções e dificuldades uma verdade bem autenticada não é uma base suficiente ou racional para rejeitá-la. E segundo, que se deve considerar como suficientemente respondida qualquer objeção contra uma doutrina religiosa se pode mostrar-se que se enfrenta no mesmo sentido contra um fato inegável. Se a objeção não é uma causa racional para negar o fato, não é uma causa racional para rejeitar a doutrina. Este é o método que os escritores sagrados adotam para vindicar a verdade. Ver-se-á que quase todas as objeções contra a doutrina do pecado original, ou não se referem à evidência da verdade da doutrina seja derivada da Escritura ou da experiência, mas à dificuldade de conciliá-la com outras verdades, ou se insiste em que estas objeções são fatais para a doutrina quando na realidade são igualmente válidas contra os atos da providência como o são contra os ensinos da Escritura. A objeção de que os homens são responsáveis apenas por seus atos voluntários. 1. A objeção mais evidente à doutrina do pecado original se baseia na hipótese de que nada pode ter caráter moral mais que os atos voluntários e os estados da mente resultantes ou produzidos por nossa atividade voluntária, e que estão sujeitos ao poder da vontade. Esta objeção descansa sobre um princípio que já foi considerado. Chega muito longe. Se fosse são, então não pode existir uma santidade concriada, ou graça habitual, ou pecado inato, ou inerente ou residente. Mas já vimos, ao tratar da natureza do pecado, que segundo as Escrituras, e o testemunho da consciência e o juízo universal dos homens, que o caráter moral das disposições depende de sua natureza e não de sua origem. Adão era santo, embora criado assim. Os santos são santos, embora regenerados e santificados pelo poder onipotente de Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 346 Deus. E por isso a alma é verdadeiramente pecaminosa se está sujeita a disposições pecaminosas, embora estas disposições sejam inatas e totalmente além do controle da vontade. Aqui se verá que a objeção não vai contra a evidência escriturística da doutrina de que os homens nascem em pecado, nem contra o testemunho dos fatos da verdade de tal doutrina: baseia-se na dificuldade de conciliar a doutrina do pecado inato com certos princípios adotados com relação à natureza e às bases da obrigação moral. Tanto se podemos refutar estes princípios como se não, isso não afeta a veracidade da doutrina. Do mesmo modo poderíamos negar toda profecia e toda providência pelo fato de que não possamos conciliar o controle absoluto dos agentes livres com sua liberdade. Se o axioma moral que se adota de que um homem só pode ser responsável por suas próprias ações entra em conflito com os fatos da experiência e os ensinos das Escrituras, o racional é negar o pretendido axioma, e não rejeitar os fatos com os quais o axioma está em conflito. A Bíblia, a Igreja, a massa da humanidade e a consciência consideram o homem responsável por seu caráter, com independência de como fosse formado o caráter, ou de onde se derivasse; portanto, a doutrina do pecado original não entra em conflito com verdades morais intuitivas. Objeção baseada na justiça de Deus. 2. Objeta-se que é inconsistente com a justiça de Deus que os homens venham ao mundo em estado de pecado. Como resposta a esta objeção pode-se observar: (1) Que tudo o que Deus faz deve estar bem. Se Ele permite que os homens nasçam em pecado, este fato deve ser consistente com Sua perfeição divina. (2) É um fato da experiência, não menos que doutrina da Escritura, que os homens nascem, ou em estado de pecado e condenação, tal como a Igreja ensina, ou, como todos devem admitir, num estado que inevitavelmente leva a que sejam pecaminosos e desgraçados. Portanto, esta objeção milita tanto contra um fato providencial como contra a doutrina das Escrituras. Ou temos que negar a Deus, ou admitir que a existência e universalidade do pecado entre os Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 347 homens é compatível com Sua natureza e com Seu governo do mundo. (3) A Bíblia, como com frequência se observou antes, dá conta da corrupção de nossa raça e a explica sobre a base de que a humanidade teve uma plena e justa prova em Adão, e que a morte espiritual em que nascem faz parte da pena judicial de sua transgressão. Se rejeitarmos esta solução do fato, não podemos negar o próprio fato, e, sendo um fato, tem que ser consistente com o caráter de Deus. A doutrina representa a Deus como autor do pecado. 3. Uma terceira objeção em que se insiste com frequência e com confiança é que a doutrina da Igreja nesta questão faz de Deus o autor do pecado. Deus é o autor de nossa natureza. Se nossa natureza é pecaminosa, Deus deve ser o autor do pecado. A evidente falácia deste silogismo é que a palavra natureza é empregada num sentido na premissa maior, e em sentido distinto na menor. Na primeira significa substância ou essência; na segunda, disposição natural. É verdade que Deus é o autor de nossa essência. Mas nossa essência não é pecaminosa. Deus é certamente nosso Criador. Ele nos fez, e não nós a nós mesmos. Somos obra de Suas mãos. Ele é o Pai dos espíritos de todos os homens. Mas Ele não é o autor das más disposições com as quais a natureza está infectada ao nascer. A doutrina do pecado original não atribui a Deus nenhuma eficiência na produção do mal. Simplesmente supõe que Ele abandona a nossa raça apóstata, e retira dos descendentes de Adão as manifestações de Seu favor e amor, que são a vida da alma. O fato de que a inevitável consequência deste abandono judicial seja a morte espiritual não faz de Deus o autor do pecado como tampouco a imoralidade e a desesperada e imutável perversidade dos réprobos, aos que Deus priva de Seu Espírito, pode ser atribuída ao imensamente Santo como seu autor. É além disso um fato histórico universalmente admitido que o caráter, dentro de certos limites, é transmissível de pais a filhos. Cada nação, cada tribo separada, e inclusive cada família humana estendida, tem suas peculiaridades físicas, mentais, sociais e morais que Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 348 se propagam de geração em geração. Nenhum processo de disciplina ou de cultura posso transformar a um tártaro num inglês, nem um irlandês em francês. Os Borbões, os Habsburgos e outras famílias históricas, retiveram e transmitiram suas peculiaridades ao longo dos séculos. Pode ser que não nos seja possível explicá-lo, mas não podemos negá-lo. Ninguém nasce como homem absoluto, sem pertencer nada mais que à humanidade genérica. Cada um nasce como homem num estado determinado, com todas aquelas características físicas, mentais e morais que constituem sua individualidade. Assim, nada há na doutrina da depravação hereditária que se encontre fora de analogia com os atos da providência. Diz-se que destrói o livre-arbítrio dos homens. 4. Objeta-se, ademais, que esta doutrina destrói o livre-arbítrio dos homens. Se nascemos com uma natureza corrompida pela qual nos vemos inevitavelmente determinados a atos pecaminosos, deixamos de ser livres na execução de tais atos, e consequentemente não somos responsáveis pelos mesmos. Esta objeção se baseia numa teoria particular da liberdade, e deve manter-se ou cair com ela. A mesma objeção apresenta-se contra a doutrina dos decretos, da graça eficaz, da perseverança dos santos; e todas as outras doutrinas que supõem que um ato livre pode ser totalmente certo quanto à sua ocorrência. É suficiente aqui observar que a doutrina do pecado original supõe que os homens têm a mesma classe e o mesmo grau de liberdade para pecar sob a influência de uma natureza corrompida como a que têm os santos e os anjos para agir retamente sob a influência de uma natureza santa. Agir em conformidade com sua natureza é a única liberdade que pertence a todo ser criado. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II § 14. O Assento do Pecado Original. 349 Tendo considerado a natureza do pecado original, a questão seguinte diz respeito à sua sede. Segundo uma teoria, é no corpo. O único mau efeito do pecado de Adão sobre sua posteridade que admitem alguns teólogos é a desordem de sua natureza física, pela qual os apetites e as paixões do corpo adquirem uma indevida influência. Escassamente distinguível desta teoria é a doutrina de que a natureza sensual do homem, em distinção de sua razão e consciência, é a única coisa que fica afetado por nossa depravação hereditária. Uma terceira doutrina é que o coração, considerado como o assento dos afetos em distinção ao entendimento, é o assento da depravação natural. Esta doutrina está conectada com a ideia de que todo pecado e santidade são formas de sentimento ou estados dos afetos. E dela faz-se a base sobre a qual se explicam a natureza da regeneração e da conversão, a relação entre o arrependimento e a fé, e outros pontos da teologia prática. Tudo se faz depender das inclinações ou estado dos sentimentos. Em lugar de que as afetos sigam ao entendimento, o entendimento, diz-se, segue aos afetos. Um homem compreende e recebe a verdade só quando a ama. A regeneração é simplesmente uma mudança no estado dos afetos, e a única incapacidade sob a qual os pecadores trabalham quanto às coisas de Deus é uma falta de inclinação às mesmas. Em oposição a todas estas doutrinas, o Agostinianismo, tal como o mantêm as Igrejas Luterana e Reformadas, ensina que todo o homem, alma e corpo, o mais alto assim como o mais baixo, e as faculdades intelectuais assim como as emocionais da alma, está afetado pela corrupção de nossa natureza derivada de nossos primeiros pais. Assim como as Escrituras falam do corpo como santificado em dois sentidos, primeiro, como consagrado para o serviço de Deus, e segundo, como estando numa condição normal em todas as suas relações com nossa natureza espiritual, a fim de ser um instrumento adequado de justiça, e também como partícipe dos benefícios da redenção, também Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 350 mostram o corpo como afetado pela apostasia de nossa raça. Não apenas é empregado no serviço do pecado ou como instrumento de injustiça: além disso está deteriorado em todos os respeitos. É desordenado em seus anelos, rebelde e difícil de refrear. É, como diz o Apóstolo, o oposto ao corpo glorioso e espiritual com o qual será mais adiante revestido o crente. Toda a alma é o Assento do Pecado Original. A teoria de que os afetos (ou, o coração no sentido limitado da palavra), com exclusão das faculdades racionais, são a única coisa que fica afetada pelo pecado original, é antiescriturística, e a doutrina oposta que faz de toda a alma o centro da corrupção inerente é a doutrina da Bíblia, tal como fica evidente: 1. Porquanto as Escrituras não fazem a ampla distinção entre o entendimento e o coração, como o faz usualmente em nossa filosofia. Nelas fala-se dos «pensamentos do coração», das «imaginações do coração» e dos «olhos do coração», assim como de suas emoções e afetos. Todo o princípio imaterial é designado na Bíblia como a alma, o espírito, a mente, o coração. Assim, quando fala do coração, significa o homem, o eu, aquilo em que reside a individualidade pessoal. Se o coração está corrompido, toda a alma está corrompida com todos os seus poderes. 2. A doutrina oposta assume que não há nada moral em nossas cognições ou em nossos juízos; que todo conhecimento é puramente especulativo. Enquanto que, segundo a Escritura os principais pecados dos homens consistem em seus juízos errôneos, em pensar e crer que o mau é bom, e que o bom é mau. Este é, em sua forma mais elevada, tal como nos ensina isso nosso Senhor, o pecado imperdoável, ou a blasfêmia contra o Espírito Santo. Foi devido ao fato de que os fariseus pensavam que Cristo era mau, que Suas obras eram as obras de Satanás, que Ele declarou que jamais poderiam ser perdoados. Foi porque Paulo não podia ver em Cristo beleza para desejá-lo, e porque verdadeiramente Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 351 pensou que estava fazendo um serviço a Deus ao perseguir os crentes, que foi, e se declarou a si mesmo como sendo, o primeiro dos pecadores. Como a Bíblia o revela claramente, que os homens estão perdidos devese ao fato de que os homens são ignorantes de Deus, e a que estão cegos à manifestação de Sua glória na pessoa de Seu Filho. Por outro lado, a mais sublime forma de excelência moral consiste em conhecimento. Conhecer a Deus é vida eterna. Conhecer Cristo é ser como Cristo. O mundo, diz Ele, não me conheceu, mas estes (os crentes) Me conheceram. A verdadeira religião consiste no conhecimento do Senhor, e a prevalência universal deste conhecimento é predita com estas palavras: «Todos me conhecerão, do menor até o maior, diz o Senhor.» Através das Escrituras, a sabedoria é piedade, os sábios são os bons; a insensatez é pecado, e os insensatos são os maus. Nada pode ser mais repugnante à filosofia da Bíblia que a dissociação do caráter moral do conhecimento, e nada pode estar mais em desacordo com a nossa própria consciência. Sabemos que cada afeto numa criatura racional inclui um exercício das faculdades cognitivas; e cada exercício de nossas faculdades cognitivas, com relação a temas morais e religiosos, inclui o exercício de nossa natureza moral. 3. Um terceiro argumento a respeito desta questão é tomada do fato de que toda a Bíblia apresenta o homem natural ou irregenerado como cego ou ignorante quanto às coisas do Espírito. Declara que não as pode conhecer. E a condição caída da natureza humana é apresentada como consistindo primariamente em sua cegueira mental. Os homens estão corrompidos, diz o Apóstolo, pela ignorância que está neles. 4. A conversão afirma-se que consiste na translação das trevas à luz. Diz-se que Deus abre os olhos. Afirma-se que os olhos do entendimento (ou coração) são iluminados. Declara-se todos os crentes como sujeitos de uma iluminação espiritual. Paulo descreve sua própria conversão, dizendo que «Deus revelou a Seu Filho em mim». Abriu-lhe os olhos para capacitá-lo a ver que Jesus era o Filho de Deus, ou Deus manifestado em carne. Com isso chegou a ser uma nova criatura, e toda a Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 352 sua vida foi dedicada ao serviço dAquele a quem antes odiava e perseguia. 5. Afirma-se que o conhecimento é o efeito da regeneração. Os homens são renovados para poder conhecer. São trazidos ao conhecimento da verdade; e são santificados pela verdade. Com base em todas estas considerações, é evidente que todo o homem é o sujeito do pecado original; que nossa natureza cognitiva, assim como a emocional, está envolvida na depravação consequente à nossa apostasia de Deus; que em nosso conhecimento, assim como em nosso amar e querer, estamos sob a influência e domínio do pecado. § 15. Incapacidade. O terceiro grande ponto incluído na doutrina escriturística do pecado original é a incapacidade do homem caído, em seu estado natural, para fazer por si mesmo algo bom espiritualmente. Isto se inclui necessariamente na ideia da morte espiritual. A respeito desta questão nos propomos: (1) Enunciar a doutrina tal como se apresenta nos símbolos das igrejas Protestantes. (2) Explicar a natureza da incapacidade sob a qual se afirma que trabalha o pecador. (3) Exibir as provas escriturísticas da doutrina; e (4) Responder às objeções que geralmente se apresentam contra ela. A doutrina tal como é indicada nos Símbolos Protestantes Têm prevalecido na Igreja três posturas gerais quanto à capacidade do homem caído. A primeira, a doutrina Pelagiana, que afirma a capacidade plenária dos pecadores para fazer tudo o que Deus demanda deles. A segunda é a doutrina Semipelagiana (tomando o termo Semipelagiano em seu sentido amplo e popular), que admite que as capacidades humanas ficaram debilitadas pela queda da raça humana, mas que nega que se tenha perdido toda capacidade para efetuar o que é espiritualmente bom. E em terceiro lugar, a doutrina Agostiniana, ou Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 353 Protestante, que ensina que tal é a natureza da depravação inerente e hereditária que os homens, desde a Queda, são totalmente incapazes de voltar-se a si mesmos para Deus, ou fazer algo verdadeiramente bom diante dEle. Com estas três perspectivas a respeito da capacidade dos homens caídos se incluem suas correspondentes perspectivas a respeito da graça, ou da influência e operações do Espírito Santo na regeneração e conversão do homem. Os Pelagianos negam a necessidade de qualquer influência sobrenatural do Espírito na regeneração e santificação dos homens. Os Semipelagianos admitem a necessidade desta divina influência para ajudar os debilitados poderes do homem na obra de voltar-se para Deus, mas pretendem que o pecador coopera nessa obra e que o resultado depende de sua cooperação voluntária. Os Agostinianos e Protestantes atribuem toda a obra de regeneração ao Espírito de Deus, sendo a alma passiva nisso, e não agente da mudança; embora ativa e cooperando em todos os exercícios da vida divina da qual foi feita receptora. A doutrina da incapacidade do pecador é assim indicada nos símbolos da Igreja Luterana. A “Confissão de Augsburgo” 242 diz: “Humana voluntas habet aliquam libertatem ad efficiendam civilem justitiam et deligendas res rationi subjectas. Sed non habet vim sine Spiritu Sancto efficiendæ justitiæ Dei, seu justitiæ spiritualis, quia animalis homo non percepit ea quæ sunt Spiritus Dei (1Cor. 2.14); sed hæc fit in cordibus, cum per verbum Spiritus Sanctus concipitur. Hæc totidem verbis dicit Augustinus; 243 est, fatemur, liberum arbitrium omnibus hominibus; habens quidem judicium rationis, non per quod sit idoneum, quæ ad Deum pertinent, sine Deo aut inchoare aut certe peragere: sed tantum in operibus vitæ presentis, tam bonis, quam etiam malis.” 242 243 I. xviii.; Hase, Libri Symbolici, pp. 14, 15. Hypomnesticon, seu Hypognosticon, lib. III. iv. 5; Works, edit. Benedictines, vol. x. p. 2209, a. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 354 244 “Formula Concordiæ:” “Etsi humana ratio seu naturalis intellectus hominis, obscuram aliquam notitiæ illius scintillulam reliquam habet, quod sit Deus, et particulam aliquam legis tenet: tamen adeo ignorans, coeca, et perversa est ratio illa, ut ingeniosissimi homines in hoc mundo evangelium de Filio Dei et promissiones divinas de æterna salute legant vel audiant, tamen ea propriis viribus percipere, intelligere, credere et vera esse, statuere nequeant. Quin potius quanto diligentius in ea re elaborant, ut spirituales res istas suæ rationis acumine indagent et comprehendant, tanto minus intelligunt et credunt, et ea omnia pro stultitia et meris nugis et fabulis habent, priusquam a Spiritu Sancto illuminentur et doceantur.” Nuevamente, 245 “Natura corrupta viribus suis coram Deo nihil aliud, nisi peccare possit.” “Sacræ literæ hominis non renati cor duro lapidi, qui ad tactum non cedat, sed resistat, idem rudi trunco, interdum etiam feræ in domitæ comparant, non quod homo post lapsum non amplius sit rationalis creatura, aut quod absque auditu et meditatione verbi divini ad Deum convertatur, aut quod in rebus externis et civilibus nihil boni aut mali intelligere possit, aut libere aliquid agere vel omittere queat.” 246 “Antequam homo per Spiritum Sanctum illuminatur, convertitur, regeneratur et trahitur, ex sese, et propriis naturalibus suis viribus in rebus spiritualibus, et ad conversionem aut regenerationem suam nihil inchoare, operari, aut coöperari potest, nec plus, quam lapis, truncus, aut limus.” 247 A doutrina das igrejas reformadas é neste mesmo sentido. 248 “Confessio Helvetica II.:” “Non sublatus est quidem homini intellectus, non erepta ei voluntas, et prorsus in lapidem vel truncum est commutatus: cæterum illa ita sunt immutata et inminuta in homine, ut 244 II. 9; Hase, p. 657. I. 25; Ibid. p. 643. 246 II. 19; Ibid. p. 661. 247 II. 24; Ibid. p. 662. 248 IX.; Niemeyer, Collectio Confessionum, p. 479. 245 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 355 non possint amplius, quod potuerunt ante lapsum. Intellectus enim obscuratus est: voluntas vero ex libera, facta est voluntas serva. Nam servit peccato, non nolens, sed volens. Etenim voluntas, non noluntas dicitur. . . . . “Quantum vero ad bonum et ad virtutes, intellectus hominis, non recte judicat de divinis ex semetipso. . . . Constat vero mentem vel intellectum ducem esse voluntatis, cum autem coecus sit dux, claret quousque et voluntas pertingat. Proinde nullum est ad bonum homini arbitrium liberum, nondum renato; vires nullæ ad perficiendum bonum. . . . . 249 Cæterum nemo negat in externis, et regenitos et non regenitos habere liberum arbitrium. . . . . Damnamus in hac causa Manichæos, qui negant homini bono, ex libero arbitrio fuisse initium mali. Damnamus etiam Pelagianos, qui dicunt hominem malum sufficienter habere liberum arbitrium, ad faciendum præceptum bonum.” “Confessio Gallicana:” “Etsi enim nonnullam habet boni et mali discretionem: affirmamus tamen quicquid habet lucis mox fieri tenebras, cum de quærendo Deo agitur, adeo ut sua intelligentia et ratione nullo modo possit ad eum accedere: item quamvis voluntate sit præditus, qua ad hoc vel illud movetur, tamen quum ea sit penitus sub peccato captiva, nullam prorsus habet ad bonum appetendum libertatem, nisi quam ex gratia et Dei dono acceperit.” 250 “Articuli XXXIX:” “Ea est hominis post lapsum Adæ conditio, ut sese naturalibus suis viribus et bonis operibus ad fidem et invocationem Dei convertere ac præparare non possit. Quare absque gratia Dei quæ per Christum est nos præveniente, ut velimus et cooperante dum volumus, ad pietatis opera facienda, quæ Deo grata sunt ac accepta, nihil valemus.” 251 249 Niemeyer, p. 481. ix.; Ibid. p. 331. 251 x.; Ibid. p. 603. 250 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 356 “Opera quæ fiunt ante gratiam Christi, et Spiritus ejus afflatum, cum ex fide Christi non prodeant minime Deo grata sunt. . . . . Immo, cum non sint facta ut Deus illa fieri voluit et præcepit, peccati rationem habere non dubitamus.” 252 Cânones de Dort: 253 «Todos os homens são concebidos em pecado e, ao nascer como filhos da ira, incapazes de algum bem saudável ou salvífico, e inclinados ao mal, mortos em pecados e escravos do pecado; e não querem nem podem voltar para Deus, nem corrigir sua natureza corrompida, nem por eles mesmos melhorar a mesma, sem a graça do Espírito Santo, que é quem regenera.» «É bem verdade que depois da Queda ficou ainda no homem alguma luz da natureza, mediante a qual conserva algum conhecimento de Deus, das coisas naturais, da distinção entre o que é lícito e ilícito, e também mostra alguma prática rumo à virtude e a disciplina externa. Mas está por ver que o homem, por esta luz da natureza, poderia chegar ao conhecimento salvífico de Deus, e converter-se a Ele quando, nem ainda em assuntos naturais e cívicos, tampouco usa retamente esta luz; antes bem, seja como for, a empatia totalmente de diversas maneiras, e a subjuga em injustiça; e visto que ele faz isto, portanto se priva de toda desculpa diante de Deus.» 254 Na Confissão de Westminster 255 declara-se nas seções segunda e terceira que o pecado original inclui a perda da retidão original e uma natureza corrompida, «pela qual», declara-se na quarta seção, «estamos completamente impedidos, incapazes e opostos a todo bem e inteiramente inclinados a todo mal». «A capacidade que os crentes têm para fazer boas obras, não é deles de maneira nenhuma, mas completamente do Espírito de Cristo.» 256 A 252 xiii.; Ibid. p. 604. III. iii.; Ibid. p. 709. 254 III. iv.; Niemeyer. 255 Capítulo vi. 256 Ibid. ch. XV. i. § 3. 253 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 357 chamada eficaz «provém somente da livre e especial graça de Deus, e não de qualquer outra coisa prevista no homem, o qual é nisto inteiramente passivo, mesmo sendo vivificado e renovado pelo Espírito Santo é capacitado para assim responder a esta chamada, e para receber a graça oferecida e transmitida nele». 257 A natureza da incapacidade do pecador É evidente com base nas declarações autorizadas desta doutrina, tal como é dada nos livros simbólicos das igrejas Luterana e Reformada, que a incapacidade sob a qual se afirma que trabalha o homem, desde a Queda, não surge: A incapacidade não surge da perda de nenhuma faculdade da alma 1. Da perda de nenhuma faculdade de sua mente ou de nenhum atributo original e essencial de sua natureza. Retém sua razão, vontade e consciência. Tem o poder intelectual de cognição, a capacidade de autodeterminação e a faculdade de discernir entre o bem e o mal morais. Sua consciência, como diz o Apóstolo, aprova ou desaprova seus atos morais. Nem da perda do livre-arbítrio. 2. A doutrina da incapacidade do homem, assim, não supõe que o homem tenha deixado de ser um agente moral livre. É livre porquanto determina suas próprias ações. Cada volição é um ato de livre autodeterminação. É um agente moral porquanto tem a consciência de obrigação moral, e sempre que peca age contra as convicções da consciência ou dos preceitos da lei moral. Que o homem esteja em tal estado que prefere e escolhe uniformemente o mal em lugar do bem, como sucede com os anjos caídos, não é mais inconsequente com seu 257 Ibid. ch. x. § 2. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 358 livre-arbítrio que o fato de estar em tal estado que prefere e escolhe o bem com a mesma uniformidade que os santos anjos. A incapacidade não é mera ausência de inclinação 3. A incapacidade dos pecadores, segundo a anterior exposição da doutrina, não é uma mera ausência de inclinação ao bem. Existe esta ausência de inclinação, mas não é a realidade final. Deve haver alguma causa ou razão para ela. Como Deus e Cristo são imensamente maravilhosos, o fato de que os pecadores não os amem não se pode explicar dizendo que não estão inclinados a deleitar-se na infinita excelência. Isto só seria dizer o mesmo com palavras diferentes. Se alguém não percebe a beleza de uma obra de arte, ou de uma produção literária, não se explica o fato dizendo que a pessoa não tem inclinação para tais formas de beleza. A que se deve que o que é belo por si mesmo, e na opinião de todos os competentes para julgar, não tem aparência nem beleza para ele? A que se deve que a suprema excelência de Deus e tudo o que faz com que Cristo seja distinguido entre dez mil e o absolutamente deleitoso à vista de santos e anjos, não suscite os correspondentes sentimentos no coração irregenerado? Assim, a incapacidade do pecador não consiste nem em sua ausência de inclinação ao bem, nem surge exclusivamente desta fonte. Surge da carência de discernimento escriturístico. 4. Segundo as Escrituras e as normas de doutrina acima assinaladas, consiste na carência de capacidade de discernir retamente as coisas espirituais, e a conseguinte carência de todos os afetos retos com relação a eles. E esta carência de capacidade para o discernimento espiritual surge da corrupção de toda nossa natureza, devido à que a razão ou o entendimento ficam cegados, e o gosto e os sentimentos ficam pervertidos. E como este estado mental é inato, porquanto é o estado ou condição de nossa natureza, encontra-se atrás da vontade, e além de seu poder, controlando tanto nossos afetos como nossas volições. É Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 359 certamente um fato conhecido da experiência que os juízos do homem com relação ao que é verdadeiro ou falso, correto ou incorreto, ficam em muitos casos determinados por seus interesses ou sentimentos. Alguns, em suas filosofias, generalizaram este fato, dando-lhe a posição de lei, e ensinam que quanto a todos os temas estéticos e morais, os juízos e as apreensões do entendimento ficam determinados pelo estado dos sentimentos. Ao aplicar esta lei às questões religiosas, insistem em que só os afetos ficam sujeitos à corrupção moral, e que se estes são purificados ou renovados, o entendimento compreende e julga retamente então já por si só. Seria fácil ver que isto, como teoria física é totalmente insatisfatório. Os afetos supõem um objeto. Só podem ser suscitados à vista de um objeto. Se amamos, temos que amar algo. O amor é complacência e delícia na coisa amada, e necessariamente supõe uma apreensão do mesmo como bom e desejável. É evidentemente impossível que amemos a Deus a não ser que compreendamos Sua natureza e perfeições; e por isso é necessário, para que o amor seja exercido, que a mente compreenda a Deus tal como Ele realmente é. Em outro caso, os afetos não seriam nem racionais nem santos. Mas isto é de importância subordinada. A filosofia de um homem não tem autoridade para outros homens. Só somos chamados a nos submeter sem vacilação alguma à filosofia da Bíblia, àquela que se pressupõe nas declarações doutrinais da Palavra de Deus. Em todo lugar nas Escrituras se declara ou se assume que os sentimentos seguem ao entendimento; que a iluminação da mente na devida apreensão dos objetos espirituais é a necessária condição preliminar de todo sentimento reto e conduta deste modo reta. Temos que conhecer a Deus a fim de amá-lo. Isto o declara o Apóstolo de maneira expressa em 1Co 2:14. Ali diz ele: (1) Que o homem natural ou irregenerado não recebe as coisas do Espírito. (2) Declara-se que a razão pela qual não as recebe é que se discernem espiritualmente. A razão ou causa da incredulidade é a ignorância, a ausência de discernimento da beleza, excelência e propriedade das coisas do Espírito (isto é, das verdades que o Espírito revelou). Assim, por exemplo, em Ef 4:18, onde Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 360 diz que os gentios (os inconversos) estão «excluídos da vida de Deus pela ignorância que há neles». Por esta razão ele ora tão frequentemente pela iluminação de seus leitores; e também a súplica do Salmista para que seus olhos fossem abertos. Daí também que a verdadeira conversão tenha lugar mediante uma revelação. Paulo foi mudado instantaneamente de perseguidor a adorador de Cristo, quando a Deus teve por bem revelar o Seu Filho nele. Aqueles que perecem, perecem porque o deus deste mundo cegou seus olhos de maneira que não chegam a ver a glória de Deus na face de Jesus Cristo. É em conformidade com este princípio que é essencial o conhecimento para a santidade, que se diz que a verdadeira religião e a vida eterna consistem no conhecimento de Deus (Jo 17:3), e que dos homens diz-se que são salvos e santificados pela verdade. Assim, é a clara doutrina da Bíblia que a incapacidade dos homens não consiste na mera ausência de inclinação ou oposição de sentimentos às coisas de Deus, mas que esta ausência de inclinação ou exclusão, como a chama o Apóstolo, surge da cegueira de suas mentes. Entretanto, não devemos ir ao extremo oposto, e adaptar o que foi chamado «o sistema da luz», que ensina que os homens são regenerados pela luz ou pelo conhecimento, e que tudo o que é preciso é que sejam abertos os olhos do entendimento. Como é toda a alma que está sujeita ao pecado original, toda a alma é sujeita da regeneração. Um cego não pode desfrutar nas belezas da natureza ou da arte até que a vista lhe seja restaurada. Mas, se não é cultivada, a mera restauração da vista não lhe dará a percepção da beleza. Toda a sua natureza tem que ser elevada e cultivada. Da mesma maneira é toda a natureza do homem apóstata a que tem que ser renovada pelo Espírito Santo; então, com seus olhos abertos à glória de Deus em Cristo, se alegrará nEle com uma alegria inefável e cheia de glória. Mas a iluminação da mente é indispensável para sentimentos santos, e é a causa imediata dos mesmos. Sendo esta a doutrina da Bíblia, segue-se disso que a incapacidade do pecador não consiste meramente numa ausência de inclinação à santidade. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 361 A incapacidade, declarada só com referência às «Coisas do Espírito» 5. Esta incapacidade se declara só com referência às coisas do Espírito». Admite-se em todas as Confissões anteriormente citadas que desde a Queda o homem tem não apenas a liberdade de eleição ou poder de autodeterminação, mas também é capaz de executar atos morais, bons assim como maus. Pode ser amável e justo, e cumprir seus deveres sociais de um modo que mereça a aprovação de seus semelhantes. Não se significa que o estado mental pelo qual estes atos são executados, nem os motivos pelos quais são determinados, sejam tais que mereçam a aprovação de um Deus imensamente santo; mas simplesmente que estas ações quanto à sua forma, estão prescritas pela lei moral. Os teólogos, como vimos, designam a classe de ações para as quais o homem caído retém sua capacidade como «justitia civilis», ou «coisas externas». E a classe para a qual se declara sua incapacidade é designada como «as coisas de Deus» «as coisas do Espírito», «coisas que acompanham salvação». A diferença entre estas duas classes de atos, embora não possa ser fácil declará-lo em palavras, é universalmente reconhecida. Há uma evidente diferença entre moralidade e religião; e entre aqueles afetos religiosos da reverência e gratidão que todos os homens experimentam mais ou menos e a verdadeira piedade. A diferença reside no estado da mente, os motivos, e a apreensão dos objetos destes afetos. É a diferença entre a santidade e o mero sentimento natural. O que a Bíblia e todas as Confissões das Igrejas da Reforma declaram é que o homem, desde a Queda, não pode mudar seu próprio coração; não pode regenerar sua alma; não pode arrepender-se com dor segundo a piedade, nem exercer a fé que é para salvação. Não pode, em resumo, executar nenhum exercício santo nem efetuar nenhuma ação de tal maneira que mereça a aprovação de Deus. O pecado impregna tudo o que faz, e não pode libertar-se do domínio do pecado. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 362 Num sentido, sua incapacidade é natural. 6. Esta incapacidade é natural num sentido familiar e importante da palavra. Não é natural no mesmo sentido que o são a razão, a vontade e a consciência. Estas constituem nossa natureza, e sem elas ou sem qualquer delas, deixaríamos de ser homens. Em segundo lugar, não é natural como surgindo das necessárias limitações de nossa natureza e pertencendo a nossa condição original e normal. Surge da natureza do homem como criatura que ele não pode criar, e não pode produzir nenhum efeito de si mesmo por mera volição. Adão, em seu estado de perfeição, não podia, por sua simples vontade, fazer com que uma pedra se movesse, nem que uma planta crescesse. É evidente que uma incapacidade surgindo de qualquer das fontes anteriormente mencionadas, isto é, da ausência de quaisquer das faculdades essenciais de nossa natureza, ou das limitações originais e normais de nosso ser, envolve liberdade de obrigação. Neste sentido nada é mais verdadeiro que o fato de que a capacidade limita a obrigação. Não se poderia demandar com justiça a nenhuma criatura que fizesse o que ultrapassa suas capacidades como criatura. Por outro lado, embora a incapacidade dos pecadores não seja natural em nenhum dos sentidos anteriormente expostos, é natural no sentido de que surge do presente estado de sua natureza. É natural no mesmo sentido que o egoísmo, a soberba e a mundanalidade são naturais. Não é adquirida nem induzida por nenhuma influência ab extra [externa], mas surge da condição em que existe a natureza humana desde a queda de Adão. Em outro sentido é moral 7. Esta incapacidade, embora natural no sentido recém-assinalado, é entretanto moral, porquanto surge do estado moral da alma, em sua relação com a atividade moral, e porquanto é eliminada por uma mudança moral, isto é, pela regeneração. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 363 Objeções à distinção popular entre capacidade moral e natural Neste país se pôs muita tensão sobre a distinção entre capacidade moral e natural. Foi considerada como uma das grandes melhoras americanas em teologia, e como estabelecendo um importante adiantamento nesta ciência. Afirma-se que o homem, desde a Queda, tem a capacidade natural para fazer tudo o que lhe é pedido, e que é sobre esta base que se exige dele a responsabilidade; mas se admite que é moralmente incapaz de voltar a Deus, ou de guardar de maneira perfeita os Seus mandamentos. Pensa-se que com esta distinção podemos salvaguardar o grande princípio de que a capacidade limita a obrigação, de que um homem não pode ficar preso ao que não pode fazer, e ao mesmo tempo apegar-se à doutrina escriturística que ensina que o pecador não pode, por si mesmo, arrepender-se nem mudar seu próprio coração. Com relação a esta distinção, tal como se apresenta comum e popularmente, pode-se observar: 1. Que os termos natural e moral não são antitéticos. Uma coisa pode ser ao mesmo tempo natural e moral. A incapacidade dos pecadores, tal como se observou com antecedência, embora moral, é natural num sentido de grande importância. E, portanto, é errôneo dizer que é simplesmente moral, e não natural. 2. Os termos são suscetíveis de objeção, não só porque carecem de precisão, mas também porque são ambíguos. Um homem significa por capacidade natural só a posse de razão, vontade e consciência. Outro significa capacidade plenária, tudo o que é preciso para produzir um efeito determinado. E este é o sentido próprio das palavras. Capacidade é o poder para fazer algo. Se alguém tem capacidade natural para amar a Deus tem uma capacidade plena para fazê-lo. E se tem capacidade para amá-Lo tem tudo o que é preciso para exercer este amor. E porquanto este é o sentido próprio dos termos, é o sentido usualmente unido aos mesmos. Os que insistem na capacidade natural do pecador, afirmam geralmente que tem pleno poder, sem ajuda divina, para fazer tudo o que Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 364 lhe é demandado: amar a Deus com toda a sua alma, e sua mente e suas forças, e a seu próximo como a si mesmo. Tudo o que se interpõe para que ele possa agir assim não é sua incapacidade, mas meramente ausência de inclinação, ou a ausência de vontade. Uma capacidade que não seja adequada para o fim contemplado não é capacidade. Por isso, constitui uma objeção séria ao uso desta distinção, tal como usada geralmente, o fato de que envolve um grande erro. Afirma que o pecador pode fazer o que de fato não pode fazer. 3. Uma objeção adicional a esta maneira de enunciar a doutrina é que tende a dificultar ou a enganar. Deve dificultar as pessoas dizer-lhes que podem e que não podem arrepender-se e crer. Uma ou outra de ambas as proposições, no sentido comum e próprio dos termos, deve ser falsa. E qualquer sentido esotérico e metafísico que o teólogo possa tentar para conciliá-los não encontrará nem avaliação nem respeito por parte do povo. É uma objeção muito mais séria que se tende a enganar os homens ao lhes dizer que podem mudar seus próprios corações, que podem arrepender-se, e que podem crer. Isto não é certo, e a consciência de cada um lhe diz que não é certo. De nada vale que o pregador diga que o que ele significa por capacidade é que todos os homens têm as faculdades de seres humanos, e que estas são as únicas faculdades a exercer ao voltar-se para Deus ou ao fazer Sua vontade. Do mesmo modo, poderíamos razoavelmente dizer a um homem não educado que pode compreender e apreciar a Ilíada, porque tem todas as faculdades que possui o acadêmico. E menos ainda servirá dizer-lhe que a única dificuldade reside em sua vontade. Por isso, quando dizemos que os homens podem amar a Deus, significamos que podem amá-Lo se quiserem. Se a palavra querer se toma aqui no sentido comum de capacidade de autodeterminação, a proposição de que alguém pode amar a Deus se quiser não é certa; porque é notório que os afetos não estão sob o poder da vontade. Se a palavra se tomar num sentido amplo incluindo os afetos, a proposição é um truísmo. Equivale a dizer que podemos amar a Deus se O amamos. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 365 4. A distinção entre capacidade natural e moral, tal como se faz usualmente, é antiescriturística. Já se admitiu que há uma evidente e muito importante distinção entre uma incapacidade surgindo das limitações de nosso ser como criaturas, e uma incapacidade surgindo do estado apóstata de nossas naturezas desde a queda de Adão. Mas não é isto o que usualmente querem dizer aqueles que afirmam a capacidade natural dos homens para fazer tudo o que Deus demanda deles. Significam e declaram de maneira expressa que o homem, tal como é agora sua natureza, é perfeitamente capaz de mudar seu próprio coração, arrepender-se e viver uma vida santa; que a única dificuldade em seu caminho para isso é sua ausência de inclinação, controlável por seu próprio poder. É esta descrição a é antiescriturística. As Escrituras nunca se dirigem assim ao homem caído, no sentido de lhes assegurar de sua capacidade de libertar-se a si mesmos do poder do pecado. 5. Toda a tendência e o efeito deste modo de pensar são daninhos e perigosos. Se um pecador precisa ser convencido de sua culpa antes de poder confiar na justiça de Cristo para sua justificação, precisa estar convencido de sua impotência antes de poder olhar a Deus para ser libertado. Aqueles que são levados a crer que podem salvar-se a si mesmos são, na dispensação divina, usualmente abandonados a seus próprios recursos. Em oposição, portanto, à doutrina Pelagiana da capacidade plenária do pecador, à doutrina Semipelagiana ou Arminiana do que se chama «uma capacidade em graça», isto é, uma capacidade concedida a todos os que ouvem o evangelho mediante a graça comum e suficiente do Espírito Santo, e a doutrina de que a única incapacidade do pecador é sua ausência de inclinação ao bem, os Agostinianos sempre ensinaram que esta incapacidade é absoluta e total. É natural assim como moral. É tão completa, embora diferente em gênero, como a incapacidade do cego para ver, do surdo para ouvir, ou dos mortos para restaurar a vida a si mesmos. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 366 Prova da doutrina 1. O primeiro e mais evidente argumento em favor da posição Agostiniana ou Ortodoxa a respeito desta questão é o argumento negativo. Isto é, o fato de que as Escrituras não atribuem em nenhum lugar aos homens caídos a capacidade de mudar seus próprios corações nem de voltar-se a si mesmos a Deus. Como sua salvação depende de sua regeneração, se esta obra estivesse ao alcance de suas próprias capacidades, seria incrível que a Bíblia nunca deposita a obrigação de levar o cabo sobre a capacidade do pecador. Se ele tivesse a capacidade de regenerar-se a si mesmo, deveríamos esperar nas Escrituras a afirmação da posse desta capacidade da parte dele, e que o chamasse a exercê-la. Certamente, poderia dizer-se que o próprio mandamento para arrepender-se e crer implica a posse de tudo o que é preciso para a obediência ao mandamento. O que implica é que aqueles a quem se dirige são criaturas racionais, capazes de obrigações morais, e que são agentes morais livres. Não implica nada mais. O mandamento não é nada mais que a declaração autoritativa do que é obrigatório para aqueles a quem se dirige; demanda que sejamos perfeitos como nosso Pai no céu é perfeito. A obrigação é imperativa e constante. Mas ninguém em seu são juízo pode afirmar sua própria capacidade para tornar-se perfeito desta maneira. Por isso, apesar dos repetidos mandamentos dados na Bíblia aos pecadores para que amem a Deus com todo o coração, a que se arrependam e creiam no evangelho, e que vivam sem pecar, mantém-se a verdade de que as Escrituras em nenhum lugar afirmam nem reconhecem a capacidade do homem caído para cumprir estas demandas do dever. Declarações expressas das Escrituras 2. Além deste testemunho negativo das Escrituras, temos as repetidas e explícitas declarações da Palavra de Deus a respeito deste assunto. Nosso Senhor compara a relação entre Si mesmo e Seu povo com a que existe entre a videira e seus ramos. O ponto da analogia é a total dependência comum a ambas as relações. «Como não pode o ramo Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 367 produzir fruto de si mesmo, se não permanecer na videira, assim, nem vós o podeis dar, se não permanecerdes em mim. … sem mim, nada podeis fazer» (Jo 15:4,5). Aqui nos ensina que Cristo é a única fonte da vida espiritual; que os que estão fora dEle estão destituídos daquela vida e de toda capacidade para produzir seus frutos próprios; e inclusive com relação aos que estão com Ele, esta capacidade não pertence a si mesmos, mas antes, deriva-se por inteiro dEle, de maneira semelhante, o Apóstolo afirma sua insuficiência (ou incapacidade) para fazer qualquer coisa por si mesmo.· «Nossa suficiência», diz ele, «vem Deus» (2Co 3:5). Cristo diz aos judeus (Jo 6:44): «Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer». Isto não fica debilitado nem desvirtuado pelo fato de que Ele diga, em outro lugar, «e não quereis vir a mim, para terdes vida». A alma arrependida e crente acode, crendo em Cristo. Quer vir. Mas isto não implica que possa, por si mesma, produzir aquela disposição de acudir. O pecador quer não vir; mas isto não demonstra que vir esteja na capacidade de sua vontade. Não pode ter a vontade de ir para salvação de sua alma, a não ser que tenha um verdadeiro sentimento de pecado, e uma apropriada compreensão da pessoa, do caráter e da obra de Cristo, e afetos corretos para com Ele. Como vai consegui-los? Estão todos estes complexos estados mentais, este conhecimento, estas apreensões e estes afetos sujeitos ao poder imperativo da vontade? Em Rm 8:7-8 o Apóstolo diz: «O pendor da carne é inimizade contra Deus, pois não está sujeito à lei de Deus, nem mesmo pode estar. Portanto, os que estão na carne não podem agradar a Deus.» Os que estão «na carne» se distinguem dos que estão «no Espírito». Os primeiros são os irregenerados, homens que estão em estado natural, e deles afirma-se que não podem agradar a Deus. Da fé afirma-se que é um dom de Deus, e entretanto, sem fé nos é dito que é impossível agradar a Deus (Hb 11:6). Em 1Co 2:14 afirma-se: «O homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente.» O homem natural é distinto do homem espiritual. Este último é alguém em quem o Espírito Santo é o Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 368 princípio de vida e atividade, ou que está sob o controle do Espírito; o primeiro é aquele que está sob o controle de sua própria natureza caída, em quem não há princípio de vida e ação, mas o que lhe pertence como criatura caída. De tal homem diz o Apóstolo, primeiro, que não recebe as coisas do Espírito, isto é, as verdades que o Espírito revelou; segundo, que são loucura para ele; terceiro, que não as pode conhecer; e quarto, que a razão de sua incapacidade é sua falta de discernimento espiritual, isto é, daquela apreensão da natureza e verdade de coisas divinas que se deve ao ensino interno ou iluminação do Espírito Santo. Portanto, esta passagem não só afirma o fato da incapacidade do pecador, mas também que ensina a base ou fonte da mesma. Não é uma mera aversão ou carência de inclinação, mas sim a ausência de um verdadeiro conhecimento. Ninguém pode ver a beleza de uma obra de arte sem um verdadeiro discernimento estético. Esta é a constante exposição da Escritura. Os homens são mencionados e considerados em todo lugar não só como culpados e contaminados, mas também como impotentes. Envolto na doutrina do Pecado Original 3. A doutrina da incapacidade do pecador está envolta na doutrina escriturística do pecado original. Por sua apostasia de Deus o homem não só perdeu a imagem e o favor divinos, mas também se afundou num estado de morte espiritual. A Bíblia e a razão igualmente ensinam que Deus é a vida da alma; Seu favor e a comunhão com Ele, são essenciais não só para a vida, mas também para a santidade. Aqueles que estão debaixo da Sua ira e maldição estão excluídos de Sua presença, e estão nas trevas exteriores. Não possuem verdadeiro conhecimento, nem desejo de comunhão com um Ser que para eles é fogo consumidor. Ao Apóstolo parece o maior absurdo e a maior impossibilidade que uma alma fora do favor de Deus seja santa. Esta é a ideia fundamental de sua doutrina da santificação. Os que estão debaixo da lei estão debaixo da maldição, e os que estão debaixo da maldição estão totalmente perdidos. Por isso, é essencial para a santidade que sejamos libertados da lei e Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 369 restaurados ao favor de Deus antes de podermos efetuar ou experimentar algum exercício de amor ou algum ato de verdadeira obediência por nossa parte. Somos livres do pecado só porque não estamos debaixo da lei, mas debaixo da graça. A totalidade dos capítulos 6 e 7 de Romanos estão dedicados à exposição deste princípio. Para o Apóstolo, a doutrina de que o pecador tem a capacidade por sua própria parte de voltar-se para Deus, restaurar em sua alma a imagem de Deus, e viver uma vida santa, deve ter-lhe parecido como uma rejeição tão absoluta de sua doutrina da salvação como no caso da doutrina de que somos justificados pelas obras. Todo o seu sistema está baseado no princípio de que, sendo culpados, estamos condenados, e podemos ser justificados só na base da justiça de Cristo; e, estando espiritualmente mortos, nenhuma apresentação objetiva da verdade, nem declarações autoritativas da lei, nenhum esforço nosso, podem originar a vida espiritual, nem suscitar algum exercício espiritual. Sendo justificados livremente e restaurados ao favor divino, somos então, e só então, capazes de produzir fruto para Deus. «Assim, meus irmãos, também vós morrestes relativamente à lei, por meio do corpo de Cristo, para pertencerdes a outro, a saber, aquele que ressuscitou dentre os mortos, a fim de que frutifiquemos para Deus. Porque, quando vivíamos segundo a carne, as paixões pecaminosas postas em realce pela lei operavam em nossos membros, a fim de frutificarem para a morte. Agora, porém, libertados da lei, estamos mortos para aquilo a que estávamos sujeitos, de modo que servimos em novidade de espírito e não na caducidade da letra.» (Rm 7:4-6). Esta postura da questão implica necessariamente que o estado natural dos homens caídos como de total impotência e incapacidade. Estão «completamente impedidos, incapazes e opostos a todo o bem». Assim, a Bíblia, como já vimos, descreve de maneira uniforme os homens em seu estado natural desde a Queda como cegos, surdos, e espiritualmente mortos; e deste estado eles não se podem livrar mais que um cego de nascimento pode abrir os seus próprios olhos, ou que um apodrecendo-se na tumba possa restaurar à vida a si mesmo. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 370 A necessidade da influência do Espírito 4. O seguinte argumento a respeito desta questão se deriva do que as Escrituras ensinam a respeito da necessidade e natureza da influência do Espírito em regeneração e santificação. Se se toma uma Concordância Grega do Novo Testamento, e se busca com que frequência são empregadas as palavras Πνεῦμα - Pneuma e Τὸ Πνεῦμα τὸ ἅγιον - To Pneuma to hagion, descobrir-se-á o importante papel do Espírito Santo na salvação dos homens, e quão desesperado é o caso dos que são deixados a si mesmos. O que as Escrituras ensinam claramente a respeito desta questão é: (1) Que o Espírito Santo é a fonte da vida espiritual e de todos os seus exercícios; que sem esta influência sobrenatural não podemos efetuar ações santas da mesma maneira que um ramo morto ou arrancado da videira não pode produzir fruto. (2) Que no primeiro caso (isto é, na regeneração) a alma é o sujeito, e não o agente, da mudança produzida. O Espírito dá vida, e logo e orienta todas as suas operações; assim como no mundo natural Deus dá vista aos cegos, e logo luz mediante a qual poder ver, e objetos que poder contemplar, e guia e sustenta todos os exercícios do poder da visão que Ele outorgou. (3) Que a natureza da influência pela qual se produz a regeneração, que deve preceder a todos os exercícios santos, exclui a possibilidade de preparação ou cooperação por parte do pecador. Alguns efeitos são produzidos por causas naturais, outros pela simples volição ou eficiência imediata de Deus. A esta última classe pertencem a criação, os milagres e a regeneração. (4) Daí que o efeito produzido se chame uma nova criatura, uma ressurreição, um novo nascimento. Estas descrições têm o propósito de ensinar a total impotência e inteira dependência do pecador. A salvação não é de quem quer nem de quem corre, mas sim de Deus que mostra misericórdia, e que opera em nós tanto o querer como o efetuar, por Sua boa vontade. Estas são questões que deverão ser tratadas mais adiante com maior detalhe. Para esta discussão é suficiente dizer que as doutrinas da Bíblia a respeito da absoluta necessidade da graça, ou da influência sobrenatural do Espírito, e da natureza e dos efeitos Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 371 desta influência, são totalmente inconsistentes com a doutrina de que o pecador possa por si mesmo levar a cabo qualquer ação santa. O argumento com base na experiência 5. Esta é uma questão muito prática. O que um homem é capaz de fazer não se determina da melhor maneira mediante um raciocínio a priori nem por deduções lógicas com base na natureza de suas faculdades, mas pondo à prova sua capacidade. O que se deve fazer é passar do pecado à santidade; amar a Deus de maneira perfeita, e ao próximo como a nós mesmos; efetuar cada dever sem defeito nem omissão, e guardar-nos de todo pecado em pensamento, palavra ou obra, tanto de coração como de vida. Pode alguém fazer isto? Acaso alguém necessita argumentos para lhe demonstrar que não pode? Ele sabe duas coisas tão clara e certamente quanto conhece sua própria existência: primeiro, que está obrigado a ser moralmente perfeito, guardar todos os mandamentos de Deus, ter todos os sentimentos corretos em constante exercício segundo a ocasião os demande, e evitar todo pecado em sentimento assim como em obra; e segundo, que ninguém pode fazer isto como tampouco ressuscitar os mortos. O metafísico pode tentar demonstrar às pessoas que não há mundo externo, que a matéria é pensamento; e pode ser que o metafísico creia nisso, mas a pessoa, cuja fé está determinada pelos instintos e pelas leis divinamente constituídas de sua natureza, reterão suas convicções intuitivas. De maneira similar, o teólogo metafísico pode dizer aos pecadores que se podem regenerar, que podem arrepender-se e crer, e amar a Deus perfeitamente, e pode dizer, mediante uma figura de linguagem, que o teólogo o crê. Mas os pobres pecadores sabem que isso não é verdade. Tentaram-no mil vezes, e dariam mil mundos para realizar a tarefa, e fazer-se santos e herdeiros da gloria por uma volição, ou mediante o exercício de seus próprios poderes, sejam estes fugazes ou persistentes. Admite-se de maneira universal, porquanto é um fato universal da consciência humana, que os sentimentos e os afetos não estão sob o Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 372 controle da vontade. Ninguém pode amar aquilo que ele aborrece, ou odiar aquilo em que se deleita, por nenhum exercício de sua capacidade de autodeterminação. Por isso, os filósofos, com Kant, denunciam o mandamento para amar como algo absurdo. Mas a insensatez dos homens é a sabedoria de Deus. É correto que sejamos ordenados amar a Deus e que creiamos em Sua palavra, tanto se o exercício do amor e da fé está ou não sob o controle de nossa vontade. A única maneira em que se pode evadir a este argumento baseado na comum consciência dos homens é negar que os sentimentos têm algum caráter moral; ou supor que as demandas da lei acomodam-se à capacidade do agente. Se não pode amar a santidade, não está obrigado a amá-la. Se não pode crer em todo o evangelho, é-lhe apenas exigido que creia o que pode crer, o que pode aceitar como verdade à luz de sua própria razão. Entretanto, estas duas hipóteses são contrárias às convicções intuitivas de todos os homens, e às expressas declarações da Palavra de Deus. Todos os homens sabem que o caráter moral acompanha os sentimentos assim como os propósitos e volições; que a benevolência como sentimento é certo, e que a malícia como sentimento é errado. Sabem com a mesma certeza que as exigências do direito são imutáveis, que a lei de Deus não pode ser rebaixada à medida da capacidade das criaturas caídas. Não demanda delas nada que exceda à limitação de suas naturezas como criaturas; mas que demanda delas o pleno e constante, e por isso perfeito, exercício destas capacidades no serviço de Deus e em conformidade com Sua vontade. E isto é precisamente o que todo ser humano racional caído está totalmente convencido de que não pode fazer. A convicção de incapacidade, portanto, é tão universal e indestrutível como a crença da existência, e todos os sofismas dos teólogos metafísicos são tão impotentes como todas as sutilezas do idealista ou do panteísta. Qualquer homem ou grupo de homens, qualquer sistema de filosofia ou de teologia, que tratem de deter a grande corrente da consciência humana acabarão com toda certeza no abismo do esquecimento ou da destruição. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 373 A convicção do pecado. Há outro aspecto deste argumento que merece ser considerado. O que é convicção do pecado? Quais são as experiências daqueles a quem o Espírito de Deus traz sob tal convicção? A resposta a estas perguntas pode achar-se na Bíblia, como por exemplo no sétimo capítulo da Epístola aos Romanos, nos registros da vida interior do povo de Deus ao longo de todas as idades, e na experiência religiosa de cada crente. Mediante todas estas fontes pode-se demonstrar que cada alma convencida de pecado é levada a sentir e a reconhecer: (1) Que é culpado diante de Deus, e justamente exposto à sentença de sua lei quebrantada. (2) Que está totalmente poluído e contaminado pelo pecado; que seus pensamentos, sentimentos e ações não são o que nem a consciência nem a lei divina podem aprovar; e que não são apenas alguns atos separados e fugazes os que estão assim contaminados, mas também que o coração não é reto, que o pecado existe nele como poder ou lei que opera nele toda forma de maldade. E (3) Que não pode expiar sua culpa, e que não se pode libertar do poder do pecado; de maneira que se vê obrigado a clamar: Miserável homem que sou!; quem me livrará do corpo dessa morte? Esta sensação de absoluta impotência, de total incapacidade, é tanto um elemento universal de convicção genuína como uma sensação de culpa ou de consciência de contaminação. É uma grande misericórdia que a teologia do coração seja frequentemente melhor que a teologia da cabeça. 6. O testemunho da consciência de cada pessoa fica confirmada pela consciência comum da Igreja e por toda a história de nossa raça. Pode-se apelar com toda confiança às orações, aos hinos e a outros escritos devocionais do povo de Deus como prova de que nenhuma convicção está mais profundamente marcada nos corações de todos os verdadeiros cristãos que sua absoluta impotência e total dependência da graça de Deus. Lamentam sua incapacidade de amar a seu Redentor, guardar-se do pecado, viver uma vida santa adequada em qualquer grau a suas próprias convicções a respeito de suas obrigações. E se humilham Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 374 sob esta incapacidade. Nunca a apresentam como uma desculpa nem como um atenuante; reconhecem-na como o fruto e evidência da corrupção de sua natureza derivada como triste herança de seus primeiros pais. Atribuem, unânimes, todo o bem que possa haver neles não à sua capacidade, mas ao Espírito Santo. Cada um adota, como expressando a convicção mais interior de seu coração, a linguagem do Apóstolo: «Não eu, mas a graça de Deus comigo» [1Co 15:10]. Como este é o testemunho da Igreja, é também o testemunho de toda a história. O mundo não provê nenhum exemplo de um homem que se tenha regenerado a si mesmo. Não existe nem existiu jamais tal homem; e ninguém jamais creu ter sido regenerado por seu próprio poder. Se o que os homens podem fazer pode ser determinado pelo que os homens têm feito, pode-se supor sem medo de errar que ninguém pode mudar seu próprio coração, nem levar-se a si mesmo ao arrependimento para com Deus e à fé no Senhor Jesus Cristo. Não vale a pena lutar por uma capacidade que nunca chegou a alcançar, nos milhares de milhões de nossa raça, seus fins desejados. Dificilmente se há uma doutrina nas Escrituras que se ensine com maior clareza ou que esteja mais abundantemente confirmada pela comum consciência dos homens, sejam santos ou pecadores, que a de que o homem caído está privado de toda capacidade para converter-se a si mesmo ou de realizar algum ato santo até que esteja renovado pelo poder onipotente do Espírito de Deus. Objeções 1. A objeção mais evidente e plausível a esta doutrina é a antiga e já tão considerada, isto é, que é inconsistente com a obrigação moral. Não se pode, segundo se diz, exigir de ninguém com justiça que faça algo para o que não tem a capacidade necessária. A falácia desta objeção reside na aplicação deste princípio. Em sua própria esfera é uma verdade axiomática, mas em outra é absolutamente falsa. É verdade que ao cego não se lhe pode exigir com justiça que veja, nem ao surdo que ouça. A uma criança não se pode exigir que compreenda cálculo, nem a um Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 375 homem sem instrução que leia os clássicos. Estas coisas pertencem à esfera da natureza. O princípio de que tratamos não é de aplicação à esfera da moral ou da religião, quando a incapacidade não surge da limitação, mas da corrupção moral de nossa natureza. Inclusive na esfera da religião há um limite à obrigação com base na capacidade do agente. Não se pode esperar de uma criança, não se pode exigir dela, que exiba a medida dos santos afetos que enchem a alma dos justos feitos perfeitos. É só quando a incapacidade surge do pecado e é eliminada pela eliminação do pecado, que é consistente com uma obrigação permanente. E foi mostrado, com base nas Escrituras, que a incapacidade do pecador para arrepender-se e crer, para amar a Deus e levar uma vida de santidade, não surge das limitações de sua natureza como criatura (como no caso dos idiotas ou dos brutos); nem pela ausência das faculdades ou capacidades precisas, mas simplesmente da corrupção de nossa natureza; disso segue-se que isso não o exonera da obrigação de ser e fazer tudo o que Deus demanda. Esta, como se observou mais acima, é a doutrina da Bíblia, e fica confirmada pela universal consciência dos homens, e especialmente pela experiência de todo o povo de Deus. Todos a uma só voz lamentam sua impotência e sua total incapacidade para viver sem pecado, e entretanto reconhecem sua obrigação de ser perfeitamente santos. Somos responsáveis por nossas ações externas, porquanto dependem de nossas volições. Somos responsáveis por nossas volições porquanto dependem de nossos princípios e sentimentos; e somos responsáveis por nossos sentimentos e daqueles estados da mente que constituem o caráter, porquanto (dentro da esfera da moral e da religião) são retos ou perversos em sua própria natureza. O fato de que os afetos e que os estados permanentes e inclusive imanentes da mente estejam fora do poder da vontade não os exclui (como se mostrou repetidamente nestas páginas) da esfera da obrigação moral. Porquanto isto está testemunhado pelas Escrituras e pelo juízo geral dos homens, é Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 376 inadmissível o suposto axioma de que a capacidade limita a obrigação na esfera da moral. Sendo que a obrigação moral está baseada na posse dos atributos de um agente moral, a razão, a consciência e a vontade, permanece em vigor enquanto que estes atributos subsistam. Se se perde a razão, perdese toda responsabilidade pelo caráter ou a conduta. Se não existe na criatura a consciência da diferença entre o bem e o mal, a capacidade de perceber as distinções morais, ou não pertence à sua natureza, esta criatura não está sujeita a obrigações morais; e de maneira semelhante, se não é um agente, não está investida com a faculdade de atividade espontânea como ser pessoal, deixa, pelo que respeita a seus estados conscientes, de ser responsável pelo que é ou faz. Porquanto a doutrina escriturística e Agostiniana admite que o homem retém, desde a Queda, sua razão, consciência e vontade, isso deixa incólume a base da responsabilidade pelo caráter e a conduta. Não debilita os motivos para o esforço 2. Outra objeção popular à doutrina escriturística a respeito desta questão é que destrói toda base racional sobre a qual repousa o uso dos meios da graça. Se não podemos chegar a um fim determinado, para que deveríamos empregar os meios para alcançá-lo? Assim poderia dizer o granjeiro: Se não posso assegurar a colheita, para que vou cultivar meus campos? Em cada área de atividade humana o resultado depende da cooperação de causas sobre as quais o homem não tem controle algum. Espera-se que empregue os meios adaptados ao fim desejado, e confie na cooperação de outras agências sem as quais seus próprios esforços de nada servem. As bases escriturísticas sobre as que estamos obrigados a empregar os meios da graça são: (1) O mandamento de Deus. Isto, por si mesmo, já é suficiente. Se não houvesse uma evidente adaptação dos meios ao fim, e nenhuma conexão que pudéssemos descobrir entre eles, o mandamento de Deus seria uma suficiente razão e motivo para seu diligente uso. Não havia nenhuma propriedade natural nas águas do Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 377 Jordão para curar a lepra, nem nas do lago de Siloé para restaurar a vista aos cegos. Entretanto, teria sido uma insensatez fatal da parte de Naamã recusar por isso obedecer o mandamento de banhar-se sete vezes ali; e por parte do cego recusar lavar-se no lago, tal como Jesus lhe mandou. (2) Se o mandamento de Deus é suficiente inclusive quando não há aparente relação entre os meios e o fim, é muito mais suficiente quando os meios têm uma adaptação natural ao fim. Podemos ver esta adaptação no âmbito da natureza, e é não menos evidente no da graça. Há uma estreita relação entre a verdade e a santidade, como entre a semeadura do grão e a colheita da safra. O homem semeia, mas Deus dá o crescimento, tanto em um caso como em outro. (3) Não só há esta adaptação natural dos meios da graça ao fim a alcançar, mas também em todos os casos comuns só se chega a obter o fim mediante o emprego destes meios. Os homens não são salvos sem a verdade. Os que não buscam não encontrarão. Os que recusam pedir não receberão. Este é tanto o curso comum da administração divina do reino da graça como do da natureza. (4) Não só há esta conexão visível entre os meios da graça e a salvação da alma, como fato da experiência, mas também a promessa expressa de Deus de que os que busquem encontrarão, que os que pedem recebem, e que aos que chamem abrir-se-lhes-á. Mais que isto não se pode pedir de uma maneira racional. Aos homens do mundo são dadas mais que sobras para estimulá-los em seus esforços após riqueza ou conhecimento. Portanto, a doutrina da incapacidade não danifica a força de nenhum dos motivos que deveriam estimular os pecadores a empregar toda diligência em buscar sua própria salvação da maneira que Deus estabeleceu. A doutrina não incentiva a demora 3. Há ainda outra objeção que se apresenta em todo lugar contra esta doutrina. Diz-se que incentiva a demora. Se alguém crê que não pode mudar seu coração, que não se pode arrepender e crer no evangelho, dirá então: «Tenho que esperar o tempo de Deus. Porquanto Ele dá aos homens um novo coração, porquanto a fé e o arrependimento Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 378 são Seus dons, tenho que esperar até que Ele queira dar-me estes dons.» É indubitável que Satanás prova os homens para que argumentem assim, da mesma maneira em que os prova com outras formas de soberba insensatez. Entretanto, a tendência natural da doutrina em questão é precisamente o inverso. Quando um homem está convencido de que o logro de um fim desejado está além de suas próprias capacidades, instintivamente busca ajuda. Se está doente, se sabe que não se pode curar a si mesmo, manda buscar um médico. Se está persuadido de que a doença está totalmente sob o seu controle, e especialmente se qualquer metafísico pudesse persuadi-lo de que sua doença é uma ideia que pode ser eliminada mediante um ato de vontade, então seria uma insensatez por sua vez buscar ajuda externa. Os cegos, os surdos, os leprosos, e os mutilados que estavam na terra quando Cristo esteve presente na carne, sabiam que não podiam ajudar-se a si mesmos, e por isso iam após Ele em busca de ajuda. Não se teria podido inventar uma doutrina mais destruidora das almas que a doutrina de que os pecadores podem regenerar-se a si mesmos, e arrepender-se e crer quando quiserem. Os que realmente abraçam tal doutrina nunca iriam buscar ajuda à única fonte em que na realidade podem obter estas bênçãos. Seriam impulsionados a esperar o último momento da vida para efetuar uma obra que está totalmente em suas mãos e que pode realizar-se num momento. Um avarento, em seu leito de morte, pode mediante um ato de vontade entregar todas as suas riquezas. Se um pecador pudesse mudar de maneira tão fácil seu próprio coração, bem poderia querer apegar-se ao mundo como o avarento a suas riquezas, até o último momento. Toda a verdade tende à piedade; todo erro, ao pecado e à morte. Como é uma verdade tanto da Escritura e da experiência que o homem irregenerado não pode fazer nada por si mesmo para assegurar sua salvação, é essencial que seja levado a uma convicção prática desta verdade. Quando ficar convencido dela, buscará ajuda da única fonte onde pode ser achada. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II CAPÍTULO IX 379 LIVRE-ARBÍTRIO EM todas as discussões a respeito do pecado e da graça, está necessariamente envolvida a questão a respeito da natureza e as necessárias condições do livre-arbítrio. Esta é uma das questões em que a teologia e a psicologia entram em contato imediato. Há uma teoria do livre-arbítrio com a qual são totalmente irreconciliáveis as doutrinas do pecado original e da graça eficaz, e há outra teoria com a qual são perfeitamente congruentes. Assim em todas as eras da Igreja, os que adotaram as primeiras destas teorias rejeitam estas doutrinas; e, por outro lado, os que estão constrangidos a crer nestas doutrinas estão não menos constrangidos a adotar a outra teoria concordante do livre-arbítrio. Os Pelagianos, os Semipelagianos e os Remonstrantes não mostram diferenças mais manifestas com relação aos Agostinianos, Luteranos e Calvinistas a respeito das doutrinas do pecado e da graça que a que mostram a respeito da questão metafísica e moral da liberdade humana. Assim, em cada sistema de teologia há um capítulo dedicado a De libero arbitrio. Esta é uma questão que cada teólogo encontra em seu caminho, e que tem que confrontar; e sua teologia depende da forma em que seja determinada, e naturalmente sua religião, até onde sua teologia lhe seja uma verdade e uma realidade. Pode parecer absurdo abordar, no espaço de umas poucas páginas, uma questão a respeito da qual se têm escrito tantos volumes. Entretanto, há esta importante diferença entre todas as questões que tratam da alma, ou do mundo interior, e as que têm que ver com o mundo exterior; com relação ao anterior, sendo que todos os materiais do conhecimento são realidades da consciência, já os temos em nossa posse, enquanto que, com relação aos últimos, os fatos devem ser primeiro recolhidos. Assim, em questões que tenham que ver com a mente, com frequência tudo o que se exige, e tudo o que se pode dar, é um mero enunciado da questão. Se este enunciado é correto, os atos da consciência se dispõem Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 380 espontaneamente em ordem ao seu redor; se for incorreto, recusam obstinadamente ficar dispostos assim. Se este for o caso, a que se deve que os homens difiram tanto a respeito desta questão? A isto se pode responder: 1. Que não diferem tanto como parecem. Quando a mente é deixada sem perturbações, e se permite que aja com base em suas próprias leis, os homens, na grande maioria dos casos, pensam de maneira semelhante a respeito de todas as grandes questões que dividem os filósofos. É só quando agitam o plácido lago, e tentam sondar suas profundidades, analisar suas águas, determinar as leis de suas correntes e determinar o que contêm, que veem e pensam de maneira tão diferente. Por muito que os homens difiram em suas opiniões especulativas a respeito da natureza última da matéria, todos eles, na prática, sentem e agem da mesma maneira em tudo o que concerne à sua aplicação e uso. E por muito que possam diferir quanto à questão da liberdade ou da necessidade, concordam quanto a considerar-se a si mesmos ou a outros como agentes responsáveis. 2. Em nenhuma questão é a ambiguidade da linguagem um impedimento mais sério, para chegar a um acordo consciente, que com referência a toda esta questão, e especialmente no que respeita à questão do livre-arbítrio. A mesma declaração frequentemente aparece como certa para uma mente, e falsa para outra, porque é entendida de maneira diferente. Esta ambiguidade surge em parte da imperfeição inerente à linguagem humana. As palavras têm e devem ter mais de um sentido; e embora definamos nossos termos, e digamos em qual de seus vários distintos significados estamos empregando uma palavra, entretanto as exigências da linguagem, ou a falta de atenção, conduzem quase indefectivelmente a que seja empregado em algum de seus outros legítimos significados. Além disso, os estados da mente que estas palavras querem descrever são por si mesmos tão complexos que nenhuma palavra os pode descrever com precisão. Temos termos para expressar as operações do intelecto, outros para designar os sentimentos, Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 381 e ainda outros para ações da vontade; mas milhares de nossas ações incluem o exercício do intelecto, da sensibilidade e da vontade, e é absolutamente impossível encontrar palavras para todos estes complexos e variáveis estados da mente. Portanto, não é nada assombroso que os homens interpretem mal uns aos outros, e que fracassem em seus mais intensos esforços por expressar o que querem dizer de maneira que outros deem precisamente o mesmo sentido às palavras que eles empregam. 3. Há outra razão da diversidade de opinião que sempre prevaleceu em todas as questões relacionadas com o livre-arbítrio. Embora os fatos que deveriam determinar a questão que se discute são realidades da consciência comuns a todos os homens, entretanto são tão numerosos, e de classes tão diferentes, que é difícil atribuir a cada um seu devido lugar e importância. Pelo hábito, ou pela instrução mental, ou pelo estado moral da mente, algumas pessoas admitem muito peso para uma classe destes fatos, e muito pouco a outros. Alguns são governados por seu entendimento, outros por seus sentimentos morais. Em alguns, as sensibilidades morais estão muito mais ativas e aportam mais informação que em outros. Alguns adotam certos princípios como axiomas, aos quais obrigam que se amoldem todos os seus juízos. Assim, é em vão esperar que jamais encontremos unânimes a todos os homens, inclusive nas questões mais claras e importantes que tratam da constituição e leis de sua própria natureza. Há só um guia seguro, e só um caminho tanto à verdade como à unidade, o Espírito e a Palavra de Deus; felizes os que se sujeitam a ser conduzidos por este guia, e a caminhar neste caminho. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II § 1. Diferentes teorias da vontade 382 Todas as diferentes teorias da vontade podem ser incluídas sob as três classes de Necessidade, Contingência e Certeza. Necessidade. À primeira destas classes pertencem: 1. A doutrina do Fatalismo, que ensina que todos os acontecimentos são determinados por uma necessidade cega. Esta necessidade não surge da vontade de um Ser inteligente que governa a todas as Suas criaturas e as ações das mesmas com base em sua natureza, e com propósitos sábios e bondosos; mas por uma lei de sequência à qual estão sujeitos tanto Deus (ou antes, os deuses) como os homens. Exclui a ideia de previsão ou de plano, ou de seleção voluntária de um fim, e a adoção dos meios para seu cumprimento. As coisas são como são, e devem ser como são, e têm que ser, sem causa racional. Esta teoria ignora qualquer distinção entre as leis físicas e o livre-arbítrio: As ações dos homens e as operações da natureza ficam determinadas por uma necessidade do mesmo tipo. Os acontecimentos são como uma corrente poderosa levada adiante por uma força irresistível, – uma força exterior a eles mesmos, incontrolável e imodificável. Tudo o que se deve fazer é permitir ser levados assim. E não há diferença alguma tanto se se assentir como se não. Um homem que caia num precipício não pode, mediante um ato de volição, rebater a lei da gravidade; tampouco pode mediante um ato de volição controlar ou modificar a ação da fatalidade. Suas circunstâncias exteriores e suas ações interiores ficam todas igualmente determinadas por uma lei ou influência inexorável que existe fora dele mesmo. Esta é ao menos uma forma do fatalismo. Esta visão da doutrina da necessidade pode descansar na pressuposição de que o universo tem a base de sua existência em si mesmo, e que está governado em todas as suas operações por leis fixas, as quais determinam a sequência de todos os acontecimentos no reino mineral, vegetal e animal, por uma necessidade Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 383 semelhante. Ou pode admitir que o mundo deve sua existência a uma primeira causa inteligente, mas pressupondo que seu autor nunca teve o propósito de criar agentes livres, mas que decidiu pôr em marcha certas causas que deveriam dar determinados resultados. Por muito que os fatalistas difiram a respeito da causa da necessidade que governa todos os acontecimentos, concordam quanto à sua natureza. Pode ser que surja da influência das estrelas, como mantinham os antigos caldeus; ou da operação de segundas causas, ou da constituição original das coisas; ou do decreto de Deus. Exclui-se de maneira manifesta toda liberdade de ação, e se reduzem os atos dos homens à mesma categoria que os dos animais irracionais. Entretanto, propriamente falando, o fatalismo atribui esta necessidade à fatalidade, uma causa não inteligente. 2. Uma segunda forma da doutrina da necessidade é a teoria mecânica. Esta nega que o homem seja a causa eficiente de suas próprias ações. Apresenta-o como passivo, ou como não dotado de outra forma mais elevada de atividade que a espontaneidade. Exclui de maneira manifesta a ideia da responsabilidade. Dá por sentado que o estado interior do homem, e consequentemente seus atos, está tudo isso determinado por suas circunstâncias externas. Esta doutrina está como está relacionada com o materialismo do Hobbes, Hartley, Priestley, Belsham, e especialmente tal como foi plenamente desenvolvida pelos enciclopedistas franceses, supõe que a partir da constituição de nossa natureza há algumas coisas que nos dão dor e outras que nos dão prazer. Algumas excitam o desejo, e outras aversão; e que esta suscetibilidade de receber ações é toda a atividade que pertence ao homem, que é tão puramente um mecanismo vivente como os animais irracionais. Um certo objeto externo produz uma impressão correspondente sobre os nervos, esta é transmitida ao cérebro, e um impulso de resposta é voltado para enviar aos músculos; ou o efeito se gasta no mesmo cérebro em forma de pensamento ou sentimento, estimulado ou desenvolvido pelo tal impulso. As características gerais desta teoria são as mesmas até o ponto em que seus defensores ignoram toda distinção entre necessidade Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 384 física e moral, e rejeitam a doutrina do livre-arbítrio e da responsabilidade, por muito que possam diferir em outras questões. 3. Uma terceira forma de necessidade inclui todas aquelas teorias que substituem a eficiência das segundas causas, atribuindo todos os acontecimentos à agência imediata da primeira causa. Isto, naturalmente, faz o Panteísmo em todas suas formas, tanto se meramente faz de Deus a alma do mundo, e atribui todas as operações da natureza e todas as ações dos homens à sua atividade imediata, como se contempla o mundo mesmo como Deus, como se faz de Deus a única substância da qual a natureza e a mente são os fenômenos. Segundo todas estas posturas, Deus é o único agente; todas as atividades são só modos diferentes em que se manifesta a atividade de Deus. A teoria da causa ocasional leva ao mesmo resultado. Segundo esta doutrina, toda eficiência está em Deus. Em segundo lugar as causas só são as ocasiões em que se exerce é eficiência. Embora este sistema permita uma existência real à matéria e a mente, e admita que estão dotadas de certas qualidades e atributos, mas estes não são mais que suscetibilidades, ou receptividades para a manifestação da eficiência divina. Proporcionam as ocasiões para o exercício do Poder onipresente de Deus. A matéria e a mente são da mesma maneira passivas: todas as mudanças numa e todo o aspecto da atividade na outra, são provocados por uma operação imediata de Deus. Sob o mesmo cabeçalho corresponde a doutrina de que a ação de Deus na preservação do mundo é uma criação continuada. Este tipo de descrição é certamente adotado frequentemente como figura retórica por teólogos ortodoxos; mas se for tomado literalmente implica a total ineficiência de todas as segundas causas. Se Deus cria o mundo exterior em cada momento sucessivo, Ele deve ser o autor imediato de todos as susa mudanças. Não há conexão entre o que precede e o que segue, entre o antecedente e o consequente, entre causa e efeito, mas sim sucessão no tempo; e quando se aplica ao mundo interior, ou à alma, necessariamente temos a mesma consequência. A alma, em qualquer momento Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 385 determinado, existe só num certo estado; e se é criada neste estado, então a energia criativa é a causa imediata de todos os seus sentimentos, cognições e ações. A alma não é um agente; é só algo que Deus cria numa forma determinada. Toda continuidade de ser, toda identidade e toda eficiência ficam perdidos; e o universo da matéria e da mente deve ser só a continuada pulsação da vida de Deus. Estreitamente relacionada com a doutrina de uma criação contínua é o «esquema do exercício». Segundo esta teoria a alma é uma série de exercícios criados por Deus. A alma como tal não existe, nem o eu, mas apenas certas percepções que se sucedem umas a outras com assombrosa rapidez. Hume nega toda causa real. Tudo o que sabemos é que estas percepções existem, e que existem em sucessão. Emmons diz que Deus as cria. Naturalmente, é em vão falar da liberdade do homem em produzir os atos criadores de Deus. Se Ele cria nossas volições em vista de motivos, trata-se de Suas ações, e não das nossas. A diferença entre este sistema e o Panteísmo é pouco mais que nominal. Contingência. Diretamente oposta a todos estes esquemas de necessidade se levanta a doutrina da contingência, que foi mantida sob diferentes nomes e variadamente modificada. Às vezes é chamada a liberdade da indiferença, pelo que se significa que a vontade, no momento da decisão, está situada espontaneamente entre motivos em conflito, e que se decide em um ou outro sentido não devido à maior influência de um motivo sobre o outro, mas sim devido ao fato de que é indiferente ou indeterminável, capaz de agir de acordo com o motivo mais fraco contra o mais forte, ou inclusive sem motivo alguém absolutamente. Às vezes esta doutrina é expressa mediante a frase «a capacidade autodeterminadora da vontade». Por esta trata-se de negar que a vontade está determinada por motivos, e afirmar que a razão de suas decisões deve ser buscada nela mesma. É uma causa e não um efeito, e por isso não precisa de nada fora dela mesma para explicar suas ações. Às vezes Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 386 esta doutrina recebe o nome da eleição contrária: isto é, que em cada volição há e deve haver a capacidade do contrário. Inclusive supondo que todos os antecedentes externos e internos tenham sido precisamente os mesmos, a decisão teria podido ser diferente da qual realmente foi. Por isso, a contingência é necessária para a liberdade. Esta é uma ideia essencial para a teoria em todas as suas formas. Um acontecimento contingente é aquele que pode ou não suceder. Por isso, a contingência está oposta não meramente à necessidade, mas também à certeza. Se alguém agir em oposição a todos os motivos, externos e internos, e apesar de toda a influência que se possa exercer sobre ele, que não signifique a destruição de sua liberdade, então deve permanecer para sempre inseguro como vai agir. Assim, os proponentes desta teoria da liberdade mantêm que a vontade é independente da razão, dos sentimentos e de Deus. Não há, dizem eles, um meio-termo entre a contingência (isto é, a incerteza) e o fatalismo; entre a independência da vontade e do agente e a negação do livre-arbítrio. Embora os proponentes da liberdade de contingência dirigem em geral seus argumentos contra a doutrina da necessidade, entretanto é evidente que consideram a certeza não menos que a necessidade como inconsequentes com a liberdade. Isto fica claro: (1) Com base nas designações que dão à sua teoria, como liberdade de indiferença, a capacidade autodeterminante da vontade, o poder para o contrário. (2) Por sua definição formal da liberdade, como a capacidade para decidirnos a favor ou contra, ou sem motivos; ou é o poder de «querer o que quisermos». Diz Reid: «Se em cada ação voluntária a determinação da vontade do agente é a consequência necessária de algo involuntário no estado da mente do agente, ou de algo nas circunstâncias externas do mesmo, o agente não é livre.» 258 Diz Cousin: «A vontade é minha, e eu disponho de maneira absoluta da mesma dentro dos limites do mundo 258 Active Powers, Essay IV, cap. 1; Works, p. ,599, Sir W. Hamilton, editor, Edinburgh, 1849. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 387 259 espiritual.» Os Escotistas da Idade Média, Molina, e os Jesuítas como grupo, e todos os opositores do Agostinianismo, definem a liberdade como consistente em indiferença, ou na independência da vontade do anterior estado da mente, e fazem com que exclua tanto a certeza como a necessidade. (3) Pelos argumentos com que tratam de sustentar sua teoria, que se dirigem com tanta frequência contra a certeza como contra a necessidade. (4) Por suas respostas aos argumentos contrários, e especialmente ao que se deriva da presciência de Deus. Porquanto o conhecimento antecipado de uma ação pressupõe a certeza de seu acontecimento, se os atos livres são conhecidos, devem ser certos. A isto os proponentes da teoria sob exame dão algumas respostas que demonstram que é à certeza que se enfrentam. Dizem que não temos direito a arguir a respeito desta questão com base nos atributos de Deus; trata-se simplesmente de uma questão que tem que ver com a consciência; ou dizem que a presciência de Deus pode estar limitada, da mesma maneira que Seu poder está limitado pelas impossibilidades. Se é impossível conhecer antecipadamente atos livres, os tais não são objetos de conhecimento, e, portanto, não conhecê-los antecipadamente não constitui uma limitação do conhecimento divino. Por estas e outras considerações fica patente que a teoria da contingência em todas as suas formas opõe-se à doutrina da certeza, não menos que a da necessidade, no sentido próprio do termo. Entretanto, por isso não se significa que os proponentes da contingência sejam coerentes quanto a este ponto. Arguindo contra a necessidade, frequentemente não discriminam entre a necessidade física e a moral. Classificam a Hobbes, Hartley, Priestley, Belsham, Collins, Edwards e aos Enciclopedistas Franceses, e a todos os que empregam a palavra necessidade, sob a mesma categoria; e entretanto não podem evitar admitir que em muitos casos os atos livres podem ser certos. Com muita frequência dizem que os argumentos particulares demonstram certeza, mas não necessidade, quando 259 Elements of Psychology, p. 357, Henry’s translation. 4th edit., New York, 1856. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 388 precisamente o ponto debatido é a certeza, e é precisamente o que eles negam. Esta é uma das inevitáveis incongruências de seu erro. Entretanto, ninguém, apesar destas admissões, discutirá que a doutrina da contingência, tanto se for chamada indiferença, capacidade autodeterminante da vontade, poder da eleição contrária, ou qualquer outro nome, é de fato, e tem a intenção de ser, contraditória à da certeza. Certeza. A terceira teoria geral a respeito desta questão equidista da doutrina da necessidade, por um lado, e da da contingência por outro. Ensina que o homem é livre não só quando suas ações externas ficam determinadas por sua vontade, mas também quando suas volições são verdadeira e propriamente suas, determinadas por nada fora de si mesmo, mas procedendo de suas próprias posturas, sentimentos e disposições imanentes, de maneira que sejam a expressão real, inteligente e consciente de seu caráter, ou do que está em sua mente. Esta teoria recebe frequentemente o nome de necessidade moral ou filosófica, em distinção de necessidade física. Esta é uma designação muito desafortunada e inapropriada: (1) Porque a liberdade e a necessidade estão diretamente enfrentadas. É uma contradição dizer que um ato seja livre e, entretanto, necessário; que o homem é um agente livre, e entretanto que todas suas ações estão determinadas por uma lei da necessidade. Como todos os proponentes da teoria mencionada professam crer na liberdade da vontade humana, ou que o homem é um agente livre, é certamente lamentável que empreguem um termo que em seu sentido comum e próprio ensina precisamente o contrário. (2) A certeza e a necessidade não são o mesmo, e portanto não deveriam expressar-se com a mesma palavra. A necessidade com que uma pedra cai ao solo, e a certeza com que um ser perfeitamente santo, ficando confirmado num estado de graça, agirá com santidade, são tão diferentes como o dia e a noite. A aplicação do mesmo termo para expressar coisas essencialmente distintas tende a confundir as próprias coisas. Um Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 389 homem pode ver-se obrigado a fazer algo contra sua vontade, mas dizer que pode ver-se obrigado a querer contra sua vontade é uma contradição. Uma volição necessária não é volição, como tampouco branco é negro. Devido ao fato de que em linguagem popular com frequência falamos de uma coisa como necessária quando é totalmente certa, e embora as Escrituras, escritas na linguagem da vida comum, com frequência fazem o mesmo, não há razão pela qual em discussões filosóficas se empregue esta palavra de maneira que inevitavelmente conduza à confusão. (3) O uso da palavra necessidade para expressar a ideia da certeza lança vitupério sobre a verdade. Reveste-a com a roupagem do erro. Faz com que Edwards empregue a linguagem de Hobbes. Põe a Lutero na mesma categoria que Espinoza; a todos os Agostinianos na mesma classe que aos materialistas franceses. Todos eles empregam a mesma linguagem, embora seu sentido seja tão diverso quanto possível. Todos dizem que os atos dos homens são necessários. Quando chega o momento de explicarse, uma classe diz que são verdadeira e propriamente necessários no sentido de que não são livres, e que excluem a possibilidade de caráter ou responsabilidade morais. A outra classe diz que são necessários, mas no sentido de que são entretanto livres e perfeitamente consequentes com a responsabilidade moral do agente. É certamente um grande mal que teorias diametralmente opostas entre si, que a doutrina de santos e a doutrina de demônios (para empregar a linguagem de Paulo) expresse-se nas mesmas palavras. E assim nos encontramos com os mais respeitáveis escritores, como Reid e Stewart, argumentando contra Edwards como se este sustentasse a doutrina de Belsham. Os antigos escritores latinos designavam usualmente a teoria da certeza moral com o nome de Lubentia Rattionalis, ou Espontaneidade Racional. Esta é uma designação muito mais apropriada. Implica que em cada volição há elementos de racionalidade e de ação espontânea. Nos brutos há espontaneidade, mas não razão, e por isso não são agentes livres no sentido de que sejam objetos de aprovação ou de desaprovação. Nos maníacos há também autodeterminação, mas é irracional, e portanto Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 390 não livre. Mas onde se combinam num agente a razão e a capacidade de autodeterminação, ele é livre e responsável por seus atos exteriores e por suas volições. Esta descrição satisfaria a Reid, que diz: «Vemos evidentemente que assim como a razão sem poder ativo nada pode fazer, da mesma maneira o poder sem razão não tem guia para dirigi-lo a nenhum fim. As duas coisas coordenadas estabelecem a liberdade mora1.» 260 Os antigos escritores, ao desenvolver sua doutrina da espontaneidade racional, estavam acostumados a dizer que a vontade vai determinada pelo juízo último do entendimento. Isto é certo ou falso segundo se interprete a linguagem. Se por juízo último do entendimento se significa a apreensão intelectual e convicção do razoável e excelente do objeto da eleição, então nada senão o perfeitamente razoável e bom fica assim sempre determinado. Os homens, numa multidão de ocasiões, escolhem aquilo que seu entendimento condena como ímpio, profano ou destrutivo. Ou se o sentido é que cada ação livre é o resultado de uma deliberação consciente e de uma conseguinte decisão da mente quanto ao desejável de uma certa ação, contudo não se pode dizer que a vontade siga os ditados do entendimento. É provavelmente com referência a uma ou ambas destas interpretações da língua em questão que Leibnitz diz: “Non semper sequimur judicium ultimum intellectus practici, dum ad volendum nos determinamus; at ubi volumus, semper sequimur collectionem omnium inclinationum, tam a parte rationum, tam passionum, profectarum; id quod sæpenumero sine expresso intellectus judicio contingit.” 261 Mas o que realmente se significa por esta expressão é que as posturas ou os sentimentos que determinam a vontade estão, eles mesmos, determinados pelo entendimento. Se eu desejo algo, é devido ao fato de que o apreendo como apropriado para satisfazer algum anelo de minha natureza. Se eu desejo algo porque está correto, o fato de 260 261 Active Powers, Essay iv. cap. 5; Works, Edinburgh, 1849, p. 615. Works, edit. Geneva, 1768, vol. i. p. 156. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 391 que seja correto é algo que o entendimento deve discernir. Em outras palavras, todos os desejos, afetos, ou sentimentos que determinam que a vontade aja deve ter um objeto e esse objeto através do qual o sentimento é animado e para o qual tende, deve ser discernido pelo entendimento. É isto que lhes confere o caráter racional, e torna racional as determinações da vontade. Qualquer volição que não siga ao ditado último do entendimento é, neste sentido da palavra, a ação de um idiota. Pode ser que seja espontânea, assim como o são as ações dos brutos, mas não pode ser livre no sentido de que seja a ação de uma pessoa responsável. Outra forma sob a qual esta doutrina se expressa com frequência é que a vontade é segundo o maior bem aparente. Esta é uma maneira muito comum de expressar a doutrina, derivada de Leibnitz, o pai do otimismo, cuja inteira «Theodicée» está baseada na pressuposição de que o pecado é o meio necessário para o summum bonum [maior bem]. Por «bem», os escritores desta classe significam geralmente «adaptado para produzir felicidade» a qual é considerada como o sumo bem. A doutrina deles é que a vontade sempre se decide por aquilo que promete a maior felicidade. Não é, diz-se, o maior bem real, mas sim o maior bem aparente aquele que determina a volição. Um só gole de uma taça pode lhe parecer com um alcoólico, na intensidade de seu desejo, um maior bem: isto é, como mais apropriado para libertá-lo e satisfazê-lo, que seu próprio bem-estar ou o bem-estar de sua família para toda a vida. Esta teoria inteira está baseada na hipótese de que a felicidade é o mais alto bem, e que o desejo de felicidade é a mola última de toda ação voluntária. Porquanto estes dois princípios são aborrecíveis a grande massa das mentes cultivadas, especialmente das cristãs, e porquanto os homens agem por outros e mais elevados motivos que um desejo de potencializar sua própria felicidade, são poucos os que, em nossos tempos, adotarão a doutrina de que a vontade é, segundo o maior bem aparente, assim exposta. Não obstante, se a palavra bem se tomar num sentido mais amplo, incluindo tudo o que é desejável, seja o reto, o apropriado, ou o útil, assim como o apropriado para dar felicidade, então Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 392 é indubitável que a doutrina é certa. De fato a vontade fica sempre determinada em favor daquilo que, sob algum aspecto, ou por alguma razão, considera-se bom. De outra maneira os homens poderiam escolher o mal como mal, o que violada uma lei fundamental de todas as naturezas racionais e sensoriais. É ainda coisa mais comum, ao menos neste país, dizer que a vontade fica sempre determinada pelo motivo mais poderoso. A esta forma de enunciado se apresentam duas evidentes objeções. (1) A ambiguidade da palavra motivo. Se esta palavra for tomada num sentido, o enunciado é certo; se for tomada em outro, é falso. (2) A impossibilidade de estabelecer alguma prova a respeito da força relativa dos motivos. Se a prova é feita sobre a vivacidade dos sentimentos, então não é verdade que sempre prevaleça o motivo mais poderoso. Se a prova é feita sobre o efeito, então quer dizer que o motivo mais forte é aquele que determinou a vontade, o que equivale a dizer que a vontade fica determinada por aquilo que a determina. É melhor manter-se na declaração geral. A vontade não fica decidida por nenhuma lei de necessidade; não é independente, indiferente nem autodeterminada, mas fica sempre determinada pelo anterior estado da mente; de modo que um homem é livre sempre que suas volições sejam a consciente expressão de sua própria mente; ou enquanto que sua atividade seja determinada e controlada por sua razão e sentimentos. § 2. Definição de termos. Antes de passar a dar um esboço dos argumentos usuais em apoio desta doutrina, é importante determinar o sentido das palavras a empregar. Ninguém que esteja minimamente familiarizado com discussões desta natureza pode ter deixado de observar quanta dificuldade se suscita pela ambiguidade dos termos empregados, e com Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 393 que frequência as pessoas diferem na doutrina, quando na realidade só diferem na linguagem. Vontade. Primeiro, a própria palavra vontade é um daqueles termos ambíguos. Às vezes emprega-se num sentido amplo, incluindo todos os desejos, afetos e inclusive as emoções. Tem este sentido amplo quando se diz de todas as faculdades da alma que estão incluídas sob as duas categorias de entendimento e vontade. Assim que tudo aquilo que pertence à alma e que não pertence ao primeiro é atribuído à segunda. Todo gosto e repugnância, toda preferência, toda inclinação e falta de inclinação, são neste sentido atos da vontade. Em outras ocasiões, emprega-se esta palavra para denotar a capacidade de autodeterminação, ou aquela faculdade pela qual decidimos nossas próprias ações. Neste sentido, só os propósitos e as volições imperativas são ações da vontade. É evidente que se um escritor afirma a liberdade da vontade neste último sentido, e seu leitor toma suas palavras no primeiro sentido, um jamais entenderá o outro. Ou se o mesmo escritor usa às vezes a palavra em seu sentido amplo e às vezes em seu sentido restringido, inevitavelmente se confundirá ele mesmo e confundirá a outros. Dizer que temos poder sobre nossas volições, e dizer que temos poder sobre nossos desejos, são coisas totalmente diferentes. Uma destas proposições pode ser mantida e a outra pode ser negada; mas se se confundem a vontade e o desejo, a distinção entre estas duas proposições fica eliminada. Tem-se com frequência observado que a confusão destes dois significados da palavra vontade é o grande defeito da célebre obra do Presidente Edwards. Começa com uma definição do termo que faz com que inclua toda preferência, eleição, complacência ou desagrado, gosto e desgosto, e advoga por uma teoria que é certa e aplicável só à vontade no sentido restringido da palavra. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 394 Motivo. Em segundo lugar, a palavra motivo se toma com frequência num sentido diferente. Define-se como sendo qualquer coisa que tenha tendência a mover a mente. Considera-se um motivo qualquer objeto adaptado para despertar o desejo ou o afeto; qualquer verdade ou conceito que seja apropriado para influenciar um ser racional e sensível à tomada de uma decisão. É a isto que se chama o sentido objetivo do termo. Neste sentido está muito longe de ser certo que a vontade é sempre movida pelo motivo mais poderoso. As verdades mais importantes, as considerações de maior peso, os objetos mais atraentes, são com frequência impotentes, pelo que concerne ao estado interior da mente. Entretanto, esta palavra é com frequência empregada no sentido objetivo para designar aquelas convicções interiores, aqueles sentimentos, inclinações e princípios que estão na própria mente, e que empurram ou influenciam o homem a decidir-se de uma forma em lugar de em outra. É só neste sentido do termo que a vontade fica determinada pelo motivo mais poderoso. Mas inclusive neste caso deve admitir-se, como já antes se observou, que não temos critério nem norma mediante a que determinar a força relativa dos motivos, além de seu efeito real. De maneira que dizer que a vontade fica determinada pelo motivo mais poderoso equivale só a dizer que não está autodeterminada, mas sim em cada volição racional o homem fica influenciado para decidir-se de uma maneira em lugar de em outra forma, por algo dentro dele, de modo que a volição é uma revelação do que ele mesmo é. Causa. Em terceiro lugar, a palavra causa não é menos ambígua. Às vezes significa a mera ocasião; às vezes o instrumento pelo qual se leva algo a cabo; às vezes a eficiência a que se deve o efeito; às vezes ao fim pelo qual se faz algo, como quando falamos de causas finais; às vezes da base ou razão pela qual o efeito ou a ação da causa eficiente é assim e não de outra maneira. Dizer que os motivos são as causas ocasionais da volição Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 395 é coerente com qualquer teoria de atividade, seja de necessidade ou de indiferença; dizer que são causas eficientes é transferir a eficiência do agente aos motivos; mas dizer que são a base ou razão pela qual as volições são o que são é só dizer que cada ser racional, em cada ação voluntária, tem que ter uma razão, boa ou não, para agir como o faz. A maior parte dos argumentos contra a declaração de que os motivos são a causa das volições se baseiam na pressuposição de que são enunciadas como causas produtoras, e que se quer negar que o agente seja a causa eficiente de suas próprias ações, enquanto que o significado é simplesmente que os motivos são as razões que determinam que o agente afirme sua eficiência de uma maneira em lugar de em outra. Entretanto, trata-se verdadeiramente de causas, até onde determinam que o efeito seja assim, e não de outra maneira. O amor materno pode induzir uma mãe a vigiar uma criança doente, e é neste sentido a causa de sua dedicação, mas ela não nada menos que a causa eficiente de todos os seus atos de ternura. Diz Reid: «Ou o homem é a causa da ação, e então é uma ação livre, e se lhe imputa de maneira justa, ou tem que ter outra causa, e não se lhe pode imputar com justiça ao homem.» 262 Isto supõe que a palavra causa tem só um sentido. No caso recém-suposto, a mãe é a causa eficiente, e seu amor a causa racional ou razão de suas ações. É acaso uma negação do livre-arbítrio dizer que seu amor determinou sua vontade em favor da atenção em lugar de em favor da negligência? Liberdade. Quarto: Não é pouca a ambiguidade que surge de confundir a liberdade da vontade com a liberdade do agente. Estas formas de expressão se empregam frequentemente como equivalentes. Talvez seja o mesmo o que se designa ao dizer: «A vontade é livre», e «o agente é livre». Se admite que o mesmo conceito pode ser expresso de maneira apropriada com estas frases. Ao falar de liberdade de consciência, 262 Active Powers, Essay iv. ch. ix.; Works, Edinburgh, 1849, p. 625. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 396 quando queremos dizer que o homem é livre quanto a sua consciência, do mesmo modo falamos da liberdade da vontade, ou livre-arbítrio, quando tudo o que significamos é que o homem é livre ao querer algo. Mas o uso que faz sinônimas estas expressões é suscetível às seguintes objeções: (1) Atribuir liberdade à vontade pode levar a conceber a vontade como separada do agente; como um poder distinto, autônomo, na alma. Ou, se for evitado este extremo, o que nem sempre sucede, a vontade é contemplada como muito separada das outras faculdades da alma, e como fora de sintonia com ela em seus vários estados. A vontade é só a alma querendo. A alma, naturalmente, é uma unidade. Uma autodeterminação é uma determinação da vontade, e tudo o que leve a uma decisão própria conduz a uma decisão da vontade. (2) Uma segunda objeção contra confundir estas expressões é que não são realmente equivalentes. O homem pode ser que seja livre, quando sua vontade está cativa. É um fato correto e estabelecido da linguagem, expressando uma realidade da consciência, o falar de uma vontade escravizada num agente livre. Não se trata de uma mera metáfora, mas de uma verdade filosófica. Aquele que comete pecado, é escravo do pecado. Alguns hábitos mentais ou corporais longamente continuados podem levar a vontade a uma escravidão, enquanto que o homem segue sendo um agente livre. Um homem que durante anos tenha sido um pão-duro tem sua vontade em estado de escravidão, e entretanto o homem é perfeitamente livre. Está autocontrolado, autodeterminado. Sua avareza é ele mesmo. É seu próprio amado e abrigado sentimento. (3) De nada serve ter duas expressões para o mesmo, a primeira apropriada, e a segunda ambígua. O que realmente significamos é que o agente é livre. Este é o único ponto ao que se lhe presta interesse algum. O homem é o sujeito responsável. Se é livre para ser justamente responsável por seu caráter e conduta, pouco importa quais sejam as leis que determinam as operações de sua razão, consciência ou vontade; ou se a liberdade pode pregar-se daquelas faculdades consideradas separadamente. Mantemos que o homem é livre; mas negamos que a vontade seja livre no sentido de ser Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 397 independente da razão, da consciência e dos sentimentos. Em outras palavras, um homem não pode ser independente de si mesmo nem nenhuma de suas faculdades independentes de todo o resto. Liberdade e capacidade. Quinto: Outra fonte frutífera de confusão a respeito desta questão é a de confundir a liberdade com a capacidade. O uso que liga o mesmo significado a estes termos é muito antigo. Agostinho negou o livrearbítrio do homem desde a Queda. Pelágio afirmou o livre-arbítrio como essencial à nossa natureza. O primeiro tinha simplesmente a intenção de negar a capacidade do homem caído de voltar-se por si mesmo a Deus. O último definia a liberdade como a capacidade em qualquer momento de determinar-se a si mesmo para o bem ou para o mal. A controvérsia entre Lutero e Erasmo foi realmente a respeito da capacidade, embora nominalmente foi a respeito do livre-arbítrio. O livro de Lutero se intitula De Servo Arbitrio, e o de Erasmo, De Libero Arbitrio. Este uso impregna todos os símbolos da Reforma, e foi seguido pelos teólogos do século dezesseis. Todos atribuem livre-arbítrio ao homem no verdadeiro sentido das palavras, mas lhe negam liberdade de vontade. E esta confusão continua sendo mantida em grande parte. Muitas das definições dominantes da liberdade são definições de capacidade; e muito do que se propõe usualmente para demonstrar a liberdade da vontade tem realmente o desígnio de sustentar e só tem força para sustentar a doutrina da capacidade. Jacobi define a liberdade como o poder de decidir-se em favor dos ditados da razão em oposição às solicitações dos sentidos. Bretschneider diz que é a capacidade de decidir-se segundo a razão. Agostinho e muitos dos Agostinianos depois dele, distinguiram: (1) A liberdade do homem, antes da Queda, que era uma capacidade de pecar ou não pecar. (2) O estado do homem depois da Queda, quando tem a liberdade de pecar, mas não para o bem. (3) O estado do homem no céu quando terá liberdade para o bem, mas não para o mal. Esta última é a mais elevada forma de liberdade, a felix necessitas boni. Esta é a Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 398 liberdade que pertence a Deus. Na mente popular talvez a ideia comum da liberdade é a capacidade de decidir-se entre o bem e o mal, pelo pecado ou a santidade. Esta ideia impregna mais ou menos todas as disquisições em favor da liberdade da indiferença, ou do poder para o contrário. A essência da liberdade num ser moral responsável, segundo Reid, é a capacidade de fazer aquilo do que é responsável. Assim Cousin, Jouffroy, Tappan, e toda esta classe de escritores, identificam a liberdade com a capacidade. Este último autor, ao falar da distinção entre a incapacidade natural e a moral, diz: «Quando negamos a liberdade ao negar um poder de autodeterminação, estas definições, em ordem de conseguir uma quase liberdade e capacidade, não são nada mais que engenhosas insensatezes e plausíveis enganos.» 263 Aqui a liberdade e a capacidade se empregam explicitamente como termos sinônimos. Outros escritores que não ignoram a distinção entre liberdade e capacidade, distinguem-nas, entretanto, só como diferentes formas de liberdade. Este é o caso com muitos dos autores alemães. Pode-se dar o exemplo do Müller, que distingue a Formale Freiheit [liberdade formal], ou capacidade, da Reale Freiheit [liberdade real], ou liberdade tal como existe na realidade. A primeira é só necessária como condição da segunda. Isto é, ele admite que se as ações de um homem são certamente determinadas por seu caráter, é realmente livre. Mas a fim de fazê-lo justamente responsável por seu caráter, este tem que ser adquirido por ele mesmo. 264 Com isto se confundem coisas que não só são distintas, mas também são claramente distintas. Esta classe de escritores admite, como certamente o admite todo mundo cristão, que desde a Queda os homens não têm poder para fazer-se santos a si mesmos; muito menos levar a cabo esta transformação mediante uma volição. admite-se que os santos 263 Review of Edwards, edit. New York, 1839, pp. 164, 165. «Frei ist ein Wessen inwiefern die innere Mine seines Lebens aus der heraus es wirkt und thätig ist, durch Selbstbestimmung bedingt ist.» Lehre von der Sünde, vol. II. pág. 72. En otra parte define la libertad como siendo la capacidad de autodesarrollo. «Freiheit ist Macht aus sich zu werden», p. 62. 264 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 399 em glória ficam infalivelmente determinados por seu caráter à santidade, mas se admite que os homens caídos e os santos são livres. A capacidade pode haver-se perdido, mas permanecer a libertado A primeira fica perdida desde a Queda. Uma vez é restaurada pela graça, como dizem eles, deve perder-se de novo naquela liberdade para o bem que é idêntica com a necessidade. Se a liberdade e a capacidade são assim distintas, por que teriam que confundir-se? Estamos conscientes de nosso libertado Sabemos que somos livres em todas nossas volições. Elas nos revelam no mais íntimo de nossa consciência como atos de autodeterminação. Não podemos as rejeitar nem escapar a nossa responsabilidade a respeito delas, embora o tentemos. E ninguém, entretanto, está consciente de uma capacidade para mudar seu próprio coração. O livre-arbítrio pertence a Deus, aos anjos, aos santos glorificados, aos homens caídos, e a Satanás; e é o mesmo em todos. E entretanto Deus não pode, no sentido mais estrito da palavra, fazer o mal; nem tampouco pode Satanás, por uma volição, recuperar sua herança perdida de santidade. É um grande mal confundir assim coisas tão essencialmente distintas, que produz uma confusão sem fim. Agostinho diz que o homem não é livre desde a Queda, porque não pode mas sim pecar; os santos são livres porque não podem pecar. No primeiro caso, a incapacidade destrói a liberdade; e no segundo constitui a perfeição da liberdade! A necessidade é o precisamente contrário à liberdade, e entretanto diz-se que ambas as coisas são idênticas. Um homem, ao afirmar o livre-arbítrio, tem a intenção de afirmar a livre ação, enquanto que nega a capacidade; outro significa por isso uma plena capacidade. Certamente, é importante não empregar as mesmas palavras para expressar ideias contrárias. Entretanto, a confusão de pensamento e de linguagem não é o principal mal que surge de tornar idênticas a liberdade e a capacidade. Necessariamente nos leva a um conflito com a verdade, e com os juízos morais dos homens. Há três verdades das quais cada homem está convencido pela própria constituição de sua natureza. (1) Que é um agente livre. (2) Que ninguém senão os agentes livres são responsáveis Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 400 por seu caráter e conduta. (3) Que não possui a capacidade para mudar seu estado moral mediante um ato da vontade. Agora, se para expressar o fato de sua incapacidade dizemos que não é um agente livre, contradizemos sua consciência; ou, se ele crê o que lhe dizemos, destruímos seu sentido de responsabilidade. Ou, se lhe dizemos que porquanto é um agente livre tem poder para mudar seu coração à vontade de novo entramos em conflito com suas convicções. Ele sabe que é um agente livre, e entretanto sabe que não tem capacidade para se fazer santo a si mesmo. O livre-arbítrio é o poder de decidir segundo nosso caráter; a capacidade é o poder para mudar nosso caráter mediante uma volição. Do primeiro tanto a Bíblia como a consciência afirmam que pertence ao homem em cada condição de seu ser; do último, tanto a Bíblia como a consciência afirmam do mesmo modo explicitamente que não pertencem ao homem caído. Por isso, não deveria haver confusão entre ambas as coisas. Autodeterminação e autodeterminação da vontade Sexto: Outra fonte de confusão é não discriminar entre a autodeterminação e a autodeterminação da vontade. Os que empregam esta última expressão dizem que têm a intenção de negar que a vontade esteja determinada por um estado anterior da mente, e afirmar que tem um poder autodeterminante, independente de qualquer coisa preexistente ou coexistente. Eles dizem que os que ensinam que quando o estado da mente é o mesmo, a volição será inevitavelmente a mesma, ensinam por isso necessidade e fatalismo, reduzindo a vontade a uma máquina. «Não conheço», diz Reid, «nada que se possa desejar mais para estabelecer o fatalismo por todo o universo. Quando se demonstrar que, em toda a natureza, as mesmas circunstâncias levam invariavelmente às mesmas consequências, se deverá abandonar a doutrina da liberdade.» 265 265 Valerá a pena observar, de passagem, quão uniformemente os escritores da escola a que pertence Reid identificam a certeza com a necessidade, enquanto arguam com um oponente. Na passagem citada acima não é porque a vontade fique determinada pela necessidade, nem por uma causa fora da Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 401 A doutrina oposta é que a vontade é «automovida; faz seu nisus dela mesma, e dela mesma suporta fazê-lo, e tem capacidade, dentro da esfera de sua atividade, e com relação a seus objetos, para selecionar, por uma ação meramente arbitrária, qualquer objeto determinado. É uma causa cujos atos todos, assim como qualquer ato em particular, considerados como fenômenos que demandam uma causa, ficam explicados por ela mesma». 266 Assim, se se pergunta por que a vontade decide de uma forma e não de outra, deve-se buscar a razão em sua capacidade de autodeterminação. Pode, mediante um ato arbitrário, escolher ou não escolher, escolher de uma forma ou de outra, sem um motivo ou com ele, por ou contra quaisquer ou todas as influências que incidam sobre ela. Mas quando estes escritores passam a provar sua postura, resulta que não era isto absolutamente o que significavam. Não é o poder autodeterminante da vontade o que eles defendem, mas o poder autodeterminante do agente. Diz Reid que tudo o que é envolvido no livre-arbítrio é que o homem é um agente, autor de suas próprias ações, ou que somos «causas eficazes em nossas ações deliberadas e voluntárias». 267 «Dizer que o homem é um agente livre não é mais que dizer que, em alguns casos, é verdadeiramente um agente e uma causa, e que não se exerce ação sobre ele meramente como sobre um instrumento passivo.» 268 O doutor Samuel Clarke, em sua controvérsia com Leibnitz, diz: «A capacidade de automovimento, ou ação, que, em todos os agentes animados, é espontaneidade, é, nos agentes morais ou racionais, o que chamamos propriamente liberdade.» Novamente, diz: «a verdadeira definição de liberdade é a capacidade de agir». Agora, porquanto todos os proponentes da doutrina da certeza moral admitem a autodeterminação do agente, e negam a capacidade autodeterminante da mente, mas simplesmente que se moteja de fatalismo a que as mesmas decisões tenham lugar «invariavelmente» nas mesmas circunstâncias. 266 Tappan’s Review of Edwards, edit. New York, 1839, p. 223. 267 Active Powers, Essay v. ch. 2; Works, Edinburgh, 1849, p. 603. 268 Active Powers, Essay iv. ch. 3; Works, p. 607. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 402 vontade, tem que seguir a maior das confusões pela confusão destas duas coisas; e, além disso, dá-lhe então uma vantagem indevida à doutrina da capacidade autodeterminante da vontade, mediante argumentos que demonstram só autodeterminação, o que todo homem admite. Por outro lado, cria-se um injusto preconceito contra a verdade ao enunciá-la como negadora da capacidade de autodeterminação, quando a única coisa que nega é a capacidade autodeterminante da vontade. Assim, apresenta-se o Presidente Edwards como negando repetidamente que as volições sejam autodeterminações, ou que a mente seja a causa eficiente de suas próprias ações, ou que o homem seja um agente, porque escreveu contra o poder autodeterminante da vontade, tal como o ensinaram Clarke e Whitby. Estas duas coisas não deveriam ser confundidas, porque são verdadeiramente distintas. Quando dizemos que um agente é autodeterminado, dizemos duas coisas: (1) Que ele é o autor ou causa eficiente de sua própria ação. (2) Que as bases ou razões para sua determinação estão dentro dele mesmo. Está determinado pelo que o constitui naquele momento num indivíduo particular, por seus sentimentos, princípios, caráter e disposições, e não por alguma influência ab extra, ou coercitiva. Mas quando dizemos que a vontade é autodeterminada, separamo-la dos outros elementos constitutivos do homem, como um poder independente, e, por um lado, negamos que seja determinada por algo no homem; por outro, afirmamos que se determina a si mesma por um poder inerente, que se move por seus próprios meios, arbitrário. Neste caso, a volição deixa de ser uma decisão do agente, porque pode ser contrária a todo o caráter, princípios, inclinações, sentimentos e convicções do agente, ou qualquer outra coisa que o constitua no que ele é. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II § 3. A certeza é consistente com a liberdade. 403 Embora a doutrina da necessidade seja subversiva do fundamento de toda moralidade e religião, o que agora ocupa nossa atenção é a doutrina da contingência. Desejamos simplesmente enunciar a questão como entre certeza e incerteza. A doutrina da necessidade, no sentido próprio da palavra, é anticristã; mas o mundo cristão está dividido, e sempre o esteve, entre os proponentes e os oponentes da doutrina da contingência. Todos os Agostinianos mantêm que um ato livre pode ser inevitavelmente certo quanto a seu acontecimento. Todos os antiagostinianos, sejam Pelagianos, ou Semipelagianos, ou Arminianos, e a maioria dos filósofos morais e metafísicos adotam a posição contrária. Ensinam que como a vontade tem um poder autodeterminante, pode decidir-se contra todos os motivos, internos ou externos, contra todas as influências, divinas ou humanas, de maneira que suas decisões não podem resultar inevitáveis sem a destruição de sua liberdade. A mesma essência da liberdade, dizem eles, é o poder para o contrário. Em outras palavras, um ato livre é aquele executado com a consciência de que sob circunstâncias exatamente idênticas, isto é, tanto no mesmo estado interno como externo da mente, poderia ter havido a decisão oposta. Segundo a primeira doutrina, a vontade está determinada; segundo a outra, determina-se a si mesma. No primeiro caso, nossos atos são ou podem ser inevitavelmente certos, e entretanto livres. No segundo, para que sejam livres devem ser incertos. Já demonstramos que esta é uma apresentação correta da questão; que os proponentes da necessidade moral significam pela mesma certeza; que os proponentes da contingência significam pela mesma incerteza. Admitimos que o uso da palavra necessidade, inclusive quando qualificada, dizendo negativamente que não é «absoluta, física nem mecânica», mas que é meramente filosófica ou moral, é infeliz e inapropriada. E se algum oponente de Agostinho ou de Edwards diz que tudo o que nega é uma necessidade absoluta ou física, e que não tem objeções à doutrina da Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 404 certeza, então a diferença entre ele e Edwards é meramente semântica. Mas a verdadeira controvérsia jaz mais profundamente. Não é a palavra a que sofre oposição, mas o próprio conceito. Há uma verdadeira diferença quanto à natureza do livre-arbítrio, e esta diferença se concentra neste ponto concreto: Podem os atos dos agentes livres resultar inevitavelmente certos, sem com isso destruir a liberdade dos mesmos? Pontos de concordância. Será bom, antes de prosseguir, enunciar aqueles pontos nos quais concordam as partes desta controvérsia. 1. Concordam em que o homem é um agente livre, em tal sentido que é responsável por seu caráter e por suas ações. A disputa não é a respeito da realidade do livre-arbítrio, mas a respeito de sua natureza. Se alguém nega que os homens são agentes morais responsáveis, pertence então à escola da necessidade, e não é interlocutor na discussão que agora se considera. 2. Está-se de acordo quanto à natureza do livre-arbítrio, que supõe tanto razão como poder ativo. A mera espontaneidade não constitui o livre-arbítrio, porque se acha nos brutos, nos idiotas e nos maníacos. Não há controvérsia quanto ao que se significa em razão como um dos elementos do livre-arbítrio; e pelo que respeita ao poder ativo, que é seu segundo elemento, concorda-se que significa ou inclui a eficiência. Em outras palavras, concorda-se em que um agente livre é a causa eficiente de suas próprias ações. 3. Admite-se, por ambos os lados, que em todos os casos importantes, os homens agem influenciados por motivações. Reid, certamente, tenta mostrar que em muitos casos a vontade decide sem motivo algum. Quando não há base para uma preferência, diz ele que este deve ser o caso, como no caso em que um homem decide qual moeda de cinquenta xelins vai dar. Admite, entretanto, que estas decisões arbitrárias têm que ver só com coisas irrelevantes. Outros da Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 405 mesma escola reconhecem que nunca se chega a uma volição racional, exceto sob a influência de motivos. 4. Concorda-se além em que a vontade não está determinada com certeza por motivos externos. Todos os Agostinianos negam que o estado interno da mente que determina a vontade seja mesmo determinado certa ou necessariamente por nada externo à própria mente. 5. Também se pode assumir que as partes concordam em que a palavra vontade deva ser tomada em seu sentido próprio, restringido. Não se trata se os homens têm poder sobre seus próprios afetos, sobre o que lhes agrada ou desagrada. Ninguém leva a capacidade da vontade tão longe para dizer que podemos, mediante uma volição, mudar nossos sentimentos. O que tratamos só trata de nossas volições. É a base ou razão dos atos de autodeterminação o que está sob discussão. E, por isso, o que temos à vista é a vontade considerada como a faculdade da autodeterminação, e não como a sede dos afetos. A pergunta de por que um homem é levado a amar a Deus, ou a Cristo, ou a seus semelhantes, ou a verdade e a bondade; e outro levado a amar o mundo, o pecado, é muito diferente da pergunta do que é que o determina a efetuar este ou aquele ato em particular. A vontade é aquela faculdade mediante a qual decidimos fazer algo que consideramos que está em nosso poder fazer. A questão quanto a se alguém tem capacidade para mudar seu próprio caráter em qualquer momento, ou dar-se a si mesmo o que na linguagem da Escritura é um novo coração, tem que ver com a magnitude de sua capacidade. Isto é, trata-se de uma questão que concerne à capacidade ou incapacidade do pecador: e é uma questão de suma importância; mas não devesse ser confundida com a questão do livre-arbítrio, que é o que estamos agora considerando. Assim, tudo o que estamos considerando é se, quando alguém decide fazer algo, sua vontade está determinada pelo estado prévio de sua mente; ou se, com precisamente as mesmas posturas e sentimentos, suas decisões podem ser num sentido determinado num momento, e em Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 406 outro em outro momento distinto. Isto é, se a vontade, ou antes dito, se o agente deve ser indeterminável para poder ser livre. O argumento de que a certeza é idônea para todos os agentes livres É certamente um forte argumento em favor da perspectiva do livrearbítrio que o faz consequente com a certeza, ou que supõe que um agente pode estar determinado com certeza inevitável quanto a suas ações enquanto que estas suas ações permanecem sendo livres, o fato de que concorde com todas as classes ou condições dos agentes livres. Negar a Deus o livre-arbítrio seria negar-Lhe a personalidade, e reduzi-lo a um mero poder ou princípio. E entretanto, há algo no universo que seja mais seguro que o fato de que Deus agirá com retidão? Mas se se diz que as condições de existência num ser infinito são tão diferentes do que são nas criaturas que não é justo arguir de um ao outro, podemos referir-nos ao caso de nosso bendito Senhor. Ele tinha um verdadeiro corpo e uma alma racional. Ele tinha uma vontade humana; uma mente regrada pelas mesmas leis que as que determinam as ações intelectuais e voluntárias do comum dos homens. Entretanto, em Seu caso, embora tivesse podido existir a possibilidade metafísica de mal (embora inclusive esta seja uma hipótese lastimosa), contudo era mais seguro que Ele estivesse sem pecado que o sol e a lua permanecessem. Nenhuma lei física poderia ser mais confiável quanto à produção de seus efeitos que aquele que Sua vontade se decidisse sempre pelo reto. Mas se se objetasse que inclusive neste caso que a união das naturezas divina e humana na pessoa de nosso Senhor O coloca numa categoria diferente da nossa, fazendo injusto supor que o que era certo em Seu caso deve ser certo no nosso, embora não admitamos a força desta objeção, podemos referir-nos à condição dos santos no céu. Eles, sem lugar a dúvida, seguem sendo agentes livres; e entretanto suas ações são, e serão eternamente, determinadas com uma certeza absoluta e inevitável rumo ao bem. Portanto, a certeza deve ser consequente com o livre-arbítrio. O que pode dizer um cristão Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 407 em face disso? Negará acaso que os santos em glória são livres, ou negará acaso a total certeza de sua perseverança em santidade? Ficaria com isso exaltado seu conceito da bem-aventurança do céu? Ou elevaria com isso suas ideias da dignidade dos redimidos para crer que seja inseguro se cairão em pecado ou permanecerão santos? Entretanto, podemos descer ao estado atual de nossa existência. Sem assumir nada quanto à corrupção de nossa natureza, nem dar assumir nada que Pelágio pudesse negar, é um fato certo que todos os homens pecam. Nunca existiu um mero homem na face da terra que não pecasse. Quando contemplamos um recém-nascido, sabemos que, por incerto que seja seu futuro, é absoluta e inevitavelmente certo que, se viver, pecará. Por isso, seja qual for o aspecto em que contemplemos o livre-arbítrio, seja em Deus, na natureza humana de Cristo, nos redimidos no céu, ou no homem aqui na terra, observamos que é compatível com a absoluta certeza. Argumentos derivados da Escritura. Um segundo argumento a respeito desta questão se deriva daquelas doutrinas da Escritura que supõem necessariamente que as ações livres podem ser certas quanto ao seu acontecimento. 1. A primeira e mais evidente destas doutrinas é o conhecimento antecipado de Deus. Seja qual for a explicação metafísica que se dê a este atributo; por muito que ignoremos a distinção entre conhecimento e conhecimento antecipado, ou por muito que disputemos que porquanto Deus habita a eternidade, e não está absolutamente submetido às limitações do tempo, e que para Ele nada é sucessivo, segue-se entretanto persistindo o fato de que nós habitamos no tempo, e que para nós há um futuro, assim como um presente. Persiste, por isso, o fato de que as ações humanas são conhecidas antes de que aconteçam no tempo, e que, por isso mesmo, são conhecidas antecipadamente. Mas se são conhecidas como futuras então devem ser certas; não porque o conhecimento antecipado faça com que seu acontecimento seja certo, Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 408 mas sim porque o supõe certo. É uma contradição de termos dizer que um acontecimento incerto pode ser conhecido antecipadamente como certo. Negar a Deus o conhecimento antecipado das coisas, dizer que as ações livres, porquanto são necessariamente incertas quanto ao seu acontecimento, não são objetos da presciência, do conhecimento antecipado de Deus, como tampouco os sons são o objeto da vista, nem as verdades matemáticas objetos dos afetos, é destruir o próprio conceito de Deus. O futuro deve ser tão ignoto a Ele como a nós, e Ele tem que estar recebendo em cada instante enormes quantidades de conhecimento. Ele não pode ser um Ser eterno, impregnando toda duração com uma existência simultânea, e muito menos um Ser onisciente, para quem não há nada novo. Portanto, é impossível crer em Deus tal como é revelado na Bíblia, a não ser que creiamos que Ele conhece todas as coisas desde o princípio. Mas se todas as coisas são conhecidas, todas as coisas, sejam fortuitas ou livres, são certas; consequentemente, a certeza deve ser consistente com a liberdade. Não estamos mais seguros de nossa existência de que o estamos de nosso livre-arbítrio. Dizer que isto é um engano é negar a veracidade de nossa consciência, o que não apenas envolve necessariamente a negação da veracidade de Deus, mas também subverte deste modo a base de todo conhecimento, e nos afunda num cepticismo absoluto. Do mesmo modo poderíamos dizer que nossa existência é um engano como qualquer outro fato da consciência seja um engano. Não temos mais nem melhor evidência para um que para o outro. Os homens podem especular tanto como quiserem, mas devem crer e agir com base nas leis impostas sobre nossa natureza por nosso Criador. Portanto, temos que crer em nossa existência e em nosso livrearbítrio; e por uma necessidade dificilmente menos imperativa temos que crer que todas as coisas são conhecidas por Deus desde a eternidade, e que se são conhecidas antecipadamente, e seu acontecimento é certo, não podemos negar que a certeza é consequente com o livre-arbítrio sem envolver-nos em contradições palpáveis. Este argumento é tão concludente que a maioria dos proponentes teístas da doutrina da Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 409 contingência, quando passam a tratar isso, abandonam a questão, e reconhecem que uma ação pode ser certa quanto à sua ocorrência, e entretanto livre. Contentam-se por agora em negar que seja necessária, embora possa ser certa. Mas esquecem que por «necessidade moral» não se significa nada mais que certeza, e que é precisamente a certeza o que, em outras ocasiões, eles apresentam como oposto à liberdade. Se desde toda a eternidade está determinado como agirá cada homem; se dos mesmos antecedentes seguirem inevitavelmente as mesmas consequências; se os atos dos homens são inevitáveis, isto é designado como fatalismo. Entretanto, se for realmente verdade que os proponentes da indiferença, da capacidade autodeterminante da vontade, do poder para a eleição contrária, ou de qualquer outro nome que se lhe aplique à teoria da contingência, não têm realmente intenção de opor-se à doutrina da certeza, mas estão simplesmente combatendo o fatalismo ou a necessidade física, então a controvérsia desaparece. Que mais poderiam pedir Leibnitz ou Edwards que o que admite Reid na seguinte passagem?: «Deve-se admitir que assim como tudo o que foi, certamente foi, e que tudo o que é, certamente é, da mesma maneira o que será, certamente será. Estas são proposições idênticas, e não podem ser postas em dúvida pelos que as concebam distintamente. Mas não sei de nenhuma norma de raciocínio pelo qual se possa inferir que devido ao fato de que um acontecimento vá ser com certeza, que por isso sua produção tenha que ser necessária. O modo de sua produção, seja livre ou necessário, não pode ser deduzido com base no tempo de sua produção, seja passado, presente ou futuro. O fato de que será não implica mais que será necessariamente que o fato de que será livremente produzido; porque nem o presente, nem o passado nem o futuro, têm nenhuma conexão maior com a necessidade que a que têm com a liberdade. Concedo, portanto, que do fato de que os acontecimentos sejam previstos pode-se concluir com justiça que são certamente futuros; mas do fato de que sejam certamente futuros não se segue que sejam Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 410 269 necessários.» Porquanto todas as coisas estão previstas, todas as coisas são inevitáveis quanto à sua ocorrência. Isto é conceder tudo o que deve demandar todo Agostiniano. 2. Outra doutrina sustentada por uma grande parte do mundo cristão em todas as eras e que necessariamente exclui a doutrina da contingência é a da preordenação de acontecimentos futuros. Os que creem que Deus ordena previamente tudo o que deve ocorrer devem crer que o acontecimento de todos os acontecimentos está determinado com uma certeza inalterável. Não é nosso propósito demonstrar nenhuma destas doutrinas, mas simplesmente arguir com base nas mesmas como verdadeiras. Além disso, pode-se remarcar que não há dificuldade na doutrina da preordenação que não esteja incluída na da presciência. O último supõe a certeza das ações livres, e o primeiro assegura sua certeza. Se o fato de que sejam certos é consequente com a liberdade, que sejam atos certos não pode ser incompatível com a mesma. Tudo o que faz a preordenação é assegurar que ocorram certas ações livres. Toda a dificuldade reside em que sejam certos, e isto deve ser admitido por todo teísta consequente. A questão que agora confrontamos é que os que creem que a Bíblia ensina a doutrina da preordenação ficam comprometidos com a conclusão de que um acontecimento pode ser livre e, entretanto, seguro e por isso que a teoria da contingência que supõe que uma ação deve ser incerta para ser livre é antiescriturística e falsa. 3. A doutrina da divina providência envolve as mesmas conclusões. Esta doutrina ensina que Deus governa a todas suas criaturas e todas as ações das mesmas. Isto é, que Ele conduz a administração de Seu governo com o fim de levar a cabo Seus propósitos. Aqui nos encontramos outra vez com a mesma dificuldade, e não é mais velho que antes. O prévio conhecimento pressupõe certeza; a preordenação a assegura; e a providência a leva a cabo. O último não faz mais que o que pressupõe o primeiro. Se a certeza for compatível com a liberdade, a 269 Active Powers, Essay iv. ch. 10; Works, edit. Edinburgh, 1849, p. 629. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 411 providência, que só assegura a certeza, não pode ser incompatível com a liberdade. Quem, por qualquer dificuldade metafísica, quem, porque não pode compreender como Deus pode efetivamente governar os agentes livres sem destruir sua natureza, abandonaria a doutrina da providência? Quem desejaria ver cair as rédeas do império universal das mãos da sabedoria e amor infinitos, para que fossem arrebatadas pelo acaso ou a fatalidade? Quem não preferiria ser governado por um Pai que por um tornado? Se Deus não pode governar eficazmente as ações dos agentes livres, não pode haver profecia, nem oração, nem ação de graças, nem promessas, nem segurança da salvação, nem certeza se no final Deus triunfará ou Satanás, se a consumação será o céu ou o inferno. Dá-nos certeza a segura convicção de que não pode cair o pardal, nem um pecador mover um dedo, senão segundo Deus o permite e ordena. Temos que ter o governo de Deus ou de Satanás. E se Deus tem uma providência, Ele deve ter a incapacidade de fazer certos os atos de Suas criaturas; e por isso a incerteza deve ser consistente com a liberdade. Acaso não era coisa certa que Cristo devia ser, segundo as Escrituras, crucificado por mãos de ímpios, e morto? E não foram, entretanto, livres os Seus inimigos em tudo o que fizeram? Lembremos que em todas estas doutrinas da providência, da preordenação e da presciência, não se assume nada além do que Reid, um dos mais capazes oponentes de Leibnitz e Edwards, admite bem disposto. Ele admite a presciência dos acontecimentos futuros; admite também que a presciência supõe certeza, e isto é tudo o que a preordenação ou a providência asseguram. Se uma ação pode ser livre, embora conhecida antecipadamente de maneira certa, pode ser livre embora seja preordenada e assegurada mediante o grande plano da providência. 4. Todo mundo cristão crê que Deus pode converter os homens. Creem que Ele pode eficazmente levá-los ao arrependimento e à fé; e que Ele pode assegurá-los no céu para que jamais caiam em pecado. Isto é, eles creem que Ele pode fazer as ações livres deles totalmente certas. Quando dizemos que esta é a fé de todo o mundo cristão, não queremos Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 412 dizer que nenhum cristão individual ou teólogo cristão não haja jamais negado esta doutrina da graça; mas queremos dizer por isso que a doutrina, até onde a enunciamos, está incluída nas confissões de todas as grandes igrejas históricas da Cristandade em todas as idades. Constitui tanto uma parte da fé estabelecida dos cristãos como a divindade de nosso Redentor. Sendo este o caso, a doutrina de que a contingência é necessária para a liberdade não pode ser conciliada com a doutrina cristã. Certamente, foi extensamente sustentada por cristãos; mas nosso objetivo é mostrar que entra em conflito com doutrinas que eles mesmos, como cristãos, devem admitir. Se Deus pode cumprir Sua promessa de dar aos homens um novo coração; se pode trasladá-los do reino das trevas ao reino de Seu amado Filho; se pode dar-lhes arrependimento para vida; se não é impróprio orar a Ele para que os preserve de cair e para que lhes dê a segura posse da vida eterna, então Ele pode controlar suas ações livres. Ele pode, por Sua graça e sem violar a liberdade deles, fazer absolutamente certo que se arrependerão e crerão, e que perseverarão na santidade. Se estas coisas são assim, então é evidente que qualquer teoria que faça da contingência ou incerteza de um elemento vital da liberdade deve ser irreconciliável com algumas das mais claras e mais preciosas doutrinas das Escrituras. O argumento baseado na consciência. Um terceiro argumento a respeito desta questão se deriva da consciência. Admite-se que todo homem tem consciência da liberdade em seus atos voluntários. Admite-se, ademais, que esta consciência demonstra a realidade do livre-arbítrio. A validez deste argumento que os proponentes do livre-arbítrio enfatizam contra a doutrina da necessidade em quaisquer daquelas formas que envolvam uma negação desta realidade da consciência a admitimos plenamente. A doutrina a que se opõem Reid e Stewart, assim como muitos escritores continentais, era realmente uma doutrina que negava ao mesmo tempo a liberdade e a responsabilidade do homem. Esta não é a doutrina Agostiniana nem Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 413 Edwardiana, embora infelizmente ambas são expressas com os mesmos termos. A primeira é a doutrina da necessidade física ou mecânica; a outra, a da certeza. Como entre os proponentes desta última teoria e os defensores da contingência há concordância em que o homem é um agente livre; como ademais há concordância em que está incluído na consciência do livre-arbítrio o fato de que somos causas eficientes e responsáveis por nossas próprias ações, e que temos a capacidade de executar ou não executar qualquer ação voluntária da qual fomos autores. Mas mantemos que não somos menos conscientes de que esta convicção íntima de que tínhamos capacidade de não executar a ação é condicional. Isto é, somos conscientes que a ação teria sido diferente se tivéssemos tido em nossas mentes outras atitudes ou sentimentos, ou se fosse permitido que agissem em sua verdadeira magnitude. Ninguém está consciente de uma capacidade de querer contra sua vontade; isto é, a vontade, no sentido restringido do termo, não pode ir contra a vontade no sentido mais amplo do mesmo. Isto só equivale a dizer que ninguém pode preferir contra sua preferência nem escolher contra sua eleição. Uma volição é uma preferência que resulta numa decisão. Um homem pode ter uma preferência num momento, e outra em outro. Pode ser que tenha vários sentimentos em conflito ou princípios em ação ao mesmo tempo; mas não pode ter uma coexistência de preferências opostas. O que nos ensina a consciência a respeito desta questão parece ser simplesmente o que segue: que em cada ação voluntária tivemos alguma razão para agir como o fizemos; que na ausência daquela razão, ou na presença das outras, que outros podem pensar que deveriam ter estado presentes, tivéssemos tido que agir ou podido agir de maneira distinta. Sob as razões para uma ação inclui-se tudo o que se significa com o termo motivos, no sentido subjetivo do termo, isto é, princípios, intenções, sentimentos, etc. Não podemos conceber que alguém possa estar consciente de que, com seus princípios, sentimentos e inclinações em sentido determinado, sua vontade possa ir em direção contrária. Um homem cheio do temor de Deus, ou com o amor de Cristo, não pode Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 414 querer blasfemar de seu Deus ou Salvador. Aquele temor ou amor constituem para aquele tempo o homem. É um homem que existe naquele estado, e se seus atos não expressam aquele estado, não são seus. Argumentos com base no caráter moral das volições. Isto sugere um quarto argumento a respeito desta questão. A não ser que a vontade fique determinada pelo anterior estado da mente, em oposição a ficar autodeterminada, não pode haver moralidade em nossas ações. Um homem é responsável por suas ações externas porque são decididas por sua vontade; é responsável por seus volições, porque estas ficam determinadas por seus princípios e sentimentos; é responsável por seus princípios e sentimentos pela inerente natureza dos mesmos como bons ou maus, e porque são seus próprios, constituindo seu caráter. Se o ato externo é separado da vontade, deixa de ter todo caráter moral. Se eu mato um homem, a não ser que a ação fosse intencional, isto é, o ato resultado de uma volição de matar ou danificar, não há moralidade na ação. Se eu queria dar-lhe morte, então o caráter do ato depende dos motivos que determinaram a volição. Se estes motivos eram um respeito pela vontade de Deus, ou as demandas da justiça expressas legalmente, a volição seria correta. Se o motivo era a malícia ou a cobiça, a volição e a ação consequente seriam más. É evidente que se a vontade fosse autodeterminada, independente do anterior estado da mente, não teria mais caráter que o ato exterior separado da volição, – não revela nem expressa nada na mente. Se um homem, quando está cheio de sentimentos piedosos, pode querer as ações mais ímpias; ou, quando está cheio de inimizade contra Deus, pode ter as volições de um santo, então suas volições e ações não têm nada que ver com ele mesmo. Não constituem expressão de seu caráter e não pode ser responsável por elas. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 415 Argumento com base na natureza racional do homem A doutrina de que a vontade é determinada e não autodeterminada está além disso envolta no caráter racional de nossas ações. Uma ação racional não é meramente aquela ação realizada por um ser racional, mas uma ação que foi executada com uma razão, boa ou má. Uma ação efetuada sem razão alguma, sem intenção ou objetivo, para a qual não se possa dar outra razão além da mera capacidade de agir, é tão irracional como as ações de um bruto ou de um idiota. Por isso, se a vontade nunca agir independentemente do entendimento e dos sentimentos, suas volições não são as ações de um ser racional como tampouco o seriam se a razão fosse totalmente anulada. A única verdadeira ideia da liberdade é aquela de um ser que age de acordo com as leis de sua natureza. Contanto que se permita a um animal agir sob o controle de sua própria natureza, determinado em tudo o que faz para o que está dentro dele mesmo, tem toda a liberdade da qual é capaz. Contanto que um homem fique determinado em suas volições e ações por sua própria razão e sentimentos, tem toda a liberdade de que é capaz. Mas se as ações de um animal são separadas de seu estado interior, sua liberdade se desvanece. Fica possuído. E se as ações de um homem não ficam determinadas por sua razão e sentimentos, é uma marionete ou um maníaco. A doutrina de que a vontade age com independência do anterior estado da mente supõe que nossas volições são átomos isolados surgindo do abismo da caprichosa autodeterminação da vontade, procedente de uma fonte fora do controle ou alcance da razão. São puramente casuais, arbitrárias ou caprichosas. Não têm relação com o passado, e não dão promessa a respeito do futuro. Com base nesta hipótese, o caráter não pode existir. Entretanto, é um fato experimental universalmente admitido que existem princípios ou disposições que regem a vontade. Sentimo-nos seguros de que um homem honesto agirá com honestidade, e que um homem benevolente agirá com benevolência. Além disso, temos a certeza de que estes princípios podem ser tão fortes e estar tão fixados que tornem as volições absolutamente certas. «Os seres racionais», diz Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 416 Reid, «agem com os melhores motivos em conformidade com aquela proporção em que sejam sábios e bons; e cada ser racional que aja de maneira diferente abusa de sua liberdade. O ser mais perfeito, em tudo aquilo em que há um bem e um mal, um melhor e um pior, sempre age de maneira invariável com base nos melhores motivos. Isto, certamente, é pouco menos que uma proposição idêntica; porque seria contradição dizer que um ser perfeito pratica o mal e o irrazoável. Mas dizer que não age livremente, porque sempre faz o melhor, é dizer que o uso apropriado da liberdade destrói a liberdade, e que a liberdade consiste só em seu abuso». 270 Isto é, o caráter determina a ação; e dizer que a certeza infalível das ações destrói sua liberdade é fazer com que a liberdade destrua a liberdade». Embora Reid e Stewart escreveram contra Leibnitz e Edwards assim como contra Hobbes e Belsham, as sentenças acima citadas contêm toda a doutrina dos dois e primeiros distinguidos homens, assim como de seus inumeráveis predecessores, associados e seguidores. É a doutrina de que a certeza infalível é consistente com a liberdade. Esta convicção está tão arraigada nas mentes dos homens que agem uniformemente, assim como conscientemente, com base nela. Assumem que as volições dos homens estão determinadas pelos motivos. Dão por sentado que o caráter é algo que existe; e por isso tratam de moldar o caráter daqueles sob sua influência, seguros de que se fizerem boa a árvore, o fruto será bom. Não agem com base no princípio de que as ações dos homens são caprichosas, de que a vontade está autodeterminada, agindo sem ou contra os motivos assim como com eles, de maneira que sempre seja incerta a maneira em que irão decidir se. 270 Active Powers, Essay iv. ch. 4; Works, p. 609. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 417 Argumento com base na doutrina de uma causa suficiente. O axioma de que cada efeito deve ter uma causa, ou a doutrina de uma razão suficiente, aplica-se ao mundo interior assim como ao exterior. Governa toda a esfera de nossa experiência, interior e exterior. Cada volição é um efeito, e por isso deve ter tido uma causa. Tem que existir uma razão suficiente pela que foi assim, e não de outra maneira. Aquela razão não foi o mero poder do agente para agir, porque isto só dá conta para sua ação, não de sua ação de uma maneira e não de outra. A força da gravidade explica que uma pedra caia na terra, mas não que caia aqui em lugar dali. O poder para caminhar explica que um homem caminhe, mas não que se dirija a leste em lugar de a oeste. Entretanto, énos dito, e isso da parte de inclusive os mais distinguidos escritores, que a eficiência do agente é tudo o que é preciso para dar satisfação à demanda instintiva de que consigamos uma razão suficiente, no caso de nossas volições. Reid, como citamos antes, pergunta: «Houve uma causa da ação? Indubitavelmente que sim. Para cada acontecimento tem que haver uma causa que tivesse um poder suficiente para produzi-lo, e que exercesse o poder com este propósito. No caso que nos ocupa, ou o homem foi a causa da ação, e então se tratava de uma ação livre, e lhe é justamente imputada; ou deve ter tido outra causa, e não pode ser imputada com justiça ao homem. Por isso, neste sentido admite--se que houve uma razão suficiente para a ação; mas a questão a respeito da liberdade não fica absolutamente afetada por esta concessão.» 271 Outra vez, ele pergunta: «Por que não se pode definir uma causa eficiente como um ser que tem poder e vontade para produzir o efeito? A produção de um efeito precisa de um poder ativo, e o poder ativo, ao ser uma qualidade, deve estar num ser dotado deste poder. O poder sem vontade não produz efeito algum; mas onde agem ao mesmo tempo, o efeito deve ficar produzido». 272 A anotação do Sir William Hamilton na 271 272 Active Powers, Essay iv. ch. 9; Works, edit. Edinburgh, 1849, p. 625. Ibid. p. 627. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 418 primeira destas passagens é «que para um acontecimento hiperfísico, assim como físico, temos sempre que supor, por uma lei mental necessária, uma razão suficiente de por que é, e é como é». Assim, a eficiência do agente não é uma razão suficiente para que a volição seja como é. É inconcebível que uma causa indeterminável aja de uma forma em lugar de em outra; e se agir assim sem uma razão suficiente, sua ação não pode ser nem racional nem moral. Outro método comum de dar resposta a este argumento é assumir que devido ao fato de que os advogados da certeza dizem que a vontade fica determinada pelos motivos, e por isso que os motivos são a causa de que a volição seja como é, que significam que a eficiência a que se deve a volição reside nos motivos, e não no agente. Assim, Stewart diz: «A questão não é a respeito da influência dos motivos, mas sim a respeito da natureza de tal influência. Os proponentes da necessidade [certeza] descrevem-na como a influência de uma causa ao produzir seu efeito. Os proponentes da liberdade reconhecem que o motivo é a ocasião para a ação, ou a razão para a mesma; mas mantêm que está tão longe de ser a causa eficiente da mesma que supõe que a eficiência reside em outro lugar, isto é, na mente do agente.» 273 Esta exposição já foi suficientemente respondida mais acima. Os motivos não são a causa eficiente da volição; esta eficiência reside no agente; mas o que nós devemos demandar, «por uma lei mental necessária», é uma razão suficiente pela qual o agente exerce sua eficiência de uma maneira e não de outra. Atribuir esta simplesmente à sua eficiência é deixar totalmente sem satisfazer a demanda de uma razão suficiente; em outras palavras, é assumir que possa haver um efeito sem causa; isso é impossível. Portanto, a doutrina do livre-arbítrio, que subjaz à Bíblia, que está envolvida na consciência de cada ser racional, e que é dada por suposta por todos os homens, agindo todos com base na mesma está à mesma 273 Philosophy of the Moral Powers, II. Appendix (§ 4); Works, Hamilton’s edition, Edinburgh, 1855, vol. vi. p. 370. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 419 distância, por um lado, da doutrina da necessidade física ou mecânica, que exclui a possibilidade da liberdade e da responsabilidade; e da doutrina da contingência, por outro lado, que supõe que uma ação, para poder ser livre, deve ser incerta; ou que a vontade se autodetermina, agindo com independência da razão, da consciência dos inclinações e dos sentimentos. Ensina que um homem é um agente livre e responsável, porque ele é o autor de suas próprias ações, e porque não está determinado para agir por nada fora de si mesmo, mas por suas próprias posturas, convicções, inclinações, sentimentos e disposições, de maneira que suas ações são os verdadeiros produtos do homem, e representam ou revelam de maneira real a que ele é. Os mais profundos dos autores modernos admitem que esta é a verdadeira teoria da liberdade; mas alguns deles, como por exemplo Müller, em sua elaborada obra a respeito do «Pecado», mantêm que a fim de que o homem seja feito justamente responsável por suas ações que ficam assim determinados por seu estado ou caráter internos, que este estado tem que ser ele mesmo autoproduzido. Esta doutrina já foi suficientemente tratada ao considerar o pecado original. Entretanto, pode-se observar aqui, para concluir nossa presente discussão, que o princípio suposto é contrário ao juízo comum dos homens. Este juízo é que as disposições e sentimentos que constituem o caráter derivam sua moralidade ou imoralidade por sua natureza, e não por sua origem. A malignidade é um mal, e o amor é um bem, tanto se for concriado como se é inato, ou adquirido ou infundido. Pode ser que seja difícil conciliar a doutrina das disposições más inatas com a justiça e a bondade de Deus, mas esta é uma dificuldade que não pertence a esta questão. Um ser maligno é um ser mau, se está dotado de razão, tanto se foi feito assim como se nasceu assim. E um ser racional benevolente é bom no juízo universal dos homens, tanto se foi assim criado, ou se nasceu assim. Admitimos que é repugnante aos nossos juízos morais o conceito de que Deus fosse criar um ser mau; ou que qualquer ser nasça em estado de pecado, a não ser que o fato de que nasça assim seja a consequência de um justo juízo. Mas isto não tem Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 420 nada que ver com a questão quanto a se as disposições morais não devem seu caráter à sua natureza. O juízo comum dos homens é que sim a devem a ela. Se um homem é realmente humilde, benevolente e santo, assim é considerado, com independência de toda indagação a respeito de como chegou a ser assim. Uma segunda observação a respeito do princípio enunciado mais acima é que não só é oposto ao juízo comum dos homens, mas também é contrário à fé de toda a Igreja Cristã. Confiamos que esta linguagem não será atribuída a um espírito de autoconfiança ou de dogmatismo. Não reconhecemos nenhuma norma mais elevada de fato, à parte da infalível palavra de Deus, que os ensinos do Espírito Santo como se revelam na fé do povo de Deus. Está fora de toda discussão que é a doutrina da Igreja universal que Adão foi criado reto; que seu caráter moral não foi autoadquirido. Não é menos a doutrina da Igreja universal que os homens, desde a Queda, nascem ímpios; e também está incluído na fé de todas as Igrejas Cristãs, que na regeneração os homens são feitos santos, não por sua própria ação, mas por ato de Deus. Em outras palavras, as doutrinas da retidão original, do pecado original, e da regeneração pelo Espírito de Deus, são, e sempre foram, as doutrinas reconhecidas das Igrejas Grega, Latina e Protestante: e se estas doutrinas estão contidas, como creem todas estas Igrejas, na palavra de Deus, então não pode ser certo que o caráter moral, para que possa ser objeto de aprovação ou desaprovação, tenha que ser auto-adquirido. Portanto, o homem pode ser justamente responsável por ações que estão determinadas por seu caráter, seja que este caráter ou estado interior tenha sido herdado, adquirido, ou induzido pela graça de Deus. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 421 PARTE III: SOTERIOLOGIA SOB este cabeçalho se incluem o propósito e plano de Deus com relação à salvação dos homens; a pessoa e a obra do Redentor; e a aplicação desta obra pelo Espírito Santo para a salvação real do povo de Deus. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II CAPÍTULO I 422 O PLANO DA SALVAÇÃO §1. Deus tem este plano. AS Escrituras falam de uma Economia de Redenção; o plano ou propósito de Deus com relação à salvação dos homens. Chamam-no, com referência a sua plena revelação na época do advento, a οἰκονομία τοῦ πληρώματος τῶν καιρῶν - oikonomia tou pleroomatos ton kairon, «A economia da plenitude dos tempos». Declara-se que é o plano de Deus com relação à Sua ação reunir num só corpo harmônico a todos os objetos da redenção, seja no céu ou na terra, em Cristo (Ef 1:10). Também recebe o nome de οἰκονομία τοῦ μυστηρίου - oikonomia tou musterion, o misterioso propósito ou plano que tinha sido escondido durante as idades em Deus, e cuja revelação foi o grande desígnio do Evangelho, e que tinha como intenção dar a conhecer os principados e às potestades, por meio da Igreja, a multiforme sabedoria de Deus (Ef 3:9). Um plano pressupõe: (1) A seleção de algum fim ou objeto concreto a ser realizado. (2) A eleição dos meios apropriados. (3) Pelo menos no caso de Deus, a aplicação efetiva destes meios para alcançar o fim proposto. Porquanto Deus está operando com base em um plano concreto no mundo externo, é justo inferir que o mesmo sucede com referência ao mundo moral e espiritual. Para o olhar de um homem sem instrução, os céus são um caos de estrelas. O astrônomo vê ordem e sistema nesta confusão; todos aqueles resplandecentes e distantes luzeiros têm seus lugares designados e órbitas fixas; estão todos eles dispostos de modo que nenhuma interfere com a outra, mas cada uma é dirigida segundo uma concepção ampla e majestosa. As inumeráveis formas de vida vegetal não são uma massa em confusão, mas para o olhar da ciência se dispõem numa regularidade de classes, ordens, gêneros e espécies, exibindo uma unidade de desígnio que impregna o todo. O zoólogo vê Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 423 nos centenas de milhares de animais que habitam em nosso globo quatro e só quatro formas típicas primitivas, das quais todas as outras são seu desenvolvimento num ordem ascendente, nunca passando um ao outro, mas todos eles apresentando um grande sistema inclusivo desenvolvido em todos os seus detalhes. À cabeça destas inumeráveis formas de vida animal ergue-se o homem, dotado de capacidades que o elevam acima da classe de meros animais, levando-o à comunhão com os anjos e com o próprio Deus. Porquanto nestes departamentos inferiores de Suas obras Deus age com base em um plano preestabelecido, não se deve supor que nas esferas mais elevadas de Suas operações, que tocam o destino do homem, tudo seja deixado ao acaso, permitindo-se que tome seu curso não dirigido para chegar a um fim indeterminável. De acordo com isso encontramos que as Escrituras afirmam expressamente com referência às dispensações da graça não apenas que Deus vê o fim desde o princípio, mas também que Ele opera todas as coisas segundo o conselho de Sua vontade, ou, com base em Seu propósito eterno. A importância do conhecimento deste Plano. Se existe tal plano referente à redenção do homem, é evidentemente da maior importância que seja conhecido e compreendido corretamente. Se ao contemplar uma complicada máquina desconhecemos o fim para o qual foi designada, ou a relação de suas distintas partes, seremos incapazes de compreendê-la ou aplicá-la com utilidade. De maneira semelhante, se ignoramos o grande fim a que se dirige o plano da redenção, ou as relações das diferentes partes do plano, ou se temos uma falsa concepção do fim e daquela relação, todas as nossas ideias serão confusas e errôneas. Seremos incapazes de exibi-lo a outros ou de nos aplicar isso a nós mesmos. Se o fim da redenção assim como o da criação e da providência é a produção da maior quantidade de felicidade, então o cristianismo será uma coisa; se seu fim é a glória de Deus, então o cristianismo será outra coisa. Todo o caráter de nossa teologia e religião depende da resposta a esta pergunta. De maneira semelhante, se Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 424 o desígnio especial e imediato da redenção é assegurar a salvação do povo de Deus, então segue todo o sistema Agostiniano por uma necessidade lógica; se seu desígnio é simplesmente fazer possível a salvação de todos os homens, deverá receber-se o sistema oposto como verdadeiro. A ordem dos decretos divinos ou, em outras palavras, a relação que sustentam mutuamente as várias partes do plano divino, está então muito longe de ser uma questão de especulações ociosas. Deve determinar nossa teologia, e nossa teologia é determinante de nossa religião. Como se pode conhecer o plano de Deus. Se há um esquema assim preconcebido relacionado com a salvação dos homens, e se é por isso importante a apropriada compreensão deste esquema, a seguinte pergunta é: como se pode determinar? A primeira resposta a esta pergunta é que em cada sistema de fatos mutuamente relacionados, a relação revela-se na natureza dos fatos. O astrônomo, o geólogo e o zoólogo logo descobrem que os fatos de suas várias ciências sustentam uma certa relação entre si, e que não admitem outra distinta. Se não se admitir a relação, negam-se ou se distorcem os próprios fatos. A única fonte de erro está bem numa indução incompleta dos atos, bem em deixar de lhes permitir sua devida importância relativa. Um sistema de astronomia deu lugar a outro, só porque os astrônomos anteriores não estavam familiarizados com alguns fatos que seus sucessores descobriram. Esta ciência chegou, por fim, a um estado que demanda o assentimento de todas as mentes competentes, e que não pode a partir de agora ser modificada de maneira radical. O mesmo, até certo ponto, é certo em todos os departamentos das ciências naturais. E não pode ser menos certo em teologia. O que são os fatos da natureza para o naturalista assim são os fatos da Bíblia e de nossa consciência moral e religiosa para o teólogo. Se, por exemplo, a Bíblia e a experiência ensinam a total incapacidade dos homens caídos a algo espiritualmente bom, este fato recusa de maneira tenaz harmonizar com qualquer sistema Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 425 que negue a graça eficaz ou a eleição soberana. E assim sucede com todos os grandes fatos escriturísticos. Dispõem-se a si mesmos num certa ordem mediante uma lei interna, com a mesma certeza e de maneira tão clara como as partículas de matéria no processo da cristalização, ou na unidade orgânica do corpo de um animal. É certo aqui como na ciência natural que é só mediante uma indução imperfeita dos fatos, ou mediante seu negação ou perversão, que se pode duvidar ou que possa haver diversidade de opiniões a respeito de sua posição relativa no esquema da salvação. Mas além disso temos em teologia um guia que o homem de ciência não possui. Temos nas Escrituras não só a revelação do magno desígnio de Deus em todas as Suas obras de criação, de providência e de redenção, que é declarado como Sua própria glória, mas sim temos declarada de maneira expressa, em muitos casos, a relação que tem cada parte deste esquema com as outras partes. Assim, por exemplo, diz-se que Cristo morreu para salvar o Seu povo de seus pecados. Somos escolhidos para santidade. Por isso, a eleição precede à santificação. Somos escolhidos para ser santificados, e não porque sejamos santos. Estas revelações a respeito da relação das partes subordinadas do esquema da redenção determinam de maneira necessária a natureza do plano íntegro. Isto ficará claro pelo que segue. Assim como as pessoas diferem em seu entendimento dos fatos da Escritura, e assim como alguns são mais cuidadosos que outros para reunir todos os fatos que devem ser considerados, ou mais fiéis em submeter-se à autoridade dos mesmos, assim diferem em suas perspectivas do plano que Deus dispôs para a salvação dos homens. As posições mais importantes que se adotaram a respeito desta questão são: Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II § 2. O Supralapsarianismo. 426 Primeiro, o esquema supralapsariano. Segundo esta posição, Deus, para manifestar sua graça e justiça, selecionou dentre os homens criáveis (isto é, dentre os homens a criar) a certo número como vasos de misericórdia, e a outros como vasos de ira. Na ordem do pensamento, a eleição e a reprovação precedem ao propósito de criar e de permitir a Queda. A criação tem como fim a redenção. Deus cria uns para ser salvos, e outros para ser perdidos. Este esquema recebe o nome de supralapsariano porque supõe que os homem como não caídos, ou antes da Queda, são objetos de eleição para vida eterna e de predestinação à morte eterna. Esta postura foi introduzida entre certa classe de Agostinianos inclusive antes da Reforma, mas não foi geralmente recebida. O próprio Agostinho, e após dele a maioria dos que adotam seu sistema doutrinal, foram, e seguem sendo, infralapsarianos. Isto é, mantêm eles que é da massa de homens caídos que alguns foram escolhidos para vida eterna, e alguns, para justo castigo de seus pecados, predestinados à morte eterna. A postura do próprio Calvino quanto a este extremo foi discutida. Porquanto não era em seu tempo um ponto especial de debate, podem-se citar de suas escritas certas passagens que sustentam a postura supralapsariana, e outras passagens que favorecem a postura infralapsariana. No «Consensus Genevensis», escrito por ele, há uma afirmação explícita da doutrina infralapsariana. O «Consensus Genevensis» escrito por ele, não é uma afirmação explícita da doutrina infralapsariana. Depois de dizer que havia muito pouco benefício em especular sobre a predestinação da queda do homem, ele acrescenta: “Quod ex damnata Adæ sobole Deus quos visum est eligit, quos vult reprobat, sicuti ad fidem exercendam longe aptior est, ita majore fructu tractatur.” 274 274 Niemeyer, Collectio Confessionum, p. 269. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 427 Na «Formula Consensus Helvetica», redigida como o testemunho das igrejas suíças em 1675, e cujos principais autores foram Heidegger e Turretino, há um repúdio formal da postura supralapsariana. No Sínodo de Dort, que incluiu delegados de todas as igrejas Reformadas no Continente e na Grã-Bretanha, uma grande maioria de seus membros eram infralapsarianos, sendo Gomarus e Voetius os principais proponentes da postura oposta. Os cânones daquele Sínodo, embora evitando toda declaração extrema, foram redigidos de tal maneira que se desse uma autoridade simbólica à doutrina infralapsariana. Dizem: 275 “Cum omnes homines in Adamo peccaverint et rei sint facti maledictionis et mortis æteternæ, Deus nemini fecisset injuriam, si universum genus humanum in peccato et maledictione relinquere, ac propter peccatum damnare voluisset.” A mesma observação aplica-se à Assembleia de Westminster. Twiss, o porta-voz daquela venerável corporação, era um zeloso supralapsariano; mas a grande maioria de seus membros militavam no campo oposto. Os Símbolos daquela Assembleia, embora impliquem claramente a postura infralapsariana, foram entretanto redigidos de tal maneira que evitassem constituir uma ofensa para os que abraçavam a teoria supralapsariana. Na «Confissão de Westminster» 276 diz-se que Deus designou os escolhidos para vida eterna, e que «[quanto a] o resto da humanidade, prouve a Deus, segundo o inescrutável conselho de Sua própria vontade, mediante o qual Ele estende ou retém a misericórdia como quer, para a glória de Seu poder soberano sobre Suas criaturas, passá-los por alto, e destiná-los à desonra e ira por seus pecados, para louvor de Sua gloriosa justiça.» Aqui se nos ensina que aqueles que Deus passa por alto são «o resto da humanidade»; não o resto de homens ideais ou possíveis, mas sim o resto daqueles seres humanos que constituem a humanidade, ou a raça humana. Em segundo lugar, a passagem citada ensina que os não 275 276 Caput I. art. 1; Acta Synodi, edit. Dort., 1620, p. 241. Chapter iii. sections §§ 6, 7. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 428 escolhidos são passados por alto e ordenados à ira «por seus pecados». Isto implica que foram contemplados como pecaminosos antes desta predestinação a juízo. A postura infralapsariana continua sendo mais evidentemente assumida nas respostas às perguntas 19 e 20 no «Catecismo Breve». Se ensina nele que toda a humanidade perdeu pela Queda a comunhão com Deus, e que estão debaixo da Sua ira e maldição, e que Deus, por Seu mero beneplácito, escolheu a alguns (a alguns daqueles que estavam de baixo da Sua ira e maldição) para a vida eterna. Esta foi a doutrina da grande maioria dos Agostinianos do tempo de Agostinho até o presente. Objeções ao Supralapsarianismo. As objeções mais evidentes à teoria supralapsariana são: (1) Que parece envolver uma contradição. De um Non Ens, como diz Turretino, não se pode determinar nada. O propósito de salvar ou condenar deve seguir de maneira necessária, na ordem do pensamento, ao propósito de criar. O último fica assumido no primeiro. (2) É um princípio escriturístico claramente revelado que onde não há pecado não há condenação. Por isso, não pode haver predestinação à morte que não contemple a seu objeto como já pecaminoso. (3) Parece claro com base em todo o argumento do Apóstolo em Rm 9:9-21 que a «multidão» da qual alguns são escolhidos e outros são deixados é a massa de homens caídos. O desígnio do escritor sagrado é o de vindicar a soberania de Deus na dispensação de Sua graça. Ele tem misericórdia de uns e não de outros, em conformidade com Seu beneplácito, porquanto todos são igualmente indignos e culpados. A vindicação é exposta não só pela relação de Deus com Suas criaturas como seu Criador, mas por Sua relação com elas como um soberano cuja lei elas violaram. Esta descrição impregna todas as Escrituras. Dos crentes afirma-se que são escolhidos «do mundo», isto é, da massa dos homens caídos. E em todas as partes, como em Rm 1:24, 26, 28, declara-se a reprovação como judicial, baseada na pecaminosidade de seus objetos. De outra maneira Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 429 não poderia ser uma manifestação da justiça de Deus. (4) A criação nunca é exposta na Bíblia como um meio para a execução do propósito da eleição e da reprovação. Isto, como se observou com justiça, não pode ser assim. Os objetos da eleição são indivíduos concretos, como se admite nesta controvérsia. Mas a única coisa que distingue entre meros homens possíveis ou «criáveis» e indivíduos concretos, que com certeza seriam criados e salvos ou perdidos, é o propósito divino de que serão criados. De maneira que o propósito de criar necessariamente precede, na ordem da natureza, ao propósito de redimir. Por isso em Rm 8:29, 30 se declara que πρόγνωσις - prognosis precede a προορισμός proorismos. «Aos que de antemão conheceu, também os predestinou.» Mas o conhecimento antecipado implica a existência certa de seus objetos; e a certeza da existência pressupõe da parte de Deus o propósito de criar. Nada é ou deve ser exceto em virtude do decreto dAquele que ordena previamente o que deve suceder. Toda futuridade, por isso, depende da prévia ordenação; e o conhecimento antecipado pressupõe futuridade. Temos, portanto, a autoridade do Apóstolo para dizer que o conhecimento antecipado, baseado no propósito de criar, precede à predestinação. E, portanto, a criação não é um meio para executar o propósito da predestinação, porque o fim deve preceder os meios; e, segundo Paulo, o propósito de criar precede o propósito de redimir, e por isso não pode ser um meio para tal fim. Nosso Senhor, é-nos dito, foi entregue à morte «pelo determinado desígnio e prévio conhecimento de Deus». Mas Sua morte, de maneira necessária, supunha Sua encarnação, e por isso, na ordem do pensamento, ou no plano de Deus, o propósito de preparar-lhe corpo precedeu ao propósito de entregá-lo por ocasião da morte da cruz. A única passagem da Bíblia que parece ensinar de maneira explícita que a criação é um meio para a execução do propósito da predestinação é Ef 3:9, 10. Ali, segundo alguns, diz-se que Deus criou todas as coisas a fim de que ((ἵνα - hina) Sua multiforme sabedoria fosse dada a conhecer por meio da Igreja. Se esta é a relação entre as várias cláusulas destes versículos, o Apóstolo ensina que o universo foi criado a Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 430 fim de que por meio de homens redimidos (a Igreja) fosse revelada a glória de Deus a todas as criaturas racionais. Neste sentido e neste caso declara-se da criação que é um meio para a redenção; e por isso o propósito de redimir tem que preceder ao propósito de criar. Entretanto, não é esta a conexão lógica das cláusulas nesta passagem. Paulo não diz que Deus criou todas as coisas a fim de que. Não está referindo-se ao desígnio da criação, mas ao desígnio do evangelho e de sua própria vocação ao apostolado. A mim, diz ele, foi-me dada esta graça de que eu pregue entre os gentios as inescrutáveis riquezas de Cristo, e iluminar a todos os homens no conhecimento do mistério (da redenção) a fim de que por meio da Igreja seja dada a conhecer a multiforme sabedoria de Deus. Esta é a conexão natural desta passagem, e esta é a interpretação adotada pelos modernos comentaristas, com independência total da relação que tenha a passagem com a controvérsia supralapsariana. (5) Uma adicional objeção ao sistema supralapsariano é que não é consequente com a exibição escriturística do caráter de Deus. É declarado como Deus de misericórdia e de justiça. Mas não é compatível com estes atributos divinos que os homens sejam predestinados à desgraça e à morte eterna como inocentes, isto é, antes de terem apostatado de Deus. Se são deixados de lado e predestinados à morte por seus pecados, isso se deve a que na predestinação são considerados como criaturas culpadas e caídas. § 3. Infralapsarianismo. Segundo a doutrina infralapsariana, Deus, com o desígnio de revelar Sua própria glória, isto é, as perfeições de Sua própria natureza, decidiu criar o mundo; em segundo lugar, permitir a queda do homem; em terceiro, escolher dentre a massa de homens caídos uma multidão que nenhum homem poderia contar como «vasos de misericórdia; em quarto lugar, enviar o Seu Filho para a redenção dos mesmos; e em quinto Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 431 lugar, deixar o resto da humanidade, como tinha deixado os anjos caídos, para que sofressem o justo castigo por seus pecados. Os argumentos em favor deste ponto de vista a respeito do plano divino já foram apresentados em forma de objeções à teoria supralapsariana. Entretanto, pode-se também observar adicionalmente: 1. Que esta teoria é coerente e harmônica. Porquanto todos os decretos de Deus constituem um propósito inclusivo, não se pode admitir nenhuma postura da relação dos detalhes que abrange este propósito que não se possam reduzir a uma unidade. Em todo grande mecanismo, seja qual for a quantidade ou complexidade das partes que o constituem, tem que existir unidade de desígnio. Cada parte tem uma relação determinada com cada outra parte, e é necessária a percepção desta relação para uma compreensão adequada do todo. Do mesmo modo, como os decretos de Deus são eternos e imutáveis, nenhuma postura a respeito de Seu plano de ação que suponha que primeiro Ele se propõe uma coisa e logo outra pode ser coerente com a natureza dos mesmos. E como Deus é absolutamente soberano e independente, todos os Seus propósitos devem ser determinados de dentro, ou segundo o conselho de Sua própria vontade. Não se pode supor que sejam contingentes ou suspensos com base na ação de Suas criaturas, nem com base em nada externo ao mesmo. O esquema infralapsariano, tal como o mantêm a maioria de Agostinianos, cumpre todas estas condições. Todos os particulares constituem um todo inclusivo. Todos seguem uma ordem que não supõe mudança alguma de propósito. Todos dependem da vontade imensamente sábia, santa e justa de Deus. É para este fim que Ele cria o mundo, que permite a Queda; dentre todos os homens Ele escolhe a alguns para vida eterna, e deixa o resto para a justa retribuição que merecem seus pecados. Aos que Ele escolhe os chama, justifica e glorifica. Esta é a cadeia de ouro cujos elos não podem ser separados nem transpostos. Esta é a forma em que o esquema da redenção aparecia na mente do Apóstolo tal como somos ensinados em Rm 8:29, 30. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 432 Diferentes significados que se atribuem à palavra predestinação. 2. A palavra predestinação é ambígua. Pode-se empregar primeiro no sentido geral de preordenação. Neste sentido tem uma idêntica referência a todos os acontecimentos; porque Deus ordena antecipadamente tudo o que sucede. Segundo, pode referir-se ao propósito geral da redenção sem referência específica a indivíduos concretos. Deus predeterminou revelar Seus atributos na redenção dos pecadores, como predeterminou criar os céus e a terra para manifestar Seu poder, sabedoria e benevolência. Em terceiro lugar, emprega-se em teologia de maneira geral para expressar o propósito de Deus com relação à salvação das pessoas individuais. Inclui a seleção de uma porção da raça para salvação, deixando o resto para que morram em seus pecados. É empregado neste sentido pelos supralapsarianos, que ensinam que Deus selecionou um certo número de pessoas individuais para que fossem criados para salvação, e outro número para serem criados como vasos de ira. É desta maneira que subordinam a criação à predestinação como um meio para um fim. É a isto que os infralapsarianos objetam como algo inconcebível, repugnante à natureza de Deus, e antiescriturístico. Mas se a palavra predestinação for tomada no segundo dos sentidos que se menciona acima, pode-se admitir que em ordem de pensamento precede o propósito de criar. Esta postura é perfeitamente consequente com a doutrina que faz do homem criado e caído o objeto da predestinação no terceiro e usualmente recebido sentido da palavra. O Apóstolo ensina em Cl 1:16 que todas as coisas, visíveis e invisíveis, foram criadas por e para Aquele que é a imagem do Deus invisível, que é antes de todas as coisas, por quem todas as coisas consistem, e que é a Cabeça do corpo, a Igreja. O propósito da criação, assim, não é meramente a glória de Deus, mas sim a manifestação desta glória na pessoa e obra de Cristo. Assim como Ele é o Alfa, também é o Ômega; o Princípio e o Fim. Tendo este grande objetivo em vista, a auto-revelação na pessoa de Seu Filho, propôs-se a criar, permitir a Queda, escolher Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 433 alguns para que fossem objetos de Sua graça, e deixar outros em seu pecado. Esta postura parece concordar com as descrições das Escrituras, e evita as dificuldades relacionadas com a doutrina supralapsariana estrita. Deve-se ter presente que o propósito destas especulações não é imiscuir-se no funcionamento da mente divina, mas simplesmente elucidar e expor a relação que têm entre si as várias verdades reveladas na Escritura a respeito do plano da redenção. § 4. Redenção hipotética De acordo com a doutrina comum dos agostinianos, tal como se expressa no Catecismo de Westminster, “Deus, havendo. . . . eleito uns para vida eterna, entrou numa aliança de graça, para livrar os da massa de pecado e miséria, e levá-los a um estado de salvação pelo Redentor.” Em oposição a esta postura alguns dos teólogos reformados do século XVII apresentam o esquema que se conhece na história da teologia como a doutrina da redenção hipotética. O principal defensor desta doutrina foi Amyraut (morto em 1664), Professor no Seminário protestante francês em Saumur. Ele ensinou, (1.) Que o motivo que impulsiona Deus a redimir os homens fosse a benevolência, ou o amor aos homens em geral. (2.) A partir deste motivo enviou o Seu Filho para a salvação de todos os homens possíveis. (3.) Deus, em virtude de um decretum universale hypotheticum, oferece a salvação a todos os homens, se creem em Cristo. (4.) Todos os homens têm uma capacidade natural para arrepender-se e crer. (5.) Mas, como esta habilidade natural foi rebatida por uma incapacidade moral, Deus decidiu dar sua graça eficaz a um número determinado da raça humana, e assim assegurar sua salvação. Este esquema é às vezes designado como “universalismus hypotheticus.” Foi desenhado para ter um meio-termo entre o Agostinismo e o Arminianismo. É responsável pelas objeções que pressionam em ambos os sistemas. Não elimina as dificuldades próprias do Agostinismo, visto que afirma a soberania de Deus nas eleições. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 434 Além disso, deixa fora de vista o caso dos pagãos. Eles, ao não ter conhecimento de Cristo, não podiam fazer uso deste decretum hypotheticum, e portanto deve ser considerado como passado por alto por um decretum absolutum. Estava-se contra esta doutrina do Amyraut e outras separações das normas da Igreja Reformada que, em 1675, a “Fórmula de Consenso Helvética” foi adotada pelas igrejas da Suíça. Esta teoria dos teólogos franceses logo faleceu quanto se refere às igrejas reformadas na Europa. Seus defensores ou voltaram para a velha doutrina, ou passaram ao sistema mais avançado dos arminianos. Neste país se reavivou e adotou amplamente. À primeira vista poderia parecer um assunto sem importância se dissermos que a eleição precede à redenção ou que a redenção precede à eleição. De fato, entretanto, é uma questão de grande importância. A relação das verdades da Bíblia está determinada por sua própria natureza. Se mudar sua relação deve mudar sua natureza. Se o que se refere ao Sol como um planeta em lugar de como o centro de nosso sistema deve crerse que é algo muito diferente em sua constituição do que realmente é. Assim que num esquema de pensamento, se a causa final é feita um meio, ou um meio a causa final, nada mais que confusão será o resultado. Como a relação da eleição à redenção depende da natureza da redenção, o exame completo desta questão deve ser reservada até que a obra de Cristo tenha sido considerada. No momento basta dizer que o esquema proposto pelos teólogos franceses é objeto das seguintes objeções. Argumentos contra este esquema 1. Supõe a mutabilidade dos propósitos divinos, ou que o propósito de Deus pode falhar em realizar. Segundo este esquema, Deus, por benevolência ou filantropia, propôs a salvação de todos os homens, e enviou o Seu Filho pela redenção deles. Mas ao ver que tal finalidade não se poderia levar a cabo, Ele determinou por Sua graça eficaz assegurar a salvação de uma parte determinada da raça humana. Mas esta Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 435 dificuldade do esquema envolve o que se pode afirmar. Entretanto, não se pode supor que Deus quer o que nunca se obtém; que Ele propõe o que Ele não tem intenção de realizar; que Ele adota meios para um fim que nunca se deve alcançar. Isto não se pode afirmar de qualquer ser racional que tem a sabedoria e o poder para garantir o cumprimento de seus fins. Muito menos pode-se dizer dEle, cujo poder e sabedoria são infinitos. Se todos os homens não são salvos, Deus nunca propôs sua salvação, e nunca ideou e pôs em funcionamento os meios designados para cumprir esse fim. Devemos assumir que o resultado é a interpretação dos propósitos de Deus. Se Ele preordena que algo chega a suceder, então, os eventos correspondem aos Seus propósitos, e é contra a razão e a Escritura supor que exista uma contradição ou falta de correspondência entre o que Ele Se propôs e o que realmente ocorre. A teoria, portanto, que assume que Deus propôs a salvação de todos os homens, e enviou o Seu Filho para morrer como um meio para obter esse fim, e logo ver, ou prever que não pôde ou não se alcançaria, escolheu uma parte da raça para ser os objetos da graça eficaz, não pode considerar-se como das Escrituras. 2. A Bíblia ensina claramente que a obra de Cristo é certamente eficaz. Faz-se de que a obtenção dos fins foi designado para levar-se a cabo. Seu objetivo era salvar o Seu povo, e não simplesmente chegar à salvação de todos os homens possíveis. Foi uma satisfação real à justiça, e, portanto, necessariamente livres da condenação. Foi um resgate pago e aceito, pelo que sem dúvida redime. Se, pois, igualmente designado para todos os homens, deve assegurar a salvação de todos. Se tiver sido designado especialmente para os escolhidos, confere sua salvação certa, e portanto a eleição precede à redenção. Deus, como ensina o Catecismo de Westminster, depois de ter eleito uns para vida eterna, enviou o Seu Filho para redimi-los. 3. As Escrituras ensinam que o maior dom de Cristo assegura o dom de todas as outras bênçãos salvadoras. (Rom. 8.32). Daí eles são certamente salvos para quem Deus entregou o Seu Filho. Os escolhidos Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 436 só se salvam, pelo que foi entregue especialmente para eles, e portanto a eleição deve preceder à redenção. A relação, portanto, da redenção para com a eleição está tão claramente determinado pela natureza da redenção como a relação do sol para com os planetas está determinada pela natureza do sol. 4. A Bíblia em numerosas passagens, diretamente afirma que Cristo deveu redimir o Seu povo, para salvá-los de seus pecados, e para levá-los a Deus. Ele se entregou por Sua Igreja, Ele deu Sua vida por Suas ovelhas. Como o fim precede os meios, se Deus enviou o Seu Filho para salvar o Seu povo, se Cristo Se entregou por Sua Igreja, então o Seu povo foi selecionado e apresentado à mente divina, na ordem do pensamento, antes que o dom de Cristo. 5. Se, como ensina Paulo (Rm 8:29, 30), a presciência precede à predestinação, e se a missão de Cristo é o meio para obter o fim da predestinação, então a necessidade da predestinação à vida eterna precede ao dom de Cristo. Tendo predestinado à adoção de filhos, como nos ensina Ef. 1:4, 5, Deus nos escolheu antes da fundação do mundo, e enviou o Seu Filho em propiciação pelos nossos pecados. Esta é a ordem dos propósitos divinos, ou a relação mútua das verdades da redenção como se apresentam nas Escrituras. 6. O motivo (por assim dizer) de Deus ao enviar o Seu Filho não é, como esta teoria assume, a benevolência geral ou esse amor do qual todos os homens são igualmente objetos, mas esse amor peculiar, misterioso, infinito em que Deus, ao dar o Seu Filho, dá a Si mesmo e todos bens imagináveis e possíveis. Todos estes pontos, entretanto, como antes foi dito, demandam sua ulterior consideração quando chegar o momento para tratar da natureza e o propósito da obra de Cristo. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 437 § 5. A doutrina luterana quanto ao plano da salvação Não é fácil expor a doutrina luterana a este respeito, porque se dá de uma maneira nos primeiros livros simbólicos desta igreja, e de uma maneira um pouco diferente na «Fórmula de Concórdia» e nos escritos de teólogos luteranos normativos. O próprio Lutero ensinou a doutrina Agostiniana estrita, como também Melâncton na primeira edição de sua obra «Loci Communes». Em edições posteriores daquela obra, Melâncton ensina que os homens cooperam com a graça de Deus na conversão, e que a razão de que um homem seja regenerado e outro não o seja deve encontrar-se nesta cooperação. Isto deu origem à prolongada e avivada controvérsia sinergista, que por longo tempo perturbou seriamente a paz da Igreja Luterana. Esta controvérsia ficou por um tempo solucionada de maneira autoritativa mediante a «Fórmula de Concórdia», que foi adotada e estabelecida pelos Luteranos como norma de ortodoxia. Neste documento rejeitaram-se tanto a doutrina da cooperação como a da predestinação absoluta. Ensinava-se ali a total incapacidade do homem em nada espiritualmente bom, e negava-se por isso que pudesse preparar-se para a regeneração nem cooperar com a graça de Deus nesta obra. Atribui a regeneração do pecador de maneira exclusiva à ação sobrenatural do Espírito Santo. É a obra de Deus, e não é em sentido algum nem em nenhum grau a obra do homem. Mas ensina que a graça de Deus pode ser resistida eficazmente, e que a razão pela qual nem todos os que ouvem o Evangelho são salvos é porque alguns resistem a influência que se lhes aplica, e outros não. Assim, conquanto a regeneração é exclusivamente a obra do Espírito, o fracasso quanto à salvação deve ser atribuído à resistência voluntária contra a graça oferecida. Porquanto este sistema era ilógico e contrário às claras declarações das Escrituras, não pôde manter-se muito tempo. A não resistência à graça de Deus, o dar-se passivamente à sua influência, é algo bom. É algo pelo qual uma classe distingue-se de maneira favorável com relação a outra, e por isso a razão pela qual eles, e não outros, são Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 438 salvos, deve ser atribuída a eles mesmos e não a Deus, que dá a mesma graça a todos. Por isso, os teólogos luteranos posteriores abandonaram o terreno da «Fórmula de Concórdia», e ensinam que os objetos da eleição são aqueles que Deus previu que creriam e que perseverariam na fé até o fim. Segundo este esquema, Deus: (1) Com base na benevolência geral ou amor à raça caída dos homens, quer a salvação dos mesmos com uma intenção e propósito sinceros. Holaz diz: “Benevolentia Dei universalis non est inane votum, non sterilis velleitas, non otiosa complacentia, qua quis rem, quæ sibi placet, et quam in se amat, non cupit efficere aut consequi adeoque mediis ad hunc finem ducentibus non vult uti; sed est voluntas efficax, qua Deus salutem hominum, ardentissime amatam, etiam efficere atque per media sufficientia et efficacia consequi serio intendit.” 277 (2) Para pôr em ação este propósito geral de benevolência e misericórdia de maneira indiscriminada para com todos os homens, Deus determinou enviar o Seu Filho para que fizesse uma plena satisfação por seus pecados. (3) A isto segue (na ordem do pensamento) o propósito de dar a todos os homens os meios da salvação e a capacidade de servir-se da misericórdia oferecida. Isto se descreve como um “destinatio mediorum, quibus tum æterna salus satisfactione Christi parta, turn vires credendi omnibus hominibus offeruntur, ut satisfactionem Christi ad salutem acceptare et sibi applicare queant.” 278 (4) Além desta voluntas generalis (quanto à relacionada com todos os homens) e antecedens, como indo antes de qualquer ação contemplada dos homens, há uma voluntas specialis, relacionada com certas pessoas individuais, e consequens, como seguindo a previsão das ações das mesmas. Esta voluntas specialis é definida como essa «quæ peccatores oblata salutis media amplectentes æterna salute donare constituit». 279 Assim Hutter 277 Examen Theologicum Acroamaticum, Leipzig, 1763, p. 599. Hollaz, Examen, III.; cap. i. qu. 6; ed. Teller, Holmiæ et Lipsiæ, 1750, p. 589. 279 Ibid. III. i. 1, 3; p. 586. 278 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 439 280 diz: «Quia (Deus) prævidit ac præscivit maximam mundi partem mediis salutis locum minime relicturam ac proinde in Christum non credituram, ideo Deus de illis tantum salvandis fecit decretum, quos actu in Christum credituros prævidit.» Hollaz expressa o mesmo ponto de vista: 281 “Electio hominum, peccato corruptorum, ad vitam æternam a Deo misericordissimo facta est intuitu fidei in Christum ad finem usque vitæ perseverantis.” Novamente: “Simpliciter quippe et categorice decrevit Deus hunc, ilium, istum hominem salvare, quia perseverantem ipsius in Christum fidem certo prævidit.”282 Assim, a doutrina Luterana responde a pergunta de Por que se salvam uns e não outros? dizendo: Porque uns creem e os outros não. A pergunta de por que Deus escolhe a uns e não a outros, e os predestina à vida eterna é respondida dizendo: Porque Ele vê antecipadamente que alguns crerão até o final, e outros não. Se se pergunta: Por que uns creem, e outros não?, a resposta é: Não porque uns cooperem com a graça de Deus e outros não, mas sim alguns resistem e rejeitam a graça que se oferece a todos, e outros não. A dificuldade que surge da doutrina luterana da total corrupção de nossa natureza caída, e da total incapacidade do pecador para fazer algo espiritualmente bom é confrontada dizendo que o pecador tem capacidade para usar os meios da graça, que pode ouvir a palavra e receber os sacramentos, e como estes meios da graça têm um poder divino sobrenatural, produzem um efeito salvador sobre todos os que não resistem à sua influência de maneira voluntária e persistente. O batismo [no sistema luterano], no caso dos pequenos, vai acompanhado da regeneração da alma, e por isso todos os que são batizados na infância recebem a implantação de um princípio de graça que, se é abrigado, ou não apagado voluntariamente, assegura sua salvação. No sistema luterano, a predestinação se limita aos escolhidos. 280 Hutter, Loci Communes, Tract. Artic. Præscient Prov. Decr., etc., vii.; Wittenburg, 1619, p. 793, b. Hollaz, Examen, ed. 1750, ut supra, p. 619. 282 Hollaz, Ibid. III. i. 2, 12, prob. c.; ut supra, p. 631. 281 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 440 Deus predestina aqueles que Ele prevê que perseverarão na fé para salvação. Não há predestinação dos incrédulos para morte. § 6. A doutrina Remonstrante A começos do século dezessete, Armínio introduziu um novo sistema de doutrina nas igrejas Reformadas da Holanda, sistema que foi formalmente condenado pelo Sínodo de Dort que esteve em sessão desde novembro de 1618 até maio de 1619. Os proponentes desta doutrina apresentaram uma repreensão [remonstrance], e por isso foram no princípio chamados Remonstrantes, mas em anos posteriores a designação mais comum para eles foi a de Arminianos. O Arminianismo é uma forma de doutrina muito inferior à do Luteranismo. Em todos os temas incluídos sob Antropologia e Soteriologia constitui uma separação muito mais grave do sistema do Agostinianismo que foi em todas as eras a vida da igreja. Os Arminianos ensinaram: 1. Que todos os homens derivam de Adão uma natureza corrompida que os inclina ao pecado. Mas negam que esta corrupção seja da natureza de pecado. Os homens são responsáveis só por seus atos voluntários e pelas consequências de tais atos. “Peccatum originale nec habent (Remonstrantes) pro peccato proprie dicto . . . . nec pro malo, quod per modum proprie dictæ poenæ ab Adamo in posteros dimanet, sed pro malo infirmitate.” 283 Limborch 284 diz: “Atqui illa physica est impuritas (namely, the deterioration of our nature derived from Adam), non moralis: et tantum abest ut sit vere ac proprie dictum peccatum.” 2. Negam eles que o homem, pela Queda, tenha perdido sua capacidade de fazer o bem. Esta capacidade, ou liberdade, conforme a chamam eles, é essencial à nossa natureza, e não se pode perder sem perda de humanidade. “Innatam arbitrii humani libertatem (quer dizer, 283 284 Apologia pro Confessione Remonstrantum, edit. Leyden, 1630, p. 84. Theologia Christiana, V. xv. 15, edit. Amsterdam, 1715, p. 439. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 441 capacidade) olim semel in creatione datam, nunquam . . . . tollit (Deus).” 285 3. Esta capacidade, entretanto, não é em si mesmo suficiente para assegurar que a alma vá voltar a Deus. Os homens necessitam a graça preveniente, energizante e auxiliadora de Deus para sua conversão e vida em santidade. “Gratiam Dei statuimus esse principium, progressum et complementum omnis boni: adeo ut ne ipse quidem regenitus absque præcedente ista, sive præveniente, excitante, prosequente et cooperante gratia, bonum ullum salutare cogitare, velle, aut peragere possit.” 286 4. Esta graça divina é outorgada a todos os homens numa suficiente medida para capacitá-los ao arrependimento, a crer e para guardar todos os mandamentos de Deus. “Gratia efficax vocatur ex eventu. Ut statuatur gratia habere ex se sufficientem vim, ad producendum consensum in voluntate, sed quia vis illa partialis est, non posse exire in actum sive effectum sortiri sine coöperatione liberæ voluntatis humanæ, ac proinde ut effectum habeat, . . . . pendere a libera voluntate.” 287 Esta graça, diz Limborch: “incitat, exstimulat, adjuvat et cerroborat, quantum satis est, ut homo reipsa Deo obediat et ad fineni in obedientia perseveret.” E outra vez: 288 “Sufficiens vocatio, quando per cooperationem liberi arbitrii sortitur suum effectum, vocatur efficax.” 5. Os que por sua própria vontade e no exercício desta capacidade que lhes pertence desde a Queda, cooperam com esta graça divina, são convertidos e salvos. “Etsi vero maxima est gratiæ disparitas, pro liberrima scilicet voluntatis divinæ dispensatione tamen Spiritus Sanctus omnibus et singulis, quibus verbum fidei ordinarie prædicatur, tantum gratiæ confert, aut saltem conferre paratus est, quantum ad fidem ingenerandum, et ad promovendum suis gradibus salutarem ipsorum 285 Confessio Remonstratum, vi. 6; Episcopii Opera, edit. Rotterdam, 1665, vol. ii. part 2, p. 80. Ibid. xvii. 6; ut supra, p. 88. 287 Apologia pro Confessione Remonstrantium, p. 162. 288 Theologia, IV. xii. 8; p. 352. 286 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 442 289 conversionem sufficit.” A Apologia dos Remonstrantes, especialmente dos Teólogos Remonstrantes, como Episcópio e Limborch, vão além disso. Em lugar de limitar esta graça suficiente aos que ouvem o Evangelho, estendem-na a toda a humanidade. 6. Os que creem assim são predestinados para vida eterna, não entretanto a nível individual, mas como classe. O decreto da eleição não concerne às pessoas, mas que se refere simplesmente ao propósito de Deus de salvar a crentes. “Decretum vocant Remonstrantes decretum prædestinationis ad salutem, quia eo decernitur, qua ratione et conditione Deus peccatores saluti destinet. Enunciatur autem hoc decretum Dei hac formula: Deus decrevit salvare credentes, non quasi credentes quidam re ipsa jam sint, qui objiciantur Deo salvare volenti, sive prædestinanti; nihil minus; sed, ut quid in iis, circa quos Deus prædestinans versatur, requiratur, ista enunciatione clare significetur. Tantundem enim valet atqui si diceres, Deus decrevit homines salvare sub conditione fidei. . . . . Etiamsi hujusmodi prædestinatio non sit prædestinatio certarum personarum, est tamen omnium hominum prædestinatio, si modo credant et in virtute prædestinatio certarum personarum, quæ et quando credunt.” 290 § 7. O Arminianismo Wesleyano O sistema Arminiano foi modificado tão profundamente pelo Wesley e seus partidários e seguidores, que lhe dão a designação de Arminianismo Evangélico, e reivindicam para o mesmo originalidade e globalidade. Difere do sistema dos Remonstrantes: 1. Em que admite que desde a Queda o homem está num estado de absoluta ou total contaminação e depravação. O pecado original não é 289 290 Confessio Remonstrantium, xvii. 8; p. 89. Works, pp. 284, 285. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 443 uma mera deterioração de nossa natureza, mas uma total depravação moral. 2. Ao negar que os homens, neste estado de natureza, tenham algum poder para cooperar com a graça de Deus. Os proponentes deste sistema consideram a doutrina da capacidade natural, ou da capacidade do homem natural para cooperar com Deus, como semipelagiana, e a doutrina de que os homens tenham por natureza a capacidade de guardar com perfeição os mandamentos de Deus, como Pelagianismo puro. 291 3. Ao afirmar que a culpa que recai em todos os homens pelo pecado de Adão é tirada pela justificação que veio a todos os homens pela justiça de Cristo. 4. Que a capacidade do homem de poder jamais cooperar com o Espírito de Deus não se deve a nada inerente em seu estado natural caído, mas sim à influência universal da redenção de Cristo. Por isso, cada recém-nascido chega ao mundo livre de condenação com base na justiça de Cristo, e com uma semente de graça divina ou um princípio de uma nova vida implantada no coração. «É uma verdade indubitável que pelo delito de um», afirma Wesley, 292 «veio o juízo sobre todos os homens (todos os que nascem no mundo) para condenação, e afeta a cada criança assim como a cada pessoa adulta. Mas é igualmente verdade que pela justiça de um, veio sobre todos os homens o livre dom (isto é, para todos os nascidos no mundo, tanto crianças como adultos) para justificação.» E Fletcher 293 diz: «Assim como Adão atraiu uma condenação universal e uma semente de morte sobre todas as crianças, assim Cristo traz sobre eles uma justificação geral e uma semente universal de vida.» «Cada ser humano», diz Warren, «tem uma medida de graça (a não ser que a tenha descartado), e os que empregam fielmente este dom de graça serão aceitos por Deus no dia do juízo, sejam judeus ou gregos, cristãos ou pagãos. Em virtude da mediação de 291 W. F. Warren, System. Theologie. Erste Lieferung, Hamburg, p. 145. Works, vii. p. 97. 293 Works, pp. 284, 285. 292 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 444 Jesus Cristo entre Deus e nossa raça caída, todos os homens da promessa de Gn 3:15 estão sob uma economia de graça, e a única diferença entre eles como sujeitos ao governo moral de Deus é que enquanto que todos têm graça e luz suficiente para alcançar a salvação, alguns, sobre e acima disto, têm mais e outros menos.» 294 Diz Wesley: «Nenhuma pessoa viva deixa de ter algo de graça preveniente, e cada grau de graça é um grau de vida.» E em outro lugar: «Eu digo que há uma medida de liberdade sobrenaturalmente restaurada para cada pessoa, junto com aquela luz sobrenatural que ilumina a cada homem que vem ao mundo.» 295 Segundo esta visão do plano de Deus, Ele decretou ou se propôs: (1) Permitir a queda do homem. (2) Enviar o Seu Filho para que fizesse uma plena satisfação pelos pecados de todo o mundo. (3) Sobre a base desta satisfação, remeter a culpa da primeira transgressão de Adão e do pecado original, e comunicar tal quantidade de graça e de luz a todos e a cada um dos homens para permitir a todos alcançar a vida eterna. (4) Os que diariamente melhoram aquela graça e perseveram até o fim, são ordenados para salvação; Deus Se propõe desde a eternidade salvar àqueles que Ele prevê que perseverarão assim na fé e na santidade. É evidente que o principal ponto de diferença entre os esquemas posteriores Luterano, Arminiano e Wesleyano e o dos Agostinianos é que, segundo este último, é Deus, e segundo os outros é o homem, quem determina aqueles que devem ser salvos. Agostinho ensinou que da família caída dos homens, todos os que poderiam ter sido deixados em justiça para que perecessem em sua apostasia, Deus, meramente por Seu beneplácito, escolheu a uns para vida eterna, enviou o Seu Filho para a redenção dos mesmos, e lhes dá o Espírito Santo para assegurar seu arrependimento, fé e santidade até o fim. «Cur autem non omnibus detur [donum fidei], fidelem movere non debet, qui credit ex uno omnes isse in condemnationem, sine dubio justissimam: ita ut nulla Dei esset justa 294 295 Warren, p. 146. Works, vii. p. 97; vi. p. 42. Fletcher, i. p. 137, ff. etc. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 445 reprehensio, etiamsi nullus inde liberaretur. Unde constat, magnam esse gratiam, quod plurimi liberantur.» 296 Assim, é Deus e não o homem quem decide aqueles que devem ser salvos. Embora se possa dizer que esta é a questão crucial entre estes grandes sistemas, que dividiram a Igreja em todas as épocas, entretanto esta questão envolve necessariamente a todas as outras diferenças, como a natureza do pecado original; o motivo de Deus ao prover a redenção; a natureza e o desígnio da obra de Cristo; e a natureza da graça divina, ou a obra do Espírito Santo. Assim, em grande medida, todo o sistema de teologia, e necessariamente o caráter de nossa religião, depende da postura que se adote diante desta questão concreta. Por isso, trata-se de um tema da maior importância prática, e não de um assunto de especulação ociosa. § 8. O esquema Agostiniano. Observações preliminares Deve-se lembrar que não se trata de qual seja a perspectiva do plano de Deus mais livre de dificuldades, nem o mais de acordo com os nossos sentimentos naturais, e por esta razão o mais plausível para a mente humana. Pode-se admitir que nos pareceria mais consequente com o caráter de Deus que se tivesse dado provisão para a salvação de todos os homens, e que se teria concedido um suficiente conhecimento e graça a cada ser humano para obter sua salvação. E também seria mais consistente com o entendimento e os sentimentos naturais se tivesse sido feito uma similar provisão para os anjos caídos, ou que Deus tivesse impedido a entrada do pecado e da desgraça no universo; ou se, quando entraram, houvesse provido para sua total erradicação do sistema, de modo que todas as criaturas racionais pudessem ter chegado a ser perfeitamente santas e ditosas por toda a eternidade. Não haveria fim para tais tipos de planos se cada um tivesse a liberdade para erigir um 296 Augustine, De Prædestinatione Sanctorum, VIII. 16; Works, edit. Benedictines, vol. ii. p. 1861, c. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 446 esquema de operação divina segundo seus próprios pontos de vista a respeito do que seria mais prudente e melhor. Estamos limitados pelos fatos: os fatos da providência, da Bíblia e da experiência religiosa. Estes fatos devem determinar nossa teoria. Não podemos dizer que a bondade de Deus impede que se permitam o pecado e a desgraça se realmente existirem o pecado e a desgraça. Não podemos dizer que a justiça exige que todas as criaturas racionais deveriam ser tratadas da mesma maneira, que tivessem as mesmas vantagens e a mesma oportunidade de alcançar o conhecimento, a santidade e a felicidade, se, sob o governo de um Deus de infinita justiça existe na realidade a maior disparidade. Entre todos os cristãos se são admitidos certos princípios, e é com base neles que se devem interpretar os fatos da história e das Escrituras. 1. Admite-se que Deus reina; que Sua providência se estende a todos os acontecimentos, tanto aos grandes como aos pequenos, de maneira que nada ocorre nem pode ocorrer contra Sua vontade, ou que Ele ou não efetue com Seu próprio poder, ou por Sua permissão que outros agentes o executem. Esta é uma verdade da religião natural assim como da revelação. Reconhece-se (na prática) de maneira universal. As orações de ação de graças que os homens dirigem a Deus por uma lei de sua natureza assumem que Ele controla todos os acontecimentos. A guerra, a pestilência e a fome são lamentadas como exibição de Seu desagrado. E a Ele se voltam todos os homens para ser libertados de todos estes males. A paz, a saúde e a abundância são universalmente reconhecidos como Seus dons. Esta verdade subjaz na base de toda religião, e não pode ser posta em tela de juízo por nenhum Teísta, e muito menos por nenhum cristão. 2. Não menos claro ou universalmente admitido é o princípio de que Deus pode controlar as ações livres das criaturas racionais sem destruir sua liberdade nem sua responsabilidade. Universalmente, os homens oram pedindo ser libertados da ira de seus inimigos, para que a inimizade destes se desvaneça, ou que o estado de suas mentes seja mudado. Todos os cristãos oram para que Deus mude os corações dos Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 447 homens, para que lhes dê arrependimento e fé, e controle de tal maneira as ações dos mesmos que possa ser impulsionada Sua glória e o bem dos demais. Esta é de novo uma daquelas verdades simples, profundas e de grande alcance, que os homens dão por supostas, e com base nas quais agem e não podem deixar de fazê-lo, sejam quais forem as dúvidas dos filósofos, ou as dificuldades especulativas que possam acompanhar estas verdades. 3. Todos os cristãos admitem que Deus tem um plano ou propósito no governo do mundo. Há um objetivo a cumprir. É inconcebível que um Ser imensamente santo crie, sustente e controle o universo sem contemplar nenhum fim a alcançar mediante esta maravilhosa exibição de Seu poder e recursos. Assim, a Bíblia nos ensina que Deus opera todas as coisas segundo o conselho por Sua própria vontade. E esta verdade está incorporada em todos os sistemas de fé adotados entre os cristãos, e é assumida em toda a adoração e experiência cristã. 4. Constitui um corolário necessário com base nos princípios anteriores que os fatos da história são a interpretação dos eternos propósitos de Deus. Tudo o que realmente acontece entrou neste propósito. Por isso, podemos aprender o desígnio ou a intenção de Deus com base na evolução ou desenvolvimento de Seu plano na história do mundo e de cada homem individual. Tudo aquilo que ocorre, Ele o permite por sábias razões. Ele pode impedir tudo aquilo que considere oportuno impedir. Por isso, se ocorre um pecado, é porque era o desígnio de Deus que ocorresse assim. Se vier a desgraça como consequência do pecado, este era o propósito de Deus. Se só alguns homens são salvos, enquanto que outros perecem, tudo isto deve ter formado parte do íntegro propósito de Deus. Não é possível que nenhuma mente finita possa abranger os desígnios de Deus, ou que veja as razões de Suas dispensações. Mas nós não podemos, devido a isto, negar que Ele governa todas as coisas, nem que Ele as governa com base no conselho por Sua própria vontade. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 448 O sistema Agostiniano de doutrina não é nada mais que a aplicação ao caso especial da salvação do homem destes princípios gerais e reconhecidos de maneira quase universal. Exposição da doutrina O esquema Agostiniano inclui os seguintes pontos: (1) Que a glória de Deus, ou a manifestação de Suas perfeições, é o fim mais alto e último de todas as coisas. (2) Para este fim Deus Se propôs a criação do universo e todo o plano da providência e da redenção. (3) Que Ele pôs o homem num estado de prova, fazendo de Adão, o primeiro pai da raça, sua cabeça e representante. (4) Que a queda de Adão arrastou a toda sua posteridade a um estado de condenação, de pecado e de desgraça, do que são absolutamente incapazes de livrar-se a si mesmos. (5) Dentre a multidão de homens perdidos, Deus escolheu a uma quantidade inumerável para vida eterna, deixando ao resto da humanidade para a justa retribuição por seus pecados. (6) Que a base desta eleição não é a previsão de nada na primeira classe para distingui-los favoravelmente dentre os membros da outra classe, mas sim o beneplácito de Deus. (7) Que Deus, para a salvação dos escolhidos assim para vida eterna, deu o Seu Filho unigênito, para que se fizesse homem, e para que obedecesse e padecesse por Seu povo, fazendo assim uma plena satisfação pelo pecado, e introduzindo a justiça eterna, fazendo a salvação definitiva dos escolhidos totalmente certa. (8) Que enquanto que o Espírito Santo, em Suas operações comuns, está presente com cada homem enquanto vive, reprimindo o mal e induzindo ao bem, Seu poder certamente eficaz e salvador é exercitado só em favor dos escolhidos. (9) Que todos aqueles aos quais Deus escolheu assim para vida, e pelos quais Cristo Se deu a Si mesmo de maneira específica na aliança da redenção, serão certamente levados (a não ser que morram na infância) ao conhecimento da verdade, ao exercício da fé, e à perseverança na santidade até o fim. Este é o grande esquema doutrinal conhecido historicamente como Paulino, Agostiniano ou Calvinista, ensinado, como cremos, nas Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 449 Escrituras, desenvolvido por Agostinho, sancionado formalmente pela Igreja Latina, ao qual aderiram as testemunhas da verdade durante a Idade Média, repudiado pela Igreja de Roma no Concílio de Trento, avivado nesta mesma igreja pelos Jansenitas, adotado por todos os Reformadores, incorporado nos credos das Igrejas Protestantes da Suíça, do Palatinado, da França, Holanda, Inglaterra e Escócia, e desenvolvido na Confissão redigida pela Assembleia de Westminster, representante comum dos Presbiterianos na Europa e América. É um fato histórico de que este esquema de doutrina foi a força motriz na Igreja, que em grande medida a que se refere o vigor intelectual e espiritual da vida dos heróis e dos confessores que foram estabelecidos no curso das idades; que foi a fonte fecunda das boas obras, da liberdade civil e religiosa, e do progresso humano. Sua verdade pode ser evidenciada a partir de muitas fontes diferentes. Prova da doutrina Em primeiro lugar, trata-se de um esquema singelo, harmônico e coerente. Não supõe propósitos contraditórios na mente divina; que primeiro se propusesse uma coisa, e logo outra; nem que se propusesse fins que logo não são levados a cabo; nem a declaração de princípios em conflito com outros que sejam inegáveis. Todas as partes deste imenso plano admitem sua redução a um propósito todo inclusivo tal como esteve oculto durante eras na mente divina. O propósito de criar, permitir a Queda, escolher alguns para vida eterna, enquanto que outros são passados por alto, de enviar a Seu Filho para redimir o Seu povo, e dar o Espírito para aplicar esta redenção, são propósitos que harmonizam entre si, constituindo um plano coerente. As partes deste esquema não são simplesmente harmônicas, mas estão relacionadas de tal maneira que umas envolvem as outras, de maneira que se uma fica demonstrada, implica-se a verdade do resto. Se Cristo foi entregue para a redenção do Seu povo, então a redenção do Seu povo resulta segura, e então as operações do Espírito devem, no caso deles, ser certamente eficazes; e se Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 450 tal é o desígnio da obra de Cristo e da natureza da influência do Espírito, então os que são objetos da primeira e sujeitos da outra, devem perseverar em santidade até o fim. Ou se começarmos com quaisquer dos outros princípios já mencionados, segue-se o mesmo resultado. Se for demonstrado ou admitido que a Queda arrastou a humanidade a um estado de pecado e miséria do qual nada podiam fazer para sair, então disso segue que a salvação tem que ser por graça; que é de Deus e não de nós o fato de estarmos em Cristo; que a chamada é eficaz; que a eleição é pelo beneplácito de Deus; que o sacrifício de Cristo assegura a salvação do Seu povo; e que não podem apartar-se fatalmente de Deus. E assim com todo o resto. Admita-se que a morte de Cristo assegura a salvação de Seu povo, e todo o resto segue disso. Admita-se que a eleição não é por obras, e todo o plano tem que ser admitido como verdadeiro. Admita-se que nada sucede contrário aos propósitos de Deus, e de novo deve-se admitir todo o esquema Agostiniano. Dificilmente pode haver uma prova mais clara de que compreendemos uma máquina complicada que o fato de que possamos pôr em seu lugar todas as suas peças de maneira que cada uma esteja exatamente em seu lugar, sendo que nenhuma delas admite sua substituição por outra, e que toda ela fica completa e disposta para funcionar. Tal é a ordem das obras de Deus que se for dado a um naturalista um só osso, pode construir todo o esqueleto do qual faz parte; e tal é a ordem de Seu plano de redenção que se for admitida uma das grandes verdades que inclui, deve-se aceitar todo o resto. Este é o primeiro grande argumento em apoio do esquema doutrinal Paulino ou Agostiniano. Argumento com base nos fatos da Providência. Em segundo lugar, só este esquema é consistente com os fatos da providência de Deus. Por evidente que seja esta verdade, deve ser repetida vez após vez que é inútil enfrentar-se aos fatos. Se uma coisa é, é em vão ignorá-la ou negar sua relevância. Temos que amoldar nossas teorias aos fatos, e não fazer com que os fatos se amoldem a nossas Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 451 teorias. Por isso, será correta aquela visão da verdade divina que esteja de acordo com os fatos da providência divina; e será falsa aquela perspectiva que entre em conflito com estes fatos. Outro princípio não menos simples, e não menos suscetível de ser esquecido, é aquele que antes já se assumiu que o admitem todos os cristãos, isto é, que Deus tem um plano, e que todos os eventos de Sua providência correspondem com este plano. Em outras palavras, que aconteça o que acontecer, Deus teve a intenção que suceda; que para Ele nada há que seja inesperado, nem nada contrário aos Seus propósitos. Se é assim, então podemos aprender com certeza qual é o plano de Deus, o que Ele Se propôs fazer ou permitir, com base no que realmente vem a suceder. Se uma proporção dos habitantes de um determinado país morrem na infância e outra parte chega à idade amadurecida, este foi por razões sábias o propósito de Deus. Se alguns são prósperos e outros miseráveis, também é em conformidade com Sua santa vontade. Se numa estação houver abundância e em outra o inverso, é assim segundo Ele o dispôs. Assim o dita inclusive a religião natural. E inclusive os pagãos creem isto. Dificilmente se pode duvidar que, se forem aceitos estes simples princípios, deve admitir-se a verdade do esquema Agostiniano. É um fato que Deus criou o homem; é um fato que a queda de Adão envolveu a toda nossa raça no pecado e na desgraça; é um fato que desta família caída alguns se salvam e outros se perdem; é um fato que a salvação dos que realmente alcançam a vida eterna fica assegurada pela mediação de Cristo e pela obra do Espírito Santo. Estes são fatos providenciais admitidos por todos os cristãos. Tudo o que ensina o Agostinianismo é que estes fatos não foram inesperados para a mente divina, mas que Deus conhecia antecipadamente que sucederiam, e tinha disposto que sucedessem. Isto é tudo. Tudo aquilo que realmente sucede é porque Deus dispôs que sucedesse. Embora Seus propósitos ou intenções não podem fracassar, Ele não emprega influências para o cumprimento dos mesmos que sejam incompatíveis com a perfeita liberdade e inteira responsabilidade das criaturas racionais. Porquanto Deus é infinito em Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 452 poder e sabedoria, Ele pode controlar todos os acontecimentos, e por isso o curso dos acontecimentos deve estar em conformidade com Sua vontade, porque Ele pode moldá-los ou dirigi-los conforme o Seu beneplácito. Por isso, é evidente, primeiro, que os acontecimentos devem ser a interpretação dos propósitos, ou seja, daquilo que Ele Se propõe que suceda; e segundo, que não se pode apresentar objeção alguma contra o propósito ou os decretos de Deus que não militem também contra Sua providência. Se é justo que Deus permita que suceda um acontecimento, deve ser justo que Ele Se proponha, permiti-lo, isto é, que decrete que vai suceder. Poderíamos supor certa a concepção Deísta ou Racionalista da relação de Deus com o mundo: que Deus criou os homens, e que os deixou sem nenhuma guia providencial nem influências sobrenaturais, que os abandonou ao exercício sem restrições de suas próprias faculdades, e à atuação das leis naturais e sociais. Se assim fosse, dar-se-ia de uma maneira real um certo curso de acontecimentos em sucessão regular e em todas as possíveis combinações. Neste caso não se poderia pretender que Deus fosse responsável pelo resultado. Ele teria criado o homem, dotando-o de todas as faculdades, e o cercando de todas as circunstâncias necessárias para seu maior bem. Se ele escolhesse abusar de suas faculdades e descuidar suas oportunidades seria sua própria culpa. Não poderia queixar-se contra o seu Criador. Poderíamos também fazer a hipótese de que Deus, olhando e prevendo como iam agir os homens deixados a si mesmos, e qual seria o resultado de um universo levado desta maneira, decidisse, por sábias razões, que chegasse a ser real; que realmente devesse existir um universo assim com aquele curso de eventos naquele ordem. Seria isto injusto? Ou, que diferença haveria se o propósito de Deus quanto à futuridade de tal mundo, em lugar de seguir à previsão do mundo, o precedesse? Em todo caso Deus Se proporia precisamente o mesmo mundo, o mesmo curso de acontecimentos. O Agostinianismo supõe que Deus, para Sua própria glória, e por isso pelo mais excelso e benéfico de tais fins, Se propôs tal mundo e tal série de acontecimentos como os que Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 453 teriam ocorrido na hipótese deísta, com duas importantes exceções. Primeiro, Ele Se interpõe para reprimir e conduzir a maldade do homem de modo que previne a produção de um mal sem mitigações, e para fazer com que leve à produção de bem. E segundo, Ele intervém mediante Sua providência, e mediante a obra de Cristo e do Espírito Santo, para salvar a inumeráveis almas do dilúvio de destruição. Por isso, o sistema Agostiniano é tão somente a aceitação do que Deus dispôs na eternidade o que realmente efetua no tempo. Por isso, este sistema está de acordo com todos os fatos da divina providência, e está por isso situado sobre uma base inamovível. A soberania de Deus nas dispensações de Sua providência Há entretanto outro ponto de vista que se deve tomar a respeito desta questão. O Agostinianismo está baseado na hipótese da soberania de Deus. Supõe que corresponde a Ele, em virtude de Sua própria perfeição, em virtude de Sua relação com o universo como seu Criador e Preservador, e em virtude de Sua relação com o mundo de pecadores como Seu Governante e Juiz, tratar com eles com base em Seu beneplácito; que Ele pode, por direito, perdoar a uns e condenar a outros; que pode com direito dar Sua graça salvadora a um e não a outro; e por isso que corresponde a Ele, e não ao homem, que um, e não outro, seja feito partícipe da vida eterna. Por outro lado, todos os sistemas antiagostinianos supõem que Deus está obrigado a prover a salvação para todos; a dar graça suficiente a todos; e a deixar a decisão da salvação ou perdição à vontade de cada um por si mesmo. Não somos criminosos condenados dentre os quais a soberania possa perdoar a uns e não a outros, mas criaturas racionais, tendo todos o mesmo e válido direito sobre nosso Criador a receber todo o necessário para nossa salvação. Mas a questão não é qual destas teorias é a mais agradável, mas qual é a verdadeira. E para decidir esta questão, um método é determinar qual concorda melhor com os fatos providenciais. Age Deus em Seus procedimentos providenciais com os homens com base nos princípios de Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 454 soberania, distribuindo Seus favores com base no beneplácito de Sua vontade; ou sobre a base da justiça imparcial, tratando com todos os homens sobre uma base de igualdade? Esta pergunta só admite uma resposta. Pode ser que minimizemos muito as meras circunstâncias externas, e que engrandeçamos tanto como possamos as compensações da providência que tendem a nivelar a condição dos homens. Podemos enfatizar até o extremo o princípio de que muito se demandará dos que muito receberam, e menos dos que menos. Além destas qualificações e limitações, é evidente o fato de que existem certamente as maiores desigualdades entre os homens; que Deus trata de maneira muito mais favorável a uns que a outros; que Ele distribui as Suas bênçãos providenciais, que incluem não apenas o bem temporal, mas também vantagens e oportunidades religiosas, como soberano absoluto segundo o Seu próprio beneplácito, e não como um juiz imparcial. O tempo para o juízo ainda não chegou. Esta soberania de Deus na dispensação de Sua providência fica evidenciada em Seus procedimentos tanto com as nações como com os indivíduos. Não se pode crer que a sorte dos ladrões seja tão favorável como a dos moradores da zona temperada; nem que os hotentotes tenham uma posição tão desejável como a dos europeus; nem que as pessoas da Tartária estejam com tanto bem-estar como as dos Estados Unidos. A desigualdade é muito patente para podê-la negar; como tampouco se pode duvidar de que a norma que Deus adota na determinação da sorte das nações é Seu próprio beneplácito, e não as demandas relativas das pessoas afetadas por Sua providência. Este mesmo fato não é menos evidente com relação aos indivíduos. Alguns são ditosos, outros são desgraçados. Alguns têm uma saúde de ferro; outros são vítimas de doenças e sofrimentos. Alguns têm todas as suas faculdades, enquanto que outros nascem cegos ou surdos. Alguns são ricos, outros estão afundados na desgraça e degradação da mais abjeta pobreza. Alguns nasceram no meio da sociedade civilizada e no seio de famílias virtuosas, mas outros estão rodeados de vícios e maldade desde Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 455 o próprio começo de sua existência. Estas são realidades inegáveis. Como tampouco se pode negar que a sorte de cada indivíduo fica determinada pelo soberano beneplácito de Deus. O mesmo princípio é aquele que se leva a cabo com relação à comunicação do conhecimento e vantagens da religião. Deus escolheu os judeus dentre todas as famílias da terra para que fossem os receptores dos Seus oráculos e das ordenanças divinamente instituídas da religião. O resto do mundo ficou durante séculos numa total escuridão. Podemos dizer que será mais passível no dia do juízo para os pagãos que para os judeus incrédulos; e que Deus não deixou sequer os gentios sem testemunho. Tudo isto pode admitir-se, e entretanto fica em pé o que diz o Apóstolo: As vantagens do judeu eram sumamente grandes. Seria estultícia e ingratidão da parte dos moradores da Cristandade não reconhecer sua posição como indescritivelmente mais desejável que a dos pagãos. Nenhum cristão americano pode persuadir-se a si mesmo de que teria sido melhor se tivesse nascido na África; e tampouco pode dar resposta a esta pergunta: Por que nasci aqui, e não ali? além de: «Sim, Pai, porque assim te agradou». Por isso, de nada serve adotar uma teoria que não concorde com estes fatos. É em vão que neguemos que Deus é soberano na distribuição de Seus favores se é inegável que em Sua providência Ele age como soberano. O Agostinianismo concorda com estas fatos da providência, e por isso deve ser verdadeiro. Só pressupõe que Deus age na dispensação de Sua graça precisamente como age na distribuição de Seus outros favores; e todos os sistemas anti-agostinianos que estejam baseados no princípio de que esta soberania de Deus é inconsequente com sua justiça e com sua relação paterna com os filhos dos homens está em evidente conflito com os fatos de Sua providência. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 456 Argumento com base nos fatos da Escritura A terceira fonte de prova a respeito desta questão encontra-se nos fatos da Bíblia, ou nas verdades que se revelam sinceramente nela. O Agostinianismo é o único sistema consequente com estes fatos ou verdades. 1. Isto se evidencia primeiro com base na clara revelação que a Escritura faz de Deus como imensamente exaltado acima de todas as Suas criaturas, e como o fim último assim como a fonte de todas as coisas. É porquanto Ele é imensamente grande e bom que Sua glória é o fim de todas as coisas, e que Seu beneplácito é a mais elevada razão de tudo o que vem a suceder. O que é o homem para que brigue com Deus, ou que mantenha que são seus interesses antes que os de Deus os que devem ser o fim último? As Escrituras não só afirmam a absoluta soberania de Deus, mas também ensinam que está baseada, primeiro, em Sua infinita superioridade sobre todas as criaturas; segundo, sobre Sua relação com o mundo e tudo o que contém, como Criador e Preservador, e por isso como dono absoluto; e, em terceiro lugar, pelo que respeita a nós os homens, em nossa total perda de todo direito quanto à Sua misericórdia, por nossa apostasia. O argumento é que o Agostinianismo é o único sistema que concorda com o caráter de Deus e com Sua relação com as Suas criaturas tal como se revela na Bíblia. 2. É um fato que os homens são uma raça caída; que por sua alienação de Deus estão envoltos num estado de culpa e de contaminação, do qual não se podem libertar a si mesmos. Pela culpa que contraíram perderam todo direito perante a justiça de Deus; com toda justiça poderiam ser deixados em perdição; e por sua depravação fizeram-se totalmente incapazes de voltar a Deus, ou para não fazer nada espiritualmente bom. Estes são alguns fatos já demonstrados. O sentimento de culpa é universal e indestrutível. Todos os pecadores conhecem o justo juízo de Deus, e que são dignos de morte. A incapacidade dos pecadores não é só declarada clara e repetidamente nas Escrituras, mas é demonstrada por toda a experiência, pela comum Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 457 consciência dos homens, e, naturalmente, pela consciência de cada pessoa individual, e especialmente de cada homem que tenha sido ou que seja verdadeiramente convencido do pecado. Mas se os homens são assim incapazes de mudar seus próprios corações, para preparar-se a si mesmos para esta mudança, ou para cooperar em sua produção, então devem ser falsos todos aqueles sistemas que pressupõem a capacidade do pecador e que mantêm que a distinção entre os que se salvam e os que se perdem radica no emprego feito desta capacidade. São contrários aos fatos. São inconsequentes com o que cada homem, no mais profundo de seu coração, sabe ser certo. O que se quer ilustrar quando as Escrituras comparam os pecadores com mortos, e inclusive com ossos secos, é sua total impotência. A este respeito, todos são iguais. Se Cristo passasse por um cemitério, e dissesse a um ou a outro que saísse, a razão pela qual alguém seria restaurado à vida e outro não, só poderia encontrar-se em Seu beneplácito. Pela própria natureza do caso, não se poderia encontrar nos próprios mortos. Por isso, se as Escrituras, a observação e a consciência nos ensinam que os homens são incapazes de restaurar-se a si mesmos à vida espiritual, o fato de que sejam vivificados tem que ser atribuído ao beneplácito de Deus. Pela obra do Espírito 3. Isto fica confirmado por outro evidente fato ou verdade da Escritura. A regeneração do coração humano, a conversão de um pecador a Deus é a obra, não daquele que recebe essa mudança, mas do Espírito de Deus. Isto fica claro, primeiro porque a Bíblia sempre o atribui ao Espírito Santo. Diz-se que nascemos não da vontade do homem, mas de Deus; que somos nascidos do Espírito; que somos sujeitos da renovação do Espírito Santo; que somos vivificados, ou ressuscitados dentre os mortos pelo Espírito do Senhor; os ossos secos vivem só quando o Espírito sopra sobre eles. Esta é a descrição que impregna as Escrituras do princípio ao fim, Segundo, a Igreja, portanto, em sua capacidade coletiva, e cada membro vivo da Igreja, reconhecem Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 458 esta verdade em suas orações em petição do poder renovador do Espírito Santo. Nos mais antigos e reconhecidos credos da Igreja, o Espírito é designado como τὸ ζωοποιόν - to zoopoion, o doador da vida; o autor de toda vida espiritual. A soberania envolvida nesta influência regeneradora do Espírito Santo fica claramente implicada na natureza do poder que se exerce. Declara-se que é o grande poder de Deus; a sobrepujante grandeza de Seu poder; o poder que operou em Cristo, ressuscitando-O dentre os mortos. Apresenta-se como análogo ao poder com aquele que fez os cegos verem, os surdos ouvirem, e com aquele que foram limpos os leprosos. É bem verdade que o Espírito ilumina, ensina, convence, persuade e, numa palavra, governa a alma segundo sua natureza como criatura racional. Mas tudo isto se relaciona com o que se faz no caso dos filhos de Deus depois de sua regeneração. A repartição de vida espiritual é uma coisa; o sustento, controle e abrigo desta vida é outra. Se a Bíblia nos ensina que a regeneração, ou ressurreição espiritual, é a obra do poder onipotente de Deus, análogo ao que exercitou Cristo quando disse: «Quero, sê limpo», então, segue-se necessariamente que a regeneração é um ato de soberania. Depende de Deus, o doador da vida, e não dos que estão espiritualmente mortos, decidir quem são os que devem viver, e os que permanecem em seus pecados. A convicção íntima do povo de Deus em todas as eras foi e é que a regeneração, ou infusão de vida espiritual, é um ato do poder de Deus exercido segundo o Seu beneplácito, e por isso é o dom pelo qual a Igreja ora de maneira especial. Mas este fato envolve a verdade do Agostinianismo, que simplesmente ensina que a razão pela qual um homem é regenerado e outro não, e por conseguinte um é salvo e outro não, é o beneplácito de Deus. Ele tem misericórdia de quem quer ter misericórdia. É verdade que Ele manda a todos os homens que busquem Sua graça, e promete que os que buscam, acharão. Mas, por que um busca, e o outro não? Por que um fica impressionado diante da importância da salvação, enquanto que outros permanecem indiferentes? Se é verdade que não só a regeneração vem de Deus, mas Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 459 também todos os pensamentos retos e propósitos justos, é dEle e não de nós que buscamos e achamos o Seu favor. A Eleição é para a Santidade 4. Outro fato claramente revelado é o de que somos escolhidos para a santidade; que somos criados para boas obras; em outras palavras, que todo o bem em nós é o fruto, e por isso que não pode ser a base da eleição. No Ef 1:3-6 diz o Apóstolo: «Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado com toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo, assim como nos escolheu nele antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante ele; e em amor nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade, para louvor da glória de sua graça, que ele nos concedeu gratuitamente no Amado.» Nesta passagem se expõe a doutrina Agostiniana da eleição de uma maneira tão clara e inclusiva como jamais tenha sido apresentada na linguagem humana. O Apóstolo ensina: (1) Que o fim ou desígnio de todo o esquema da redenção é o louvor da glória da graça de Deus, isto é, a exibição perante a admiração das criaturas inteligentes dos gloriosos atributos da graça divina, ou o amor de um Deus imensamente santo e justo para com pecadores contaminados e culpados. (2) A este fim, por Seu mero beneplácito, Ele predestinou àqueles que eram os objetos de Seu amor à exaltada dignidade de ser os filhos de Deus. (3) Que para prepará-los para este sublime estado, escolheu-os, antes da fundação do mundo, para que fossem santos e sem mancha em amor. (4) Que em consequência desta eleição, ou na execução deste propósito, Ele confere sobre eles todas as bênçãos espirituais, regeneração, fé, arrependimento e a morada do Espírito. É totalmente incompatível com este fato que a base da eleição seja o prévio conhecimento da fé e do arrependimento. Os homens, segundo o Apóstolo, arrependem-se e creem porque são escolhidos; Deus os escolheu para que sejam santos, e por isso sua santidade ou bondade em forma ou medida alguma não podem ser a Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 460 razão de que tenham sido escolhidos. Do mesmo modo diz o apóstolo Pedro que os crentes foram escolhidos «para a obediência e a aspersão do sangue de Jesus Cristo» (1Pe 1:2). Esta é a clara doutrina da Bíblia: os homens são escolhidos para que sejam santos. O fato de que Deus os tenha destinado para a salvação é a razão pela qual são levados ao arrependimento e a uma vida santa, «Devemos sempre dar sempre graças a Deus por vós,» diz Paulo aos Tessalonicenses (2Ts 2:13), «porque Deus vos escolheu desde o princípio para a salvação, pela [não, devido a] santificação do Espírito e fé na verdade.» «Damos, sempre, graças a por todos vós, mencionando-vos em nossas orações e, sem cessar, recordando-nos, diante do nosso Deus e Pai, da operosidade da vossa fé, da abnegação do vosso amor e da firmeza da vossa esperança em nosso Senhor Jesus Cristo, reconhecendo, irmãos, amados de Deus, a vossa eleição» (1Ts 1:2-4). Ele reconhece a eleição deles como a fonte de sua fé e amor. Pela natureza gratuita da salvação. 5. Outro fato decisivo é que a salvação é pela graça. As duas ideias de graça e obras; de dom e dívida; de favor imerecido e o que é merecido; do que se deve atribuir ao beneplácito do doador e o que se deve atribuir ao caráter ou estado do receptor, são mutuamente contraditórias. Uma exclui a outra. «E, se é pela graça, já não é pelas obras; do contrário, a graça já não é graça» (Rm 11:6). Nada a respeito do plano de salvação é mais claramente revelado, nem sobre nada se enfatiza de maneira mais intensa, que a respeito de sua gratuidade, do princípio ao fim. «Pela graça sois salvos» está sobrecarregado em quase cada página da Bíblia, e nos corações de todos os crentes. (1) Foi questão de graça que se dispusesse um plano de salvação para o homem caído, e não para os anjos caídos. (2) Foi pela graça que este plano foi revelado a umas partes de nossa raça e não a outras. (3) A aceitação ou justificação de cada herdeiro individual da salvação é assunto de graça. (4) A obra da santificação é uma obra de graça, isto é, uma obra efetuada pelo poder Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 461 imerecido, sobrenatural, do Espírito Santo. (5) É pela graça que dos que ouvem o evangelho alguns aceitem a graça que lhes é oferecida, enquanto que outros a rejeitam. Todos estes pontos estão tão claramente ensinados na Bíblia que são praticamente reconhecidos por todos os cristãos. Embora se negam para dar satisfação ao entendimento, são aceitos pelo coração, tal como fica evidente nas orações e louvores da Igreja em todas as eras e em todas as suas divisões. Que a chamada ou regeneração do crente é pela graça, isto é, que o fato de sua chamada deve ser atribuído a Deus, e não a nada nele mesmo, é algo a respeito do que o Apóstolo Paulo insiste de maneira especial em quase todas as suas epístolas. Por exemplo, em 1Co 1:17-31. Tinha-lhe sido objetado que não pregava «com sabedoria de palavras». Ele se vindicou mostrando, primeiro, que a sabedoria dos homens de nada lhe havia valido para alcançar o conhecimento salvador de Deus; e segundo, que quando o evangelho da salvação foi revelado, não foram os sábios os que o aceitaram. Como prova deste último ponto, apelou à própria experiência deles. Referiu-se ao fato que dentre eles Deus não tinha escolhido os sábios, os grandes ou os nobres, mas os insensatos, os fracos e os menosprezados. Deus o fez. Era Ele que tinha decidido quem deveria ser levado a aceitar o Evangelho, e quais seriam deixados entregues a si mesmos. Ele tinha um propósito nisto, e este propósito era que aqueles que se gloriam, gloriem-se no Senhor, isto é, que ninguém pudesse atribuir sua salvação (o fato de que esteja salvo, enquanto que outro não o está) a si mesmo. Porque, acrescenta o Apóstolo, é por Ele que estamos em Cristo Jesus. Nossa união com Cristo, o fato de que somos crentes, deve ser atribuído a Ele, e não a nós mesmos. O argumento do Apóstolo em Romanos 9 Este é também o propósito do Apóstolo na totalidade do nono capítulo de sua Epístola aos Romanos. Ele tinha afirmado, em concordância com as predições dos antigos profetas, que os judeus, como nação, seriam desprezados, enquanto que as bênçãos da verdadeira Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 462 religião seriam estendidas aos gentios. Para provar este ponto, mostra primeiro que Deus não estava ligado por Sua promessa a Abraão a salvar a todos os descendentes naturais do patriarca. Ao contrário, que era uma prerrogativa que Deus, como soberano, reivindicava e exercia, ter misericórdia de quem quisesse, e de rejeitar a quem quisesse. Escolheu a Isaque em lugar da Ismael, a Jacó e não a Esaú, e, neste caso, para demonstrar que a eleição era perfeitamente soberana, foi anunciada antes do nascimento dos crianças, antes que tivessem feito bem ou mal. Endureceu a faraó. Deixou-o a si mesmo para que fosse um monumento de Sua justiça. Este direito, que Deus reivindica e exerce, de escolher a quem Ele quer para ser receptor de Sua misericórdia, não envolve injustiça alguma, como nos ensina o Apóstolo. Ninguém tem direito a queixar-se se, para manifestação de Sua misericórdia, salva a alguns da culpada família humana; e para mostrar Sua justiça, deixa a outros que levem a justa retribuição de seus pecados. Deus, como nos diz Paulo, agiu com base neste principio com os judeus. A nação como nação foi desprezada, mas foi salvo um remanescente. E este remanescente foi mesmo uma «eleição da graça», isto é, pessoas escolhidas gratuitamente. O próprio Paulo era uma ilustração desta eleição, e uma prova de sua natureza totalmente gratuita. Ele era um perseguidor e blasfemo, e enquanto estava lançado precisamente à atividade de sua maligna oposição, foi repentina e milagrosamente convertido. Aqui, se não em nenhum outro caso, a eleição foi pela graça. Não havia nada em Paulo que o distinguisse favoravelmente com relação a outros fariseus incrédulos. Não podia ser o prévio conhecimento de sua fé e arrependimento a base de sua eleição, porque foi levado à fé e ao arrependimento pela soberana e irresistível intervenção de Deus. Entretanto, o que foi certo de Paulo é certo de todos os outros crentes. Todo aquele que é levado a Cristo é levado de tal maneira que lhe é revelado à sua própria consciência, e é abertamente confessado com a boca, que seu conversão é de Deus e não dele mesmo; que ele é um Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 463 monumento da eleição de graça; que ele, ao menos, não foi escolhido devido aos seus merecimentos. O argumento da experiência. Toda a história da Igreja, e a diária observação dos cristãos, demonstra a soberania de Deus na dispensação de bênçãos salvadoras, soberania pela qual disputam os Agostinianos. É certo, e certamente primordial, que Deus é um Deus que guarda a aliança, e que Sua promessa é para o Seu povo e para sua descendência após eles até a terceira e quarta geração. Por isso, é verdade que Sua graça é dispensada, embora não de maneira exclusiva, mas de maneira conspícua, na linha de seus descendentes. Segundo, também é verdade que Deus prometeu que Seu bênção acompanhará o ensino fiel. Ele manda aos pais que criem a seus filhos na disciplina e admoestação do Senhor; e lhes promete que se forem instruídos no caminho em que devem ir, embora sejam velhos não se apartarão dele. Mas não é verdade que a regeneração seja produto da cultura. Os homens não podem ser transformados em cristãos pela educação, como podem ser instruídos para receber conhecimento ou moral. A conversão não é o resultado do desenvolvimento de um germe de vida espiritual comunicado no batismo nem derivado por descendência de pais piedosos. Tudo está em mãos de Deus. Assim como quando Cristo estava na terra curou a um e a outro mediante uma palavra, assim agora mediante Seu Espírito Ele cura a quem quer. Este fato está demonstrado por toda a história. Alguns períodos da Igreja foram notáveis por estas exibições de Seus poderes, enquanto que outros passaram com poucas manifestações incidentais de Sua graça salvadora. Na era Apostólica houve milhares de conversões; muitos eram acrescentados diariamente à Igreja dos que deviam ser salvos. Logo, na era Agostiniana houve uma ampla difusão da influência salvadora do Espírito. Ainda mais conspícuo foi este caso na Reforma. Depois de uma longa decadência na Grã-Bretanha veio o maravilhoso avivamento da verdadeira religião sob Wesley e Whitefield. Contemporaneamente se Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 464 deu um grande despertar por todo este país. E assim, de tempos em tempos, e em todas as partes da Igreja, vemos as evidências das intervenções especiais e soberanas de Deus. A soberania destas dispensações é igualmente manifesta como a exibida nos sete anos de abundância e os sete anos de escassez na época de José. Cada pastor, quase cada pai, podem dar testemunho da mesma verdade. Oram e trabalham durante longo tempo, e aparentemente sem êxito; e logo, frequentemente quando não o esperam, vem o derramamento do Espírito. Têm lugar mudanças no estado e caráter dos homens que ninguém pode produzir nos demais; e que ninguém pode produzir em si mesmo; mudanças que devem ser atribuídos à ação imediata do Espírito de Deus. Estes são fatos. Não podem ser negados razoavelmente. Não podem ser racionalizados. Demonstram que Deus age como soberano na distribuição de Sua graça. E com esta realidade não se pode reconciliar outro esquema mais que o Agostiniano. Se a salvação é pela graça, como as Escrituras ensinam claramente, então não é por obras, tanto se forem reais como se são vistas antecipadamente. As declarações expressas da Escritura 6. As Escrituras declaram claramente que Deus tem misericórdia de quem quer ter misericórdia, e compaixão de quem Ele quer ter compaixão. Ensinam, em sentido negativo, que a eleição para a salvação não é por obras; que não depende do caráter ou esforço de seus objetos; e, afirmativamente, que depende de Deus. Atribui-se a Seu beneplácito. declara-se que é dEle, que é de graça. Já se citaram passagens nas quais se fazem estas declarações negativas e afirmativas. Em Rm 9 diz-se que a eleição não é em virtude das obras, «mas daquele que chama». «Assim que não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus que tem compaixão». Como no tempo de Elias, em meio de uma apostasia geral, Deus disse: «Reservei-me sete mil homens, que não dobraram o joelho perante Baal» (Rm 11:4, cf. 1Rs 19:18). «Assim, pois, também agora, no tempo de hoje, sobrevive um remanescente segundo a eleição da graça. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 465 E, se é pela graça, já não é pelas obras; do contrário, a graça já não é graça.» (Rm 11:5,6). Assim diz-se em Rm 8:30: «E aos que predestinou, a esses também chamou», isto é, regenerou e santificou. A regeneração segue a predestinação à vida, e é o dom de Deus. Paulo diz de si mesmo: «Quando aprouve a Deus, que me separou desde o ventre de minha mãe e me chamou pela sua graça, revelar seu Filho em mim» (Gl 1:15, 16, TB). Diz aos Efésios que os que obtêm a herança são aqueles que foram «predestinados conforme o propósito daquele que faz tudo segundo o conselho da sua vontade» (Ef 1:11). Em 2Tm 1:9 [TB] diz que somos salvos «segundo o seu propósito e segundo a graça que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos tempos eternos». O Apóstolo Tiago diz (Tg 1:18): «Segundo o seu querer, ele nos gerou pela palavra da verdade, para que fôssemos como que primícias das suas criaturas.» O Apóstolo Pedro fala daqueles que «tropeçam na palavra, sendo desobedientes; para o que também foram destinados» (1Pe 2:8, RC). E Judas refere-se a certos homens que «se introduziram com dissimulação, os quais, desde muito, foram antecipadamente pronunciados para esta condenação» (Jd 4). Esta predestinação para condenação é certamente uma ação judicial, como se ensina em Rm 9:22. Deus não condena a ninguém nem predestina a ninguém para condenação, exceto devido ao pecado. Mas o fato de deixar de lado a tais homens, abandonando-os a sua própria sorte, e não a outros igualmente culpados, para sofrer a pena de seus pecados, é declarado de maneira distintiva como um ato soberano. As palavras de Jesus De todos os mestres enviados por Deus para revelar Sua vontade, nenhum declara de maneira mais frequente a divina soberania que nosso próprio bendito Senhor. Ele fala daqueles que o Pai lhe tinha «dado» (Jo 17:2). A estes Ele lhes dá vida eterna (Jo 17:2,24). É por esses que ora; por eles que Se santificou (Jo 17:19). Deles diz Ele que é a vontade do Pai que não se perca nenhum, mas que os ressuscite no dia último (Jo 6:39). Por isso, estão em perfeita segurança. «As minhas ovelhas ouvem Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 466 a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão, e ninguém as arrebatará da minha mão. Aquilo que meu Pai me deu é maior do que tudo; e da mão do Pai ninguém pode arrebatar» (Jo 10:27-29). Assim como as ovelhas de Cristo são escolhidas dentre o mundo e Lhe são dadas, é Deus quem escolhe. Elas não O escolhem a Ele, mas Ele a elas. Ninguém pode ser acrescentado ao número delas, e este número será certamente completado. «Todo aquele que o Pai me dá, esse virá a mim; e o que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora» (Jo 6:37). «Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer; e eu o ressuscitarei no último dia» (Jo 6:44). «Portanto, todo aquele que da parte do Pai tem ouvido e aprendido, esse vem a mim» (Jo 6:45). «Ninguém poderá vir a mim, se, pelo Pai, não lhe for concedido» (Jo 6:65). A Deus pertence quem vai ser trazido ao conhecimento salvador da verdade. «A vós outros é dado conhecer os mistérios do reino dos céus, mas àqueles não lhes é isso concedido» (Mt 13:11). «Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos» (Mt 11:25). Em At 13:48 diz-se: «e creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna». Assim, as Escrituras dizem que o arrependimento, a fé e a renovação do Espírito Santo são dons de Deus. Cristo foi exaltado à direita de Deus para dar arrependimento e perdão de pecados. Mas se a fé e o arrependimento são dons de Deus, devem ser resultado da eleição. É impossível que sejam seu motivo. Se o papel do teólogo, como é tão geralmente admitido, é tomar os fatos das Escrituras como o homem de ciência os da natureza, e encontrar neles suas doutrinas, em lugar de deduzir suas doutrinas dos princípios ou verdades primárias de sua filosofia, parece impossível resistir à conclusão de que a doutrina de Agostinho é a doutrina da Bíblia. Segundo esta doutrina, Deus é absolutamente soberano. Faz o que parece bem aos Seus olhos. Envia a verdade a uma nação e não a outra. Dá um poder salvador àquela verdade numa mente, e não em outra. É Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 467 dele, e não de nós, que qualquer homem está em Cristo Jesus, e que é herdeiro da vida eterna. Isto, como se viu, declara-se em termos expressos, com grande frequência e clareza nas Escrituras. É sustentado por todos os fatos da providência e da revelação. Não se atribui a Deus nada senão o que está demonstrado, por meio de Seu real governo do mundo, como sendo Sua prerrogativa de direito. Só ensina que Deus Se propõe aquilo que vemos com nossos próprios olhos que Ele faz verdadeiramente, e que sempre tem feito, nas dispensações de Sua providência. Por isso, o oponente consequente desta doutrina tem que rejeitar inclusive as verdades da religião natural. Porquanto o Agostinianismo concorda com os fatos da providência, concorda naturalmente com os fatos da Escritura. A Escritura declara que a salvação dos pecadores é uma questão de graça; e que o grande desígnio de todo o esquema da redenção é exibir a glória daquele atributo divino, exibir perante a admiração do universo inteligente, e para sua edificação, o imerecido amor de Deus e Sua ilimitada beneficência para com algumas criaturas culpadas e contaminadas. Por isso, os homens ficam descritos como mergulhados em estado de pecado e de miséria; não podem libertar-se a si mesmos deste estado; para a redenção deles, Deus enviou o Seu Filho eterno para que assumisse a natureza deles, obedecesse, e sofresse em lugar deles; e a Seu Espírito Santo para que aplicasse a redenção adquirida pelo Filho. A introdução do elemento de mérito em nenhuma parte deste esquema vicia sua natureza e frustra seus desígnios. A não ser que nossa salvação seja de graça do princípio ao fim, não é uma exibição de graça. A Bíblia, entretanto, ensina-nos que foi pela graça que se fez a provisão da salvação; que foi revelada a uma nação, e não a outra; e que foi aplicada a uma pessoa e não a outra. Ensina que toda bondade do homem deve-se à natureza do Espírito Santo, e que todas as bênçãos espirituais são o fruto da eleição; que somos escolhidos para santidade, e criados para boas obras, porquanto estamos predestinados para ser filhos de Deus. Com estes fatos da Escritura concorda a experiência dos cristãos. É a Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 468 íntima convicção de cada crente, baseada no testemunho de sua própria consciência, assim como sobre o fato das Escrituras, que sua salvação provém de Deus; que é dEle, e não de si mesmo, que foi levado a exercer fé e arrependimento. Enquanto que olha em seu interior, o crente está satisfeito a respeito da veracidade destas doutrinas. É só quando olha fora, e tenta conciliar estas verdades com os ditados de seu próprio entendimento, que fica confundido e se torna cético. Mas porquanto nossa fé não está baseada na sabedoria dos homens, mas no poder de Deus, como a insensatez de Deus é mais sábia que os homens, o sábio, assim como nosso caminho de dever e de segurança, é receber como verdadeiro o que Deus revelou, quer possamos compreender de maneira perfeita os Seus caminhos, ou não. § 9. Objeções ao esquema Agostiniano Não se pode negar que existem objeções consideráveis à doutrina Agostiniana da soberania divina. Impactam ainda mais poderosamente os sentimentos e à imaginação que ao entendimento. Por isso, apresentamse geralmente de umas formas tão distorcidas e exageradas para produzir a mais intensa repugnância e desgosto. Entretanto, isso é devido em parte à distorção da verdade, e em parte à oposição de nossa natureza imperfeitamente ou nada santificada às coisas do Espírito, das quais fala o Apóstolo em 1Co 2:14. Entretanto, pode-se observar em geral, a respeito destas objeções, que não militam exclusivamente contra esta doutrina. Um dos usos injustos da controvérsia é apresentar dificuldades que têm a mesma força contra alguma doutrina admitida como válida só contra a doutrina que rechaça o impedimento. Assim, as objeções contra o Agostinianismo, nas quais descansa de maneira particular, também podem-se usar no mesmo sentido contra os decretos de Deus em geral; ou, se estes forem negados, contra a presciência de Deus; contra a permissão do pecado e da desgraça, e especialmente contra a doutrina da pecaminosidade e Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 469 desgraça eterna de muitas das criaturas inteligentes de Deus. Estas são doutrinas admitidas por todos os cristãos, e que são apresentadas pelos incrédulos e ateus com umas cores tão chocantes para a imaginação e os sentimentos como o fazem os anti-agostinianos ao descrever a soberania de Deus. É igualmente difícil reconciliar com nossas ideias naturais de Deus que Ele, com um controle absoluto sobre todas as criaturas, permitisse que tantas delas se percam eternamente que o fato de que Ele salve a uns e não a outros. A dificuldade é, em ambos os casos, a mesma. Deus não impede a perdição daqueles aos que, sem dúvida de nenhuma classe, Ele tem poder para salvar. Se os que admitem a providência de Deus dizem que Ele tem sábias razões para permitir que pereçam tantos de nossa raça, os defensores de Sua soberania dizem que Ele tem razões adequadas para salvar a alguns e não a outros. É irrazoável e injusto, por isso, enfatizar dificuldades que também militam contra verdades admitidas como se fossem fatais a doutrinas controvertidas. Quando uma objeção prova demais, fica por isso mesmo refutada racionalmente. As mesmas objeções militam contra a Providência de Deus Uma observação geral a respeito destas objeções é que militam contra a providência de Deus. Isto já se viu. É inútil e irracional argumentar contra fatos. De nada servirá dizer que é injusto em Deus tratar uma nação mais favoravelmente que a outra, a um indivíduo que a outro, se de fato Ele age como soberano na distribuição de seus favores. Que Ele age de tal maneira é inegável pelo que concerne às bênçãos providenciais e às vantagens religiosas. E isto é tudo o que afirma o Agostinianismo com relação às dispensações de Sua graça. Por isso, se for demonstrado ser falso o princípio sobre o qual se baseiam estas objeções por meio dos fatos verdadeiros da providência, as objeções não podem ser válidas contra o esquema Agostiniano. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 470 Baseadas em nossa ignorância. Uma terceira e evidente observação é que estas objeções são subjetivas, isto é, derivam toda sua força da limitação de nossos poderes e da estreiteza de nossas perspectivas. Supõem que somos aptos para sentar-nos a julgar o governo de Deus do universo; que podemos determinar que fim Ele tem em vista, e avaliar de maneira correta a sabedoria e a justiça dos meios adotados para sua execução. Esta é evidentemente uma pressuposição absurda, não só devido à nossa total incapacidade para compreender os caminhos de Deus, mas também porque necessariamente devemos julgar antes da consumação de Seu plano, e também porque temos que julgar pelas aparências. Inclusive quando julgamos a respeito dos planos de um mortal como nós, é justo que esperemos até que estejam totalmente desenvolvidos, e também é justo que não deveríamos julgar até que estejamos seguros de conhecer suas verdadeiras intenções, e a relação dos meios com o fim. Além disso, deve-se observar que estas dificuldades surgem de nossa contemplação, por assim dizer, de um só aspecto do caso. Observamos só a soberania de Deus e a natureza absoluta de Seu controle sobre Suas criaturas. Perdemos de vista, ou somos incapazes de compreender a perfeita consistência desta soberania e controle com o livre-arbítrio e a responsabilidade de Suas criaturas racionais. É perfeitamente verdadeiro, num aspecto, que Deus decide com base em Seu beneplácito qual seja o destino de cada ser humano; e é igualmente certo, em outro aspecto, que cada homem determina seu próprio destino. Estas verdades podem ficar estabelecidas, cada uma delas, sobre a mais firme base. Por isso, a consistência das mesmas pode ser admitida como um fato, inclusive embora não possamos ser capazes de descobri-la. Das multidões que se lançam à perseguição da fama, da riqueza ou do poder, alguns triunfam, outros fracassam. O êxito e o fracasso, em todo caso, ficam determinados pelo Senhor. Isto é claramente expresso na Bíblia: «A um abate, a outro exalta», diz o Salmista (Sl 75:7). «O SENHOR empobrece e enriquece» (1Sm 2:7). «O SENHOR o deu e o SENHOR o Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 471 tomou; bendito seja o nome do SENHOR!» (Jó 1:21). «É ele o que te dá força para adquirires riquezas» (Dt 8:18). «Ele dá sabedoria aos sábios e entendimento aos inteligentes» (Dn 2:21). «O Altíssimo tem domínio sobre o reino dos homens; e o dá a quem quer» (Dn 4:17). Esta é uma verdade da religião natural. Todos os homens, cristãos ou não cristãos, oram pedindo o êxito de suas empresas. Reconhecem o controle providencial de Deus sobre os assuntos dos homens. Não obstante, eles estão plenamente conscientes da consistência deste controle com seu próprio livre-arbítrio e responsabilidade. Cada homem que faz da aquisição da riqueza seu fim na vida está consciente que é sua livre eleição. Ele faz seus próprios planos; adota seus próprios meios; e age com tanta liberdade e tão de acordo com os ditames de sua própria vontade como se não existisse a providência. E isto não é um engano. Ele é perfeitamente livre. Seu caráter se expressa na escolha que faz do fim que quer alcançar. Não pode deixar de reconhecer sua responsabilidade por esta escolha, e por todos os meios que adota para levar seus propósitos a bom fim. Tudo isto é certo na esfera da religião. Deus põe a vida e a morte diante de cada homem que ouve o evangelho. Adverte-o das consequências de uma má escolha. Apresenta-lhe e enfatiza todas as considerações que deveriam levá-lo a uma decisão correta. Assegura ao pecador que se deixar seu pecado e voltar ao Senhor, será perdoado e aceito. Promete que se pedir, receberá; que se buscar, achará. Assegura-lhe que Ele está mais disposto a dar Seu Santo Espírito que os pais a dar pão a seus filhos. Mas se apesar de tudo isso prefere deliberadamente o mundo, recusa buscar a salvação de sua alma da maneira assinalada, e finalmente perece, ele é totalmente responsável por seu caráter e conduta, e pela perdição de sua alma, do mesmo modo que o homem do mundo é responsável por sua perseguição das riquezas. Em ambos os casos, e igualmente em ambos, a disposição soberana de Deus é consistente com a liberdade e a responsabilidade dos agentes. Por isso, é só ao contemplar a metade da verdade que se aumentam as dificuldades em questão até tal ponto. Os homens agem tão livremente Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 472 em religião como em qualquer outra área da vida; e quando perecem, isso é a obra de suas próprias mãos. Estas objeções foram levantadas contra os ensinos do Apóstolo Paulo Outra observação a respeito destas objeções não deveriam ser passadas por alto. Foram apresentadas pelos judeus contra a doutrina do Apóstolo. Isto demonstra ao menos que sua doutrina é nossa doutrina. Se ele não tivesse ensinado tudo o que os Agostinianos mantêm como verdadeiro, não teria havido lugar para tais objeções. Se ele tivesse negado que Deus dispensa a salvação segundo Seu beneplácito, tendo misericórdia de quem quer ter misericórdia, por que deviam enfatizar os judeus que Deus era injusto, e que se estava destruindo a responsabilidade do homem? Que aparência de injustiça teria existido se Paulo tivesse ensinado que Deus escolhe aqueles que Ele conhece antecipadamente que vão arrepender-se e crer, e que a eleição é devido a este conhecimento antecipado? É só porque Ele afirma claramente a soberania de Deus que se dá ocasião às objeções. As respostas que dá Paulo a estas dificuldades deveriam satisfazer-nos por duas razões; primeiro, porque são as respostas ditadas pelo Espírito de Deus; e segundo, porque são, em si mesmas, satisfatórias para toda mente retamente constituída. A primeira destas objeções é que é inconsistente com a justiça de Deus salvar a um e não a outro, segundo o Seu beneplácito. A isto replica Paulo: (1) Que Deus reivindica Sua prerrogativa. (2) Que a exerce realmente. É inútil negar os fatos; e dizer que o que Deus realmente faz é inconsistente com a Sua natureza. (3) Que é uma prerrogativa justa, baseada não só na infinita superioridade de Deus e em que Ele é dono de todas as Suas criaturas, mas também em Sua relação de Governador moral da raça de pecadores. Se inclusive um soberano humano tem o direito a exercer sua autoridade para perdoar a um criminoso e não a outro, certamente que não se pode negar esta Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 473 prerrogativa a Deus. Não pode haver injustiça em permitir que se execute a sentença de uma lei justa contra um delinquente. E isto é tudo o que Deus faz com relação aos pecadores. Outra dificuldade relacionada com esta questão que surge da preordenação do pecado pertence à questão dos decretos, e já foi considerada. O mesmo aplica-se à objeção de que a doutrina em questão destrói todo motivo para o esforço e para o uso dos meios da graça, e que reduz a doutrina das Escrituras a um sistema meramente fatalista. A tendência prática de qualquer doutrina deve ser decidida com base em sua natureza e por seus efeitos. O efeito natural da convicção de que perdemos todo direito diante da justiça de Deus, de que estamos à Sua mercê, e de que Ele poderia com justiça deixar-nos para que perecêssemos em nossos pecados, é levar-nos a buscar aquela misericórdia com ardor e importunidade. E a experiência da Igreja em todas as idades demonstra que este é o efeito da doutrina em questão. Não levou à negligência, nem a uma impassível indiferença, nem a uma rebelde oposição a Deus, mas antes, à submissão, ao reconhecimento da verdade, e a uma confiança certa em Cristo como o Salvador designado dos que merecem a perdição. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II CAPÍTULO II 474 A ALIANÇA DA GRAÇA § 1. O plano da salvação é uma Aliança. O plano da salvação apresenta-se sob a forma de uma aliança. Isto se faz evidente: Primeiro, pelo constante uso das palavras ּ בּ ְִרית- berite e διαθήκη diathêkê com referência ao mesmo. Com relação à primeira destas palavras, embora às vezes emprega-se para denotar uma lei, de um arranjo ou disposição em geral, em que estão ausentes os elementos de uma aliança num sentido estrito, não pode entretanto duvidar-se de que com base nos usos prevalecentes do Antigo Testamento denota um contrato mútuo entre duas ou mais partes. Com frequência emprega-se de acordos entre indivíduos, e especialmente entre reis e governantes. Abraão e Abimeleque fizeram uma aliança (Gn 21:27). Josué fez uma aliança com o povo (Js 24:25). Jônatas e Davi fizeram uma aliança (1Sm 18:3). Jônatas fez uma aliança com a casa de Davi (1Sm 20:16). Acabe fez uma aliança com Ben-Hadade (1Rs 20:34). E assim o vemos constantemente. Por isso, não se pode duvidar de que o termo ּ בּ ְִריתberite, quando se emprega de transações entre homem e homem, significa um acordo mútuo. Não temos direito a dar-lhe nenhum outro sentido quando se aplica das transações entre Deus e o homem Faz-se menção repetida da aliança de Deus com Abraão, como em Gn 15:18; 17:13, e depois com Isaque e Jacó. Logo com os israelitas no Monte Sinai. O Antigo Testamento está fundado nesta ideia de uma relação de aliança entre Deus e o povo teocrático. O significado da palavra διαθήκη - diathêkê nas Escrituras Gregas é igualmente seguro e uniforme. Deriva-se do verbo διατίθημι - diatithemi, dispor, e por isso emprega-se em grego comum para denotar qualquer acerto ou disposição. Nas Escrituras emprega-se de modo quase uniforme no sentido de aliança. Na Septuaginta usa-se como tradução de Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 475 ּ בּ ְִרית- berite em todos os casos que se mencionaram anteriormente. É o termo que sempre se emprega no Novo Testamento para designar a aliança com Abraão, com os israelitas e com os crentes. A velha aliança e a nova são apresentadas em contraste. Ambas eram alianças. Se a palavra tem significado quando se aplica à transação com Abraão e com os hebreus, deve ter o mesmo significado quando se aplica ao plano de salvação revelado no evangelho. Segundo, que o plano de salvação apresenta-se na Bíblia sob a forma de uma aliança fica demonstrado não só com base no significado e uso das palavras anteriormente mencionadas anteriormente, mas também e de maneira mais decisiva do fato de que neste plano estão incluídos os elementos de uma aliança. Há partes, promessas ou estipulações mútuas e condições. Assim que, de fato, trata-se de uma aliança, seja como for que se chame. Como esta é a descrição escriturística, é de grande importância retê-la em teologia. Nossa única segurança para reter as verdades da Bíblia é aderir-se às Escrituras de maneira tão estreita como é possível em nossa maneira de expor as doutrinas que nela se revelam. § 2. Diferentes pontos de vista da natureza desta aliança Muitos assumem que as partes da aliança da graça são Deus e o homem caído. Tendo o homem perdido, por sua apostasia, o favor de Deus, e perdido a imagem divina, e tendo ficado envolto em pecado e miséria, teria perecido neste estado se Deus não tivesse provido um plano de salvação. Movido de compaixão para com Suas criaturas caídas, Deus decidiu enviar o Seu Filho ao mundo, para que tomasse a natureza deles, e para que fizesse e padecesse o que fosse necessário para sua salvação. Sobre a base desta obra redentora de Cristo, Deus promete a salvação a todos os que se submetam a estes termos com base na qual se oferecem. Esta declaração geral abrange formas de opinião que diferem muito entre si. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 476 1. Inclui até a perspectiva Pelagiana do plano de salvação, que supõe que não há diferença entre a aliança das obras sob a qual Adão foi posto e a aliança da graça, sob a qual estão agora os homens, exceto quanto à magnitude da obediência necessária. Deus prometeu vida a Adão sob a condição de uma perfeita obediência, porque estava em condição de prestar esta obediência. Ele promete a salvação aos homens agora sob a condição daquela obediência que podem render, quer judeus, pagãos ou cristãos. Com base nesta postura, as partes da aliança são Deus e o homem; a promessa é a vida; a condição é a obediência, aquela que o homem, no uso de suas capacidades naturais pode render. 2. O sistema Remonstrante [Arminiano] não difere essencialmente do Pelagiano, quanto às partes, a promessa e a condição da aliança. Os Remonstrantes também apresentam a Deus e ao homem como as partes, a vida como a promessa, e a obediência como a condição. Mas eles consideram os homens caídos como num estado de pecado por natureza, como necessitando uma graça sobrenatural que é provida a todos, e que a obediência demandada é a obediência da fé, ou fides obsequiosa, fé que inclui e assegura a obediência evangélica. A salvação sob o evangelho é tão verdadeiramente pelas obras como sob a lei; mas a obediência exigida não é a justiça perfeita exigida de Adão, mas sim aquela que o homem caído pode agora levar a cabo com a ajuda do Espírito. 3. O Arminianismo Wesleyano exalta grandemente a obra de Cristo, a importância da influência do Espírito e a graça do Evangelho acima da norma adotada pelos Remonstrantes. Entretanto, os dois sistemas são essencialmente idênticos. A obra de Cristo tem uma referência igual a todos os homens. Assegura para todos a promessa da salvação incondicionada à obediência evangélica; e obtém para todos, judeus e gentios, uma medida suficiente da graça divina para tornar viável esta obediência. A salvação de cada homem individual depende do uso que faça desta graça suficiente. 4. Os Luteranos mantêm deste modo que Deus teve o sério propósito de salvar todos os homens; que Cristo morreu igualmente por Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 477 todos; que a salvação é oferecida a todos os que ouvem o Evangelho, com a condição não de obras ou de obediência evangélica, mas da fé somente; entretanto, a fé é dom de Deus; os homens não têm o poder de crer, mas têm poder para resistir eficazmente; e sob o evangelho os que perecem são aqueles, e só aqueles, que resistem teimosamente, e isso por esta razão. Com base em todas estas posturas, que foram enunciadas mais plenamente no capítulo anterior, a aliança da graça é um acordo entre Deus e o homem caído, em que Deus oferece a salvação com base no submissão às demandas do Evangelho. Quais são estas demandas, como já vimos, explica-se de maneira diferente. As distinções essenciais entre as posturas anteriormente mencionadas a respeito do plano de salvação, ou aliança da graça, e a postura do sistema agostiniano, são: (1) Que, com base no anterior, suas provisões têm a mesma referência com relação a toda a humanidade, enquanto que segundo este segundo têm referência específica com aquela parte da nossa raça que são realmente salvos; e (2) Que o Agostinianismo diz que é Deus e não o homem quem decide aqueles que devem salvar-se. Como já se observou frequentemente, a questão de quais destes sistemas sejam certos não deve ser decidida determinando qual é o mais grato aos nossos sentimentos, ou o mais plausível ao nosso entendimento, mas qual é consistente com as doutrinas da Bíblia e com os fatos da experiência. Este ponto já foi discutido. Nosso atual propósito é simplesmente expor o que os Agostinianos significam pela aliança da graça. A palavra graça emprega-se nas Escrituras e nos escritos religiosos em três sentidos. (1) Para denotar um amor imerecido, isto é, um amor exercido para com os imerecedores do mesmo. (2) Para denotar qualquer favor imerecido, especialmente bênçãos espirituais. Por isso, todos os frutos do Espírito nos crentes são chamados graças, ou dons imerecidos provenientes de Deus. (3) A palavra graça denota frequentemente a influência sobrenatural do Espírito Santo. Esta é uma graça preeminente, sendo o grande dom obtido pela obra de Cristo, e sem a qual Sua Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 478 redenção não serviria para nossa salvação. Em todos os sentidos da palavra o plano de salvação é propriamente chamado uma aliança da graça. É de graça porque se originou no misterioso amor de Deus para com os pecadores que mereciam só Sua ira e maldição. Segundo, porque promete a salvação não sob a condição das obras nem de nada meritório do nosso lado, mas sim como um dom imerecido. E, em terceiro lugar, porque seus benefícios são assegurados e são aplicados não no curso da natureza nem no exercício das capacidades naturais do pecador, mas pela influência sobrenatural do Espírito Santo, que lhe é concedida como um dom imerecido. § 3. As partes da Aliança. À primeira vista parece haver uma certa confusão nas declarações da Escritura a respeito das partes desta aliança. Às vezes é Cristo apresentado como uma das partes; em outras Ele é apresentado não como uma das partes, mas sim como mediador e objeto da aliança, enquanto que as partes apresentadas são Deus e Seu povo. Assim como a Velha Aliança foi concertada entre Deus e os hebreus, agindo Moisés como mediador, assim a nova aliança é usualmente exposta na Bíblia como concertada entre Deus e Seu povo, agindo Cristo como mediador. Por isso, Ele é chamado o mediador de uma melhor aliança, baseada em melhores promessas. Alguns teólogos propõem conciliar estas distintas descrições, dizendo que assim como a aliança das obras foi concertada com Adão como representante de sua raça, e por isso nele com toda a humanidade procedendo dele por geração comum, que igualmente foi a aliança da graça concertada com Cristo como cabeça e representante de Seu povo, e nEle com todos os que Lhe são dados pelo Pai. Isto simplifica a questão, e concorda com o paralelismo que faz o Apóstolo entre Adão e Cristo em Rm 5:12-21 e em 1Co 15:21, 22, 27-49. Contudo, não se elimina com isso a incongruência de que Cristo seja ao mesmo tempo apresentado Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 479 como parte e como mediador da mesma aliança. De fato, há duas alianças que têm que ver com a salvação do homem caído, uma entre Deus e Cristo, e outra entre Deus e Seu povo. Estes alianças diferem não só quanto às partes, mas também em suas promessas e condições. Ambas são apresentados de maneira tão clara na Bíblia que não deveriam ser confundidas. A última, a aliança da graça, baseia-se na primeira, a aliança da redenção. De uma Cristo é mediador e objeto; da outra Ele é uma das partes concertantes. Esta é uma questão que só tem que ver com a clareza da posição. Não há diferenças doutrinais entre os que preferem o primeiro enunciado e os que preferem o segundo; entre os que incluem todos os fatos da Escritura relacionados com o tema numa só aliança entre Deus e Cristo como representante de Seu povo, e os que as distribuem em duas. A confissão de Westminster parece às vezes adotar um modo de descrição, às vezes a outra. Na Confissão de Fé 297 diz-se: “O homem, por sua queda, fazendose a si mesmo incapaz de viver por aquela aliança [quer dizer, pela aliança das obras], o Senhor teve por bem fazer uma segunda, usualmente chamada a aliança da graça, em que Ele gratuitamente oferece a vida aos pecadores e a salvação por Jesus Cristo, requerendo deles a fé nEle, para que sejam salvos, e promete a dar a todos os que são ordenados para a vida, o Seu Espírito Santo, para que sejam dispostos e capazes de crer.” Aqui a implicação é que Deus e Seu povo são os partidos, porque numa aliança as promessas fazem-se para uma das partes, e aqui se diz que a vida e a salvação se promete aos pecadores, e que se exige deles a fé. O mesmo ponto de vista apresenta-se no Catecismo Menor, de acordo com a interpretação natural da resposta à pergunta XX. É onde disse: “Deus, por Sua boa vontade, desde toda a eternidade, escolheu uns para vida eterna, entrou numa aliança de graça, 297 Capítulo. vii. § 3. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 480 para livrá-los do estado de pecado e miséria, e para pô-los num estado de salvação mediante o Redentor.” No Catecismo Maior, entretanto, a opinião de outros é expressamente adotada. Na resposta à pergunta, 298 “Com quem foi feita a aliança da graça?,” diz-se, “A aliança da graça foi feito com Cristo como o segundo Adão, e nEle com todos os escolhidos como sua semente.” Duas Alianças que se devem distinguir. Esta confusão se evita mediante a distinção entre a aliança da redenção entre o Pai e o Filho, e a aliança da graça entre Deus e Seu povo. Esta última supõe o primeira, e se baseia nela. As duas, entretanto, não devem ser confundidas, visto que ambas são claramente reveladas nas Escrituras, e, além disso, que diferem quanto às partes, quanto às promessas, e quanto às condições. A este respeito diz Turrettin: 299 “Atque hic superfluum videtur quærere, An foedus hoc contractum fuerit cum Christo, tanquam altera parte contrahente, et in ipso cum toto ejus semine, ut primum foedus cum Adamo pactum fuerat, et in Adamo cum tota ejus posteritate: quod non paucis placet, quia promissiones ipsi dicuntur factæ, Gal. 3.16, et quia, ut Caput et Princeps populi sui, in omnibus primas tenet, ut nihil nisi in ipso et ab ipso obtineri possit: An vero foedus contractum sit in Christo cum toto semine, ut non tam habeat rationem partis contrahentis, quam partis mediæ, quæ inter dissidentes stat ad eos reconciliandos, ut aliis satius videtur. Superfiuum, inquam, est de eo disceptare, quia res eodem redit; et certum est duplex hic pactum necessario attendendum esse, vel unius ejusdem pacti duas partes et gradus. Prius pactum est, quod inter Patrem et Filium intercedit, ad opus redemptionis exequendum. Posterius est, quod Deus cum electis in Christo contrahit, de illis per et propter Christum salvandis sub 298 299 Pregunta 31. XII. ii. 12; edit. Edinburgh, 1847, vol. ii. pp. 157, 158. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 481 conditione fidei et resipiscentiæ. Prius fit cum Sponsore et capite ad salutem membrorum: Posterius fit cum membris in capite et sponsore.” A mesma opinião é tomada de Witsius: 300 “Ut Foederis gratiæ natura penitius perspecta sit, duo imprimis distincte consideranda sunt. (1.) Pactum, quod inter Deum Patrem et mediatorem Christum intercedit. (2.) Testamentaria illa dispositio, qua Deus electis salutem æternam, et omnia eo pertinentia, immutabili foedere addicit. Prior conventio Dei cum mediatore est: posterior Dei cum electis. Hæc illam supponit, et in illa fundatur.” § 4. A Aliança da Redenção. Por isto se significa a aliança entre o Pai e o Filho com referência à salvação do homem. Esta é uma questão que, por sua natureza, está totalmente além de nossa compreensão. Devemos receber os ensinos da Escritura com relação a isso sem pretender penetrar o mistério que naturalmente lhe pertence. Há só um Deus, um Ser divino, a quem pertencem todos os atributos da divindade. Mas na Deidade subsistem três pessoas, as mesmas em substância e iguais em poder e glória. Pertence à natureza da personalidade que uma pessoa é objetiva a outra. Por isso, se o Pai e o Filho são pessoas distintas, uma pode ser objeto dos atos da outra. Uma pode amar, dirigir-se e comunicar-se com a outra. O Pai pode enviar o Filho, pode dar-Lhe uma obra a fazer, e prometer-Lhe uma recompensa. Tudo isto certamente nos é incompreensível, mas ao estar claramente ensinado na Escritura, tem que entrar na fé cristã. A fim de demonstrar que há uma aliança entre o Pai e o Filho, formado na eternidade e revelado no tempo, não é necessário aduzir passagens da Escritura nas quais esta verdade seja declarada de maneira explícita. Há, certamente, passagens que são equivalentes a estas asserções diretas. Isso é implicado nas frequentes e recorrentes 300 De OEconomia Foederum, lib. II. ii. 1, edit. 1712, p. 130. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 482 declarações da Escritura de que o plano de Deus com relação à salvação dos homens teve a natureza de aliança, e que foi concertada na eternidade. Paulo nos diz que esteve oculto pelos séculos na mente divina; que já existia antes da fundação do mundo. Cristo fala de promessas que lhe foram feitas antes de Sua vinda; e que tinha vindo ao mundo para levar a cabo uma comissão que tinha vindo do Pai. O paralelo tão distintivo que se faz entre Adão e Cristo é deste modo prova do que estamos tratando. Como Adão foi o cabeça e representante de sua posteridade, assim Cristo é o cabeça e representante de Seu povo. E como Deus entrou em aliança com Adão, assim Ele entrou em aliança com Cristo. Isto é exposto em Rm 5:12-21 como a ideia fundamental de todos os procedimentos de Deus com os homens, tanto na queda dos mesmos como em sua redenção. A prova da doutrina tem, entretanto, uma base muito mais ampla. Quando uma pessoa atribui uma obra estipulada a outra pessoa com a promessa de uma recompensa com base no cumprimento daquela obra, há uma aliança. Nada pode ser mais claro que tudo isto é assim com relação ao Pai e o Filho. O Pai deu ao Filho uma obra a fazer; Ele O enviou ao mundo para que a realizasse, e Lhe prometeu uma grande recompensa quando a obra fosse cumprida. Esta é a constante descrição das Escrituras. Por isso, temos as partes da aliança, a promessa, e a condição. Estes são os elementos essenciais de uma aliança. Sendo esta a descrição que nos dá a Escritura, esta deve ser sua verdade à qual devemos aderir. Não se trata de uma mera figura, mas de uma verdadeira transação, e deve ser considerada e tratada como tal se queremos compreender corretamente o plano da salvação. No Salmo 40 [vv. 7-8], exposto pelo Apóstolo como referindo-se ao Messias, diz-se: «Eis aqui estou, no rolo do livro está escrito a meu respeito; agrada-me fazer a tua vontade», isto é, a execução do Teu propósito, o cumprir o Teu plano. «Nessa vontade», diz o Apóstolo, «é que temos sido santificados [isto é, limpos da culpa do pecado], mediante a oferta do corpo de Jesus Cristo, uma vez por todas» [Hb 10:10]. Por isso, Cristo veio para cumprir o Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 483 propósito de Deus, para realizar uma obra que Lhe tinha sido atribuída. Por isso, diz Ele em João 17:4 [AV]: «Eu terminei a obra que me deste para fazer.» Isso foi dito no final de Seu trajeto terrestre. No começo, quando ainda era criança, disse aos Seus pais: «Não sabíeis que me cumpria estar na casa de meu Pai?» (Lc 2:49). Nosso Senhor fala de Si mesmo, e faz-se referência a Ele, como enviado ao mundo. Ele diz que assim como o Pai O havia enviado ao mundo, que assim também Ele tinha enviado a Seus discípulos ao mundo (Jo 17:18). «Vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher» (Gl 4:4). «Deus enviou seu Filho unigênito ao mundo» (1Jo 4:9). Deus «enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados» (v. 10). Por isso, é claro que Cristo veio para efetuar uma obra, que Ele foi enviado pelo Pai para cumprir um plano, ou um desígnio preconcebido. Não está menos claro que o Pai fez promessas especiais ao Filho, que dependiam do cumprimento da obra que Lhe tinha sido atribuída. Isto pode parecer um modo antropológico de descrição para uma transação entre as pessoas da adorável Trindade. Mas deve ser recebido como uma verdade substancial. O Pai deu ao Filho uma obra, e Lhe prometeu uma recompensa quando fosse levada a cabo. A transação, por isso, teve a natureza de uma aliança. O Filho assumiu uma obrigação de realizar a obra que lhe tinha sido atribuída; e o Pai assumiu a obrigação de Lhe conceder a recompensa estipulada. A infinitude de Deus não impede que estas coisas sejam possíveis. Como a exposição da obra de Cristo na redenção do homem constitui uma grande parte da tarefa do teólogo, tudo o que é apropriado nesta seção é uma simples referência às declarações escriturísticas a respeito desta questão. A obra atribuída ao Redentor. (1) Devia assumir nossa natureza, humilhando-se a Si mesmo ao nascer de uma mulher e ao ser achado como homem. Devia ser uma verdadeira encarnação, não uma mera teofania como sucedeu em Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 484 repetidas ocasiões na velha dispensação. Devia fazer-se carne; tomar carne e corpo; ser osso de nossos ossos e carne de nossa carne, feito em tudo semelhante a Seus irmãos, excluindo o pecado, para que pudesse ter compaixão de nossas fraquezas, e poder simpatizar com os que são tentados, tendo sido Ele também tentado. (2) Devia ser feito sob a lei, assumindo voluntariamente o cumprimento de toda justiça pela obediência da lei de Deus perfeitamente em todas as formas em que tinha sido feito obrigatória para o homem. (3) Devia levar nossos pecados, ser maldição por nós, oferecendo-Se a Si mesmo como sacrifício, ou propiciação a Deus em expiação pelos pecados dos homens. Isso envolveu toda a Sua vida de humilhação e de dor e sofrimentos, e Sua ignominiosa morte na cruz, onde o Pai ocultou dEle o rosto. O que teria que fazer após isso pertence à Sua exaltação e recompensa. As promessas feitas ao Redentor. Esta foi, em termos gerais, a obra que o Filho de Deus Se comprometeu a cumprir. As promessas do Pai ao Filho condicionadas ao cumprimento desta obra eram: (1) Que Lhe prepararia um corpo, um tabernáculo apropriado para Ele, formado como foi o de Adão pela ação imediata de Deus, incontaminado e sem mancha nem mácula. (2) Que Ele Lhe daria o Espírito sem medida, para que toda Sua natureza humana ficasse cheia de graça e fortaleza, e tão adornada pela beleza da santidade que fosse todo ele atraente. (3) Que estaria sempre à Sua direita para sustentá-Lo e confortá-Lo nas horas mais tenebrosas de conflito com os poderes das trevas, e que finalmente esmagaria a Satanás debaixo de Seus pés. (4) Que O livraria do poder da morte, e O exaltaria à Sua direita no céu, e que Lhe seria dado todo o poder nos céus e na terra. (5) Que Ele, o Teantropo e cabeça da Igreja, teria o Espírito para enviar a quem Ele quisesse, para renovar os seus corações, para lhes dar satisfação e consolo, e para qualificá-los para o serviço em Seu reino. (6) Que todos os que o Pai Lhe desse viriam a Ele, e seriam por Ele Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 485 guardados, de maneira que nenhum deles se perderia. (7) Que uma multidão que ninguém pode contar seria assim feita partícipe de Sua redenção, e que finalmente o reino do Messias abrangeria todas as nações da terra. (8) Que por meio de Cristo, nEle, e em Sua Igreja redimida, far-se-ia a mais sublime manifestação das perfeições divinas a todas as ordens de santas inteligências por toda a eternidade. O Filho de Deus verá assim o trabalho de Sua alma, e ficará satisfeito. § 5. A Aliança da graça. Em virtude do que o Filho de Deus concordou realizar por meio da aliança, e do que realmente realizou na plenitude do tempo, em conformidade com as estipulações da aliança com o Pai, seguem-se duas coisas: Primeiro, a salvação é oferecida a todos os homens sob a condição da fé em Cristo. Nosso Senhor ordenou a Seus discípulos que fossem a todo o mundo e que pregassem o evangelho a toda a criatura. Entretanto, o evangelho é a oferta de salvação com base nas condições da aliança da graça. Neste sentido, a aliança da graça se estende a toda a humanidade. E por isso, Turretino 301 diz: “Foedus hoc gratiæ est pactum gratuitum inter Deum offensum et hominem offendentem in Christo initum, in quo Deus homini gratis propter Christum remissionem peccatorum et salutem pollicetur, homo vero eadem gratia fretus pollicetur fidem et obedientiam.” E a Confissão de Westminster diz: 302 «Ao o homem ter-se feito por sua queda, incapaz da vida por aquela aliança [isto é, pela aliança das obras], o Senhor teve por bem fazer uma segunda aliança, usualmente chamada aliança da graça, aliança pela qual oferece livremente aos pecadores [e a todos os pecadores] vida e salvação por Jesus Cristo, demandando deles fé nEle, para que possam ser salvos, e prometendo dar Seu Espírito a todos os que estão destinados 301 302 XII. ii. 5, edit. Edinburgh, 1847, vol. ii. p. 156. Cap. VII. § 3. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 486 à vida eterna, para capacitá-los a crer.» Assim, se isto fosse tudo o que significassem aqueles que fazem com que as partes da aliança da graça sejam Deus e a humanidade em geral e a toda a humanidade igualmente, não haveria objeção à doutrina. Porque é indubitavelmente certo que Deus oferece a todos e a cada um a vida eterna condicionada à fé em Jesus Cristo. Mas como é não menos verdadeiro que todo o esquema da redenção tem uma referência especial àqueles que são dados pelo Pai ao Filho, e dos quais nosso Senhor diz: «Todo aquele que o Pai me dá, esse virá a mim; e o que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora» (Jo 6:37), disso se segue, em segundo lugar, pela natureza da aliança entre o Pai e o Filho, que a aliança da graça tem uma especial referência aos escolhidos. A eles Deus prometeu dar Seu Espírito para que creiam; e só a pertencem todas as promessas feitas aos crentes. Os que ignoram a distinção entre as alianças da redenção e da graça, misturando a última com a primeira, descrevem naturalmente as partes da aliança como Deus e Cristo como cabeça e representante de Seu próprio povo. E por isso, a humanidade como tal não é uma parte em sentido algum. Tudo o que é importante é que adotemos aquela descrição que inclua os vários fatos reconhecidos nas Escrituras. É um destes fatos que a salvação se oferece a todos os homens com a condição da fé em Cristo. E, portanto, nessa medida, ou, num sentido que é responsável por esse fato, a aliança da graça é feita com todos os homens. O grande pecado dos que ouvem o evangelho é que recusam aceitar esta aliança, e que por isso se situam fora de seu âmbito. Cristo como Mediador da Aliança. Como Cristo é uma parte da aliança da redenção, também é constantemente apresentado como o mediador da aliança da graça, e não só em sentido de um internuncius, como Moisés foi mediador entre Deus e o povo de Israel, mas no sentido: (1) De que foi por Sua intervenção e só com base no que Ele fez, ou prometeu fazer, que Deus entrou nesta nova aliança com os homens caídos. E, (2) no sentido de uma garantia. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 487 Ele garante o cumprimento de todas as promessas e condições da aliança. Seu sangue foi o sangue da aliança. Isto é, Sua morte teve todos os efeitos de um sacrifício federal, não só vinculando as partes do contrato, mas também assegurando o cumprimento de todas as suas estipulações. Por isso, é chamado não só Μεσίτης - Mesites, mas também Ἔγγυος - Eguos (Hb 7:22), um patrocinador, ou fiador. Ao cumprir as condições das quais dependiam as promessas da aliança da redenção, a veracidade e a justiça de Deus ficam comprometidas para assegurar a salvação de Seu povo; e isto assegura a fidelidade de Seu povo. De maneira que Deus responde tanto por Deus como pelo homem. Sua obra assegura os dons da graça de Deus, e a perseverança de Seu povo na fé e na obediência. Por isso, Ele é, em todos os sentidos, nossa salvação. A condição da Aliança. A condição da aliança da graça, pelo que respeita aos adultos, é a fé em Cristo. Isto é, a fim de participar nos benefícios desta aliança temos que receber o Senhor Jesus Cristo como o Filho de Deus, em quem e por causa de quem se outorgam Suas bênçãos aos filhos dos homens. Até que não creiamos assim, somos estranhos e alheios à aliança da promessa, sem Deus e sem Cristo. Temos que assentir a esta aliança, renunciando a qualquer outro método de salvação, e consentindo em ser salvos com base nos termos que nos propõe, antes de sermos partícipes de seus benefícios. A palavra «condição», entretanto, emprega-se em dois sentidos. Às vezes significa a consideração meritória com base na qual se outorgam certos benefícios. Neste sentido, a condição da aliança originalmente concertada com Adão foi a obediência perfeita. Se ele tivesse retido sua integridade, teria merecido a bênção prometida. Porque para aquele que trabalha, a recompensa não é graça, mas sim dívida. Da mesma maneira, a obra de Cristo é a condição da aliança da redenção. Foi a base meritória, estabelecendo um fundamento com justiça para o cumprimento das promessas que o Pai Lhe fez. Mas em outros casos, por Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 488 condição simplesmente nos referimos a um sine qua non. Uma bênção pode estar prometida sob a condição que seja pedida; ou que haja disposição ao recebê-la. Não há mérito em pedir, nem mérito na disposição a receber, que é a base de que se dê o dom. Continua sendo um dom gratuito; mas entretanto, está condicionado ao ato de pedir. É neste último sentido que a fé é a condição da aliança da graça. Não há mérito em crer. É só o ato de receber um favor oferecido. Em todo caso, a necessidade é igualmente absoluta. Sem a obra de Cristo não teria havido salvação; e sem fé não há salvação. Aquele que crê no Filho, tem a vida eterna. Aquele que não crê, não verá a vida, mas a ira de Deus permanece sobre ele. As promessas da aliança. As promessas da aliança estão todas incluídas na fórmula inclusiva, que aparece tão frequentemente nas Escrituras: «Eu serei o vosso Deus, e vós sereis o meu povo.» Isto envolve a total restauração de nossa relação normal com Deus. Fica eliminada toda base de alienação, toda barreira à comunhão. Ele se comunica em Sua plenitude com o Seu povo; e eles se tornam Seus mediante uma total conformidade com Sua vontade e devoção ao Seu serviço, e são os objetos especiais de Seu favor. Diz-se de Deus que é nosso Deus não apenas porque Ele é o Deus a quem reconhecemos e a quem professamos adorar e obedecer, como Ele era o Deus dos hebreus em distinção dos gentios que não reconheciam sua existência nem professavam ser seus adoradores; mas Ele é nosso Deus, – nossa porção infinita; a fonte para nós de tudo o que é Deus para aqueles que são os objetos de Seu amor. Suas perfeições são-nos reveladas como o mais sublime conhecimento; todas elas são-nos comprometidas para nossa proteção, bem-aventurança e glória. O fato de que Ele seja nosso Deus implica também que Ele nos assegura de Seu amor, e que nos admite à comunhão Consigo mesmo. Porquanto Seu favor é vida, e Sua misericórdia melhor que a vida; porquanto a visão de Deus, e o gozo de Seu amor e a comunhão com Ele nos asseguram a Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 489 mais sublime exaltação e beatificação possíveis de Suas criaturas, está claro que a promessa de ser nosso Deus, no sentido escriturístico do termo, inclui todo o bem concebível e possível. Quando se diz que temos que ser Seu povo, significa-se com isso: (1) Que somos Sua peculiar possessão. Seus deleites são para os filhos dos homens. Dentre as várias ordens de criaturas racionais, Ele escolheu ao homem para que seja o objeto especial de Seu favor, e o meio especial através do qual e por meio de quem manifestar Sua glória. E dentre a massa de homens caídos Ele escolheu, por Seu beneplácito, uma multidão inumerável para que sejam Sua herança, como Ele condescende a chamá-los; sobre eles Ele derrama a plenitude de Sua graça, e lhes revela Sua glória para admiração de todas as santas inteligências. (2) Que sendo assim escolhidos para o especial amor de Deus e para a mais alta manifestação da glória, são em todas as coisas feitos aptos para este sublime destino. São justificados, santificados e glorificados. São feitos perfeitamente conformes à Sua imagem, dedicados ao Seu serviço, e obedientes à Sua vontade. § 6. A identidade da Aliança da Graça sob todas as Dispensações. Por isto se significa que o plano de salvação foi o mesmo sob todas as dispensações, a Patriarcal, a Mosaica e a Cristã. A respeito desta questão prevaleceu uma grande diversidade de opiniões, e ainda mais maneiras de expô-la. Os socinianos dizem que sob a antiga economia não havia promessa de vida eterna; e que a condição da salvação não era a fé em Cristo. Os Remonstrantes admitiam que os patriarcas foram salvos, e que foram salvos por meio de Cristo, isto é, em virtude da obra que o Redentor ia cumprir; mas também questionavam se foi dada alguma promessa direta de vida eterna no Antigo Testamento, ou se a fé no Redentor era a condição da aceitação para com Deus. Sobre este tema Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 490 303 a respeito da a “Apology for the Confession of the Remonstrants” diz fé em Jesus Cristo: “Et certum esse locum nullum esse unde appareat fidem istam sub V. T. præceptam fuisse, aut viguisse.” E Episcópio 304 diz: “Ex his facile colligere est, quid statuendum sit de quæstione illa famosa, An vitæ æternæ promissio etiam in Veteri foedere locum habuerit, vel potius in foedere ipso comprehensa fuerit. Si enim speciales promissiones in foedere ipso veteri expressæ videantur, fatendum est, nullam vitæ æternæ promissionem disertam in illis reperiri. Si quis contra sentiat, ejus est locum dare ubi illa exstat: quod puto impossibile esse. Sed vero, si promissiones Dei generales videantur, fatendum ex altera parte est, eas tales esse, ut promissio vitæ æternæ non subesse tantum videatur, sed ex Dei intentione eam eis subfuisse etiam credidebeat.” Os Batistas, especialmente os da época da Reforma, não sustentam a doutrina comum a respeito deste tema. Os Anabatistas não só se referiram em termos muito menos apreciativos à antiga dispensação e ao estado dos judeus naquela dispensação, mas era necessário para seu peculiar sistema que negassem que a aliança feita com Abraão incluía a aliança da graça. Os batistas mantêm que as crianças não podem ser membros da igreja, e que o sinal de tal membresia não pode ser administrada corretamente a ninguém que não tenha conhecimento nem fé. Mas não se pode negar que as crianças foram incluídas na aliança feita com Abraão, e que eles recebiam a circuncisão, seu selo e sinal. Por isso, é essencial para a teoria deles de que a aliança Abraâmica seja considerada como uma mera aliança nacional totalmente distinta da aliança da graça. Os romanistas, ao supor que a graça salvadora é comunicada mediante os sacramentos, e vendo que a massa dos antigos israelitas, ao menos em muitas ocasiões, foi rejeitada por Deus, apesar da participação 303 304 Edit. Leyden, 1630, p. 91. Institutiones Theologicæ, III. iv. 1; Works, Amsterdam, 1650, vol. i. p. 156. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 491 dos mesmos nos sacramentos então assinalados, foram empurrados a supor uma diferença radical entre os sacramentos do Antigo Testamento e os do Novo. Os primeiros só significavam a graça, os segundos realmente a comunicam. Disso segue-se que os que viviam antes da instituição dos sacramentos cristãos não foram realmente salvos. Seus pecados não eram remetidos, mas sim pretermitidos, passados por alto. Na morte não eram admitidos no céu, mas sim levados a um lugar e estado chamado limbus patrum, onde ficavam numa condição negativa até a vinda de Cristo, que a derrama após Sua morte desceu aos infernos, o sheol, para sua libertação. Em oposição a estas posturas diferentes, a doutrina comum da Igreja sempre foi que o plano de salvação foi o mesmo desde o princípio. Há a mesma promessa de libertação dos males da apostasia, o mesmo Redentor, a mesma condição necessária para a participação nas bênçãos da redenção, e a mesma salvação completa para todos os que abracem as ofertas da misericórdia divina. Ao determinar o grau de conhecimento possuído pelo antigo povo de Deus, não devemos ser governados por nossa própria capacidade de descobrir nas Escrituras do Antigo Testamento as doutrinas da graça. Não podemos saber que quantidade de instrução suplementar recebeu o povo da parte dos profetas, nem que grau de iluminação foi concedido. Entretanto, fica claro pelos escritos do Novo Testamento que o conhecimento do plano da salvação existente entre os judeus para o tempo do advento era muito maior que aquele que nos pareceria possível pela mera leitura do Antigo Testamento. Eles não só esperavam em geral e com confiança o Messias, que devia ser um mestre além de um libertador, mas que os judeus devotos esperavam a salvação de Israel. Falavam com tanta familiaridade do Espírito Santo e do batismo que Ele ia realizar como nós os cristãos fazemos hoje. É principalmente com base nas declarações dos escritores do Novo Testamento e de suas exposições das antigas Escrituras que aprendemos a extensão da verdade revelada aos que viveram antes da vinda de Cristo. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 492 Assim, com base nas Escrituras como um todo, do Novo Testamento, e do Antigo interpretado por uma autoridade infalível pelo Novo, aprendemos que o plano da salvação sempre foi um e o mesmo, tendo a mesma promessa, o mesmo Salvador, a mesma condição e a mesma salvação. A promessa da vida eterna dada antes do Advento. Fica claro que a promessa foi a mesma para os que viveram antes do advento que para nós. Imediatamente depois da Queda, Deus deu a Adão a promessa da redenção. Aquela promessa estava contida na predição de que a semente da mulher esmagaria a cabeça da serpente. Nesta passagem fica claro que a serpente é Satanás. Ele foi o tentador, e é sobre ele que estava disposto que caísse a maldição pronunciada. O esmagamento de sua cabeça significa uma ferida mortal, uma derrota absoluta. O príncipe das trevas, que tinha triunfado sobre nossos primeiros pais, seria derrubado, e sua vitória lhe seria arrebatada. Esta demolição seria levada a cabo pela semente da mulher. Esta frase poderia significar a posteridade da mulher, e neste sentido comunicaria uma importante verdade: o homem ia triunfar sobre Satanás. Mas é evidente que tinha uma referência mais específica. Refere-se a um indivíduo que, num sentido peculiar, seria a semente da mulher. Isto fica claro pela analogia da profecia. Quando foi prometido a Abraão que em sua semente seriam benditas todas as nações da terra, seria muito natural entender sua posteridade como sua semente, o povo hebreu. Mas sabemos com certeza, pela declaração direta do Apóstolo (Gl 3:10), que era um indivíduo o designado, isto é, Cristo. Assim, quando Isaías predisse que «o servo do Senhor» ia sofrer, triunfar e ser a fonte de bênçãos para todo o povo, muitos entenderam, e muitos seguem entendendo ainda, como referindo-se à nação judaica, porque Deus com frequência refere-se ao Seu servo Israel. Entretanto, o servo designado era o Messias, e o povo não estava mais incluído na predição que quando se diz que «a salvação vem dos judeus». Em todos estes e outros casos Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 493 similares temos dois guias quanto ao verdadeiro significado que o Espírito quer comunicar. A primeira guia encontra-se nas posteriores declarações explicativas da Escritura e a outra no cumprimento destas predições. Sabemos pelo acontecimento quem é a semente da mulher; quem é a semente de Abraão; quem é Siló; quem é o Filho de Davi; quem é o Servo do Senhor: porque em Cristo e por Cristo se cumpriu tudo o que foi predito destes. A semente da mulher devia esmagar a cabeça da serpente. Mas foi Cristo, e só Cristo, quem veio ao mundo para destruir as obras do Diabo. E este, tal como Ele disse foi o propósito de Sua missão. Satanás era o homem forte armado a quem Cristo veio desapropriar e livrar dele aqueles que estavam cativos à vontade dele. Temos então a promessa da redenção feita a nossos primeiros pais imediatamente depois da Queda, que eles comunicariam a seus descendentes para mantê-la em lembrança constante. Esta promessa foi repetida, e de vez em quando ampliada, até que finalmente veio o Redentor. Nestas predições adicionais e mais detalhadas, expõe-se a natureza desta redenção com uma clareza sempre crescente. Esta promessa geral incluía muitas promessas específicas. Assim achamos a Deus prometendo a Seu povo fiel o perdão de seus pecados, a restauração ao Seu favor, a renovação de seus corações, e o dom de Seu Espírito. Não se oferecem na dispensação cristã bênçãos mais sublimes que estas. E após estas bênçãos o antigo povo de Deus anelou e orou. O Antigo Testamento, e especialmente os Salmos e outras partes devocionais das Escrituras antigas, está cheio do registro de tais orações e anelos. Nada pode ser mais claro que o perdão e o favor de Deus foram prometidos aos santos antes da vinda de Cristo, e que estas são as bênçãos que agora nos são prometidas. O Apóstolo nos ensina em Hebreus 11 que as esperanças dos patriarcas não estavam limitadas à vida presente, mas antes, estavam fixadas num estado futuro de existência. Por isso, um estado assim deve ter-lhes sido revelado, e deve ter-lhes sido prometida a vida eterna. Assim, ele diz (Hb 11:10) que Abraão «aguardava a cidade que tem Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 494 fundamentos, da qual Deus é o arquiteto e edificador». Que isto é uma menção do céu fica claro do v. 16, onde diz-se: «Mas, agora, aspiram a uma pátria superior, isto é, celestial. Por isso, Deus não se envergonha deles, de ser chamado o seu Deus, porquanto lhes preparou uma cidade.» Diz-nos que estes antigos dignitários sacrificaram com prazer todo o bem terrestre, e inclusive a própria vida, «não aceitando o resgate, a fim de obter uma melhor ressurreição.» O fato de que esta era a fé comum dos judeus muito antes da vinda de Cristo faz-se evidente em 2Mac 7:9, onde o moribundo mártir diz a seu atormentador: «Tu, como uma fúria, arrebata-nos desta vida presente, mas o lei do mundo nos levantará a nós, que morremos por suas leis, a vida eterna.» Nosso Senhor nos ensina que Abraão, Isaque e Jacó ainda vivem; e que o lugar em que está Abraão é o céu. Seu seio era o lugar de repouso dos fiéis. Cristo, o Redentor, sob ambas as dispensações. Esta é uma exibição muito imperfeita da evidência que as Escrituras nos dão de que a promessa da redenção, e de tudo aquilo incluído naquela redenção, o perdão, a santificação, o favor de Deus e a vida eterna, deu-se ao povo de Deus desde o princípio. Não é menos claro que o Redentor é o mesmo sob todas as dispensações. Aquele que foi predito como a semente da mulher, como a semente de Abraão, o Filho de Davi, o Renovo, o Servo do Senhor, o Príncipe da Paz, é nosso Senhor, Jesus Cristo, o Filho de Deus, Deus manifestado em carne. Ele, por isso, foi desde o princípio exposto como a esperança do mundo, o SALVATOR HOMINUM. Ele foi exposto em todos os Seus ofícios, como Profeta, Sacerdote e Rei. Sua obra foi descrita como um sacrifício, assim como uma redenção. Tudo isto é tão evidente, e tão geralmente admitido, para fazer desnecessária a citação de textos de prova. É suficiente remeter-se às declarações gerais do Novo Testamento a esse respeito. Nosso Senhor mandou os judeus que esquadrinhassem suas Escrituras, porque elas davam testemunho dEle. Ele disse que Moisés e os profetas tinham escrito a respeito dEle. Começando por Moisés e por todos os Profetas, Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 495 expôs aos discípulos em todas as Escrituras o referente a Ele. Os Apóstolos, quando começaram a pregar o Evangelho, não só demonstravam em todas as partes pelas Escrituras que Jesus era o Cristo, mas também que se referiam de contínuo a elas em apoio de tudo o que eles ensinavam a respeito de Sua pessoa e de Sua obra. É com base no Antigo Testamento que demonstram Sua divindade; Sua encarnação; a natureza sacrifical de Sua morte; que Ele foi verdadeiramente um Sacerdote para operar uma reconciliação pelo povo, assim como Profeta e Rei; e que Ele devia morrer, ressuscitar ao terceiro dia, subir aos céus, e ser investido de uma potestade absoluta sobre toda a terra, e sobre todos os ordens de seres criados. Não há uma doutrina a respeito de Cristo que se ensine no Novo Testamento, que os Apóstolos não afirmem como revelada em anteriores dispensações. Por isso, eles declaram de maneira explícita que foi por Ele e pela eficácia de Sua morte que os homens foram salvos antes, assim como depois, de Sua vinda. O Apóstolo Paulo diz (Rm 3:25) que Cristo foi posto como propiciação para a remissão de pecados, não só ἐν τῷ νῦν καιρῷ - en to nun kairo, mas também dos pecados cometidos antes do presente, durante a paciência de Deus. E em Hb 9:15 se declara de maneira ainda mais explícita que Ele morreu para perdão dos pecados sob a primeira aliança. Ele, portanto, como se diz em Ap 13:8, foi o Cordeiro morto desde a fundação do mundo. Esta é ao menos a interpretação comum e mais natural da passagem. Uma revelação assim do Messias foi indubitavelmente dada no Antigo Testamento para voltar olhos de toda a nação judaica em esperança e fé. O que disseram os dois discípulos no caminho a Emaús [Lc 24:21]: «Nós esperávamos que fosse ele quem havia de redimir a Israel», revela qual era a expectativa geral e o desejo do povo. Paulo fala repetidas vezes do Messias como a esperança de Israel. A promessa de redenção por meio de Cristo, ele declarou ser o grande objeto da esperança do povo. Quando foi feito comparecer perante os tribunais dos judeus, e perante Agripa, declarou constantemente que ao pregar a Cristo Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 496 e a ressurreição, não se tinha afastado da religião de seus pais, mas sim que se aferrava a ela, enquanto que os seus inimigos se afastaram da mesma. Diz ele: «E, agora, estou sendo julgado por causa da esperança da promessa que por Deus foi feita a nossos pais» (At 26:6). Novamente diz aos judeus, em Roma, At 28:20: «Porque é pela esperança de Israel que estou preso com esta cadeia.» Veja-se também At 23:6; 24:15. Em Ef 1:12 ele designa os judeus como οἱ προηλπικότες ἐν τῷ Χριστῷ - hoi proelpikotes en to Cristo, aqueles que esperavam no Messias antes de Sua vinda. Em At 13:27 diz que os governantes dos judeus rejeitaram a Cristo porque não conheceram «os ensinos dos profetas que se lêem todos os sábados», e que eles «quando o condenaram, cumpriram as profecias». NEle era a «promessa feita a nossos pais», diz ele (vv. 32, 33), da qual diz: «Deus a cumpriu plenamente a nós, seus filhos, ressuscitando a Jesus», o longamente esperado Salvador. É desnecessário dar voltas a esta questão, porque a doutrina de um Messias pessoal que devia redimir o povo de Deus não só impregna o AT, mas também em todas as partes no Novo Testamento é exposta como a grande promessa cumprida no advento e na obra de nosso Senhor Jesus Cristo. Desde o princípio a fé é a condição da salvação. Assim como a mesma promessa foi feita aos que viveram antes da vinda que a que se nos faz agora a nós no Evangelho, assim como lhes foi revelado o mesmo Redentor que nos é apresentado a nós como o objeto da fé, segue-se necessariamente que a condição, ou os termos de salvação foram os mesmos então como agora. Não se demandavam uma mera fé ou confiança em Deus, nem simplesmente uma piedade, mas sim fé no Redentor prometido, ou fé na promessa da redenção por meio do Messias. Tudo isto fica claro não só com base nas considerações recémmencionadas, mas também (1) Pelo fato de que o Apóstolo ensina que a fé, não as obras, foi antes de Cristo, assim como depois dEle a condição da salvação. E isto não só o afirma ele em sua Epístola aos Romanos, Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 497 mas também o demonstra. Ele argui que pela própria natureza da questão, a justificação dos pecadores mediante as obras é uma contradição. Se são pecadores, estão sob condenação por suas obras, e por isso não podem ser justificados por meio das mesmas. Além disso, demonstra que o Antigo Testamento fala em todo lugar de um perdão gratuito e da aceitação dos homens da parte de Deus; mas se é gratuita não pode ser meritória. Argui ele ademais com base no caso de Abraão, que, segundo a declaração expressa das Escrituras, foi justificado pela fé; e ele cita dos antigos profetas o grande princípio, verdade então como agora, que “o justo viverá pela fé”. (2) Em segundo lugar, ele prova que a fé designada era fé numa promessa, e não uma mera piedade geral ou confiança em Deus. Diz ele de Abraão que «não duvidou, por incredulidade, da promessa de Deus; mas, pela fé, se fortaleceu, dando glória a Deus, estando plenamente convicto de que ele era poderoso para cumprir o que prometera» (Rm 4:20, 21). (3) O Apóstolo demonstra que a promessa específica, que era objeto da fé do patriarca, era a promessa da redenção por meio de Cristo. Eles deviam crer nesta promessa; e o verdadeiro povo de Deus creu nela. A massa do povo confundiu a natureza da redenção que tinha sido prometida; mas inclusive no caso deles era a promessa da redenção a que era o objeto de sua fé. Os ensinados pelo Espírito sabiam que se tratava da redenção da culpa e do poder do pecado e do conseguinte afastamento de Deus. Em Gl 3:14 o Apóstolo diz, portanto, que a bênção prometida a Abraão veio sobre os gentios. Portanto, aquela bênção foi aquela que por meio do Evangelho é agora oferecida a todos os homens. Não só por estas declarações explícitas de que se demandava desde o princípio a fé no Redentor prometido, mas também com base no fato reconhecido de que o Antigo Testamento está repleto da doutrina da redenção por meio do Messias, segue-se que aqueles que receberam a religião do Antigo Testamento receberam tal doutrina, exercendo a fé na promessa de Deus a respeito de Seu Filho. A Epístola aos Hebreus tem em grande parte o desígnio de mostrar que a totalidade do Antigo Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 498 Testamento era um esboço do Novo, e que perde todo o seu valor e sentido se ignorar-se sua referência a Cristo. Por isso, a negação de que a fé dos santos do Antigo Testamento era uma fé no Messias e sua redenção, é negar que tinham algum conhecimento do sentido das revelações e das promessas que eles haviam recebido. Paulo diz em Rm 3:21 que o método de salvação revelado no Evangelho tinha sido já revelado na lei e nos profetas, e seu propósito concreto, em Gl 3:13-28; é demonstrar que a aliança sob a qual vivemos e segundo cujos termos devemos ser salvos, é a aliança idêntica feita com Abraão, em que se fez a promessa de redenção com base na condição da fé naquele em quem deviam ser benditas todas as nações da terra. Este é uma aliança anterior à lei de Moisés, aliança que aquela lei não podia pôr de lado nem invalidar. Sendo a aliança da graça, ou plano de salvação, o mesmo em todos os seus elementos desde o princípio, segue-se, primeiro, em oposição aos Anabatistas, que o povo de Deus antes de Cristo constituía uma Igreja, e que aquela Igreja foi uma e a mesma sob todas as dispensações. Sempre teve a mesma promessa, o mesmo Redentor, e a mesma condição para a membresia, isto é, a fé no Filho de Deus como Salvador do mundo. Das mesmas premissas segue-se, em oposição aos Romanistas, que a salvação daqueles do povo de Deus que morreram antes da vinda de Cristo, foi completa. Tinham sido verdadeiramente perdoados: santificados e, em sua morte, admitidos àquele estado ao que são agora recebidos aqueles que morrem na fé cristã. Isto fica confirmado pelo que ensinam Cristo e os Apóstolos. A salvação que nos é prometida é aquela em que já entraram os santos do Antigo Testamento. Os crentes gentios hão de sentar-se com Abraão, Isaque e Jacó. O seio de Abraão era o lugar de repouso para todos os fiéis. Tudo o que afirma Paulo dos crentes sob o evangelho é que são filhos de Abraão e partícipes da herança. Se assim, então tem que ser falsa toda a teoria que pressupõe que a graça e a salvação são comunicadas só mediante os sacramentos cristãos. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II § 7. Diferentes Dispensações. 499 A primeira, de Adão a Abraão. Embora a aliança da graça foi sempre a mesma, as dispensação daquela aliança mudaram. A primeira dispensação se estendeu desde Adão até Abraão. Temos tão poucos registros deste período que não podemos determinar até que ponto tinha sido revelada a verdade, nem que medidas se adotaram para sua preservação. Tudo o que sabemos é que se tinham dado as promessas originais a respeito da semente da mulher, como o Redentor de nossa raça; e que tinha sido instituído o culto a Deus mediante sacrifícios. O fato de que os sacrifícios eram uma instituição divina, e designada para ensinar o método da salvação, podese inferir: (1) Pelo fato de que é o método que a comum consciência dos homens os levou a adotar em todas as partes. Isto é o que demandava sua relação com Deus como pecadores. É ditame da consciência que a culpa demanda expiação, e que a expiação é feita com derramamento de sangue. Assim, sendo que os sacrifícios não são uma instituição arbitrária, mas que tem o seu fundamento em nossa verdadeira relação com Deus como pecadores, podemos inferir que era por este mandato, direto ou direto, que se ofereciam tais sacrifícios. (2) Isto pode também inferir-se pela aprovação que dá Deus aos mesmos, adotando-os e incorporando-os nas observâncias religiosas subsequentemente ordenadas. (3) O fato de que o homem ia ser salvo pelo sacrifício de Cristo, e que este fosse o grande acontecimento ao que se referem as instituições de anteriores dispensações, esclarece que esta referência estava dada por desígnio, e que estava baseada na instituição divina. A segunda dispensação. A segunda dispensação se estendeu desde Abraão até Moisés. Distingue-se da anterior: (1) Pela seleção dos descendentes de Abraão como o povo peculiar de Deus. Foram escolhidos com o fim de preservar o conhecimento da verdadeira religião em meio da geral apostasia da Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 500 humanidade. Com este fim foram-lhes dadas revelações especiais, e Deus fez aliança com eles, prometendo que Ele seria o seu Deus, e que eles seriam o Seu povo. (2) Além de recolher assim a Sua Igreja fora do mundo, e fazer de seus membros um povo peculiar, distinto pela circuncisão dentre os gentios ao redor deles, a promessa da redenção foi feita mais concreta. O Redentor seria da semente de Abraão. Seria uma pessoa. A salvação que Ele ia realizar pertenceria a todas as nações. (3) Posteriormente deu-se a conhecer que o Libertador seria da tribo de Judá. A terceira dispensação. A terceira dispensação desta aliança foi desde Moisés até Cristo. Tudo o que pertencia aos anteriores períodos foi adotado e incluído nesta. Ordenaram-se uma multidão de novas ordenanças a respeito de conduta, culto e religião. Introduziram-se um sacerdócio e um complicado sistema de sacrifícios. As promessas foram feitas mais concretas, expondo de maneira mais clara, mediante as instruções dos profetas, a pessoa e a obra do vindouro Redentor como Profeta, Sacerdote e Rei de Seu povo. Assim foram revelados com clareza cada vez maior a natureza da redenção que Ele ia efetuar, e do reino que Ele ia estabelecer. Temos a autoridade direta do Novo Testamento para crer que a aliança da graça, ou plano de salvação, subjazia assim a todas as instituições do período Mosaico, e que seu principal desígnio era ensinar por meio de tipos e de símbolos o que agora se ensina de maneira explícita mediante o evangelho. Moisés, é-nos dito (Hb 3:5), foi fiel como servo para dar testemunho daquelas coisas que iam ser anunciadas depois. Além deste caráter evangélico que inquestionavelmente pertence à Aliança Mosaica, apresenta-se em outros dois aspectos na Palavra de Deus. Primeiro, era uma aliança nacional com o povo hebreu. Nesta perspectiva, as partes foram Deus e o povo de Israel; a promessa foi a segurança e prosperidade nacionais; a condição era a obediência do povo Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 501 como nação à Lei de Moisés; e o mediador foi Moisés. Neste aspecto, era uma aliança legal. Dizia: «Faze isto, e viverás». Em segundo lugar, continha, como sucede também com o Novo Testamento, uma proclamação renovada da original aliança das obras. É tão certo agora como nos dias de Adão, sempre foi certo e sempre o será, que as criaturas racionais que obedecem com perfeição a lei de Deus são benditas no gozo de Seu favor; como as que pecam ficam sujeitas à Sua ira e maldição. Nosso Senhor assegurou ao jovem que foi a ele pedindo instrução que se guardava os mandamentos viveria. E Paulo diz (Rm 2:6) que Deus dará a cada um conforme a suas obras: tribulação e angústia sobre toda alma humana que faz o mal; mas glória, honra e paz para todo aquele que faz o bem. Isto surge da relação das criaturas inteligentes com Deus. De fato, é tão somente uma formulação dos eternos e imutáveis princípios da justiça. Se o homem rejeita ou negligencia o evangelho, estes são os princípios, como ensina Paulo nos capítulos iniciais de sua Epístola aos Romanos, com base nos quais será julgado. Se não quer estar sob a graça, se não quer aceder ao método da salvação pela graça, está necessariamente sob a lei. Estes diferentes aspectos sob os quais se apresenta a economia Mosaica dão conta da maneira aparentemente inconsistente em que se apresenta no Novo Testamento: (1) Quando se contempla com relação ao povo de Deus antes do advento, é apresentada como divina e obrigatória. (2) Quando se contempla com relação ao estado da Igreja depois do advento, declara-se obsoleta. Descreve-se como a coberta sem vida da que se extraiu o núcleo vivo, a semente, como um corpo do qual partiu a alma. (3) Quando se contempla segundo sua verdadeira pertinência e desígnio como dispensação preparatória da aliança da graça, é mencionada como proclamando o mesmo evangelho, o mesmo método de salvação que aquele que pregavam os próprios apóstolos. (4) Quando se contempla à luz sob a qual era contemplada pelos que rejeitavam o evangelho, como um mero sistema legal, é declarada como ministério de morte e de condenação (2Co 3:6-18). (5) E quando é contrastada com a Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 502 nova economia, a cristã, como modo diferente de revelar a mesma aliança, é apresentada como uma estado de tutela e de servidão, muito diferente da liberdade e do espírito filial da dispensação sob a qual vivemos. A dispensação do Evangelho. A dispensação do evangelho é chamada nova com referência à economia Mosaica, que era velha, e prestes a desvanecer-se. Distinguese da economia antiga: 1. Em que é universal, não limitada a um só povo, mas sim designada e adaptada a todas as nações e a todas as classes de pessoas. 2. É mais espiritual, não só em que os tipos e as cerimônias do Antigo Testamento desaparecem, mas em que a própria revelação é mais interior e espiritual. O que tinha sido dado a conhecer de maneira objetiva é agora escrito, em maior parte, no coração (Hb 8:8-11). É incomparavelmente mais clara e explícita em seus ensinos. 4. É mais puramente evangélica. Inclusive o Novo Testamento como vimos, contém um elemento legal, revela a lei ainda como uma aliança das obras obrigatória àqueles que rejeitam o evangelho; mas no Novo Testamento o evangelho prepondera grandemente sobre a lei, enquanto que no Antigo Testamento a lei preponderava sobre o evangelho. 5. A economia cristã é especialmente a dispensação do Espírito. A grande bênção prometida antigamente, como consequência da vinda de Cristo era o derramamento do Espírito sobre toda a carne, isto é, sobre todas as nações e classes de pessoas. Esta era uma característica tão distintiva do período Messiânico que o evangelista diz: «O Espírito até aquele momento não fora dado, porque Jesus não havia sido ainda glorificado» (Jo 7:39). Nosso Senhor prometeu que depois de Sua morte e ascensão Ele enviaria o Consolador, o Espírito da verdade, para que habitasse com Seu povo, para que os guiasse ao conhecimento da verdade, e para convencer o mundo do pecado, da justiça, e do juízo Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 503 vindouro. Mandou que os Apóstolos ficassem em Jerusalém até que tivessem recebido este poder do alto. E numa explicação dos acontecimentos do dia de Pentecostes o Apóstolo Pedro disse: «A este Jesus Deus ressuscitou, do que todos nós somos testemunhas. Exaltado, pois, à destra de Deus, tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou isto que vedes e ouvis» (At 2:32, 33). 6. A antiga dispensação era temporal e preparatória; a nova é permanente e definitiva. Ao enviar os Seus discípulos para pregar o evangelho, e ao lhes prometer o dom do Espírito, assegurou-lhes que estaria com eles naquela obra até o fim do mundo. Esta dispensação, portanto, é a última antes da restauração de todas as coisas; isto é: a última designada para a conversão dos homens e para a reunião dos escolhidos. Depois vem o fim; a ressurreição e o juízo final. No Antigo Testamento há frequentes indicações de outra e melhor economia, da qual as instituições mosaicas eram meramente preparatórias. Mas não temos intimação na Escritura de que a dispensação do Espírito tenha de dar passagem a uma dispensação nova e melhor para a conversão das nações. Quando o evangelho tiver sido plenamente pregado, então virá o fim. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II CAPÍTULO III 504 A PESSOA DE CRISTO § 1. Considerações preliminares. 1. O fato mais misterioso e mais familiar da consciência e da experiência é a união da alma e do corpo na constituição de nossa natureza. Segundo a fé comum da humanidade e da Igreja, o homem é constituído por duas substâncias distintas, alma e corpo. Por substância significa-se aquilo que existe. É a entidade que tem propriedades, atributos e qualidades inerentes, da qual são manifestações. Por isso, trata-se de algo mais que de uma mera força. É algo mais que um nome coletivo para uma certa quantidade de propriedades que aparecem combinadas. É aquilo que persiste, e que permanece sem mudanças sob todos os fenômenos cambiantes a que pode estar sujeito. A substância que designamos como alma é imaterial, isto é, não tem nenhuma das propriedades da matéria. É espiritual, isto é, tem todas as propriedades de um espírito. É um agente consciente de si mesmo, inteligente, voluntário. Por outro lado, a substância que chamamos corpo é material. Isto é, tem todas as propriedades da matéria, e nenhuma das propriedades da mente ou do espírito. Este é o primeiro fato universalmente admitido a respeito da constituição de nossa natureza. 2. O segundo fato tem que ver com a natureza da união entre a alma e o corpo. É (a) uma união pessoal. A alma e o corpo constituem um homem individual, ou uma pessoa humana. Há tão somente uma consciência. É o homem ou a pessoa quem está consciente das sensações e dos pensamentos, dos afetos do corpo e dos atos da mente. (b) É uma união sem mistura ou confusão. A alma continua sendo espírito, e o corpo continua sendo matéria. O cobre e o zinco constituem uma liga de bronze. Os elementos constitutivos perdem suas características distintivas e produzem uma terceira substância. Não existe tal mistura na união da alma e do corpo: Ambas as coisas permanecem distintas. Nem Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 505 há transferência de nenhuma das propriedades da uma à outra ou viceversa. Não se transfere nenhuma das propriedades da mente ao corpo, nem se transfere nenhuma de suas propriedades do corpo à mente. (c) Entretanto, a união não é uma mera morada, uma união de contato ou no espaço. A alma não habita no corpo como um homem habita numa casa ou em suas vestimentas. O corpo é parte de si mesmo, e necessário para sua integridade como homem. Ele está em cada parte do mesmo, e é consciente de uma ligeira alteração no estado de até o menos importante de seus membros. 3. Em terceiro lugar, as consequências desta união da alma e do corpo são: (a) Uma κοινωνία ἰδιωμάτων - koinonía idiomaton, ou comunhão de atributos. Isto é, a pessoa é possuidora de todos os atributos tanto da alma como do corpo. Podemos afirmar do homem o que pode ser afirmado do seu corpo, e podemos afirmar dele tudo aquilo que se possa afirmar de sua alma. Dizemos do homem que é alto ou baixo; que está doente ou são; que é bonito ou deformado. Da mesma maneira, podemos dizer que é judicioso, sábio, bom, benevolente ou erudito. Seja o que for certo de qualquer elemento de sua constituição, é verdadeiro sobre o homem. Mas o que é certo de um destes elementos não é certo do outro. Quando o corpo fica ferido ou queimado, não é a alma que está sujeita a estes acidentes; e quando a alma está arrependida ou é crente, ou iluminada e informada, não é o corpo de quem se fala. Cada coisa tem propriedades e mudanças, mas é a pessoa ou homem quem é o sujeito de todos eles. (b) Por isso, podem-se fazer afirmações inconsistentes ou aparentemente contraditórias a respeito da mesma pessoa. Podemos dizer que é fraco e que é forte; que é mortal e imortal; que é espírito e que é pó e cinzas. (c) Podemos designar o homem com base em um elemento de sua natureza quando o que afirmamos dele é certo só do outro elemento. Podemos chamá-lo espírito, e entretanto dizer que está faminto e sedento. Podemos chamá-lo um verme da terra quando falamos dele como sujeito da regeneração. Isto é, a pessoa pode ser designada com base em quaisquer de suas duas naturezas quando o Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 506 afirmado pertence ao outro. (d) Como em virtude da união pessoal da alma e do corpo todas as propriedades de ambas as partes são as propriedades do homem, da mesma maneira todos os atos de ambas as partes são os atos do homem. Alguns de nossos atos são puramente mentais como pensar, arrepender-se e crer; alguns são puramente corporais, como o processo da digestão, assimilação e a circulação do sangue; alguns são mistos, como todos os atos voluntários, entre os que se podem mencionar andar, falar, escrever. Nestes dá-se uma concorrência ou cooperação diretas da mente e do corpo. Estas várias classes de ações são atos humanos. É o homem que pensa; é o homem que fala e escreve; e é o homem quem digere e assimila seus alimentos. (e) Uma quinta consequência desta união hipostática é a exaltação do corpo. A razão pela qual o corpo do homem e sua vida estão tão grandemente exaltados acima dos de um animal é que estão em união pessoal com uma alma racional e imortal. É também isto o que dá ao corpo seu dignidade e beleza. A magnífica plumagem de uma ave, ou a graciosa simetria do antílope, não são nada em comparação com a figura ereta e a beleza intelectual do homem. A mente irradia do corpo, e lhe comunica uma dignidade e um valor que não poderia ser possuído por nenhuma configuração da matéria. Ao mesmo tempo a alma não fica degradada por sua união com o corpo. Assim estava revestida antes da Queda, e tem que estar revestida com um corpo em seu estado glorificado no céu. A união da alma e do corpo na constituição do homem é análoga à união da natureza divina e humana na pessoa de Cristo. Não se espera que nenhuma analogia dê resposta a todas as questões. Há neste caso suficientes semelhanças para sustentar a fé e repreender a incredulidade. Não há nada em um que seja mais misterioso ou inescrutável que no outro. E como as dificuldades para a compreensão da união de duas substâncias distintas, matéria e mente, na pessoa do homem, induziram muitos a negar as realidades mais claras da consciência, assim as dificuldades do mesmo tipo que acompanham a união de duas naturezas, Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 507 uma humana e a outra divina na pessoa de Cristo, levaram muitos a rejeitar os fatos mais claros da Escritura. § 2. Os fatos escriturísticos a respeito da Pessoa de Cristo Os fatos que a Bíblia ensina a respeito da pessoa de Cristo são, primeiro, que Ele era verdadeiramente homem, isto é, que tinha uma natureza humana perfeita ou completa. Por isso, tudo o que se pode afirmar do homem (isto é, do homem como homem, e não do homem como caído) pode-se afirmar de Cristo. Segundo, Ele era verdadeiramente Deus, ou tinha uma natureza divina perfeita. Por isso, tudo o que se pode afirmar de Deus pode-se afirmar de Cristo. Terceiro, Ele era uma pessoa. A mesma pessoa, eu, ou Ego, que disse «tenho sede», disse: «Antes que Abraão existisse, EU SOU.» Esta é toda a doutrina da encarnação tal como se encontra nas Escrituras e na fé da Igreja. Prova da doutrina. A prova desta doutrina inclui três classes distintas de passagens da Escritura, ou pode-se apresentar de três formas diferentes. Primeiro, a prova dos vários elementos da doutrina separadamente. Segundo, a linguagem própria das Escrituras que falam de Cristo, do princípio ao fim, às vezes como homem, às vezes como Deus; e que combinam as duas formas de descrição, ou que passam de uma a outra com tanta naturalidade e facilidade como o fazem quando falam do homem como mortal e imortal, ou como corpóreo e espiritual. Terceiro, há certas passagens da Escritura em que a doutrina da encarnação é apresentada de maneira formal e declarada dogmaticamente. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 508 Primeiro argumento: Todos os elementos da doutrina são ensinados separadamente. Primeiro, as Escrituras ensinam que Cristo era verdadeiramente homem, ou, que tinha uma natureza humana completa. Isto é, que Ele tinha um verdadeiro corpo e uma alma racional. Cristo tinha um verdadeiro corpo. Por verdadeiro corpo se significa um corpo material, composto de carne e sangue, semelhante em tudo o que é essencial aos corpos dos homens comuns. Não era um fantasma, nem uma mera semelhança de corpo. Tampouco foi formado de uma substância celestial ou etérea. Isto está claro, porquanto nasceu de mulher. Foi concebido no corpo da Virgem Maria, alimentado de sua substância de modo que foi consubstancial com ela. Seu corpo cresceu em estatura, passando através do processo comum de infância à idade adulta. Esteve sujeito a tudo o que afeta um corpo humano. Esteve sujeito à dor, ao prazer, à fome, à sede, à fadiga, ao sofrimento, e à morte. Podia ser visto, sentido e tocado. As Escrituras declaram que era de carne e sangue. «Visto, pois, que os filhos têm participação comum de carne e sangue, destes também ele, igualmente, participou» (Hb 2:14). Nosso Senhor disse a Seus aterrorizados discípulos: «Um espírito não tem carne nem ossos, como vedes que eu tenho» (Lc 24:39). Ele foi anunciado no Antigo Testamento como a semente da mulher; a semente de Abraão; o Filho de Davi. Foi declarado como homem, Varão de Dores; o Homem Cristo Jesus; e Ele Se designou a Si mesmo como o Filho do Homem. Esta designação aparece umas oitenta vezes no Evangelho. Assim, nada se revela a respeito de Cristo com maior clareza que o fato de que Ele tinha um verdadeiro corpo. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 509 Cristo tinha uma alma racional. Não está menos claro que Ele tinha uma alma racional. Ele pensava, raciocinava e sentia; sentia alegria e dor; aumentou em sabedoria; desconhecia quando chegaria o dia do juízo. Portanto, deve ter possuído uma inteligência humana finita. Estes dois elementos, um verdadeiro corpo e uma alma racional, constituem uma perfeita natureza humana, completa, e assim fica demonstrado que formou parte na composição da pessoa de Cristo. Cristo é verdadeiramente Deus. Segundo, as Escrituras declaram, com a mesma clareza, que Cristo era verdadeiramente Deus. Isto já ficou extensamente demonstrado. A Ele são aplicados todos os nomes e títulos divinos. Ele é chamado Deus, o Deus forte, o grande Deus, Deus sobre todas as coisas; Jeová; Senhor; Senhor dos senhores e Rei dos reis. A Ele são adscritos todos os atributos divinos. Declara-se dEle que é onipresente, onisciente, onipotente e imutável, o mesmo ontem, e hoje, e pelos séculos. É exposto como o Criador e Sustentador e Governador do universo. Todas as coisas. foram criadas por Ele e para Ele; e nEle todas as coisas consistem. Ele é o objeto da adoração de todas as criaturas inteligentes, inclusive das mais exaltadas; manda-se a todos os anjos (isto é, todas as criaturas entre o homem e Deus) que se prostrem diante dEle. Ele é o objeto de todos os sentimentos religiosos, de reverência, amor, fé e devoção. Para Ele os homens e anjos são responsáveis por seu caráter e conduta. Ele demandou que os homens O honrem como honram ao Pai, que exerçam a mesma fé nEle que a que exercem em Deus. Declara que Ele e o Pai são um, que os que viram a Ele viram deste modo o Pai. Chama a todos os homens a Si mesmo; promete perdoar seus pecados; enviar-lhes o Espírito Santo; dar-lhes repouse e paz; ressuscitá-los no último dia, e dar-lhes a vida eterna. Deus não é mais, não pode prometer mais, nem fazer mais, que o que se diz que Cristo é, que promete e que Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 510 faz. Por isso, Ele foi desde o princípio o Deus do cristão, em todas as épocas e em todos os lugares. Cristo é uma Pessoa. Terceiro, Ele era, embora um homem perfeito e Deus perfeito, uma só pessoa. Acima de tudo, há uma total ausência de toda evidência de uma dupla personalidade em Cristo. As Escrituras nos revelam o Pai, o Filho e o Espírito Santo como pessoas distintas na Deidade, porque empregam os pronomes pessoais com referência a cada uma das outras. O Pai diz Tu ao Filho, e o Filho diz Tu ao Pai. O Pai diz ao Filho: «Darte-ei»; e o Filho diz. «Eis aqui, vim para fazer a tua vontade». Além disso, um é objetivo para o outro. O Pai ama e envia o Filho; o Filho ama e obedece ao Pai. O mesmo sucede com o Espírito. Nada tem de análogo a isto no caso de Cristo. A natureza humana nunca se distingue da divina como pessoa distinta. O Filho de Deus nunca Se dirige ao Filho do Homem como uma pessoa diferente a Si mesmo. As Escrituras não revelam mais que um Cristo. Em segundo lugar, além desta prova negativa, a Bíblia oferece todas as provas da personalidade individual de nosso Senhor que o caso admite. Ele sempre diz Eu, meu. Sempre é abordado como Tu, ti, te. As referências a Ele são sempre como Ele, seu, dEle, a Ele. Foi à mesma pessoa a que se lhe disse: «Ainda não tens cinquenta anos»; e, «Tu, ó Senhor, no princípio puseste os fundamentos da terra, e os céus são obra das tuas mãos». A personalidade individual de Cristo é exposta tão clara e variadamente como a de qualquer outro personagem cuja história está registrada na Escritura. Ao ensinar que Cristo tinha uma natureza humana perfeita e uma natureza divina perfeita, e que é uma pessoa, a Bíblia nos ensina toda a doutrina da encarnação tal como entrou na fé da Igreja desde o princípio. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 511 Segundo argumento, com base nas exposições próprias da Escritura. A linguagem própria da Escritura a respeito de Cristo demonstra que Ele era ao mesmo tempo divino e humano. No Antigo Testamento Ele é exposto como a semente de Abraão, da tribo de Judá e da família de Davi; que nasceria de uma virgem na cidade de Belém; como varão de dores; como manso e humilde; como portador do castigo de nossos pecados, e derramando Sua alma até a morte. Em todas as partes é descrito como homem. Ao mesmo tempo é em todas as partes descrito como Deus; é chamado o Filho de Deus, Emanuel, o Deus Forte, Jeová nossa justiça; e fala-se dEle como sendo desde a eternidade; como entronizado no céu e recebendo a adoração dos anjos. No Novo Testamento continua a mesma classe de descrição. Nosso Senhor, referindo-Se a Si mesmo, e os Apóstolos, ao falar dEle, referemse uniformemente a Ele como um homem. O Novo Testamento dá Sua genealogia para demonstrar que era da família e linhagem de Davi. Registra Seu nascimento, vida e morte. Chama-O o Filho do Homem, o homem Cristo Jesus. Mas com a mesma uniformidade nosso Senhor assume, e os Apóstolos atribuem a Ele, uma natureza divina. Ele declara ser como o Filho de Deus, existindo desde a eternidade, possuindo todo poder no céu e na terra, com direito a toda a reverência, amor e obediência devidos a Deus. Os Apóstolos O adoram; chamam-nO o grande Deus e Salvador; reconhecem sua dependência dEle e sua responsabilidade para com Ele; e eles esperam nEle para o perdão, santificação e vida eterna. Estas descrições conflitivas, esta constante exposição da mesma pessoa como homem e também como Deus, não admite solução à parte da doutrina da encarnação. Esta é a chave de toda a Bíblia. Se esta doutrina é negada, tudo é confusão e contradição. Se é admitida, tudo é luz, harmonia e poder. Cristo é ao mesmo tempo Deus e homem, em duas naturezas distintas, e uma pessoa para sempre. Este é o grande mistério da piedade: Deus manifestado em carne é a doutrina Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 512 distintiva da religião da Bíblia, sem a qual é só um cadáver frio e sem vida. Terceiro argumento, com base em passagens particulares da Escritura. Embora, pelo que já dissemos, a doutrina da encarnação não repousa em alguns textos de prova isolados, mas na ampla base de toda a revelação de Deus a respeito da pessoa e obra de Seu Filho, há entretanto algumas passagens nas quais esta doutrina fica tão claramente exposta em todos os seus elementos que não se podem passar por alto ao tratar esta questão. A esta classe de passagens pertence: 1. O primeiro capítulo de João, vv. 1-14. Aqui se ensina a respeito do Logos: (1) Que Ele existia na eternidade. (2) Que estava em íntima relação com Deus. (3) Que Ele era Deus. (4) Que Ele foi o Criador de todas as coisas. (5) NEle estava a vida. Tendo vida em Si mesmo, Ele é a fonte de vida para todos os viventes. Isto é, Ele é a fonte de vida natural, intelectual e espiritual. (6) Por isso, Ele é a verdadeira luz, isto é, a fonte de todo conhecimento e de toda santidade. (7) Ele veio ao mundo, e o mundo, embora feito por Ele, não O reconheceu. (8) Ele veio aos Seus, e inclusive eles não O receberam. (9) Fez-se carne, isto é, assumiu nossa natureza, de maneira que habitou entre nós como homem. (10) E, diz o Apóstolo, vimos a Sua glória, glória que O revelou como o Unigênito do Pai. Aqui se ensina que uma pessoa verdadeiramente divina, o Verbo eterno, o Criador do mundo, fez-se homem, habitou entre os homens, e Se revelou a Si mesmo àqueles que tinham olhos para ver, como o eterno Filho de Deus. Aqui temos toda a doutrina da encarnação, ensinada nos termos mais explícitos. 2. Uma segunda passagem no mesmo sentido é aquela que se encontra em 1Juan 1:1-3. Nela se ensina que o que era desde o princípio, o que estava com Deus, o que era eterno, o que essencialmente era vida, apareceu sobre a terra, de modo que pôde ser visto, ouvido, contemplado Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 513 e tocado. Aqui, mais uma vez, diz-se de uma pessoa divina, invisível, eterna que assumiu nossa natureza, um corpo real e uma alma racional. Podia ser vista e tocada, além de ouvida. Esta é a principal ideia desta epístola. A encarnação é declarada como a doutrina característica e essencial do evangelho. «Todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus; e todo espírito que não confessa a Jesus não procede de Deus; pelo contrário, este é o espírito do anticristo, a respeito do qual tendes ouvido que vem e, presentemente, já está no mundo.» 3. Em Romanos 1:2-5, o Apóstolo diz que o evangelho trata do Filho de Deus, que é nosso Senhor Jesus Cristo, que, quanto à Sua natureza humana, κατὰ σάρκα - kata sarka, é o Filho de Davi, mas que quanto à Sua natureza divina, κατὰ πνεῦμα - kata pneuma, é o Filho de Deus. Aqui também se enunciam claramente as duas naturezas e a única personalidade do Redentor. A passagem paralela a esta é Romanos 9:5, onde se diz de Cristo que κατὰ σάρκα - kata sarka descende dos pais, mas que ao mesmo tempo é Deus sobre todas as coisas, e bendito para sempre. Da mesma pessoa diz-se que é o supremo Deus e filho de Abraão, membro da nação hebraica por linhagem natural. 4. Em 1 Timóteo 3:16 somos ensinados que Deus foi «manifestado na carne, justificado no Espírito, visto dos anjos, pregado aos gentios, crido no mundo, e recebido acima na glória». Nesta passagem é verdade que há uma variante duvidosa. O texto comum em que aparece Θεός Theos tem o apoio de quase todos os manuscritos cursivos e de alguns dos unciais, de várias das versões, e de muitos dos pais gregos. Mas tanto se lemos Θεός - Theos como ὁς - hos o significado é basicamente o mesmo. Há duas coisas que estão claras; primeiro, que todos os predicados neste verso pertencem a um só sujeito; e segundo, que o sujeito é Cristo. Ele, Sua pessoa, é o grande mistério da piedade. Ele foi manifestado em carne (isto é, em nossa natureza); Ele, assim manifestado, o Teantropo, foi justificado, isto é, foi demonstrada Sua justiça, isto é, que Ele era o que afirmava ser (ou seja, o Filho de Deus), pelo Espírito, bem pela natureza ou majestade divina habitando nEle, ou Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 514 pelo Espírito Santo, cuja função é tomar as coisas de Cristo e no-las revelar. Ele, este Deus encarnado, foi visto, isto é, reconhecido e servido por anjos; pregado entre os gentios como o Filho de Deus e Salvador dos homens; crido como tal; e finalmente recebido na glória. Tudo o que a Igreja ensina a respeito da pessoa de Cristo é aqui ensinado pelo Apóstolo. 5. Entretanto, nenhuma passagem é mais clara e explícita a respeito desta questão que Filipenses 2:6-11. Nesta passagem se ensina, do mesmo indivíduo ou pessoa: (1) Que Ele era Deus, ou que existia na forma de Deus. A forma de uma coisa é o modo em que se revela, e é determinada por sua natureza. Não é necessário supor que μορφή morphé tenha aqui, como sucede em outros casos, o sentido de φύσις phusis; o último é implicado no primeiro. Ninguém pode aparecer, nem existir à vista dos outros em forma de Deus, isto é, manifestando todas as perfeições divinas, se não é Deus. (2) Por isso, afirma-se que a pessoa de quem se fala era igual a Deus. (3) Ele fez-se homem como outros homens, e assumiu a forma de um servo, isto é, apareceu como servo entre os homens. (4) Submeteu-se a morrer na cruz. (5) Foi exaltado sobre todos os seres criados, e investido com uma autoridade universal e absoluta. Assim, Cristo, de quem trata esta passagem, tem uma natureza divina e uma natureza humana, e é uma pessoa. 6. Em Hebreus 2:14 ensina-se claramente a mesma doutrina a respeito da pessoa de Cristo. No primeiro capítulo daquela Epístola, declara-se do Filho que Ele é o resplendor da glória do Pai e a imagem expressa de Sua substância (isto é, pelo que o Pai é). O universo foi feito por Ele. Ele sustenta todas as coisas com a palavra do Seu poder. Ele é mais sublime que todos os anjos, isto é, que todas as criaturas inteligentes. Eles devem adorá-Lo. São descritos como meros instrumentos, mas o Filho como Deus. Ele fez os céus e estabeleceu os fundamentos da terra; Ele é eterno e imutável. Ele está associado com Deus em glória e domínio. Ele, a pessoa de quem se diz tudo isto no primeiro capítulo, é exposto no segundo como homem. NEle se cumpriu Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 515 tudo o que tinha ensinado o escritor sagrado no oitavo salmo a respeito do domínio universal atribuído ao homem. Os homens são declarados como Seus irmãos, porque Ele e eles participam da mesma natureza. Porquanto eles participaram de carne e de sangue, também Ele participou do mesmo, para poder morrer, e mediante a morte redimir o Seu povo de todos os males do pecado. Nada pode estar mais claro que o fato de que as Escrituras ensinam que Cristo é verdadeiramente Deus, que Ele é verdadeiramente homem, e que Ele é uma pessoa. Elas afirmam dEle tudo o que se pode ser dito de Deus, e tudo o que se pode dizer de um homem isento de pecado.. Não entram em dar explicações. Elas assumem como um fato certo que Cristo é Deus e homem numa pessoa, assim como assumem que o homem é alma e corpo numa pessoa. Aqui poderia ser deixada a questão. Todos os fins da vida espiritual do crente recebem resposta mediante o simples enunciado da doutrina a respeito da pessoa de Cristo tal como é apresentada na Escritura. Entretanto, as falsas explicações criam a necessidade de uma explicação correta. Os hereges de todas as épocas explicaram de tal maneira os fatos registrados a respeito de Cristo que quer têm negado a verdade a respeito da natureza divina, ou a integridade de Sua natureza humana, ou a unidade de Sua pessoa. Por isso, a Igreja se viu constrangida a ensinar o que está envolvido na doutrina da Bíblia: primeiro, quanto à natureza da união das duas naturezas em Cristo; e segundo, quanto às consequências desta união. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II § 3. A união hipostática. 516 Duas naturezas em Cristo. Existe uma união. Os elementos unidos são a natureza humana e a divina. Por natureza, neste contexto, significa-se substância. Em grego, as palavras correspondentes são φοσις - phusis e οὐσία - ousia; em latim, natura e substantia. A ideia de substância é necessária. Somos levados a crer que onde vemos a manifestação de uma força há algo, um ente objetivo que age, e do que a força é uma manifestação. Es evidente por sí mismo que un non-ens no puede actuar. Podrá ser bueno aquí recordar unos pocos principios admitidos que ya han sido repetidamente observados: (1) É intuitivamente certo que os atributos, as propriedades e o poder ou a força, implicam necessariamente uma substância da qual sejam a manifestação. De nada, nada se pode afirmar. Aquilo do que possamos afirmar os atributos quer da matéria, quer da mente, deve ser necessariamente uma realidade. (2) Não é menos certo que onde os atributos sejam incompatíveis, as substâncias devem ser diferentes e distintas. Aquilo que tem extensão não pode carecer de extensão. O que é divisível não pode ser indivisível. O que é incapaz de pensamento não pode pensar. O finito não pode ser infinito. (3) Igualmente é verdade que os atributos não podem existir distintos e separados da substância. Não pode haver accidentia sine subjecto; em caso contrário poderia haver extensão sem nada estendido, e pensamento sem nada que pense. (4) Do mesmo modo, é intuitivamente certo que os atributos de uma substância não podem transferir-se a outra. A matéria não pode estar dotada dos atributos da mente; porque então deixaria de ser matéria. A mente não pode ser investida com as propriedades da matéria, porque então deixaria de ser mente; tampouco a humanidade pode ser possuída pelos atributos da divindade, porque então deixaria de ser humanidade. Isto é só dizer que o finito não pode ser infinito. Falando em termos gerais, estes princípios foram reconhecidos como axiomáticos em toda a história do pensamento humano; e a negação dos mesmos põe fim a toda discussão. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 517 Se são admitidos os princípios anteriores, segue-se com isso que ao expor o Seu Filho como revestido de todos os atributos da humanidade, com um corpo nascido de mulher, que aumentou em estatura, que foi visto, sentido e tocado; e com uma alma que se turvava, que se alegrava e que aumentava em sabedoria e que desconhecia certas coisas, Deus quer e demanda que creiamos que era um verdadeiro homem – não um fantasma, nem uma abstração, – não um complexo de propriedades sem a substância da humanidade, mas um homem verdadeiro ou real, como os outros homens, mas isento de pecado. Da mesma maneira, quando é declarado como Deus sobre todas as coisas, como onisciente, onipotente e eterno, não é menos evidente que Ele tem uma natureza verdadeiramente divina; que a substância de Deus nEle é o sujeito em que são inerentes todos estes atributos divinos. Sendo assim, somos ensinados que os elementos combinados na constituição de Sua natureza, isto é, Sua humanidade e divindade, são duas naturezas ou substâncias distintas. Esta foi a fé da Igreja universal. Naqueles credos antigos que foram adotados pelas Igrejas Grega, Latina e Protestante, declara-se que Cristo é, com relação à Sua humanidade, consubstancial conosco, e quanto à Sua divindade, consubstancial com o Pai. No Concílio de Calcedônia a Igreja declarou que nosso Senhor era: 305 Θεὸν ἀληθῶς καὶ ἄνθρωπον ἀληθῶς τὸν αὐτὸν ἐκ ψυχῆς λογικῆς καὶ σώματος, ὀμοούσιον τῷ πατρὶ κατὰ τὴν θεότητα καὶ ὁμοούσιον τὸν αὐτὸν ἡμῖν κατὰ τὴν ἀνθρωπότητα - Theon alethos kai anthropon alethos ton auton ek puches logikes kai somatos, omoousion to patri kata ten theoteta kai homoousion ton auton hemin kata ten anthropoteta. Tomás de Aquino diz: 306 “Humana natura in Christo quamvis sit substantia particularis: qui tamen venit in unionem cujusdam completi, scilicet totius Christi, prout est Deus et homo, non potest dici hypostasis vel suppositum: Sed illum completum ad quod concurrit, dicitur esse 305 306 Actio Quinta, Binius, Concilia Generalia, vol. ii. part 1, p. 253, e. Summa, III. quæst. ii. art 3, edit. Cologne, 1640, p. 5 of fourth set. Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 518 hypostasis vel suppositum.” Em todos os credos da Reforma, a mesma doutrina apresenta-se. Na “Confissão do Augsburgo” 307 diz-se: “Filius Dei assumpsit humanam naturam in utero beatæ Mariæ virginis, ut sint duæ naturæ, divina et humana, in unitate personæ inseparabiliter conjunctæ, unus Christus, vere Deus et vere homo.” “Natura (φύσις, οὐσία) in Christo est substantia vel divinitatis vel humanitatis. Persona (ὑπόστασις, πρόσωπον) Christi est individuum ex utraque natura et divina et humana, conjuncta, non mixta, concretum.” 308 Na “Segunda Confissão Helvética” 309 diz-se: “Agnoscimus in uno atque eodem Domino nostro Jesu Christo, duas naturas (para natura se usa substantia en otras partes el capítulo), divinam et humanam. . . . . In una persona unitæ vel conjunctæ [sunt]: ita ut unum Christum Dominum, non duos veneremur: unum inquam verum Deum, et hominem, juxta divinam naturam Patri, juxta humanam vero nobis hominibus consubstantialem, et per omnia similem, peccato excepto.” Portanto, os teólogos ensinam: 310 “Natura divina est essentia divina, qua Christus Patri et Spiritui Sancto coessentialis est. Natura humana est essentia seu substantia humana, qua Christus nobis hominibus coessentialis est.” Ou, como diz-se nos antigos credos, Cristo não é ἄλλος καὶ ἄλλος - allos kai allos (uma pessoa e outra pessoa), e sim ἄλλο καὶ ἄλλο - allo kai allo (uma substância e outra substância). As duas naturezas estão unidas, mas não misturadas nem confundidas. Vimos que o primeiro ponto importante relativo à pessoa de Cristo é que os elementos unidos ou combinados em Sua pessoa são duas substâncias distintas, a humanidade e a divindade; que Ele tem em Sua constituição a mesma essência ou substância que nos constitui homens, e 307 III.; Hase, Libri Symbolici, p. 10. Hase’s Hutterus Redivivus, sixth edition, p. 224. 309 Cap. XI.; Niemeyer, Collectio Confessionum, p. 484. 310 Polanus, Syntagma Theologiæ, vi. 12, Hanoviæ, 1625, p. 362, a, b. 308 Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 519 a mesma substância que faz Deus infinito, eterno e imutável em todas as Suas perfeições. O segundo ponto é que essa união não ocorre por mistura, de modo que se produz uma nova substância, uma terceira, que não é nem humanidade nem divindade, mas que possui as propriedades de ambas. Esta é uma impossibilidade, visto que as propriedades em questão são incompatíveis. Não podemos misturar mente e matéria a fim de que uma substância que não é nem mente nem matéria, mas matéria espiritual, porque isso seria uma contradição. Isso equivaleria à extensão não estendida, tangível intangibilidade, ou visível invisibilidade. Tampouco é possível que a natureza divina e humana deve ser tão misturadas para dar lugar a uma terceira, que não é nem puramente humana nem puramente divina, mas sim teantrópica. A pessoa de Cristo é teantrópica, mas não Sua natureza, pois isso faria o finito infinito, e o infinito finito. Cristo não seria nem Deus nem homem, mas constantemente as Escrituras declaram que Ele é tanto Deus como homem. Em todos os credos cristãos, portanto, declara-se que as duas naturezas em Cristo conservam cada uma suas próprias propriedades e atributos. Todos eles ensinam que as natureza não se confundem: “Sed salvis potius et permanentibus naturarum proprietatibus in una persona unitæ vel conjunctæ.” Portanto, assim como o corpo humano retém todas as suas propriedades como matéria; e a alma todos os seus atributos como espírito em sua união em nossas pessoas, assim a humanidade e a divindade retêm cada uma suas propriedades peculiares em sua união na pessoa de Cristo. E assim como a inteligência, a sensibilidade e a vontade são propriedades da alma humana, segue-se disso que a alma humana de Cristo reteve sua inteligência, sensibilidade e vontade. Mas a inteligência e a vontade não são menos as propriedades essenciais da natureza divina, e por isso ficaram retidas depois de sua união com a natureza humana em Cristo. Assim, ao ensinar que Cristo era verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus, as Escrituras ensinam que Ele tinha uma inteligência e uma vontade finitas, e deste modo uma Teologia Sistemática (Hodge) – Volumes I, II, II 520 inteligência infinita. Assim, nEle, como a Igreja sempre manteve, havia e há duas vontades, dois ἐνέργειαι - energiai ou operações. Seu intelecto humano cresceu, e Sua inteligência divina era, e é, infinita. Sua vontade humana tinha só poder humano, mas Seu poder divino era e é onipotente. Por misterioso e inescrutável que seja tudo isto, não o é mais que a união dos discordantes elementos da mente e da matéria em nossa própria constituição. Não há transferência de atributos de uma natureza para a outra. O terceiro ponto com relação à pessoa de Cristo é que nenhum atributo de uma natureza se transfere à outra. Isto fica virtualmente incluído no que já se tem dito. Entretanto, há aqueles que admitem que as duas naturezas de Cristo não se misturam nem se confundem, mas mantêm que os atributos de uma se transferem à outra. Mas as propriedades ou atributos de um